Estarei lá na APPOA dizendo umas bobagens. Ver o filme é de “de grátis” e, se minha fala for pura enrolação, sempre haverá o conhecimento e a consistência do Enéas e do Robson.
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Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa
Milton Ribeiro
Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.
Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.
Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.
Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.
Guia21: Teu nome completo é?
Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.
Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?
Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.
Guia21: Faziam saraus na tua casa?
Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.
Guia21: E então, como tudo começou?
Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.
Guia21: Sem acompanhamento?
Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.
Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?
Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.
Guia21: E tu entraste no Belas Artes.
Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.
Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?
Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.
Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?
Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)
Guia21: Como era a Ospa naquela época?
Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!
Guia21: Onde foi?
Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).
Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.
Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.
Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.
Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.
Guia21: E seguiste cantando.
Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.
Guia21: Mas tu acabaste viajando.
Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?
Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?
Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.
Guia21: E a paixão?
Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.
Guia21: Cantaste muito na Espanha?
Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.
Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?
Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.
Guia21: E voltaste…
Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.
Guia21: E foste ver a família.
Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.
Guia21: Perigo.
Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.
Guia21: E o que fizeste?
Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.
Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…
Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.
Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.
Télvio: Sim, molhava tudo.
Guia21: E a carreira?
Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.
Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?
Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.
Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.
Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.
Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?
Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.
Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.
Guia21: Mas tu és formado em…
Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.
Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?
Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!
Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.
Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…
Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?
Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.
Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.
Télvio: Sim.
Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?
Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.
Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.
Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.
Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?
Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.
Guia21: Tu passa os dias escutando música?
Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.
Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.
Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.
Guia21: Tu cantarolas por aí?
Télvio: Não. Nada.
Guia21: Nada?
Télvio: Nada.
Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?
Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.
Guia21: E tu frequentas concertos?
Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.
Guia21: Tu não ficaste frustrado?
Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.
Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.
Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…
Guia21: Isso eu estou ouvindo.
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Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.
Espetáculo “Música, Alimento do Amor”
Se a música é o alimento do amor não parem de tocar. Deem-me música em excesso; tanta que, depois de saciar, mate de náusea o apetite”
William Shakespeare
Em “Música, Alimento do Amor”, Fernando Rauber (cravo) e Andiara Mumbach (voz) apresentam canções inglesas renascentistas e barrocas dos compositores Thomas Morley (1557-1602), John Dowland (1563-1626), Robert Johnson (1583-1633) e Henry Purcell (1659-1695), intercaladas por solos para cravo do Fitzwilliam Virginal Book, coleção para teclado das eras Elizabetana e Jacobina na Inglaterra.
O período Elizabetano (1558-1603), final da dinastia dos Tudor na Inglaterra, simboliza o apogeu da Renascença na Inglaterra, tardia em relação ao restante da Europa porém especialmente rica na música e na literatura, tendo como Shakespeare um de seus maiores expoentes.
O espetáculo conta com a direção de arte de Cláu Paranhos, artista porto-alegrense.
SOBRE OS ARTISTAS:
A soprano Andiara Mumbach é formada em canto pela Universidade Federal de Santa Maria. Foi professora de técnica vocal no Projeto de Extensão do Curso de Música da UFSM e preparadora vocal do Coro de Câmara da mesma instituição. Ministra aulas de canto e dedica-se especialmente ao repertório barroco e à música de câmara.
Fernando Rauber é Doutor em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integra a Orquesta de Caxias do Sul e o grupo porto-alegrense Sphaera Mundi Orquestra. Foi um dos laureados no concurso Jovens Solistas da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre em 2006 e, em 2007, selecionado para ser bolsista do Chautauqua Music Festival em Chautauqua, NY, Estados Unidos. Entre 2011 e 2017 atuou como professor no Curso de Licenciatura em Música da Universidade de Caxias do Sul.
Cláu Paranhos é artista, arte educadora, agente cultural e pesquisadora na área de artes visuais. É Mestre (UFPel), Licenciada e Bacharel (UFRGS) em Artes Visuais. Participa e produz oficinas, exposições e ações artísticas individuais e coletivas. Atualmente, cria as “Bonecas Feias”, produção poética que questiona os padrões culturais do corpo. Atua no Conselho Municipal de Cultura na cidade de Pelotas, é Presidente da Associação de Amigos do Museu Júlio de Castilhos e Vice-presidente da Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa.
SERVIÇO:
Recital “Música, Alimento do Amor”
Dia 24/11/2018, às 18h
No Museu Júlio de Castilhos
Rua Duque de Caxias, 1205, Centro Histórico, Porto Alegre.
Ingressos: R$40,00
Meia entrada para estudante e idoso
20% de desc. para amigos da Associação de Amigos do Museu Júlio de Castilhos
Antecipados no Museu ou pelo whatsapp: (51) 98220.3707
CONTATO PRODUÇÃO: (51) 98220.3707
CRÉDITOS VÍDEO (link) e CARTAZ: Cláu Paranhos
O Paul McCartney que esteve no Beira-Rio em outubro do ano passado
Duas semanas após a vinda do The Who, Porto Alegre recebeu outra lenda do rock britânico. Paul McCartney carrega em si a aura de ser o mais importante dos dois sobreviventes do grupo mais que mais influenciou a música popular no século XX, os Beatles. Ao final desta matéria, colocamos a lista de canções que foram tocadas no show. É uma impressionante lista de 39 joias — 2 horas e meia! — e, quando a lemos, lembramos de uma montanha de outras que ficaram de fora. É que McCartney compôs tanto, principalmente entre os anos 60 e 80, que poderia montar vários shows de 39 canções. Foi algo efetivamente grandioso, pois, assim como não economiza no tamanho dos shows, McCartney faz sempre questão de ser acompanhado por um super time de músicos.
O espetáculo, chamado One on One Tour, começou em abril de 2016 – em maio do ano passado, por exemplo, ele passou sobre as cabeças dos brasileiros para fazer dois shows na Argentina. Desta forma, McCartney e chegaram em plena forma para tocar em Porto Alegre. Afinal, de 5 de julho e 2 de outubro, a trupe fez várias apresentações nos EUA onde interpretou o que se espera deles: clássicos dos Beatles, canções da carreira solo de Paul e também as melhores do Wings. Além do óbvio, tivemos In Spite of All Danger, escrita em 1958, quando ele, John Lennon e George Harrison integravam o grupo The Quarrymen.
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Sir James Paul McCartney nasceu em Liverpool no dia 18 de junho de 1942. Portanto, é um senhor de 76 anos. Cantor, compositor, multi-instrumentista (principalmente baixista), produtor musical, produtor cinematográfico e ativista dos direitos dos animais, formou com John Lennon uma das mais importantes e bem sucedidas parcerias musicais de todos os tempos. Porém, na verdade, eles escreviam as canções individualmente e depois as mostravam um para o outro, o qual propunha ou não alterações. Após o processo, sempre assinavam juntos. É simples reconhecer a autoria original: nos Beatles, Paul era o cantor principal de suas músicas e John das dele. Este esquema nunca foi alterado. Então, por exemplo, como Lennon é a principal voz de Strawberry Fields Forever, a canção é dele, já Eleanor Rigby é de McCartney e assim por diante. Mas há uma exceção: A Day in the Life é uma parceria real.
Após a dissolução dos Beatles em 1970, Paul lançou-se numa carreira solo de sucesso. Fez dois discos solo, depois formou uma banda com sua primeira mulher, Linda McCartney, os Wings, e voltou à carreira solo. Também trabalhou com música clássica, eletrônica e trilhas sonoras.
Em 1979, o Livro Guinness dos Recordes firmou-o como o compositor musical de maior sucesso da história da música mundial de todos os tempos. McCartney teve 29 composições de sua autoria no primeiro lugar das paradas de sucesso dos EUA, vinte das quais junto com os Beatles e o restante em sua carreira solo ou com o Wings.
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Os Beatles tinham três compositores. A coincidência de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison terem nascido quase ao mesmo tempo em Liverpool e se tornado amigos na adolescência é notável e, penso, irrepetível. É como se – guardadas as proporções para maior ou menor – Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento tivessem nascido na mesma cidade, se tornado amigos e trabalhassem juntos desde a juventude, produzindo e competindo dentro de um grupo. E, se acrescentarmos a isto a presença do produtor, arranjador e pianista George Martin desde as primeiras gravações, chegaremos à conclusão de que os caras tiveram muita sorte mesmo. Todo o resultado está minuciosamente documentado – em som e imagens – podendo ser revivido nesta sexta-feira por este senhor de 76 anos.
Do trio de compositores dos Beatles, Paul era o mais acessível e melodioso; John, o contestador; e George Harrison, o mais “instrumentista” dos três. Em cada disco dos Beatles havia de cinco a seis canções de McCartney, o mesmo número para Lennon e uma ou duas de Harrison.
