[Off Topic]: Inter confirma 5 casos de hepatite em seu elenco. Todos os casos são de hepatite tipo “A”; se fosse no Grêmio, duvidaria muito.
Cinco Drops
O Grêmio já está nas semifinais do xaroposo Campeonato Gaúcho. Com açúcar, com afeto, enfrentará o adversário predileto. Uma papinha.
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Sou contra a violência, claro, mas estou achando um saco esse negócio do Tibete. Todo esse esforço para criar uma teocracia? Pô, no Iraque o Bush gosta é de democracia, coisa do demo mesmo, no Tibete é diferente.
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Se o mundo quisesse fazer um boicote aos chineses, seria fácil. Era só ignorar a festa de abertura e de final das Olimpíadas. As TVs fariam isso? :¬)))) Nessas festas é que há a celebração do país-sede. De resto, deixem os atletas.
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Só quem não entende de futebol não viu de cara que Alexandre Pato era um supercraque. Ele merece ser titular do Brasil desde aqueles 45 minutos de estréia contra o Palmeiras em 2006. Faz gols (muitos), erra pouco dentro da grande área e isso basta para escalá-lo em qualquer time. É jogador valiosíssimo em todos os sentidos.
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Meu post sobre o Caso Sampallo Barragán acaba de ser atualizado. Las Abuelas pressionam. Mais detalhes aqui.
Uma camiseta para a Veja
O Caso Sampallo e o Mar de Histórias (algumas absurdas, outras dignas)
A bonita moça ao lado, María Eugenia Sampallo Barragán, de 31 anos, estava na barriga de sua mãe quando esta foi presa em dezembro de 1977. Não se sabe exatamente quando, mas supõe-se que em fevereiro de 1978, Mirta Barragán deu à luz uma menina na prisão. Seu pai, Leonardo Rubén Sampallo foi informado do nascimento da filha. Dias depois, María foi dada de presente pelo capitão do exército Enrique Berthier ao casal Osvaldo Rivas e María Cristina Gómez Pinto. Os pais verdadeiros de María desapareceram.
De acordo com sobreviventes da prisão clandestina “El Banco”, Mirta foi levada para o Hospital Militar em fevereiro de 1978. Nunca mais se teve notícia dela nem do companheiro. Antigos militantes do Partido Comunista Marxista Leninista, os dois eram operários e atualmente fazem parte das cerca de 30 mil pessoas desaparecidas durante a Guerra Suja, como é chamada a repressão desencadeada pela ditadura militar argentina contra seus opositores.
Há uma história semelhantíssima no romance Duas Vezes Junho, de Martín Kohan. Alías, hoje há comprovadamente outros oitenta e oito jovens na mesma situação chegando todos aos 30 anos na Argentina. Devem ser muitos mais.
Vários fatos saltam aos olhos dos brasileiros. Em primeiro lugar, a rapidez e eficiência da Justiça Argentina (propositalmente em maiúsculas). Como é que um processo que começou em 2007 tem data marcada para sua terminar e esta será em 4 de abril de 2008? Como pode? Em segundo lugar, a rapidez e eficiência da Justiça Argentina que ordenou em 2001 que fossem realizados exames de DNA dos “pais adotivos” de María, da própria e dos parentes de seus pais. Tendo em mãos o resultado, ela permitiu, no mesmo ano de 2001, que María Eugenia alterasse seu sobrenome de Rivas Pinto para Sampallo Barragán. Tudo em 2001. Em terceiro lugar, a rapidez e eficiência da Justiça Argentina, pois, em 2007, o casal Rivas processou María por calúnia e difamação. Após perderem a causa, María, no mesmo ano, resolveu abrir processo contra os falsos pais, que agora podem pegar 25 anos de prisão cada um no próximo 4 de abril.
Em quarto lugar, a postura de um país implacável que não parece apreciar pizzas como o nosso. Se nosso passado pode ser escamoteado, o que impede de fazermos o mesmo com nosso presente?
María Eugenia não fala à imprensa, é uma pessoa de dignidade e discrição aparentemente inabaláveis, porém seu caso é acompanhado com extremo interesse em toda a Argentina. O tal capitão Berthier, o homem que a entregou aos pais “adotivos” já está preso. O resultado, como já disse, movimenta a imprensa argentina e o resultado deve ser conhecido dia 4 de abril.
Sim, uma das formas de ver o mundo é imaginá-lo como um vasto mar de histórias. A expressão “Mar de Histórias” era utilizada em sânscrito para se referir ao universo inteiro das narrativas: “Os contos estão entrelaçados: a primeira história não acabou, e personagens começam a narrar outra, na qual por sua vez, outras se acham encravadas. Acotovelam-se nesse estranho labirinto as figuras mais singulares…” (Aurélio Buarque & Paulo Rónai). Este mar de histórias une fatos que um escritor talvez tivesse pudor de escrever. Há casos análogos e inacreditáveis como o de Victoria Donda Pérez: ela descobriu que seu pai foi prisioneiro do próprio irmão que a doou a um militar… Isso mesmo, o torturador doou a sobrinha, mas para que a história ficasse ainda mais novelesca, o mesmo criou sua irmã mais velha como filha!!!
Voltando ao Caso Sampallo, diria que ele tem enorme valor para este ficcionista amador. É uma história de busca de identidade sem as chateações da adolescência, é uma história dura e cheia de ódio, é a recuperação do direito de saber a própria história pessoal, e há algumas contrapartidas muito interessantes: o que Las Madres de Plaza de Mayo faziam procurando seu filhos, hoje é feito pelos netos procurando seus avós. Eles são los Hijos; elas, las Abuelas.
Há um movimento chamado H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio). Um integrante do movimento declara:
– Sabemos que as pessoas que nos criaram foram cúmplices do aparato estatal e cometeram delitos. Os netos cresceram e criaram consciência das graves violações. Hoje, podemos enfrentar o trauma da busca de identidade.
A mãe “de adoção” de María dá declarações assim:
– Mocosa maleducada, tenías que ser hija de guerrilleros para ser tan rebelde.
Como resposta, María, cuja voz é conhecida da imprensa apenas por seus depoimentos à Justiça, não diz palavra. E está certa, não tem que fazer cenas nem buscar a piedade fácil que uma órfãzinha mereceria. Suas poucas fotos revelam uma mulher doce e tranqüila. Eu invejo a Argentina; lá, há vontade de punir quem deve ser punido. Para trazer esse espírito para cá, teríamos primeiro que implodir nosso belo Judiciário. Sou candidado a apertar o botão. Me chamem.
Atualização de 27 de março, 17h42:
CONFERENCIA DE PRENSA
Ref. Juicio por la apropiación de María Eugenia Sampallo Barragán
Abuelas de Plaza de Mayo convocamos a una Conferencia de Prensa, junto a María Eugenia Sampallo Barragán, su abogado Tomás Ojea Quintana y otros nietos restituidos para hacer saber la importancia de este juicio y lo ejemplar que debe ser su sentencia.
El 19 de febrero comenzó el juicio oral contra Osvaldo Arturo Rivas, María Cristina Gómez Pinto y Enrique José Berthier por la apropiación de María Eugenia Sampallo Barragán, primera nieta recuperada por Abuelas de Plaza de Mayo que querella a sus apropiadores.
Luego de casi dos meses de audiencias el Tribunal Oral Federal Nº 5 (TOF Nº5) deberá dictar su sentencia el próximo 4 de abril. Las Abuelas esperamos la máxima condena para los tres imputados.
Los esperamos en nuestra Sede de la Virrey Cevallos 592 PB 1 el lunes 31 de marzo a las 11:30hs.
Buenos Aires, 26 de marzo de 2008
Gosto literário se discute
Em 2003, respondi por escrito a um questionário cujo título era “Gosto literário se discute”. Sou um compulsivo respondedor de questionários e testes. Se, por exemplo, vejo em alguma revista um daqueles testes do tipo “Como está seu coração” ou “Descubra se você será traído por sua mulher?”, saio respondendo na hora. É claro que não resistiria a tal proposta, assim como não resisti a responder um teste sobre TPM numa revista Cláudia da minha mãe…
Não sei quem criou as perguntas a seguir.
Qual o livro que você mais relê?
“A Metamorfose”, de Franz Kafka.
E que livro relido ficou melhor?
“O Idiota”, de Dostoievski.
Dê exemplo de livros injustiçados que, apesar de muito bons, nunca foram devidamente louvados.
São tantos!:
– “Memorial de Aires”, de Machado de Assis;
“- Laços de Família” de Clarice Lispector,
– “Luzia-Homem”, de Domingos Olímpio;
– “Quatro-Olhos”, de Renato Pompeu;
– “Dona Guidinha do Poço”, de Manuel de Oliveira Paiva;
– toda a obra de Sergio Faraco e
– mais uns 100.