Ver o documentário Beatles Anthology, datado de meados dos anos 90, é ter contato com uma enorme e incontrolável explosão de juventude, alegria e criatividade. Afeta qualquer um. O imenso livro The Beatles (da Revista Rolling Stone) tem uma apaixonada introdução de Leonard Bernstein (1918-1990). Bernstein é uma figura única, pois além de ter sido um respeitadíssimo regente de orquestra, foi pianista e um consistente compositor de música erudita. Como se não bastasse, escreveu musicais para a Broadway, sendo de sua autoria talvez o melhor deles, West Side Story, que recebeu no Brasil a impecável tradução de Amor, Sublime Amor. O texto que ele escreve é o de um fã e demonstra algumas preferências curiosas. Diz que, em sua opinião, a melhor música do disco Revolver é She said, she said (Lennon). Elogia também Eleanor Rigby (McCartney), Norwergian wood (Lennon), Paperback writer (Lennon), She´s leaving home (McCartney), For no one (McCartney), In my life (Lennon) , I Will Follow the Sun (McCartney), Helter skelter (McCartney), Strawberry fields forever (Lennon), The fool on the hill (McCartney), etc. São tantas que poderíamos voltar ao tema das 39 canções do qual já falamos.
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Aos 15 anos, em 1957, McCartney conheceu John Lennon ao assistir ao show de uma banda chamada Quarrymen em Woolton (subúrbio de Liverpool) da qual Lennon era guitarrista. Esta seria a banda que daria origem aos Beatles. A entrada de Paul para a turma se deu após Lennon vê-lo tocando a canção Twenty Flight Rock de Eddie Cochran. Um ano depois, McCartney convenceu Lennon a aceitar George Harrison na banda.
Os Quarrymen mudaram de nome várias vezes até se decidirem por The Beatles. Em 1960, a banda foi pela primeira vez tocar em Hamburgo. Tocavam diariamente por horas e horas em bares. Jim McCartney relutou bastante em deixar seu filho ainda adolescente viajar para a Hamburgo. Em 1961, os Beatles fizeram seus primeiros e célebres shows no Cavern Club.
Após Paul McCartney notar que outras bandas de Liverpool tocavam as mesmos covers que eles, ele e John se intensificaram a criação de canções próprias. 61 foi ainda o ano que eles conheceram Brian Epstein, o empresário que lhes conseguiu um contrato com a EMI Parlophone. Com a assinatura do contrato, Pete, o baterista, foi dispensado e em seu lugar entrou Ringo Starr. Estava formado o Fab Four.
Nos Beatles, McCartney era o que mais escrevia canções românticas. São de sua autoria Yesterday, And I Love Her, Michelle e Here There and Everywhere e muitas mais. A canção Yesterday é a mais regravada por outros artistas em todos os tempos. Embora Paul sempre fosse “acusado” de só escrever baladas, ele também escreveu várias canções com um estilo mais pesado como Back In The USSR e Helter Skelter.
Depois que Brian Epstein morreu, em 1967, McCartney e Lennon disputaram asperamente a escolha de um novo empresário para a banda. A morte de Epstein foi o início do fim. Em 1969, McCartney tentou convencer os outros beatles de voltarem a fazer apresentações ao vivo — tinham deixados de fazê-las em 1965 — , intenção que foi negada pelo restante do grupo. Neste mesmo ano, por sua sugestão, os Beatles gravaram o documentário Let It Be pensando que isto os reaproximaria, o que não aconteceu. Em dia 10 de abril de 1970 Paul McCartney anunciou publicamente o fim dos Beatles em entrevista coletiva e lançou de seu primeiro álbum solo, McCartney, onde toca todos os instrumentos. Embora eles já não quisessem mais continuar juntos, a entrevista antecipada e de surpresa gerou mágoas a ponto de ser acusado de traidor por John, George e Ringo.
O lançamento de Let It Be quase um mês depois da declaração oficial do fim dos Beatles deixou Paul insatisfeito. A produção do álbum foi entregue a Phil Spector. Paul ficou irritado com o tratamento que Phil deu a suas canções, principalmente a The Long and Winding Road, vítima de um horrendo arranjo orquestral.
As feridas demoraram a cicatrizar. Lennon negava-se a falar sobre o disco McCartney.
Em 1971, Paul lançou o compacto Another Day, que alcançou enorme sucesso. Ainda no mesmo ano, lançou outro álbum, Ram, onde alfinetava John Lennon na canção Too Many People. John Lennon responderia no álbum Imagine com How Do You Sleep? “The only thing you could make was Yesterday”. O álbum Ram é geralmente considerado como um dos melhores de sua carreira solo, e a canção Uncle Albert/Admiral Halsey foi o maior sucesso comercial do álbum.
Após alguns encontros amistosos, na noite de 9 de dezembro de 1980, McCartney acordou com as notícias do assassinato de John Lennon.
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Depois do disco solo Ram, ainda em 1971, Paul voltaria para formar uma nova banda, os Wings. O primeiro trabalho veio em 1972, Wild Life, também excelente. Em Tomorrow no álbum Wild Life, Paul responde à ironia de Lennon em How do You Sleep? Após Red Rose Speedway, que trazia o mega sucesso My Love, Paul fez a trilha sonora de 007 — Viva e deixe morrer com Live and let die.
O álbum seguinte foi o álbum de maior sucesso da banda, Band on the Run (1974),eleito o disco do ano, apresentando Jet e a faixa-título. Depois houve ainda os excelentes Tug of War e Pipes of Peace. Estes e seus discos seguintes sempre trouxeram uma ou duas canções que se tornariam clássicos.
Em 1991, Paul lança seu primeiro álbum de música clássica, Liverpool Oratorio. Dividindo opiniões de críticos e público, o álbum foi bem recebido comercialmente, mas considerado irregular por parte dos críticos de música clássica. Mesmo assim, o álbum comprovava novamente sua alta qualidade como compositor.
Dentre outros lançamentos, em 1999, lançou o álbum Run Devil Run, com releituras de clássicos do rock com participações de músicos como David Gilmour (ex-Pink Floyd), Ian Paice (Deep Purple) e Mick Green. É um trabalho sensacional que foi gravado em apenas um dia.
Em maio de 2003, Paul McCartney fez um show no Coliseu de Roma, se tornando o primeiro artista a se apresentar no famoso anfiteatro italiano, e pela primeira vez se apresentou em Moscou, tocando para 100 mil espectadores na Praça Vermelha. Em 2009, segundo a empresa de eventos Concerts West, McCartney tornou-se o recordista mundial em “rapidez de venda de ingressos para um show musical”, ao ter esgotados em apenas sete segundos todos os bilhetes postos à venda para um show em Las Vegas, Estados Unidos. Ele também cantou na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos Londres 2012. Cobrou uma (1) libra esterlina de cachê.
Em janeiro de 2015, McCartney colaborou com Kanye West e Rihanna no single FourFiveSeconds. Eles lançaram um clipe para a música no mesmo mês e tocaram ao vivo no Grammy Awards de 2015 em fevereiro.
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Finalizando, listamos abaixo a setlist de canções que Paul McCartney cantou em Porto Alegre. O show do Beira-Rio não deve ser muito diferente.
1. A Hard Day’s Night (The Beatles)
2. Save Us (da carreira solo)
3. Can’t Buy Me Love (The Beatles)
4. Letting Go (Wings)
5. Drive My Car (The Beatles)
6. Let Me Roll It (Wings) (With ‘Foxy Lady’ Snippet)
7. I’ve Got a Feeling (The Beatles)
8. My Valentine (da carreira solo)
9. Nineteen Hundred and Eighty-Five (Wings)
10. Maybe I’m Amazed (da carreira solo)
11. I’ve Just Seen a Face (The Beatles)
12. In Spite of All the Danger (The Quarrymen)
13. You Won’t See Me (The Beatles)
14. Love Me Do (The Beatles)
15. And I Love Her (The Beatles)
16. Blackbird (The Beatles)
17. Here Today (da carreira solo)
18. Queenie Eye (da carreira solo)
19. New (da carreira solo)
20. Lady Madonna (The Beatles)
21. FourFiveSeconds (Rihanna and Kanye West and Paul McCartney cover)
22. Eleanor Rigby (The Beatles)
23. I Wanna Be Your Man (The Beatles)
24. Being for the Benefit of Mr. Kite! (The Beatles)
25. Something (The Beatles)
26. A Day in the Life (The Beatles) (With ‘Give Peace a Chance’ Snippet)
27. Ob-La-Di, Ob-La-Da (The Beatles)
28. Band on the Run (Wings)
29. Back in the U.S.S.R. (The Beatles)
30. Let It Be (The Beatles)
31. Live and Let Die (Wings)
32. Hey Jude (The Beatles)
bis:
33. Yesterday (The Beatles)
34. Day Tripper (The Beatles)
35. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Reprise) (The Beatles)
36. Helter Skelter (The Beatles)
37. Golden Slumbers (The Beatles)
38. Carry That Weight (The Beatles)
39. The End (The Beatles)
The Who, a lenda
Antes do show do Who em Porto Alegre, a emoção era bem identificada e localizada. Os mais desatentos não sabiam bem quem eram aqueles dois senhores sobreviventes de um grupo original de quatro, mas já os que gostam e acompanham o movimento musical sabiam que iam ver verdadeiras lendas. The Who é um grupo realmente único. Pode soar como heavy metal e já foi classificado como tal, mas muitas vezes apresenta um espírito de punk rock com letras sensacionais, porém, você não estará errado se considerá-lo o grupo que faz o rock mais complexo que existe, tirando do jogo os progressivos.
Sim, não é fácil classificá-lo. Afinal, The Who tem em seu acervo duas esplêndidas óperas-rock que viraram filmes — Tommy e Quadrophenia — , mas também tem notáveis discos de canções avulsas e o verdadeiro torpedo que é Who`s Next.