Cite um livro decepcionante, que frustrou suas melhores expectativas?
“Alta Fidelidade” de Nick Hornby, o filme sugeria algo melhor. Os últimos livros de Günther Grass e de João Gilberto Noll estão firmes nesta disputa.
E um livro surpreendente, isto é, bom e pelo qual você não dava nada?
“A Flor, a Carne, os Figos (sobre as mulheres)”, de Heloísa Pedroso de Moraes Feltes.
Há cenas marcantes na boa literatura. Cite duas de sua antologia pessoal.
Vou arrasar nessa: a cena em que Ivan Fiodoróvitch Karamazov conta a Parábola do Grande Inquisidor em “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoievski; e o diálogo entre Adrian Leverkühn e o diabo (Cap. 25) em “Doutor Fausto” de Thomas Mann. Há o famoso capítulo 8 deste livro, mas penso que este interesse mais a músicos e melômanos.
Há personagens tão fortes na literatura que ganham vida própria. Cite os que tiveram esta força na sua imaginação de leitor?
– Dom Quixote, em “Dom Quixote”;
– Sílvia, de “O Tempo e o Vento” (Parte III, “O Arquipélago”), de Erico Verissimo;
– Vania de “Tio Vania”, de Anton Tchekhov;
– Tristram Shandy, de “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, de Laurence Sterne;
– o narrador de “Opiniones de um Payaso” (trad. para o espanhol), de Heinrich Böll;
– Alejandra, de “Sobre Heróis e Tumbas”, de Ernesto Sábato;
– o Homo Faber, de Max Frisch;
– o Conselheiro Aires, do “Memorial de Aires”, de Machado de Assis;
– Anna de “O Carnê Dourado” de Doris Lessing;
– Lucien de Rubempré de “Ilusões Perdidas”, de Balzac;
– Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf; etc.
Qual o livro bom que lhe fez mal, de tão perturbador?
“Berlim Alexanderplatz”, de Alfred Döblin.
E qual o que lhe deu mais prazer e alegria
Foram tantos… Como foi pedido só um, vai lá: “Sete Novelas Fantásticas” de Isak Dinesen ou “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, escolha você!
E o que mais lhe fez pensar?
Um só? “Extinção” de Thomas Bernhardt.
Cite…
a) um livro meio chato, mas bom
“V.” de Thomas Pynchon.
b) um livro que você acha que deve ser muito bom mas que jamais leu
Apenas “Finnegans Wake”, de James Joyce.
c) um livro que não é um grande livro, apenas simpático
“Ensaio Sobre a Cegueira” de José Saramago.
d) um livro difícil, mas indispensável
“Os Mímicos” de V.S. Naipaul.
e) um livro que começa muito bem e se perde
“Maus presságios” de Günther Grass.
f) um livro que começa mal e se encontra
“Brincando nos Campos do Senhor”, de Peter Mathiessen.
g) um livro que valha apenas por uma cena ou por um personagem, ainda que secundário
O olhar entre Sarah Woodruff e Charles Smithson em “A Mulher do Tenente Francês” de John Fowles.
Qual o início de livro mais arrebatador para você?
“A Metamorfose” de Franz Kafka.
De que livro você mudaria o final? Como?
“Crime e Castigo”. Eu deixaria Raskolnikov sem salvação.
Que livros ficariam muitos melhores se um pedaço fosse suprimido?
“Guerra e Paz”, que prescinde daquela longa tese no final (mais ou menos 50 páginas).
Que livros que não têm nada a ver com você, até contrariam algumas de suas convicções e que ainda assim você considera bons ou recomendáveis?
Eu odeio dizer que adoro os livros do fascista Céline: “Morte a Crédito”, “Viagem ao Fundo da Noite”, etc.
A literatura contemporânea é muito criticada. Cite livro (s), escrito (s) nos últimos dez anos, aqui ou no mundo, que mereça (m) a honraria de clássico (s) ou obra-prima (s).
– “O Avesso da Vida”, de Philip Roth;
– “As Confissões de Lúcio”, de Fernando Monteiro (*);
– “Afirma Pereira”, de Antonio Tabucchi;
– “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago;
– “As Horas”, de Michael Cunningham.
(*) Sou amigo de Fernando Monteiro, mas esta amizade só existe porque elogiei “Aspades, ETs, etc.”; ou seja, minha admiração por seus trabalhos antecede nosso contato.
Por falar em clássicos. Para que clássico brasileiro de qualquer época você escreveria um prefácio daqueles que incitam a leitura?
Para “Memorial de Aires”, de Machado de Assis. Tenho certeza de que seria muito convincente.
Cite um vício literário que considere abominável.
As explicações nos rodapés por parte dos autores.
E qual a virtude que mais preza na boa literatura?
Pensei muito e seria complicado de explicar, mas a virtude que mais prezo é uma certa serena ousadia encontrável em mestres como Anton Tchekhov.
De que livro você mais tirou lições para seu ofício?
Não sou escritor, mas, se fosse, diria que o mais “pedagógico” são os contos de Machado de Assis.
E que a frase ou verso que escolheria como epígrafe desta entrevista?
Ora, só pode ser….
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente na livrarias:
Preciso de todos.
Mundo Grande (Fragmento) – Carlos Drummond de Andrade
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É sacanagem. Não conseguia sair da frente do rádio e fazer o que tinha para fazer. A Rádio da Universidade atrapalhou todo o meu dia programando a seguinte seqüência:
– J.S.Bach: Sonata em lá maior, BWV 1032, p/flauta e cravo obbligato – parece tão simples esta espetacular obra do pai de
– J.C.Bach: Sinfonia Concertante em lá maior, p/violino e cello – o Bach de Milão que criou o estilo galante, cujo maior mestre foi
– Mozart: Serenata nº 12, K. 388, em dó menor – cuja gentileza faz-nos lembrar os primeiros anos daquele jovem arrogante que reivindicava para si o título de Tondichter (poeta dos sons) o qual chamava-se
– Beethoven: Quarteto de cordas nº 5, Op. 18, em lá maior – que nos lembra sempre espantosas obras de câmara e grandiosas sinfonias, o que nos trouxe
– Bernstein: Sinfonia nº 2, “A Idade da Angústia”, baseada em poema de Auden – sinfonia ab-so-lu-ta-men-te perfeita e que abriu espaço para um belo
– Programa Olinda Alessandrini – sobre a ignorada música erudita brasileira.
É que às vezes eles resolvem que não servirão de música de fundo. Decidem que a gente tem que ouvi-los. Aí, não dá para trabalhar.
Uma Obsessão: A Lista Anual de Filmes
Publicado em 28 de agosto de 2003
Na próxima semana, prometo voltar à literatura; hoje, quero falar sobre uma mania que costuma divertir muito – às vezes até demais! – alguns de meus amigos. Desde 1997, sempre no dia 31 de dezembro, distribuo um e-mail com a lista de todos os filmes que vi, acompanhada de suas avaliações e daqueles que considerei os melhores do ano. Normalmente, há discordâncias, concordâncias, pedidos de retificações,etc. e a troca de e-mails e telefonemas acaba se extendendo até o final de janeiro. Esta lista é acumulativa e já está em 1030 filmes. Não é muito, se considerarmos que faço as anotações de cada ida ao cinema há 17 anos. Dá uma média de apenas 1,20 filmes por semana.
A “famosa” lista consiste em uma tabelinha do Word com a totalidade dos filmes vistos e é sempre acompanhada de um texto no corpo do e-mail, onde analiso com simplicidade o ano cinematográfico através de seus melhores filmes. Cometi o deslize de reler estes textos e, pior, acabei gostando quando eles cumpriram sua missão de me fazer lembrar de filmes esmaecidos na memória e que gostaria de rever. Coloquei abaixo os que escrevi nos últimos 3 anos. Resolvi compartilhá-los com vocês na esperança de que lhes seja útil, de alguma forma. Se algum de vocês quiser receber a lista completa, basta pedir deixando um comentário com seu e-mail. (Ou me enviem um e-mail, enquanto os comentários não voltarem…)
Ano 2000:
Caros Amigos.
Aí está a atualização da mui afamada relação de filmes do Milton.
Para quem não lembra ou está a recebê-la pela primeira vez, explico que se trata de uma lista de 959 filmes, os últimos que assisti… Apesar do número, há muitas lacunas nos anos iniciais, pois só em 1987 me disciplinei. Por exemplo, é absolutamente certo que vi mais de 8 vezes a Gritos e Sussurros – 3 vezes na primeira semana – e o filme não está na lista, apesar de ainda hoje aquelas quatro mulheres estarem caminhando em minha direção (Agnes, Karin, Maria e Anna). Espero também que ninguém acredite que vi Janela Indiscreta apenas no final de 1999; este é outro que vi mais de 4 vezes.