The Who surgiu em 1964 na Inglaterra. Sua formação clássica tem Pete Townshend (guitarrista e compositor praticamente único do grupo), Roger Daltrey (vocais), John Entwistle (baixo) e Keith Moon (bateria). O grupo alcançou rapidamente fama internacional em razão da qualidade de sua música e também por fatores extra-musicais. Suas apresentações eram pura energia, era o grupo que se apresentava com o volume de som mais alto de todos e ficou famosa por quebrar seus instrumentos ao final dos shows — especialmente Townshend, cuja destruição de guitarras tornou-se um clichê, e Keith Moon, que costumava mandar sua bateria pelo ares, aos pedaços. Seus primeiros álbuns eram cheios de canções curtas e agressivas, usando principalmente os temas da rebelião juvenil e da confusão sentimental.
Para ser mais exato, a origem do Who foi um grupo de jazz do qual participavam Pete Townshend e John Entwistle quando adolescentes, chamado The Confederates. Townshend tocava banjo e Entwistle trompete, embora também estudasse baixo, imaginem. Já o vocalista Roger Daltrey conheceu Entwistle na rua enquanto este caminhava com seu baixo pendurado no ombro. Este convidou-o para um teste no grupo de jazz. Daltrey foi aceito e os três logo saíram do Confederates. Moon foi último a aparecer. Veio através de um anúncio no jornal. Daltrey descreve o teste do genial Moon para entrar na banda: “Foi como se tivessem ligado um motor atrás da gente”.
Em setembro de 1964, na Railway Tavern em Harrow and Wealdstone, Inglaterra, Pete Townshend destruiu sua primeira guitarra. Tocando num palco baixo demais, se mexendo e dançando muito, Pete bateu com o braço da guitarra no teto, o que resultou no descolamento deste do corpo do instrumento. Furioso com as risadas da plateia, Townshend arrebentou a guitarra em pedaços, pegou outra e continuou o concerto. Por conta disso, o público no show seguinte aumentou consideravelmente, mas ele se recusou a destruir outro instrumento. Então foi Keith Moon quem arrebentou sua bateria… A destruição de instrumentos se tornaria um destaque dos shows ao vivo do Who pelos anos seguintes, e o incidente na Railway Tavern acabaria entrando para a lista de “50 Momentos que Mudaram a História do Rock ‘n’ Roll”.
Calma, nada disso ocorreu no Beira-Rio nesta terça-feira (26/09/2017). Mas você viu o windmill (moinho de vento) de Townshend. O windmill é aquele clássico giro de braço que Pete Townshend usa pra tocar guitarra. A lenda diz que seria uma resposta a Jimi Hendrix. “Como ele tacava fogo na guitarra”, brincou o Pete uma vez numa entrevista à Rolling Stone, “eu fazia o moinho de vento pra apagar o fogo”. Só que, tempos depois, no programa de David Letterman, o mesmo Townshend contou que copiou o gesto do Keith Richards, já que o The Who, bem no início da carreira, abrira alguns shows pros Stones. Ele viu Keith fazendo isso no palco e, no dia seguinte, mandou um windmill na abertura. No fim do espetáculo perguntou a Keith se ele tinha gostado da homenagem, mas Keith não lembrava ter ter feito o gesto e comentou: “Aquela hora em que você pegou no pau, no fim da apresentação… Foi pra mim?”.
Todos os integrantes do The Who eram muito diferentes entre si. Sempre brigaram bastante e Pete afirma ainda hoje que jamais um grupo deve se separar enquanto está brigando. “É quando tem mais pegada”. Townshend era o compositor e inovador (embora Entwistle também contribuísse com canções). Pete também era uma central de novidades, enquanto Daltrey preferia ficar só com os rocks agressivos. Moon amava a surf music norte-americana e Entwistle a elegância do jazz. É estranho dizer isso hoje, mas, no começo, Daltrey era considerado o patinho feio do Who. Ele via que estava entre três virtuoses em seus instrumentos e sofria com a silenciosa desaprovação. Achava que seria chutado. Ontem, estava com Pete do Beira-Rio.
O primeiro sucesso retubante veio na estreia do LP My Generation. O álbum trazia canções que se tornariam hinos, como The kids are alright e a faixa-título com o famoso verso I hope I die before I get old (“Eu espero morrer antes de envelhecer”). Outros êxitos seguiram-se com os compactos simples Substitute, I’m a boy, Happy Jack (1966), Pictures of Lily, I can see for miles (1967) e Magic bus (1968).
Apesar do grande sucesso alcançado com seus compactos simples, o Who, ou mais especificamente Townshend, queria mudar, achava o modelo esgotado. Ao mesmo tempo que o som da banda evoluía e suas músicas se tornavam mais provocativas e envolventes, Townshend passava a tratar os álbuns do Who como projetos unificados, ao invés de meras coleções de canções desconexas. O primeiro sinal desta ambição surgiu como LP A Quick One (1966), que trazia uma coleção de canções que, reunidas, contavam uma história. A Quick One, While He’s Away foi chamada de “mini-ópera”.
A seguir veio The Who Sell Out (1967), um álbum que pretendia simular a transmissão de uma estação de rádio pirata, incluindo jingles e propagandas.
Nessa época, os ensinamentos de Meher Baba — sim, a cultura dos anos 60 reverenciava os gurus orientais — passaram a exercer influência importante nas composições de Townshend, e essa conjunção de ideias acabaria desaguando em Tommy (1969), sua primeira ópera-rock completa e a primeira a alcançar sucesso comercial, imenso sucesso comercial. O indiano é creditado como “Messias” na contra-capa do álbum Tommy. No mesmo ano, o grupo esteve em Woodstock tocando basicamente Tommy. As canções Pinball Wizard, See me feel me, Go to the mirror e The Acid Queen, entre outras, tornaram-se clássicos.
Em fevereiro de 1970 o Who gravou Live at Leeds (1970), considerado por muitos o melhor álbum ao vivo de rock de todos os tempos, tocando basicamente Tommy… Na verdade, Live at Leeds foi lançado originalmente sem nenhuma canção de Tommy em um LP com apenas 6 músicas — sendo 3 covers, My Generation, Substitute e Magic Bus. Só na segunda edição em CD que todo o show pôde ser ouvido, com a execução da ópera Tommy no segundo disco.
Na época, todos os integrantes da banda — principalmente o autor, Townshend — estavam cheios de tocar Tommy e mais Tommy. O álbum tinha sido considerado o melhor da década de 60 junto com Sgt. Peppers e todos só queriam ouvir Tommy. Pete queria partir para outra e o Who preparou um grande disco sob a produção de Kit Lambert em Nova York. Só que Lambert, então viciado em heroína, era de pouco auxílio e a banda retornou à Inglaterra para regravar o material com o produtor Glyn Johns. O resultado, Who’s Next (1971), acabaria por ser o trabalho mais aclamado do The Who entre os críticos e fãs.
É difícil destacar alguma coisa em Who’s Next, o álbum mais parece uma coletânea de melhores canções, apesar de não ser. Bastaria dizer que o disco começa com Baba O’Riley e Bargain e acaba com Behind Blue Eyes e Won’t Get Fooled Again, OK?
Após Who’s Next a banda voltaria ao estúdio em maio de 1972. Essas sessões dariam origem a mais uma ópera-rock de Townshend, Quadrophenia (1973), a história de dois dias na vida de um adolescente mod chamado Jimmy, sua luta contra todo gênero de inquietações, mas principalmente sua busca por um lugar na sociedade. Quadrophenia tem o mesmo nível de Who`s Next, é um notável trabalho, daqueles onde a cada audição são descobertos novos detalhes. O Who tocou Love, reign o’er me e Cut my hair nesta terça-feira.
Os álbuns seguintes do Who traziam canções mais pessoais de Townshend, dentro do estilo que ele eventualmente transferia para seus álbuns solo. The Who by Numbers, de 1975, traz diversas canções introspectivas e maravilhosas, como Blue, Red and Grey.
A qualidade do somatório de canções originais do Who são comparáveis ao acervo criado pelos Beatles e Rolling Stones. Se acrescentarmos o Led Zeppelin, com uma produção menor em número, temos aí o quarteto intocável do rock e talvez da música inglesa dos últimos 50 anos. Se o Who inventasse de tocar todas as clássicas do grupo, iam precisar de várias noites.
Em 1978 a banda lançou Who Are You, distanciando-se do estilo épico das óperas rock, enquanto se aproximava do som mais comum das rádios. O lançamento do álbum foi ofuscado pela morte de Keith Moon devido a uma overdose acidental de um remédio prescrito para o combate ao alcoolismo. Kenney Jones, ex-Small Faces, assumiu seu lugar. No ano seguinte, a tragédia voltou a rondar o grupo: no dia 3 de dezembro de 1979 um tumulto no lado de fora do Riverfront Coliseum, em Cincinnati, Ohio, provocou a morte de onze fãs que aguardavam o início de um show. A banda soube do incidente somente após a apresentação.