As avaliações que faço não devem ser levadas tão a sério. O teste final de um filme será a nossa afeição por ele anos depois; é como o teste de nossos amigos.
O que retorna de alguns de vocês compensa e dá sentido ao trabalho de anotação. Um vai com a listagem para as locadoras de vídeo, diz obedecer a ela e é tão polido que nunca contestou minhas avaliações; na verdade não acredito que ele me conceda tanto poder. Outro transformou-a em uma base (banco) de dados e “descobriu” matematicamente que o diretor que mais admiro é Woody Allen, o que não é verdade. Outro quer discutir cada avaliação e, por pura preguiça, fico quieto. O mesmo volta a querer discutir cada avaliação e, por puro ódio, mas me achando bondoso, resolvo explicar-lhe os filmes O Guardião da Floresta e Afogando em Números – tudo inútil. Outra, bem mais legal, conheceu Hal Hartley e me agradece comovida. Outro se apaixonou pelos escandinavos do Dogma 95, como se fosse possível o contrário. Etc., etc., etc.
Este ano foi péssimo para os cinéfilos. Entenda-se por cinéfilos as pessoas que ainda gostam de se fechar com pessoas estranhas em uma sala escura, a fim de assistir a uma projeção. Muitíssimos filmes ruins. Acho que os melhores – e estes foram realmente excelentes – foram Regras da Vida, Magnólia, Assédio, Os Cinco Sentidos e Wintersleepers.
Não sei porque antecipei em 3 dias a remessa deste mail, ainda mais depois de saber que entrou um “novo” filme (1998) do Hartley na cidade.
O significado as notas:
5 – Não de deixe de ver
4 – Muito bom
3 – Vale a tentativa
2 – Medíocre
1 – Uma bomba
0 – Além de bomba, mal intencionado
Feliz ano novo. Milton.
Ano 2001:
Caros Amigos.
Pontualmente distribuída pelo quinto ano consecutivo, aí está a atualização da aguardada (?) e cada vez mais célebre (…) relação de filmes do Milton.
O ano cinematográfico de 2001 não teve nada a ver com o de 2000. Houve muitos filmes bons. Neste ano, farei um curtíssimo comentário sobre os melhores que vi. Quem discordar de mim sabe o que fazer. Espero que as discussões deste ano sejam tão divertidas quanto as ocorridas após as listas dos anos anteriores.
Os que mais gostei foram estes:
1. Dançando no Escuro: aqueles que são hostis aos caras do Dogma 95 terão que me desculpar. Foi o filme mais original que vi em muitos anos.
2. Poucas e Boas: quem não morreu de rir na cena em que Sean Penn encontra o verdadeiro Django Reinhardt? Um dos melhores de Woody Allen.
3. Traffic: este filme perdeu o Oscar para quem mesmo?
4. As Confissões de Henry Fool: junto com Infiel, o melhor de 2001. Um belíssimo filme sobre a amizade. Uma pena que só umas 100 pessoas o viram em Porto Alegre. Quem de vocês viu? Se tiver em vídeo ou DVD, aluguem-no logo.
5. Infiel: o filme perfeito. Texto, atores, sinceridade, realismo. Um filme sobre a necessidade de ferir o outro.
6. Código Desconhecido: foi visto por 10 pessoas no cofre do Santander. Só foi passou uma vez em Porto Alegre. Em São Paulo, ficou dois meses. Um filme demolidor sobre a violência racial na França.
7. Benvindos: Tão terno, humano e engraçado… Uma bela sobremesa.
8. Harry chegou para ajudar: Um brilhante filme todo baseado em O Terceiro Tiro (The TROUBLE with HARRY) de Hitchcock. Este Harry passa todo o filme dizendo não tem problemas, o de Hitch era o próprio problema. Este gera defuntos, o de Hitch é um defunto. Repentinamente, as pessoas deste filme começam a recitar as falas do filme de Hitch, só que no negativo. No final, os filmes acabam iguais, com gente feliz e os Harrys mortos. Pura diversão!
9. Inteligência Artificial: Ah, fala sério! O filme é ótimo de cabo a rabo. Gostei até do final, com aquela lombriga citando A Montanha Mágica de Thomas Mann.
10. Uma Relação Pornográfica: outro filme perfeito. Alguém imagina o que eles faziam no hotel?
11. Os Outros: junto com o Harry, a melhor diversão do ano.
Chega de conversa! Voltando à vaca fria, em anexo está uma tabelinha do Word com o ano em que vi o filme, o nome, o diretor e a nota que dei a ele. Elas significam mais ou menos isto:
5 – Não de deixe de ver
4 – Muito bom
3 – Vale a tentativa
2 – Medíocre
1 – Uma bomba
0 – Além de bomba, mal intencionado
Feliz ano novo. Milton.
Ano 2002:
Lista de Filmes do Milton 2002.
Aqui está, pelo sexto ano consecutivo, a aguardada (já recebi e-mails perguntando sobre a continuidade da dita cuja), festejada (?), célebre (!) e principalmente inevitável lista de filmes do Milton. Foi um ano de grandes filmes europeus, especialmente franceses. Estes dias, navegando na Internet, descobri uma lista de melhores filmes de 2002 feita por Woody Allen. Sei que é sempre bom e desonesto solicitar auxílio de uma grife destas para avalizar nossas escolhas, mas os filmes que me impressionaram estavam lá, um atrás do outro: O Gosto dos Outros, Fale com Ela, Amélie Poulain, Italiano para Principiantes, Um Casamento à Indiana, etc. Não tem como errar.
Com a proliferação de novas salas de cinema em Porto Alegre – o que é ótimo -, não dá para ver tudo o que há. Mesmo tendo visto mais de 90 filmes este ano, fiquei aquém do que gostaria. Antes de (re) explicar a lista em anexo, vamos aos melhores de 2002, segundo este que vos escreve. Em 2000, coloquei apenas 5 entre os melhores; em 2001, foram 11 e, neste ano, 15.
1. Terra de Ninguém (Bósnia-Herzegovina) , de Danis Tanovic: páreo duro com Fale com Ela para melhor do ano. Uma implacável parábola da guerra na Iugoslávia. O roteiro nos mostra desde a conduta individual dos soldados em meio à guerra, até à imprensa que, mesmo que nos traga a realidade do front, é oportunista e trouxa. Mas a maior crítica vai para a ONU, cujos oficiais preferem manter uma distância profilática do conflito a intervir. Apesar da seriedade dos temas – a guerra, o ódio entre povos, as disputas de autoridade -, Terra de Ninguém não assume em momento algum um tom excessivamente trágico, melancólico ou engajado.
2. O Gosto dos Outros (França), de Agnès Jaoui: uma maravilhosa comédia de costumes com um roteiro bem escrito e elenco afinado. Um pequeno filme perfeito que sobre o preconceito nas relações humanas.
3. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (França), de Jean-Pierre Jeunet: uma história que nos lembra os personagens de Cortázar. Irresistível, com todo seu ludus, estratégias e comportamentos malucos e engraçados. Não é nada surpreendente o fato de ser amado pelas crianças. Minha filha de 8 anos o viu quatro vezes em 24h (havia tirado na locadora) e pediu o DVD de Natal. Ganhou.
4. A Cidade Está Tranqüila (França), de Robert Guédiguian: um filme estupendo e pesadíssimo, mesmo para quem, como eu, não se incomoda com temas desconfortáveis (drogas, morte, pobreza, etc.).
5. O Quarto do Filho (Itália), de Nanni Moretti: faço minhas as palavras de Marcelo Bartolomei, da Folha de São Paulo: o longa-metragem O Quarto do Filho (“La Stanza del Figlio”) é uma obra-prima do cinema italiano: trata de um tema extremamente triste, mas não tira o espectador da sala com um sentimento de depressão; só o faz refletir. É isto. (Não abro mais dois pontos dentro de dois pontos, tá?)
6. O Closet (França), de Francis Veber: desde o Monty Python não tinha rido tanto em uma comédia. E que atores! Auteuil e Depardieu estão soberbos!
7. O Homem que não estava lá (EUA), de Joel Cohen: uma história meio boba, mas narrada com grande senso de estilo e elegância. Imperdível.
8. Italiano para Principiantes (Dinamarca), de Lone Scherfig: o tipo de “pequeno filme” que me é especialmente sedutor. Adorei. Nunca pensei que Veneza pudesse aparecer tão bela em um filme do Dogma 95. Os outros filmes do Dogma não se permitiam paisagens. Porém, se me lembro dos dez mandamentos do Dogma, não há nada que as impeça, desde que não se altere a luz natural com filtros e efeitos. A história daqueles 6 solitários é contada com um olhar cheio de ternura. O filme mostra, cena a cena, as pessoas aprendendo e reaprendendo nova linguagens emocionais, além de italiano, é claro.