Depois veio o declínio, a separação e o retorno. Lançaram o médio Face Dances em 1981 e o melhor It’s Hard em 1982. Após estes trabalhos, passaram a se reunir apenas para grandes eventos e só lançaram mais um álbum de inéditas, Endless Wire, em 2006.
Porém, após participar do encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, o Who voltou com força total. Pete e Roger anunciaram que uma nova e esperada turnê de Quadrophenia aconteceria. The Who tocou pela Europa em novembro e dezembro e pela América do Norte em janeiro e fevereiro de 2013. A turnê seguiu pela Inglaterra e França.
Hoje, o baterista Zak Starkey — filho do beatle Ringo Starr — substitui Moon à altura, mas nada substitui a inalcançável classe e os solos do baixista John Entwistle, nem o bom Jon Button. E há mais um guitarrista no grupo: Simon, irmão de Pete Townshend.
A entrevista de Pete Townshend (72) após o concerto do Rock in Rio foi curiosa. Não é sempre que se ouve um sujeito que diz que se divertiu tocando coisas que escreveu há 50 anos. Mas fazer o quê?, é verdade. Ele parecia um menino solando e regendo sua tremenda banda. E Roger Daltrey, do alto de seus 1,68 m e 73 anos? O timbre áspero e forte permanece, mas às vezes ele falha. Querem saber? Grande coisa!
Para finalizar, ressaltamos que ouvir Won`t get fooled again (Não seremos feitos de trouxas novamente) no país de Michel Temer e Bolsonaro soa pra lá de estranho. Mais estranho ainda é ouvir Daltrey dizer na mesma canção: Meet the new boss, same as the old boss!” (Conheça o novo chefe, igual ao antigo chefe!).
A maior caixa de um único compositor em todos os tempos
A Deutsche Grammophon e a Decca estão prestes a lançar “o maior box de um único compositor em todos os tempos” no dia 26 de outubro. Os trabalhos completos do Johann Sebastian Bach estão gravados em 222 CDs. A caixa contém 280 horas de música e pesa 13,5 quilos.
J.S. Bach – The New Complete Edition é o resultado de dois anos de curadoria, desenvolvidos com a cooperação de 32 gravadoras e uma equipe de acadêmicos do Leipzig Bach Archive.
Aqui está o vídeo promocional. Já estou com baba à altura do umbigo:
Neste sábado (15), teremos a 3ª Sinfonia de Bruckner com a Ospa
Pois eu estava saindo da Livraria Bamboletras com a Maria de Abreu (na verdade era o Luiz Hall, um dia eu explico) tentando descrever para ele quem foi Anton Bruckner. E dizia que ele era considerado por seus contemporâneos uma quase criança, um ser meio imbecilizado, devoto e temente a deus e a Wagner. Um cara que era tão inseguro que cada uma de suas sinfonias têm quatro ou cinco revisões. Ele jamais parava de mexer nelas, deixava os editores malucos. Mas que essa impressão de pessoa simplória morria logo aos primeiros minutos da audição de qualquer de suas obras. Nossa, o cara era muito complexo. Suas sinfonias são grandiosas, espetaculares, suntuosas. São geniais, uma alegria para os metais e um suplício para as cordas. E a Ospa vai tocar a Nº 3 neste sábado às 17h. Vai ter musculação dos violinistas — que vão sair do concerto bufando, suados e aliviados –, os caras dos metais vão sair com os olhos brilhando de alegria depois de tanta trombeteada, mas todos eles sairão mentalmente exaustos. O público? Ora, o público que gosta de música boa, complicada e bem escrita sairá bem feliz. Serão 60 minutos gloriosos.
Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (II): Serguei Prokofiev
Prokofiev tinha 26 anos quando da Revolução de 1917. Na época, estava resolvido a deixar a Rússia temporariamente. A decisão era pré-revolução: sua música era considerada demasiadamente experimental e ele já fora muito hostilizado quando da estreia de seu Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra em 1912. Em maio de 1918, o compositor mudou-se para os Estados Unidos, onde teve contato com alguns bolcheviques como Anatoly Lunacharsky. Para não ter problemas no país natal, Anatoly convenceu-o a sempre divulgar que o motivo da emigração era estritamente musical, e não uma oposição ao novo regime instalado. E era verdade, Prokofiev não era um opositor, ao menos naquela época.
Seu retorno à União Soviética foi extremamente curioso e lento. Quando Prokofiev foi morar nos Estados Unidos, fixou primeiramente residência em São Francisco. Depois, foi indo pouco a pouco para o leste, atravessou o oceano, morou em Paris, fez diversas viagens aos EUA, fixou-se nos Alpes e seguiu seu caminho para a URSS onde chegou apenas em 1935. Mas não adiantemos os fatos.
Nascimento e formação
Serguei Sergueievitch Prokofiev nasceu em Sontsovka, atual Krasne, na região de Donetsk, Ucrânia, em 23 de abril de 1891. Se é autor de sólida obra musical, Prokofiev escolheu péssimas datas para nascer e morrer. Nasceu no mesmo dia em que Shakespeare e Cervantes morreram, o que lhe dá o terceiro lugar quando se comemora seu nascimento. Como se não bastasse, resolveu morrer no exato dia em que Stálin fez o mesmo uma hora depois. Desta maneira, seu enterro ficou destituído de flores, música e atenção por parte de um público que o amava.
Mas não é só isso, ele é celebrado por obras como o balé Romeu e Julieta, a composição infantil Pedro e o Lobo e duas trilhas sonoras para filmes de Serguei Eisenstein. Bem, mas o que realmente interessa em sua obra são as Sinfonias, os Concertos para Piano, os para Violino — todos extraordinários –, as Sonatas e óperas como Guerra e Paz, O Jogador e O Amor de Três Laranjas. Prokofiev tem o dom de surpreender com linhas melódicas inesperadas que são acompanhadas de humor e lirismo luminosos, muito peculiares, únicos. E é bem humorado, causa alegria.
Como dissemos, ele andou bastante pelo mundo. Saiu de sua cidade provinciana para São Petersburgo, de lá foi para a América do Norte e Europa. Retornou aos poucos a seu país, já chamado de União Soviética e lá morreu. Sua música esconde de forma admirável o quanto sofreu. Vamos então a um resumo de Prokofiev pontuado de muita música?
Vida
Prokofiev nasceu no Império Russo. Foi filho único. Sua mãe era pianista e o pai engenheiro agrônomo. A família tinha uma condição financeira confortável. Desde criança, mostrou-se talentoso ao piano e como compositor. Muito precoce, aos nove anos, compôs sua primeira ópera, O Gigante, assim como uma abertura e outras peças. Em 1902, sua mãe conseguiu uma audiência com Serguei Taneyev, diretor do Conservatório de Moscou. Taneyev sugeriu que Prokofiev participasse como ouvinte das aulas de composição com Reinhold Glière — Serguei tinha apenas 11 anos. Deu certo. Paralelamente, ele aprendeu o jogo que seria sua segunda paixão de uma vida inteira, o xadrez.
Pouco tempo depois, o menino sentiu que o isolamento ucraniano estava restringindo seu desenvolvimento musical. Apesar de seus pais não apoiarem a entrada de seu filho na carreira musical tão cedo, em 1904, aos 13 anos de idade, ele se mudou para São Petersburgo e se inscreveu no Conservatório da cidade após encorajamento de Alexander Glazunov, o qual seria depois professor de Shostakovich. Entre seus mestres estava o grande Rimsky-Korsakov. Ele passou nos testes introdutórios e começou seus estudos de composição no mesmo ano. Sendo muito mais jovem que seus colegas de classe, era visto como excêntrico e arrogante. Na verdade, ainda criança, considerava chato o Conservatório. Em 1909, aos 18 anos, graduou-se em composição, e, paradoxalmente, escolheu permanecer no conservatório para tornar-se regente e um virtuose ao piano. Já não era visto como arrogante, apenas como imprevisível e maluco, imagem que cultivava dedicadamente.
No ano seguinte, seu pai morreu, o que resultou no fim da tranquilidade financeira. Mas Prokofiev já tinha boa reputação como compositor e foi em frente. Seus dois primeiros concertos para piano foram compostos nessa época. Eles lhe deram péssima fama. Nesta opinião, além de carradas de conservadorismo, havia imensa má vontade contra quem não fazia música nacionalista.
O Concerto Nº 1, por exemplo, é um vertiginoso mergulho que, como dissemos, irritou profundamente os críticos da época. As sumidades se ofenderam, dizendo que só faltava o pianista pegar um martelo para destruir seu instrumento. Porém, trata-se de uma obra-prima, como vocês podem ver e ouvir abaixo neste show da dupla Trifonov-Gergiev. São 16 minutos da mais linda taquicardia.
Prokofiev fez sua primeira excursão fora da Rússia em 1913, viajando a Londres e depois a Paris, onde encontrou o Ballets Russes de Serguei Diaguilev. No ano seguinte, terminou o curso do Conservatório em São Petersburgo. Foi um aluno tão brilhante que levou um prêmio Rubinstein, o que lhe rendeu um piano. Ainda na Rússia, compôs a ópera O Jogador, com base na obra homônima de Fiódor Dostoievski, um estudo sobre obsessão do jogo. A estreia foi cancelada devido à Revolução Russa de 1917.
No verão do mesmo ano compôs sua primeira sinfonia, a Sinfonia Clássica, Op. 25. Alegre e delicada, é dividida em quatro andamentos. Prokofiev tinha 25 para 26 anos quando escreveu a Clássica. Na época, estava conhecendo as obras inovadoras de Debussy e Schoenberg. Antes, ele dizia que suas influências intuitivas eram as estéticas da pintura de Kandinsky e a literatura de Maiakovski. Na Clássica, ele abandona a aspereza harmônica e rítmica dos dois primeiros Concertos para Piano, dando vazão a um melodismo no estilo de Haydn. É uma sinfonia encantadora, mas falsamente simples. Perguntem para quem já tocou esta obra se o Haydn de Prokofiev é tão simples quanto as 104 do Pai da Sinfonia.
Vida no exterior
Quando saiu da Rússia em 1918, Prokofiev passou a viver em São Francisco. Ao chegar, foi imediatamente comparado a Serguei Rachmaninoff. Só se for pelo primeiro nome, magreza e altura. Lá escreveu a ópera O Amor de Três Laranjas, mas o diretor morreu durante os ensaios e a ópera não foi estreada. Com problemas financeiros, mudou-se para Paris em abril de 1920, sem querer retornar à Rússia como um fracasso.
Em Paris, procurou Diaghilev e Stravinsky e retomou trabalhos antigos e inacabados como o extraordinário Concerto para Piano Nº 3. Para Diaguilev, compôs os bailados O Bufão (1921, Op. 21) e O Passo de Aço (1927, Op. 41). Este último saudava explicitamente o processo de industrialização que estava a acontecer na Rússia.
No fim do ano, O Amor das Três Laranjas finalmente estreou em Chicago, sob a regência do próprio compositor. As críticas iniciais foram duras. Por exemplo, a melhor dizia que ele deixara “muitas das nossas melhores pessoas aturdidas e fascinadas”. Outra afirmava que a ópera era “jazz russo com toques bolcheviques”, o que não era um elogio. Outra fazia piada: “Prokofiev diverte-se principalmente com aqueles que pagaram dinheiro por isso”. O Amor das Três Laranjas só retornou aos EUA em 1949, sendo reverenciada como grande música.
Em março de 1922, mudou-se com sua mãe para a cidade de Ettal, nos Alpes da Baviera. Passou mais de um ano naquele ambiente paradisíaco com a finalidade de se concentrar na criação de novas composições. Nessa época, sua música repercutia bastante na URSS, porém, apesar dos convites para retornar, permanecia no exterior. O motivo era a cantora espanhola Lina Llubera, com quem casou em 1923.
Em 1927, realizou diversas e bem sucedidas turnês pela União Soviética. Era a preparação para a volta ao país natal. Dois anos depois, sofreu um acidente de carro em Domrémy-la-Pucelle — cidade de nascimento de Joana d`Arc, hoje com míseros 167 habitantes — , machucando as mãos. Nada grave. Se o acidente impediu-o de tocar e reger em Moscou; deu-lhe a oportunidade de aproveitar a cena musical russa da época e pensar na volta ao país. Após sua recuperação, foi buscar a forra nos Estados Unidos. E dessa vez foi calorosamente recebido, refletindo lá seu recente sucesso na Europa.
No início da década de 1930, Prokofiev deu mais um passo na direção da União Soviética. Já permanecia mais em Moscou do que em Paris. Recebeu uma encomenda para escrever a trilha sonora de um filme russo: Tenente Kijé. A trilha é maravilhosa. Também escreveu o balé Romeu e Julieta para o Kirov de Leningrado. Porém, este estreou a peça somente em 1938, em Brno. Os motivos foram desavenças sobre a coreografia. Atualmente, este é um dos trabalhos mais conhecidos de Prokofiev. Também foi a época do Concerto Nº 2 para Violino e Orquestra, uma tremenda música.
Prokofiev foi solista da Orquestra Sinfônica de Londres na primeira gravação de seu terceiro concerto para piano, em junho de 1932. É uma bela oportunidade de ouvir o próprio compositor mandando bala em uma de suas melhores obras.
Em Londres, ele também gravou alguns de seus trabalhos para piano solo em fevereiro de 1935.
Retorno à União Soviética
No mesmo ano, Prokofiev voltou à União Soviética para ficar. Sua família voltou somente no ano seguinte. Só foi bem recebido no aeroporto, pois, na época, a política musical soviética havia mudado; uma agência havia sido criada para vigiar os artistas e suas criações. Ela era chefiada pelo temido Andrei Alexandrovitch Jdanov, parceiro de Stálin. Ele era um ferrenho defensor do Realismo Socialista nas artes e sufocou toda uma brilhante geração de artistas através de parâmetros políticos e estéticos rígidos, principalmente a partir da década de 1940. E por que Prokofiev decidiu ficar? Por saudades.
A URSS ia se fechando. Limitando a influência externa, o país gradualmente isolou seus compositores e escritores do resto do mundo. Tentando se adaptar às novas circunstâncias, Prokofiev escreveu uma série de canções usando letras de poetas aprovados oficialmente pelo governo, além do oratório Zdravitsa (Op. 85). Na mesma época, compôs para crianças. É o período de Pedro e o Lobo, para narrador e orquestra, uma obra pedagógica e bem comportada, feita para agradar Josef Stálin e o regime. É famosíssima e até hoje é montada no mundo inteiro.
Em 1938, Prokofiev colaborou com o cineasta Sergei Eisenstein no épico Alexander Nevsky. Apesar do filme ter péssima qualidade sonora, a coisa era impressionante. Prokofiev adaptou boa parte da obra numa cantata, que também tem sido apresentada e gravada frequentemente.
Em 1941, com apenas 50 anos, o compositor sofreu o primeiro de uma série de infartos, resultando numa piora gradual de saúde e numa queda de sua produção. Em razão da Segunda Guerra Mundial, ele foi evacuado para o sul junto com outros artistas. Isso trouxe consequências para sua família. Lá, ele conheceu a poetisa Mira Mendelson e o novo relacionamento fez com que Prokofiev se separasse de Lina, apesar de nunca terem se divorciado. 1942 é o ano da Sonata Para Piano Nº 7, ocasionalmente chamada de Stalingrado. É sensacional.
A guerra inspirou Prokofiev a mais uma ópera, Guerra e Paz, na qual ele trabalhou por dois anos, junto com mais uma trilha sonora para Sergei Eisenstein, Ivan, o Terrível. O governo soviético revisou a ópera diversas vezes. Em 1944, Prokofiev se mudou para fora de Moscou a fim de compor sua fenomenal 5ª sinfonia (Op. 100) que se tornou a mais popular delas. Pouco depois, começou a sofrer distúrbios neurológicos sem nenhuma lesão identificada. Ainda sim, com muita lentidão, conseguia trabalhar.
Abaixo, a Quinta de Prokofiev. Notem como ela simplesmente não tem momentos fracos. O ritmo de relógio, tão caro ao compositor, recebe seu melhor momento ao final do segundo movimento, quando quase emperra…
Após a guerra, Prokofiev ainda escreveu sua sexta e sétima sinfonias e uma Sonata para piano Nº 9, dedicada a Sviatoslav Richter. Então, o Partido Soviético começou a sufocá-lo. As atenções estavam voltadas novamente a assuntos internos e o governo passara a regular de perto a atividade dos artistas locais. Prokofiev, doente e frágil, amedrontou-se. Não era para menos. Seu amigo Vsevolod Meyerhold, diretor teatral, foi preso e executado. Foi sob tais condições que Prokofiev finalizou Ivan, o Terrível. Diz a lenda que tinha em mente Joseph Stálin.
Se a doença, a política e o medo grassavam, havia Mira Mendelson. A nova união era intensamente inspiradora, e ele foi conseguindo finalizar uma série de projetos inacabados.
Mas os ataques seguiram e, no dia 10 de fevereiro de 1948, uma resolução do Partido Comunista condenou “tendências antidemocráticas” em sua música, seja lá o que isto significasse. Descobriu-se o óbvio: que ele nunca criara obras dentro do realismo soviético. Toda sua música agora seria um enorme e dispensável conjunto cacofônico. Era um exemplo de formalismo e um “grande perigo” para o povo soviético. Em 20 de fevereiro, sua esposa espanhola Lina foi presa por espionagem, ao tentar enviar dinheiro para sua mãe na Catalunha. Lina foi sentenciada a vinte anos, mas foi solta após a morte de Stálin em 1953, deixando a União Soviética.
Prokofiev teve que prometer oficialmente que modificaria suas composições — mesmo e principalmente as antigas — de forma a torná-las realistas, coisa quer nunca fez e talvez nem imaginasse como fazê-lo. Isso ocorreu logo após a composição da Sinfonia Concertante para Violoncelo e Orquestra, Op. 125.
Esta nova batalha de Stálin atingiu uma série de artistas geniais. Boris Pasternak, Anna Akhmatova, Mikhail Bulgákov, Aram Khachaturian, Shostakovich, Prokofiev e muitos outros foram censurados, cortados, impedidos de publicar e de terem sua produção divulgada. E a luta só terminou depois da morte do ditador.