9. Cidade dos Sonhos (EUA), de David Lynch: tá bom, vocês vão querer brigar comigo por causa dos polêmicos 10 minutos finais. Creio tê-los entendido. Escrevi ¿creio¿… mas, como perguntaria Isak Dinesen, precisamos compreender tudo? Um filme envolvente como poucos. David Lynch é o máximo.
10. Um Casamento à Indiana (Índia), de Mira Nair: possui o enorme mérito de ser um dos poucos indianos a conseguir distribuição por estas bandas. Para quem não sabe, a Índia é o segundo país em produção de filmes no mundo. Penso que este foi o meu primeiro indiano… E que belo filme! Uma celebração à família em uma história com personagens de carne e osso. Imperdível.
11. Promessas de um Mundo Melhor (EUA), de Justine Shapiro, B. Z. Goldberg e Carlos Bolado: teve milhares de espectadores em São Paulo e Rio de Janeiro, pois foi adotado pelas escolas que levaram seus alunos para vê-lo. Aqui, teve vida curta. É um excelente documentário a respeito do cotidiano das crianças palestinas e israelenses durante o conflito. Comovente e cheio de boas entrevistas.
12. Cidade de Deus (Brasil), de Fernando Meirelles e Kátia Lund: um grande e empolgante filme. Se o livro já era um fato importante, o filme só acrescenta.
13. O Príncipe (Brasil), de Ugo Giorgetti: poucos o viram, já que ficou apenas no circuito alternativo. É a expressão da náusea de Giorgetti para com a política cultural, o abandono das preocupações sociais de uma geração e a convivência com a violência. Pra lá de pessimista e desolador. Mais um trabalho impecável do melhor cineasta brasileiro.
14. Fale com Ela (Espanha), de Pedro Almodóvar: em minha humilíssima opinião, o melhor do ano. A idéia do filme dentro do filme é um achado brilhante que nos prepara para o final da história. Genial! Não gostava do Almodóvar provocador do passado. Eu mesmo provoquei algumas discussões sobre o que pensava ser a “vulgaridade” do diretor. Porém, acho seus três últimos filmes (Tudo Sobre Minha Mãe, Carne Trêmula e este) grandes obras. Mais um grande filme sobre a amizade entre homens, como já fora o extraordinário As Confissões de Henry Fool (Hal Hartley), que passou aqui no ano passado.
15. O Filho da Noiva (Argentina), de Juan José Campanella: um filme perfeito! Roteiro monumental que equilibra boa comédia, drama consistente e que, ao final, quando lágrimas querem surgir em nossos olhos, o diretor interrompe os créditos para fazer um importantíssimo esclarecimento, que acaba por ser uma das melhores piadas do filme. Imperdível (deve estar ainda em cartaz).
Já as maiores decepções do ano foram Oito Mulheres, Depois da Vida, Onze Homens e um Segredo e principalmente O Senhor dos Anéis I.
Bem, chega de papo. Voltando à lista em anexo, ela é composta dos últimos 960 filmes que vi e lembrei de anotar. Os mais atentos notarão que ela diminuiu seu tamanho, pois antes de 1987 (entre 79 e 86), minha disciplina era bastante boêmia; então retirei da lista uns 200 filmes destes anos. Em anexo, há uma tabelinha do Word com a relação dos filmes que vi entre 1987 e 2002. Lá estão seus nomes, diretores e a nota que dei a eles. Para quem não sabe como ela começou: costumava anotar em minhas agendas os filmes que via e dava-lhes notas; uma vez resolvi jogar fora as agendas, mas achei que aquela relação de filmes poderia ser útil em idas a locadoras de vídeos. Digitei todos os filmes em um arquivo do Word e, durante uma discussão cinematográfica com meu amigo Franklin, na qual tínhamos esquecido o nome de um diretor, mostrei-lhe o arquivo. O arquivo foi recebido com tamanho entusiasmo que resolvi distribuí-lo anualmente, o que causa sempre muita confusão, pois alguns de vocês são muito chatos, opiniáticos e insistem em discordar de mim…
As notas significam mais ou menos isto:
5 – Não de deixe de ver
4 – Muito bom
3 – Vale a tentativa
2 – Medíocre
1 – Um saco
0 – Além de saco, mal intencionado
Feliz ano novo. Milton.
Porque hoje é sábado, Marlene Dietrich
Carlos Drummond de Andrade brincava com Vinícius de Moraes
Drummond achava que a mais bela era Greta Garbo
Vinícius respondia que não, a mais bela era Marlene Dietrich
Prefiro Drummond como poeta, mas sua cara de farmacêutico nunca me enganou
Não entendia patavinas de mulher
Mulher era uma especialidade de Vinícius
E dou-lhe razão
Greta era fria e má atriz; Marlene era mais bonita, melhor atriz, excelente cantora e
Tinha o mistério que poucas mulheres possuem
Vestia-se como homem, mas ao contrário de Garbo, parecia uma fornalha pronta a explodir
Mesmo em fotos estranhas
Mesmo atrás da porta
Parecia prestes a saltar (maravilhosamemente) sobre nós
Mesmo quando passou apenas a cantar (e evoluía mesmo além dos setenta anos)
Mesmo quando retirou-se, mesmo depois de morta
Permaneceu ameaçando-nos com um olhar inquisitivo que não consigo decifrar…
… (burro que sou).
Da Pretensão Humana
É sempre da mais falsa das suposições que ficamos mais orgulhosos.
SAUL BELLOW
Alexandre chegou apressadamente a seu consultório antes do horário habitual. Sentou-se na confortável cadeira em que ouvia seus pacientes e pegou o telefone. Aguardando que sua respiração se apaziguasse, revisava mentalmente tudo o que desejava dizer a ela – àquela bela mulher que conhecera através de amigos na noite anterior. Limpou a garganta e discou. Tinha planejado uma postura que poderia ser assim descrita: seria gentil, agradável, carinhoso, inteligente, divertido, interessado e, dependendo do andamento da conversa, também picante. Era cedo, ela devia ainda estar em casa. Porém, a voz que tanto ansiava reencontrar chegou-lhe burocrática, pedindo-lhe para deixar um recado logo após o sinal. Tomado de agitação, procurou em seus pensamentos algo espirituoso. Depois de alguma confusão, finalizou a mensagem:
– Dora, se queres me conhecer melhor, ouve o segundo movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven. Sou eu, Alexandre. Um beijo.
Desligou o telefone sentindo-se um idiota. Permaneceu primeiramente avaliando aquele “Sou eu, Alexandre”. Dora pensaria que sua intenção seria a de dizer que o segundo movimento da Sétima descrevia a pérola de homem que ele era ou concluiria tratar-se apenas da assinatura final do recado? Ou, de forma mais benigna, será que Dora presumiria que o intento de Alexandre seria o de proporcionar-lhe uma lembrança agradável ou de fazer uma piada? Mas antes, ele dissera “…se queres me conhecer melhor, ouve…”. Como assim? Poderia alguém ser descrito por uma seqüência de notas musicais? E Beethoven retrataria alguém como Alexandre logo por aquelas notas? O que Dora pensaria? Tinham conversado bastante na noite anterior a respeito do concerto a que assistiam com amigos comuns. No intervalo, ela disse ser uma ouvinte contumaz de Beethoven, também declarou que, em sua opinião, faltava aos barrocos do concerto daquela noite o drama e as afirmativas curtas e repetidas de seu compositor predileto.
– Vim a este concerto por insistência da Carla e do João. Há meses fico em casa com meu filho. Sou uma descasada recente.
Alexandre ficara instantaneamente apaixonado, transtornado mesmo. Desejava aquela mulher linda e inteligente, queria ser admirado por ela, mas, sentado em sua sala, começava a desesperar-se com a evidente bobagem da mensagem que gravara. O que significava aquilo de comparar-se ao compositor que ela amava? Ontem, para agradar a Dora, ele tinha derramado todo o conhecimento musical que lembrava sobre o compositor alemão. Ao final do intervalo, trocaram seus telefones a pedido dele. Agora, ainda sentado, pôs a cabeça entre os joelhos e disse em voz baixa que até a megalomania tinha que ter seus pudores.
E Dora? Acreditaria que toda a perfeição daquele segundo movimento pudesse ser uma representação de Alexandre? Iria recusá-lo por pretensioso? Ficaria constrangida e oprimida? Fugiria por não ser-lhe digna? Faria piadas com os amigos? Ou será que pensaria que ele, romanticamente, ambicionava ombrear-se aos semideuses para ser-lhe digno?
– Burro, burro, burro – pensou Alexandre, caminhando pela sala.
Dora ligou dali a três dias. Alexandre procurou marcar um jantar, porém foram-lhe impostas tantas restrições de horário, fosse para um jantar, fosse para um almoço ou café… Enfim, ela parecia ter tantos compromissos – principalmente para cuidar de seu filho -, que ele entendeu tratar-se de uma negativa e despediram-se sem marcar um reencontro específico.
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Dali a dias, durante a festa do Dia dos Pais, Alexandre, um pouco alcoolizado, perguntou a seu pai:
– Pai, se tu quisesses conquistar uma mulher e tivesses a idéia de sugerir uma música para ela ouvir, que música poderia te representar?
– Ora, meu filho, sugeriria que minha futura amada ouvisse uma música que a Maria Bethânia canta.
– Que música?
– Gostoso demais.
Sem dúvida, há megalomanias e megalomanias.
(Ou seria melhor chamá-lo “Da Humana Pretensão”?)
Enquanto isso, em nosso Rio Grande…
Crusius! Nossa governadora provoca debates realmente originais. Nada que melhore sua imagem, claro. Estamos com o pior governo do país. De novo. Se eleger Rigotto foi uma idiotice, substituí-lo por Yeda torna indesmentível nossa estupidez.
Uma das provas da inexistência de Deus é o fato de sermos governados por gente como Yeda Crusius e José Fogaça. Ninguém pode ser insondável a este ponto.
Charge de Eugênio Neves, do Dialógico.
Tropa de Elite (ou Da Impossível Simplicidade), de José Padilha
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Observação: Resolvi ver o filme após ler a discussão que corria lá no Torre de Marfim. E valeu a pena enfrentar a enorme fila. É um bom e importante filme brasileiro. Minhas considerações são parcialmente influenciadas por diversos posts e críticas lidas por aí, então não esperem cem por cento de ineditismo. Começo desorganizadamente pela periferia e vou pouco a pouco entrando nas questões principais de Tropa de Elite. Ao final, copio, no melhor estilo Fausto Wolff (mas com o devido crédito), alguns trechos lidos que achei especialmente esclarecedores ou inteligentes acerca do filme.
Não é o tipo de filme que normalmente me agrada; muitos personagens interessantes ficam inexplorados em troca da ação. Por exemplo, a esposa do Capitão Nascimento passa todo o filme repetindo a mesma ladainha ? e, porra (desculpem, deve ser influência do filme), seu papel mereceria maior desenvolvimento, pois é ela quem cobra de forma peremptória a saída do marido do BOPE ? e mesmo a burguesinha gostosa e correta poderia ser algo mais particularizada. Outra coisa que perturbou minha atenção é que eles suam o tempo inteiro. Parece um filme feito no insuportável verão gaúcho e não no calor bem mais seco do Rio. Talvez o drama e a tensão dos personagens devesse sair fisicamente por seus poros, mas com Wagner Moura, André Ramiro e Caio Junqueira atuando de forma soberba, nem precisava besuntar os atores. A tensão está na cara de todos eles. E por que a burguesa vivida por Fernanda Machado não sua tanto? Se os burgueses não sentem calor então por que compram tanto ar condicionado? Bom, OK.
Vale a pena discutir a acusação de que o filme seria fascista? Não fala em globalização, em Lula, não defende o capitalismo, a família, o patrimônio, nem os Estados Unidos ou Bush, vai sempre em linha reta sem proteger-se de eventuais assuntos espinhosos, Wagner Moura não tem nada de Stallone ou de Schwarzenegger e até obedece à esposa, não se fala de onde vem a droga e não há cartazes neo-nazistas nem de Che Guevara e muito menos resquícios de bolivarismo. Então…? Mais: na sessão em que assisti o filme, o público não aplaudiu ou aprovou as cenas de violência; ou seja, não me pareceu haver grande prazer em ver aquela violência tão pouco estilizada.
Maniqueísta? (Maniqueísmo: Doutrina que se funda em dois princípios opostos, antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem absoluto, e o mal absoluto ou o Diabo.) Maniqueísta? Mas quem é quem? E olha, mesmo que seja, considere que estamos no cinema, local onde o bem e o mal já travaram belas lutas e travarão outras, espero. O esquema mocinho-bandido é maniqueu, goste ou não você da palavra. E ponto. O foco narrativo do filme reforça o maniqueísmo ao partir exclusivamente do Capitão Nascimento ? cuja mulher está grávida e que deseja deixar aquele serviço – e do BOPE. Trata-se de uma visão, portanto, parcial e emocionada, dentro de um tom que permanece longe do narrador onisciente a derramar-se em verdades. Então, mesmo dentro do esquema tradicional do the good and the evil, José Padilha expõe certas fragilidades de seu personagem, deixando-o à crítica, por assim dizer. Diferentemente do que faria um filme fascista a proclamar suas teses, ele nos apresenta um ser humano plenamente contraditório e que, portanto, pode ser contestado. É claro que nos sentimos identificados com o narrador ? o filme infelizmente trata a bandidagem muito superficialmente -, mas nossa simpatia pelo narrador a priori o abraça, sendo ele bonzinho como eu ou mauzinho como o Alex Castro.
O principal mérito do filme é o de não dar razão a ninguém. É como a vida. Sei que é muito complicado para alguns espectadores – e também para o leitor médio da revista Veja – entrar em contato com uma história deficitária em termos de sínteses intelectuais (sínteses que na verdade só servem para nublar a realidade e outras camadas de experiência que, sabemos, têm o glorioso costume de serem inesgotáveis). Ah, o leitor de Veja não deve chegar próximo a Tchekhov, pois o russo, tal como Padilha, expõe problemas, mas nega-se a resolvê-los. Fala, professor: “Não cabe ao escritor a solução de problemas como Deus ou o pessimismo; seu trabalho consiste em registrar quem, em que circunstâncias, disse ou pensou sobre Deus e o pessimismo.” Obrigado pelo auxílio, Anton Pavlovitch. Ora pro nobis.
Há cenas brilhantes no filme.
1. A cena em que o inteligente Matias ? finalmente metamorfoseado em homem violento da repressão – enfrenta diretamente o menino rico que liga-se ao tráfico e ao crime é uma espécie de recapitulação (*) do conflito externo. Fantástico. Ponto para Padilha.
2. A cena dos comprimidos, na qual o capitão Nascimento presumidamente evita matar-se com seus calmantes, jogando fora na pia o conteúdo do frasco. O conflito interno é demonstrado em cena curta e elegante. Mais um ponto para Padilha.
E há duas cenas lindas.
1. Na cena do nascimento do filho do Capitão Nascimento, Wagner Moura tem uma atuação absolutamente tocante, fazendo com que eu lembrasse de meus dois episódios semelhantes que ocorreram comigo. Principalmente do segundo, em que olhava para minha menina pensando no esforço que fizera para que aquilo acontecesse. Soma mais um para ele!
2. A cena em que são avaliados os policiais que participarão do Curso do BOPE: o elenco, como se estivesse brincando numa mesa de reuniões, improvisa uma série de piadas sobre os ?noviços?. Tal cena lúdica, talvez tomada num ensaio, é um refrescante interlúdio para o espectador. Brilhante.
E três fatos que reforçam o estranhamento.
1. O capitão Nascimento é um profissional que ama sua família, mas…
2. O traficante Baiano despede-se da mulher e filha quando sabe que enfrentará o BOPE. É uma atenção meio tosca, mas é a autêntica e…
3. Não quer que seu rosto seja desfigurado por um tiro, pois quer estar adequado em seu enterro.
São homens preocupados com suas famílias. Seres humanos.
Copy and Paste:
Arranhaponte escreveu isso na citada Torre:
(…)
Resgata a polícia da demonização desmiolada de uma certa intelligentsia, mas apenas para lhe fazer fortes reprimendas. Neste sentido, é um filme profundamente civilizatório.Eu quase diria que chamar Tropa de Elite de fascista é uma atitude fascista, por ser uma aposta na barbárie da rebeldia primitiva.
(…)
As pessoas que classificam o filme de fascista são aquelas caricaturizadas na aula sub-foucaldiana na PUC-Rio. Não apenas e necessariamente consumidoras de drogas, mas adeptas da visão do bandido como revolucionário primitivo, e da polícia como agente da reação. Tropa de Elite é um ?ataque do Bope? ao miolomolismo desta gente. Porrada pura.
(…)
Não é o marginal como vítima do sistema, mas o policial como vítima e verdugo do sistema.
Grande Arranhaponte!