As apresentações de seus últimos projetos foram canceladas, o que, em combinação com sua saúde, deixou-o em estado de depressão. Seus médicos ordenaram a limitação de suas atividades, fazendo com que ele reservasse somente uma ou duas horas diárias à composição. Sua última apresentação pública foi a estreia da sétima sinfonia em 1952, obra pela qual recebeu, paradoxalmente, o Prêmio Stálin. A Sétima não exaltava coisa nenhuma e muito menos a grandeza do Estado Soviético. É puro Prokofiev.
Prokofiev morreu aos 61 anos em 5 de março de 1953, no mesmo dia que Stálin também morreu, mais exatamente uma hora antes. O compositor morava próximo à Praça Vermelha, e por três dias, a multidão que se despedia de Stálin impossibilitou a retirada do corpo de Prokofiev para o serviço funerário. No funeral, não havia flores nem músicos, todos reservados ao funeral do líder soviético.
100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich
Talvez não tenha existido um artista mais representativo do que o foi o Século XX, com todos os seus paradoxos, vanguardismos, violências, guerras e desvios, do que Dmitri Shostakovich (1906-1975). Ele foi exaltado e massacrado pelo poder, censurado e novamente elogiado. Foi presidente da Associação dos Compositores da URSS e depois não podia mais ver executada sua música no país. Talentosíssimo, foi moderno, adequou-se ao realismo socialista e voltou a ser moderno. Escreveu coisas da mais completa alegria, do mais completo sarcasmo, da mais acabada grandiosidade dramática e refletiu a morte e a depressão como poucos artistas.
E foi um herói para muita gente. Por ter sido covarde quando não havia como ser diferente e por ter sido (muito) ousado quando lhe deram frestas. Como escreveu o romancista inglês Julian Barnes, “Shostakovich pagou a César o que lhe era devido — e César era muito exigente naqueles dias –, protegeu a sua família, esperou por dias melhores e desesperou-se enquanto produzia uma obra verdadeiramente sofrida e brilhante. Há mais formas de heroísmo do que as óbvias”.
Sua vida já começou complicada. Exemplo? Bem, ele era considerado o primeiro grande artista revelado pela Revolução. Era saudado pelo poder. Criou sua Primeira Sinfonia em 1926. Tinha 19 anos e estava entusiasmado com o ambiente russo. A Sinfonia obteve repercussão mundial. Tudo era sucesso, mas três anos depois, a pessoa a quem a obra era dedicada foi presa e fuzilada.
Muitíssimas vezes, quando ouvimos a música de Shostakovich, sentimos certa estranheza, notamos intenções, torna-se palpável a ironia, a revolta e o desconforto do autor. Outras vezes, fica claro seu enorme sarcasmo. O poder que as notas escritas por ele têm de comunicar é miraculoso. Percebe-se claramente o drama e os contrastes vividos pelo compositor, sejam eles de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas.
Há três pontos importantes para a compreensão do homem que foi Shostakovich. O Ocidente costumava simplificar os fatos, conferindo ao autor uma condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais enganos datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje.
O Comunista: Shostakovich foi um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda. No início de sua carreira de compositor, Shostakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre. Depois, lentamente, as coisas foram mudando e o trio renunciou a suas esperanças, às vezes de forma trágica.
Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não esteva preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de se retirar do país. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora da URSS. Também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra em alegres visitas. Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades para emigrar, não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas jamais foi o dissidente típico. Seus problemas sempre foram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país, que muitas vezes tratou de ridicularizar.
A Morte: Shostakovitch era, por natureza, um grande pessimista: as fotografias em que aparece sorrindo são raríssimas. Além do que, ele parecia obcecado — como seu ilustre predecessor Mussorgski — pela ideia da morte. Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Quarteto Nº 8, Trio Nº. 2, Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e sua melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão como causados pelas pressões das autoridades soviéticas.
O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da URSS. Sob este aspecto, estava muito enganado. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos após a morte de Lênin.
Apesar de todo o prestígio de que gozou como compositor, nem por isso foi menos perseguido como resultado dos ditames ideológicos dos dirigentes políticos e culturais de seu país — em 1936, o próprio Stálin advertiu-o; em 1948 houve o “Relatório Jdanov”; em 1962, a Sinfonia n° 13, que se apoiava no grande poema Baby Yar de Evgueni Evtuchenko, foi executada sob oposição oficial.
1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém há detalhes jocosos. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Stálin achou-a um horror e chamou Lady Macbeth de Mtsensk — cujo tema foi retirado da esplêndida novela de Nikolai Leskov — de “pornofonia”. Desta forma, ela foi banida de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo. É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras.
Para se recuperar, Shostakovich compôs em 1937 a Sinfonia Nº 5, clássica, grandiosa, linda e bem comportada, que este ano tem sido muito executada por completar 80 anos. E foi perdoado. Poucos anos depois, Shostakovich comporia o símbolo da resistência da União Soviética ao invasor, sua Sinfonia Nº 7, Leningrado. Depois de realizada a primeira audição na União Soviética em 5 de março de 1942, a partitura microfilmada da sinfonia atravessou as linhas de combate, chegando até Nova York, onde Toscanini a fez ouvir em julho do mesmo ano. Em agosto, a Sétima de Shostakovitch ressou na própria Leningrado, sob o cerco dos alemães e transmitida para eles pelo rádio em execução memorável, com os músicos e a população famintas.
Durante a guerra, Shostakovich foi levado para um local seguro, longe dos combates. Estava de amores com o governo e este temia que ele morresse.
Sua carreira foi gloriosa e constantemente posta em questão, repleta de honrarias oficiais e de inclusões em index não menos oficiais. Shostakovitch amargou todos os dissabores de sua condição, a ponto de por vezes ter imaginado que a melhor solução só poderia ser o suicídio. Nem por isso faltou-lhe coragem para seguir incansavelmente, com uma regularidade sem falhas. Até sua morte, em 1975, criou uma obra prolífica e amplamente regeneradora para todo o povo soviético, ao qual Shostakovitch esteve sempre ligado. “A música pode ser amarga, mas jamais pode ser cínica”, dizia o compositor.
A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde os corpos foram enterrados. Mesmo os que eram mais chegados a eles não sabem. Isso aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a Meyerhold ou a Tukatchevski? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.
Em 1948 foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Jdanov colocava no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram novamente do repertório.
Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o grande líder. O segundo movimento da espetacular Sinfonia Nº 10, especialmente raivoso, seria um retrato de Stálin.
(Já o terceiro movimento é uma valsa onde Shostakovich assina seu nome no ar. Em meio ao movimento, a orquestra silencia para ouvir as notas D-S-C-H (ré-mi bemol-dó-si), a partir da transliteração alemã de seu nome, D. Schostakowitsch. O motivo é ouvido de forma ostensiva também no quarto movimento. Parece dizer: “Stálin, ainda estou aqui, sobrevivi”).
O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nº 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko (1932-2017) e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar crimes nazistas não seria um problema, mas o poema de Ievtuchenko fala na colaboração soviética durante o episódio. Hoje, há certeza de que houve colaboração na mortandade de judeus. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada e mais foi estreada na forma original sob a regência do lendário e corajoso maestro Kiril Kondráshin.
Shostakovich finalizou sua obra escrevendo prelúdios e fugas ao estilo de Bach e fazendo referências à Beethoven em sua música. Essa dupla escolha levada a efeito pelo compositor não deve ser encarada como casual, tanto mais que Shostakovich escreveu suas últimas obras no leito de morte. Os alemães não eram bem vistos no país não apenas devido à Guerra, mas desde o século XIX. As mentalidades coletivas russas e soviéticas sempre foram hostis aos alemães, que aparecem frequentemente como personagens ridículos nos romances clássicos russos. E, desde o surgimento de uma consciência musical nacional, as referências à escola germânica não eram bem aceitas.
E, mais uma vez, Shostakovitch não hesitou em enfrentar um tabu cultural. O último discurso musical que produziu, a Sonata para viola e piano, é uma saudação beethoveniana à liberdade. Ao escolher essa referência a Beethoven, ele opta pela fraternidade universal e, saudavelmente, faz abstração das querelas que dividiam o mundo em dois blocos antagonistas. Sob este aspecto, pode-se dizer que ele triunfou sobre os sucessivos dirigentes de sua pátria.
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Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.
Dueto bufo de dois gatos, de Gioachino Rossini (?)
O Duetto buffo di due gatti (tradução literal : Dueto humorístico (bufo) de dois gatos) é uma peça popular para dois sopranos. Seria sensacional se fosse de Rossini — torço para que um dia descubram que é — , mas dizem que não é. Tratar-se-ia de uma compilação escrita em 1825, com passagens retiradas principalmente de sua ópera Otello, de 1816. O autor da compilação foi, provavelmente, o compositor inglês Robert Lucas Pearsall.
A música, pela ordem de aparecimento, é constituída por:
— Um extrato da cabaletta da ária Ah, come mai non senti, cantada por Rodrigo no segundo ato de Otello;
— um trecho de um dueto entre Otello e Iago, no mesmo ato;
— a Katte-Cavatine do compositor dinamarquês Christopher Ernst Friedrich Weyse.
Mas nada é certo e costuma-se atribuir a composição ao impagável Rossini. Como já disse, espero que tenham razão.
Divirtam-se. Os guris do primeiro vídeo são mais engraçados.
Não perca sua cabeça: após 145 anos, o crânio de Haydn voltou para junto do corpo do compositor
Em vida, Haydn foi considerado um grande revolucionário. Ele, com Mozart (de quem era amigo) e Beethoven (de quem foi professor) formam o trio mais representativo do classicismo musical. Haydn nasceu em 1732 e morreu em 31 de maio de 1809. Sua obra é enorme. Compôs 104 Sinfonias e inúmeros quartetos e outras peças. E nada é curtinho ou mal feito, muito pelo contrário. O cara era um grande talento, como hoje podemos comprovar em milhares de concertos e gravações.
A partir da data de sua morte, em 1809, seu crânio (imagem acima) seguiu por surpreendentes caminhos. Haydn foi inicialmente enterrado no cemitério de Hundstaurm, mas pouco depois o administrador da prisão local, Johann Peter, e o secretário do príncipe Esterházy, Carl Rosenbaum, subornaram um coveiro e conseguiram exumar o cadáver para remover sua cabeça. Esses dois homens acreditavam ao pé da letra na frenologia, “ciência” que dizia que todas as habilidades e sentidos, em particular o sentido da música e da harmonia, residiam no formato do crânio. Haydn era pois uma cabeça a ser conquistada e analisada detidamente. A dupla pensou que naquele crânio poderiam encontrar os segredos de uma mente tão capaz, genial para a composição musical.
E eles estudaram e estudaram o crânio de Haydn sem chegarem a nenhuma conclusão. Bem, em 1820, o príncipe Esterházy, da família que empregara Haydn por décadas, desejou enviar os restos do compositor para outro momento cemitério mais nobre. Foi quando descobriram que lhe faltava a cabeça. Os primeiros acusados foram justamente Rosenbaum e Peter, que devolveram rapidamente o crânio. Então os restos mortais de Haydn puderam ser transferidos para o cemitério de Eisenstadt, onde foram enterrados.
Só que eles devolveram um crânio qualquer, não o de Haydn. Após a morte de Rosenbaum em 1828, a cabeça autêntica foi entregue a Peter, que fez questão de estabelecer em testamento que a cabeça de Haydn deveria ser entregue, após sua morte, para a Sociedade de Amigos da Música de Viena.
E Peter morreu, claro — afinal estamos narrando coisas do século XIX em pleno século XXI. Só que, após a entrega da cabeça por parte da viúva, um certo Dr. Halle, membro desta Sociedade, vendeu o crânio ao professor de patologia Carl Von Rokitansky, que trabalhava no Instituto de Anatomia de Viena. Mais frenologia.
Com a morte de Rokitansky, seus parentes devolveram a cabeça para a Sociedade de Amigos da Música de Viena. Imaginem que a sociedade ficou com ela até 1954. Neste ano foi construído um mausoléu para o compositor e os construtores entraram em acordo com o cemitério de Eisenstadt e a Sociedade de Amigos da Música de Viena para enfim fazerem o grande reencontro entre cabeça e corpo. Estudos científicos determinaram há poucos anos que a ossada confere. Tudo ali é Haydn. Ou ao menos é tudo a mesma pessoa.
Um (tremendo) concerto secreto em Porto Alegre
Porto Alegre é uma cidade curiosa. Parece oferecer pouco, pois as vias de informação em jornal e mesmo na internet passam por uma já longa crise, só que há coisas bem legais para se fazer e que não são descobertas.
O Caderno de Cultura de ZH quase não é lido — tem que ser assinante e muita gente fugiu do jornal por ser de direita e gremista. Na internet, não há um veículo confiável que reúna tudo. A Agenda Lírica ainda está se organizando. Então, os eventos têm de ser meio catados por aí.
Ontem, minha querida Elena avisou: o georgiano Guigla Katsarava vai tocar hoje no Instituto de Artes da Ufrgs, no Auditório Tasso Correa. Sim, sabemos que a Ufrgs não é uma casa de espetáculos. Sabemos também que o organizador do concerto, Ney Fialkow, não trabalha com publicidade. Divulgar algo desse quilate para a cidade seria função para jornalistas, só que… Bem, deixa assim. O que interessa é que fomos.
E vimos o melhor recital do ano na cidade. Katsarava tinha tocado em um concerto com a Ospa em junho do ano passado. Dias depois, apresentou-se na Casa da Música. Ou seja, sabíamos que se tratava de um pianista de impressionante técnica e sonoridade. Presentes na plateia, apenas os especialistas: pianistas, professores e alunos. Imaginem que a pianista Catarina Domenici chegou direto do aeroporto, sabendo que valeria a pena o esforço.
O programa começou com Grieg (Peças Líricas) e seguiu com duas peças de Scriabin. Depois, tivemos a Suíte Nº 2 para dois pianos de Rachmaninov — a partir daqui o excelente Ney Fialkow entrou em cena — e a surpreendente The Garden of Eden: Four Rags for Two Pianos, de William Bolcom. O bis foi talvez a melhor peça da noite: La Valse, de Ravel, em versão para dois pianos.
O nível esteve sempre lá em cima, foram interpretações de rara sensibilidade, mas gostei menos das obras dos russos Scriabin e Rach do que das outras.
A peça de Grieg é finalizada com a linda Bodas em Troldhaugen. A de Bolcom é puríssimo e fino fun, se posso me expressar assim. E La Valse é a vertiginosa apoteose da valsa vienense. Parece que nunca vai se realizar, mas depois acontece da forma surpreendente e nervosa. Dá a impressão do final de uma época. Ravel aparenta dizer: agora a alegria da valsa tem de lutar para chegar a nossos ouvidos.
Ele mesmo escreveu:
Através de nuvens, são vistos aqui e ali pares que valsam. A névoa se dissipa gradualmente, distinguindo-se um imenso salão povoado por uma multidão que baila. A cena se torna cada vez mais iluminada. As luzes dos candelabros se acendem. Situo este valsa num palácio imperial.
A dupla Katsarava e Fialkow vai se apresentar na Sala Cecília Meirelles amanhã, quinta-feira, no Rio de Janeiro, às 20h. Atenção, cariocas! Eu não perderia por nada. Ah, lá vai ter Bolcom e Ravel!
P.S. — Post escrito às pressas. Peço desculpas.
Há exatos 49 anos…
A cidade-mico de Porto Alegre abre edital para uma “ópera-rock” baseada na Revolução Farroupilha
Com a concordância do prefeito (sim, aquele mesmo que diz não ter dinheiro para nada), a Câmara Municipal de Porto Alegre abriu um edital de R$ 350 mil para que seja composta uma ópera-rock baseada na Revolução Farroupilha. Bem, a época deste gênero musical já está mais do que finda, só podendo ser coisa de quem não acompanha nem de longe o movimento cultural, parecendo mais um projeto pessoal de um sem-noção.
Moda no final dos anos 60 e início dos 70, as óperas-rock foram puxadas pelo excelente The Who, cujo principal compositor, Pete Townshend, escreveu a pioneira Tommy — OK, a primeira foi A Quick One, também do The Who — e a melhor de todas, Quadrophenia. Depois o gênero diluiu-se e foi parar nos musicais, onde morreu há muitos anos. Uma ópera-rock era simplesmente uma série de canções interligadas que, reunidas, contavam uma história, sem chegar a ser um drama musical como os de Wagner.
Na época das óperas-rock, as pessoas se vestiam assim, meu caros edis.
Mais: além da Câmara propor uma composição de gênero anacrônico, a tal “Revolução Farroupilha” sempre esteve longe de ser uma unanimidade no estado, mesmo na época em que ocorreu. A própria cidade de Porto Alegre não a apoiou. Talvez fosse adequado a nossos vereadores darem uma olhadinha no brasão de armas da cidade. Lá está escrito o lema “Mui Leal e Valerosa”. Esta frase está ali por NÃO termos apoiado os Farrapos. Desculpem, a verdade é algo incontrolável mesmo.
Gente, a Revolução Farroupilha não foi a luta do povo rio-grandense contra o Brasil. Uma parte importante dos moradores da província lutou a favor do Império. Nem mesmo na região da Campanha, tida como base dos farroupilhas, havia unanimidade. Muitos dos líderes militares e grandes estancieiros, que ali viviam, eram legalistas.
E ainda mais: a Câmara de Vereadores financiando um tema que não diz respeito exclusivamente a Porto Alegre é, no mínimo, estranha.
Li em algum lugar que seria melhor montar uma ópera sobre o tema. Até concordo. Por que não? Afinal, elas ainda são compostas e são populares. É um gênero vivo em Porto Alegre, onde as montagens lotam teatros. Mas gostaria de sublinhar que já existe uma ópera chamada Farrapos, conforme lembra o tenor Antonio Telvio. Ela foi estreada em 1935 ou 36 no Theatro São Pedro e é de autoria de Roberto Eggers (1889-1984), que também compôs Missões. Eggers foi uma figura bem conhecida na cidade — dirigiu o Orfeão Riograndense e foi Diretor Musical das Rádios Gaúcha e Farroupilha.
Para terminar, por que não propuseram simplesmente um musical ou uma ópera gaudéria? Talvez uma ópera-funk? Ah, Pete Townshend, que estrago você fez na cabeça de nossos ignorantes edis!