E Sergio Leo, invariavelmente exato, expõe certa loucura da mídia:
Na capa da Veja, leio que o sucesso do filme Tropa de Elite se dá porque finalmente, alguém “trata bandido como bandido”. Meu amigo Bode Orelana, analista político de plantão, me garante que o filme é bom, e que desnuda a engrenagem hedionda capaz de fabricar torturadores de boas intenções. Leio na Folha um rapper defender a tese imbecil de que o crime é um mecanismo de justiça social, e o Reinaldo Azevedo, em vez de desmontar o argumento, dizer, babando pelo canto da boca, que a democracia pede a supressão sumária de vozes como essa.
(*) Termo utilizado de forma análoga ao da música erudita (as sonatas têm três partes: exposição, desenvolvimento e recapitulação): Recapitulação é a seção que tem a função dramática de afirmar o tom original, após a transferência para a dominante no final da exposição.
Hospedando Tolstói
Foram duas discussões bastante duras e Idelber Avelar abandonou minha casa ontem à noite. O primeiro desacerto foi documentado por meu filho fotógrafo. Vejam o flagrante abaixo:
Peço desculpas a meus leitores por submeter-lhes a um “Onde está Wally?”, mas é o que temos. Mais ou menos no centro da foto, estou à direita de um cidadão de óculos e camiseta branca. Eu olho para um Idelber empertigado e indignado – ele é a única pessoa no estádio que não está voltada para o campo de jogo. A meu lado, no lado direito da foto, há um sujeito loiro, vestindo vermelho. Seu nome é Paul. Minutos antes de nossa acerba discussão, Paul tinha dirigido a palavra a mim:
– Eu te conheço, sou teu leitor. Tu és o Milton Ribeiro e foste da Verbeat para o OPS.
Isso não acontece todo o dia e confesso ter ficado envaidecido. Mui gentimente, agradeci e apresentei Paul a Idelber Avelar. Foi a apresentação que um cara modesto como eu (200 visitas diárias) faz de um überblogger (5.000 visitas diárias). Eu disse
– Paul, muito obrigado, fico até comovido. – E completei:
– Este é o Idelber Avelar, do Biscoito Fino e a Massa.
– Desculpe, não conheço. Não leio todos os blogs.
– Claro que conhece, Paul! – disse e pisquei para ele. – Ele tem 200.000 visitas a cada domingo… O nome do blog baseia-se numa citação de Oswald de Andrade “a massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico” e ele…
– Comerá o biscoito? Hahahahahaha, tô fora, Milton, desculpa.
Ora, confesso ter sorrido; sei lá, talvez rido; alguém diria que tenha gargalhado. O fato é que Idelber indignou-se de tal forma que quase chegamos às vias de fato minutos após nosso primeiro encontro! A discussão foi tão ridícula e ociosa, que provocou risos no casal à esquerda da foto, cuja moça olha para o fotógrafo. Fomos impedidos de sair a socos e pontapés em plena arquibancada pela moça de enormes brincos e disposição ainda maior cuja cabeça impede que meus leitores possam ver meu cotovelo direito. Ela é campeã de Kickboxing e seu pézinho tem miraculosa mira. Ela acentuou a sensiblidade de partes delicadas do meu corpo. Paul sentiu-se tão culpado com o fato que publicou ontem um comentário em meu blog:
Olá Milton! Aqui fala o Paul, falei contigo no Beira-rio sábado. Cara, eu não entendi quando tu me disse o nome dele (provavelmente porque eu havia derrubado o copo de cerveja e estava tentando ver se havia dado um banho em alguém…), mas é óbvio que muito já li o blog do Idelber.
Eu acompanhava o teu outro blog pelos feeds da Verbeat, agora já vou incluir o “Ops” no google reader.
Grande abraço, e saudações coloradas!
Notaram o problema do rapaz? Dois dias depois ele vem a meu blog negar que desconhecia o obscuro Idelber (é óbvio que nunca passou nem perto do Biscoito). Bem, voltando aos fatos ocorridos no Beira-Rio: depois de lograrem acabar com as intenções assassinas de nosso professor, Paul e a menina dos brincos foram vistos rolando abraçados na rampa do Beira-Rio. Desconheço se ela viu o Biscoito ou apenas sentiu-o, mas espero que o Sr. Paul volte a nossa caixa de comentários com a finalidade de esclarecer o detalhe.
Ontem, Idelber Avelar voltou a se descontrolar. Manifestou exagerado ódio contra mim ao ver que eu ainda utilizava o Internet Explorer.
– Porra, pára de usar AGORA esta merda produzida pelo Bill Gates.
– Mas, Idelber, tu usas o Windows da Microsoft controlando o teu querido Firefox. Temos algo em comum, râni! – ao chamá-lo de Râni, tentava apenas demonstrar carinho.
– Conhecidos meus meu não usam essa porcaria, Milton. Instala agora o Fire! É mais rápido do que esta bosta que utilizas – sim, ele está tentando falar um gauchês plus. – Já faz vários anos que utilizo o Firefox. Ele é simplesmente o melhor navegador que já encontrei para meu Biscoito. Já utilizei Internet Explorer, Netscape, Opera, Konqueror e Safari mas nenhum deles satisfez minhas necessidades. Uso o Firefox por causa de suas extensões. Existe extensão para tudo, até para o Biscoito.
E saiu para fumar. Era uma da madrugada. Minutos depois, ouvi uma porta bater forte, como se comunicasse uma decisão aos que ficavam e procurasse deixar para trás seu mau humor. Não havia vento, porém a batida foi tão violenta que trouxe certo odor de tabaco. Ele não deve estar longe; afinal, deixou seus filhos lá em casa. Acabo de instalar o Firefox e termino este post para ir atrás do professor Idelber. Tenho certeza de que o encontrarei batendo papo com o gerente de alguma estação de trem. Levarei meu notebook e lhe mostrarei o Firefox instalado. Vai dar certo.
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O Papa acaba de acrescentar seis pecados aos conhecidos sete originais. É lamentável, pois ainda não estou inteiramente adaptado àqueles e o homem me aumenta o tema de casa.
1. Fazer modificação genética.
2. Poluir o meio ambiente.
3. Causar injustiça social.
4. Causar pobreza.
5. Tornar-se extremamente rico.
6. Usar drogas.
Os novos pecados dois a dois ou Gioco delle coppie (afinal, amo Béla Bártok):
2 e 6: Esses estão bem postos.
1 e 5: Poucos podem cometer o primeiro pecado e a Igreja Católica comete o quinto há séculos.
3 e 4: O terceiro e quarto serão fartamente utilizados pelos católicos do PT. Eles agradecem. Apenas eles.
Notícias da Família Avelar
Chegaram sábado, quase que direto, fomos ao jogo do Inter. Idelber e seu filho Alexandre impressionaram-se com a frieza de nossa torcida. Todos sentados, assistindo ao jogo. Só a Popular, abaixo de nós, comportava-se como a Massa, mas tomada de grande cansaço. Engraçado, o Inter é um time recentemente bem sucedido, que enche estádios, mas sua torcida é cada vez mais tranqüila. À noite, tivemos uma festa em parte convidada por mim, em parte por ele e em parte auto-convidada. Conhecemos a Gabriela Zago, tímida e risonha Twitter no meio de uns caras muito faladores; reconhecemos a ala colorada do Impedimento, Daniel Cassol e Douglas Ceconello; esteve lá meu querido ex-chefe Tiago Casagrande, em noite de grande inspiração.
Ontem, dia de brique, Barranco e calor insano, foi dia de Katarina Peixoto, de seu maridão, do César do Animot e de um monte de não-blogueiros não menos interessantes.
O Idelber conhece bastante Porto Alegre e os convites vão acontecendo de um jeito inesperado, ao menos para mim. Se me contassem que, após 48h, o homem só faria uma refeição lá em casa, não acreditaria.
Uma história certamente pouco divulgada e que deve figurar em meu blog – mais pessoal e íntimo que o dele – é o jeito com que o Idelber relaciona-se com seus filhos. São eles o Alexandre, um menino de 11 anos, e Laura, uma menina de 8. O Alexandre é um projeto de adolescente ensimesmado, mas felizmente isto tem de ser somado a uma perfeita calma e gentileza. Mesmo com o iPod nos ouvidos, está ligado, pricipalmente se houver comida por perto. Como o pai, sabe tudo de futebol. A Laura também não é especialmente loquaz, porém impressiona pela maturidade e por gostar de cozinhar, fato que a fez ser adotada imediatamente por minha mulher. Gosta de palavras e dá explicações muito acima do esperado para seus 8 aninhos. Os dois demonstram que o Idelber é pouco comparado ao que virá.
P.S.- Cadê as fotos, Bernardo?