Nesta sexta (18), a Ospa interpretará o polêmico 4´33, de John Cage
4’33 (1952) é uma obra do compositor John Cage que, às vezes, é descrita erroneamente como “quatro minutos e meio de silêncio”. A música se enquadra no movimento happening e é uma das obras precursoras da arte conceitual por não executar nenhuma nota musical.
Sua primeira apresentação foi ao piano, interpretada por David Tudor, embora a peça tenha sido composta para quaisquer outros instrumentos ou conjuntos. A partitura está estruturada em três movimentos que são identificados por movimentações do regente e dos músicos. Eles se mexem, de alguma forma…
Questionando o paradigma da música ocidental, que explicava a música como uma série ordenada de notas, Cage se voltou para o silêncio de forma eminentemente conceitual. Todos os mínimos ruídos, comuns em salas de espetáculos, criam a aura do happening, provocando o público e fazendo com que uma execução pública seja diferente da anterior e de contornos inesperados.
As execuções costumam ser muito engraçadas. Nem todos os músicos conseguem permanecer sérios e parte do público não entende o que está acontecendo. Normalmente, a galera custa a se manifestar, mas era isso que desejava Cage. O budista Cage achava que a peça seria “incompreensível no contexto ocidental”, e relutou em “escrevê-la”: “Eu não queria que parecesse, nem para mim, como algo fácil de fazer. Eu não queria viver com esta impressão”.
Apesar do caráter provocativo, Cage conseguiu destacar a importância do silêncio na música, a sua impossibilidade real e, por consequência, ampliar os limites da arte.
O silêncio já tinha desempenhado um papel importante em várias das obras de Cage compostas antes de 4′33. O Dueto para Duas Flautas (1934), composto quando Cage tinha 22 anos, começa silenciosamente. O silêncio é um elemento estrutural importante em algumas das Sonatas e Interlúdios (1946-48), Música das Mutações (1951) e Duas Pastorais (1951). O Concerto para piano e orquestra preparados (1951) encerra com um silêncio prolongado e Waiting (1952), uma peça de piano composta apenas alguns meses antes de 4′33, consiste em longos silêncios emoldurando um único e curto ostinato. Além disso, em suas canções The Wonderful Widow, de Eighteen Springs (1942) e A Flower (1950), Cage manda o pianista tocar um instrumento fechado.
Serviço
Data: 18/05/2018 20h30
Local: Salão de Atos da UFRGS
Av. Paulo Gama, 110 – Bom Fim, Porto Alegre – RS, 90035-121
Programa
Armando Albuquerque: Evocação de Augusto Meyer
John Cage: 4’33”
Antônio Carlos Borges-Cunha: Noturno para Piano e Orquestra (estreia) | Solista: André Carrara
George Gershwin: Concerto para Piano em Fá | Solista: Olinda Allessandrini
A Ospa tocará ‘Um Réquiem Alemão’ (ou Humano) no próximo sábado
Um Réquiem Alemão, de Johannes Brahms, existe por um só motivo: a morte da mãe do compositor em fevereiro de 1865. Escrito entre 1865 e 1868, ele tem várias curiosidades: é composto de sete movimentos, que juntos resultam em algo entre 65 a 75 minutos, tornando-o a mais longa composição de Brahms. Há mais: Um Réquiem Alemão é música sacra, mas não é litúrgica e, ao contrário de uma tradição musical de séculos, não é cantado em latim e sim em língua alemã, de onde vem seu título Ein deutsches Requiem ou Um Réquiem Alemão.
A primeira referência ao Réquiem está em uma carta de 1865 que Brahms escreveu para Clara Schumann, pianista, compositora e viúva de Robert. Escreveu que pretendia desenvolver uma peça a ser “uma espécie de Réquiem alemão”. Depois, Brahms teria dito ao diretor de música na Catedral de Bremen que teria de bom grado chamado o trabalho de Um Réquiem Humano. Mais adiante, vocês verão que este sujeito de Bremen era um chato de primeira linha.
Embora as Missas de Réquiem na liturgia católica comecem com orações pelos mortos, o de Brahms centra-se nos vivos, começando com o texto “Bem-aventurados são aqueles que suportam a dor, porque serão consolados”. O tema do conforto aos que ficam repete-se em todos os movimentos seguintes, exceto o final, sobre a morte.
Em seu Réquiem, Brahms omitiu propositalmente qualquer dogma cristão. Até pelo fato da ideia de deus ser visto sempre como fonte de consolo. A simpatia e compaixão pelo humano persiste por todo o tempo, o que não significa dizer que o Réquiem seja ateu — ateu sou eu, mas alguns escreveram este absurdo sobre a obra –, apesar de sua contenção religiosa. De qualquer forma, a enigmática escolha dos textos fica para os musicólogos decifrarem. Quando o diretor da catedral de Bremen expressou sua preocupação com isso, Brahms recusou-se a adicionar o movimento que lhe fora sugerido: “A morte redentora do Senhor, etc.” (João 3 : 16). Mas, por incrível que pareça, o citado diretor obrou finalizar o Réquiem por uma ária do Messias de Handel, — ??? — “I know that my redeemer liveth”. Tudo para satisfazer o clero. Um total abuso.
O Réquiem foi inicialmente contestado. Wagner achou-o ridículo, mas temos que lhe dar o mérito da coerência: ele errava sempre. Na verdade, estava apenas contrariado com o título “Alemão”. “Alemão” seria a ele mesmo, Wagner. O que Brahms estava pensando? A reavaliação do Réquiem veio através de Schoenberg e seu brilhante ensaio Brahms the progressive. Então, a história da percepção a Brahms descreveu 180º: seus trabalhos passaram de “acadêmicos” a “modernos”. Agora, são eternos.
SERVIÇO
A Ospa apresentará Um Réquiem Alemão no próximo sábado (12/05) às 17h, na Casa da Música da Ospa. Estarão no palco o Coro Sinfônico da Ospa, a soprano Raquel Fortes e o barítono Alfonso Mujica. Regência de Manfredo Schmiedt.
Na ocasião, a Ospa presta homenagem à memória de Eva Sopher, falecida neste ano — uma grande incentivadora da cultura porto-alegrense e da orquestra. A Casa da Música da Ospa fica no Centro Administrativo Fernando Ferrari (Caff), na Avenida Borges de Medeiros, 1501, no Centro de Porto Alegre.
Fotos de grupos de rock…
Programa Frente a Frente da TVE com Evandro Matté, Ana Laura Freitas, Vitor Dalla Rosa e este blogueiro
A filha de Buxtehude
Introdução e tradução de Wellington Mendes.
O episódio da filha do mestre Buxtehude daria um ótimo e comovente filme. Recusada por Mattheson, por Haendel e por Bach, casou-se enfim com um certo Johann Christian Schieferdecker, que herdou o trono do mestre organista de Lübeck.
No ano de 1668, o organista residente Franz Tunder, da Igreja de Santa Maria em Lübeck, faleceu. A posição que ocupara era muito apreciada e foi preenchida por um jovem promissor chamado Dietrich Buxtehude, sob a condição de que ele se casasse com a filha mais nova de seu antecessor, Anna Margarethe Tunder.
Essa condição também deveria ser rigorosamente estendida ao sucessor de Buxtehude. Em 1703, após 35 anos de serviço, Buxtehude teve a oportunidade de se aposentar precocemente, seguindo um grande interesse em seu cargo por dois famosos organistas, Georg Frederic Handel e Johann Matheson. Além disso, Johann Sebastian Bach, que tinha notoriamente caminhado mais de 320 quilômetros para ver o grande Buxtehude se apresentar, tinha fortes desejos de sucedê-lo.
Infelizmente, houve um pequeno problema… A filha mais nova de Buxtehude, Anna Margareta, era excepcionalmente pouco atraente, e não importava quão prestigiosa fosse a nomeação, ninguém suportava a ideia de casar-se com ela.
E assim Dietrich Buxtehude permaneceu organista em St. Mary’s até sua morte. A filha que ele deixara para assustar os aspirantes a candidatos não se demorou muito. O antigo assistente de Buxtehude, um certo JC Schieferdecker, que é famoso por nada mais, casou com ela. Sua ação ficou conhecida na época como “erhielt den schönen Dienst” (o belo trabalho)!
Aury Hilário fecha (ou não) sua Agenda Lírica
Aury Hilário é um cirurgião plástico de Porto Alegre. Mas também é muito mais: por 14 anos, ele nos enviou newsletters informando sobre tudo o que acontecia na cidade em termos musicais. Assim, ele provava que se podia ter uma vida cultural mais rica do que normalmente se imagina nesta cidade abandonada. E mais ainda: através dele, muitas vezes descobríamos que podíamos ter vida musical sem pagar nada. Sei de gente que recebia seus e-mails e, com tempo livre e recebendo uma aposentadoria vergonhosa, ia apenas nos gratuitos. Aury fez muito. Eu acho que, como ele sugere na comunicação abaixo, alguém poderia assumir seu trabalho. Infelizmente, falta-me tempo para me oferecer e já tenho o compromisso do PQP Bach, mas fica a dica. Quem quiser contribuir para o bem cultural da cidade, ai está o convite.