Porque hoje é sábado, Ingrid Bergman
No Dia Internacional da Mulher, apresentamos a – na opinião deste atento observador – mais bela representante do sexo a que dedicamos não apenas nossos sábados como todos os dias de nossas vidas: Ingrid Bergman (1915-1982).
Notem acima como Ingrid, aos 63 anos, quatro antes de falecer e já tendo realizado duas mastectomias em razão do câncer que lhe foi fatal, ainda era uma mulher belíssima.
Ela, que nasceu e morreu no mesmo 29 de agosto, protagonizou um enorme escândalo em 1949.
Ingrid separou-se de seu marido sueco Petter Lindström para casar-se com o diretor Roberto Rosselini. Ambos tinham filhos, família, cachorro e calopsita.
Tal paixão fez com que Ingrid fosse acusada de adúltera e de mau exemplo para as mulheres americanas. Ficou anos sem filmar nos EUA.
Os EUA não fizeram muita falta, nem pessoal nem artísticamente. Com Rossellini ela teve três filhos: Roberto e as gêmeas Isotta Ingrid e Isabella, esta a também atriz Isabella Rossellini.
Meu Deus, que pedigree! :¬)))
Recebeu três vezes o Oscar, sempre com filmes meia boca.
O primeiro veio em 1944 com “À Meia-Luz”, o segundo em 1956 com “Anastácia, a Princesa Esquecida” (imaginem o que deve ser…).
O terceiro em 1974 por uma solteirona tímida em “Assassinato no Orient Express”.
Mas ficará eternizada por Casablanca, pelo saco de dormir de Por Quem os Sinos Dobram (daria tudo para me meter ali com ela)…
pela obra-prima Stromboli e pelos hitchcocks.
Aliás, Hitchcock a criticava publicamente: dizia que, se desejava ser eterna, não tinha que fazer papéis de grandes heroínas como Joana d`Arc, mas seus pequenos papéis.
O gordinho, como sempre, tinha toda a razão.
Pois, além de nos hitchcocks, ela é vista por toda a nova geração em um filme pequeno. Passou todo o tempo discutindo com o diretor. Um caso entre dois suecos brigões.
A luta Ingmar X Ingrid teve resultado sublime: Sonata de Outono.
Comprovado! Bach tinha um pé na África!
… por isso, tanto ritmo, pulso e malemolência.
BERLIM (Agência Estado) – A antropóloga escocesa Caroline Wilkinson reconstruiu digitalmente o rosto do compositor alemão Johann Sebastian Bach, a pedido da Casa Museu de Bach, com sede em Eisenach (centro da Alemanha), com uso de técnicas digitais e legistas. Os resultados de sua pesquisa, que serão apresentados na segunda-feira em Berlim, relacionam os dados obtidos de retratos, medições de seu crânio e da máscara mortuária do músico (1685-1750).
Duas dúvidas:
1. Se será apresentado segunda-feira, por que as fotos já estão aí?
2. Esse Bach tá mais para gospel do que pruma boa missa luterana, não?
Obs.: Roubei a imagem acima do Hermenauta.
E, mudando de assunto, embriague-se com a finesse da revista Veja na despedida de Fidel. Seguem as lições de mau jornalismo: “Fidel se desmancha lentamente dentro daquele ridículo agasalho esportivo”. É tudo uma questão de contexto – no caso de Veja, de descontextualização: o que nos pareceria bom num conto de horror de Horacio Quiroga, aqui é autêntico jornalismo de esgoto.
Ela
Que saudade de quando tudo era mais simples, quando foi que mudou?
Frase que minha filha usa para descrever a si mesma no Orkut.
Foram quase quatro anos de espera. Começou numa manhã gelada de setembro de 2004, era antes das 7 da manhã e eu ia levá-la para o colégio; foi a primeira vez que disse aquilo que repetiria nos anos seguintes com todas as variações possíveis. Pai, quero morar contigo. Fiquei surpreso. Afinal, eu e minha segunda mulher morávamos num nada atraente apartamento de dois quartos onde não cabiam nem nossos prováveis dois mil livros. Além disso, sabia que minha ex, apesar de tratar-me como um cão, era boa mãe. A única justificava da Bárbara era sua vontade. Mas, meus amigos, que vontade! Nos primeiros dias, eu lhe respondia que ela devia ficar com sua mãe; afinal, lá havia pátio, cachorro, espaço, quarto individual, tudo o que eu não podia lhe dar naquele momento. Mas ela repetia que nada disso interessava. Expliquei-lhe que eu passava o dia trabalhando, que sua vida comigo não seria um enorme fim-de-semana. Ela respondia que já tinha pensado nisto e tudo bem. Propus-lhe seis meses para que refletisse melhor; se ela mantivesse sua decisão, eu falaria com a mãe dela. Confesso que enrolei um pouco mais, foram nove meses sem maiores comentários. Então ela voltou à carga com uma insistência multiplicada por nove. Tanto fez que fui falar um tanto desajeitadamente com a mãe.
Depois de alguma hesitação, ela lhe negou a permissão. Enquanto isso, eu e a Claudia fazíamos planos e contraíamos empréstimos para construir uma casa. Com ou sem minha filha, precisávamos de mais espaço. Então, houve dois fatos: um interno e outro externo. O fato interno é que concluí o óbvio: se não fizesse tudo para obter a guarda de minha filha, ela se magoaria para sempre. Imaginei-me pedindo o mesmo a meu pai, imaginei o ressentimento irremovível que teria se ele não agisse. Contei o fato para uma amiga psicóloga, ela me respondeu que os filhos deveriam sempre ficar com a mãe, a não ser que esta abusasse deles. Fiquei tão furibundo com esta opinião que rompi com ela. Uma psicóloga deveria saber que pães como eu (pãe é uma mistura de pai e mãe) transformam-se em feras quando vêem alguém afastar injustificadamente sua cria, mesmo que teoricamente. Entendi que deveria ir à Justiça. Abri processo em julho de 2006.
O homem, que havia se equipado com muitas coisas para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:
– Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.
A Justiça não serve para quase nada e, com sorte, só teria a guarda de minha filha quando ela completasse vinte e oito anos. Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa. No início deste ano, após ser massacrado por mais pedidos e perguntas de minha filha, após encher o saco de minha advogada, a qual solicitou inúmeras vezes pressa ao juiz sob os mais diversos argumentos, após pagar R$ 2.000,00 por duas sessões para que um perito psiquiatra garantisse que eu não era louco e nem para neurótico servia, vi ser nomeado um assistente social e um psicólogo para avaliarem os pais e a já adolescente. Tudo bem, é necessário, mas a lentidão de tudo isso…
Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito de sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar.
Não desejava mais incomodação e estresse; pedi, como último recurso, que minha advogada falasse com os advogados da outra parte a fim de evitar mais tensão. Queria um acordo.
Hoje, minha atual mulher mandou este e-mail para um pequeno grupo de amigos:
Caríssimos amigos,
entre sexta-feira e segunda, o Milton e eu vivemos talvez os dias mais desgastantes de nossas vidas.
Foram muitos e-mails enviados, muitos telefonemas e uma enormidade de angústia.
Na segunda pela manhã, depois de uma noite em claro – simplesmente não conseguimos dormir -, estávamos destruídos.
O Milton estava no limite e a desesperança se instalava enquanto estávamos sentados no escritório, mudos, às vezes nos olhando meio perdidos.
Eu mexia mecanicamente nos bilhetes soltos sobre a mesa dele e, de repente, deparei-me com um incrível bilhetinho.
Um lado do quadrado de papel estava inteiramente pintado com caneta esferográfica preta e no outro lia-se o seguinte:
Nunca perca a determinação.
Artista e escritora: Bárbara (filha).Então, o Milton me olhou, sorriu e contou que ela tinha feito aquilo num dia em que esperava a hora de ir para a equitação. Ela tinha explicado que aquilo era uma obra de arte que expressava a determinação que precisaria ter. A justificativa para a “pintura” residia no fato de que era exigida muita persistência para cobrir inteiramente um lado do papel, sem deixar nenhum espacinho em branco.
Ontem à tarde, parece que fechamos um acordo sobre a guarda da Babi. O termo, escrito por nossa querida advogada Rúbia Poletto, já foi revisado por todos. O Milton e a Rúbia já assinaram e remeteram aos advogados dela para que seja assinada. Será uma guarda compartilhada, mas ela vai morar conosco.
Se nada novo acontecer acho que a “determinação” da Babi venceu! Eu, que coadjuvo a história e há quatro anos torço por um final feliz, só queria compartilhar isso com os amigos.
Beijos a todos.
O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra:
– Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.
Bárbara e Maria Callas (a nariguda de cabelos pretos)
Obs.: Os parágrafos apenas grifados são ou da Bárbara ou de Diante da Lei, de Franz Kafka.
Espera & Fading
Há diversos tipos de espera. Há a espera por algo que sabemos que vai acontecer, só não sabemos quando. Há a espera por algo que tememos estar se afastando de nós (ou que sabemos estar se afastando). Há outro tipos também, mas estes não me interessam agora.
Vivendo momentos de espera, fui folhear inconscientemente o livro Fragmentos de um Discurso Amoroso, o mais popular de Roland Barthes e, como sói acontecer quando estamos angustiados ou quando um católico abre a Bíblia numa página qualquer, dei de cara com aquela página tudo a ver. Tudo a ver mesmo: abri o livro nos verbetes Espera e Fading. (Há um sinônimo para fading em português?) Pois então, copiei, mexi e certamente piorei alguma coisa nos dois verbetes. Já não lembro o que é de Barthes e o que é de minha pretensiosa intromissão.
Espera. Tumulto doloroso de angústia suscitado pela espera do ser querido.
Espera. A espera é um encantamento: recebi ordem de não me mexer. Me impeço de sair de casa, de ir ao banheiro, de telefonar, me desespero só de pensar que a tal hora tenho um compromisso. Fico recolhido. Estes incidentes seriam momentos perdidos de espera, impurezas da angústia.
Espera. A angústia da espera não é sempre violenta, tem seus momentos de calma. Espero, e tudo que está em volta da minha espera é atingido de irrealidade: neste escritório, observo os outros que entram, conversam, trabalham, se divertem: esses não esperam.
Espera. Apenas o que espera está carente. O ser esperado está na plenitude. Às vezes, ele tenta fingir que é aquela que é esperada; tenta se ocupar com outra coisa, chegar atrasado; mas neste jogo perde sempre. Arruma a casa, mas o que quer que faça, acaba sempre sem ter o que fazer, acaba sempre pontual e até mesmo adiantado. A identidade fatal de quem espera não é outra senão aquele que espera.
-=-=-=-=-
Fading. Experiência dolorosa segundo a qual o ser querido parece se afastar, sem que esta indiferença seja dirigida contra o sujeito apaixonado ou a favor de um rival.
Fading. Quando o fading se produz, fico angustiado porque suas razões me parecem sem fundamento (não é razoável, diz ele) e sem fim. A outra se afasta como uma miragem triste.
Fading. Ela vai se afastando para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar. De repente, ei-la sem brilho.
Fading. No fading, a outra demonstra seu cansaço, parece perder todo o desejo, a noite a leva. Sou abandonado pela outra, mas este abandono se divide com o abandono que ela mesma sofre. Recebo sempre um embrulho de cansaço.
Livros (falo de milhares deles) em Domínio Público
Amigos, neste site governamental há mais de dois mil documentos disponíveis gratuitamente, entre romances, contos, teses, etc. Então, quem tem pouca grana faz o seguinte: clica sobre o título do livro e manda para sua impressora… Ou para a do patrão, do pai, do(a) namorado(a) mais endinheirado(a)… ou lê no monitor mesmo. Todas as obras estão em “.pdf” e podem ser baixadas livremente. Mais: se você é autor e deseja disponibilizar textos para serem lidos livremente, o Domínio Público está preparado para recebê-los. Afinal, entre editar e não ser lido, talvez seja melhor mandar direto para o Domínio Público, não? Lá alguém pode baixar e você será lido. O que mais deseja um autor? Viver da venda de livros? Sim, claro, mas é uma quimera, certo? Talvez o melhor seja largar logo seu filho na vida.
Meu amigo Aurélio Dumitru me mandou um cuidadoso e-mail com duzentas e doze obras que destaca no site. No ano em que Machado de Assis completa cem anos de morte, pode-se tomar um porre – inteiramente gratuito – do Bruxo do Cosme Velho. Confiram abaixo a lista e visitem o site:
O Violista (Final – Allegro Maestoso)
Romeu foi cedo para o concerto em que interpretaria a Sinfonia Concertante para Violino, Viola e Orquestra, K. 364, de Wolfgang Amadeus Mozart. Chegando ao teatro, arrumou-se, afinou atentamente o instrumento e, como não tinha nada para fazer, foi ver quem estava no teatro antes de praticar mais um pouco. Logo que entrou na área administrativa, viu o maestro Tardue conversando com as secretárias. Procurou evitá-lo, não precisaria de uma discussão naquele momento, mas ele lhe fez um gesto amistoso convidando Romeu a aproximar-se. O maestro tratava de alguma questão administrativa e não dirigiu-lhe a palavra até terminar seu assunto.
– Já paramentado, Romeu? Que horas são? – perguntou finalmente.
Romeu riu e respondeu que o Dia do Violista era uma instituição rara e que pretendia aproveitá-la ao máximo. Tardue levou-o cordialmente até sua sala e disse que sua evolução nos ensaios fora surpreendente.
– Entendo perfeitamente o fato de alguém motivar-se agredindo quem lhe pareça um obstáculo.
Romeu não respondeu e Marc seguiu:
– Sim, eu acredito que você fantasiou uma hostilidade que nunca ocorreu entre nós. Eu, ao menos, não tive a menor intenção. Por que eu teria convidado justo você para substituir o húngaro?
– Que húngaro, maestro?
– Ora que húngaro?! Aquele que habitualmente interpreta a Sinfonia Concertante com Elena e que passou a faltar compromissos por motivo de saúde.
Romeu entendeu que Tardue desejava humilhá-lo citando um fato que antes evitara: o fato de que ele estava no papel de um mero substituto de última hora. Intuitivamente, evitou desconcentrar-se e respondeu
– puxa, maestro, não sabia. Que sorte a minha, não? Pois fazer minha estréia como solista em nossa orquestra com alguém do porte de Elena Sofonova é como entrar em campo ao lado de Zidane ou…
– Zidane e Pelé, certamente. E fui eu quem defendeu a introdução de um membro da orquestra ao lado de Elena. O Conselho não desejava, mas, por insistência minha, consegui. Será um belo concerto.
Romeu assentiu de forma entusiasmada e refletiu que aquele seria o momento exato para despedir-se do maestro; afinal, não seria nada bom não exercitar sua ironia a apenas duas horas do concerto. Tinha que manter-se mobilizado, concentrado. De voltar ao corredor, viu que havia luz num dos camarotes e bateu na porta. Como imaginava, após alguns segundos, a luz tornou-se ainda mais intensa com a presença de Elena à sua frente, sorridente e convidando-o a entrar. Falando num inglês menos estropiado que o de Romeu, ela lhe falou que trouxeram-na muito cedo do hotel para que ela se preparasse, mas que aquilo não era necessário a uma moça despojada e despreocupada como ela. Estava de calças jeans e camisa, ambas muito justas, que demonstravam ainda mais claramente sua beleza.
Tranqüilo, Romeu perguntou-lhe quantas vezes ela tinha interpretado a Sinfonia Concertante antes e ela respondeu-lhe que apenas duas ou três vezes além da gravação que fora lançada pela ECM.
– Ah, sim. E com quem foi a gravação?
– Com Kim Kashkashian. O convite partiu dela, claro. As you know, ela é filha de armênios e fomos parte do mesmo país até alguns anos. Acho que ainda é natural uma armênia procurar uma lituana para tocar, mesmo uma inexpressiva como eu – disse Elena.
– Vocês ainda têm muito contato entre si? Isto é, russos e lituanos e armênios e húngaros… São colaboradores habituais ou tudo ficou no passado?
– Não, há uma certa inimizade, até. Ou toco em meu país com grupos de lá ou estou no ocidente. Ultimamente, mais no ocidente, as you can see.
– Pensei que costumavas tocar esta obra com um húngaro… – tentou Romeu.
– Ainda não o conheço! – respondeu Elena com seu melhor sorriso. – Mas se der um bom marido, estou interessada!
Desta vez, Romeu e Elena Sofonova finalmente sorriam com a mesma intensidade. Depois, ela lhe perguntou sobre o Brasil, achando incrível que alguém abandonasse um país de natureza tão pródiga e que produzia tão bons músicos, como ela comprovara em muitos CDs e nos últimos dias. Romeu estava encantado com a simpatia da moça que agora lhe oferecia um doce que ganhara e que não deveria comer para manter a fama de que as russas, ou quase, eram sempre loiras, altas e magras.
Ele se despediu, dirigindo-se depois a seu armário. Um colega avisou que hoje ele tinha direito a um camarote ao lado da deusa, mas Romeu rejeitou, preferindo que o lugar de sempre entre os músicos. Ensaiou muitas vezes a belíssima entrada que faria em uníssono com Elena. Lembrou do filme Amadeus, em que aquele início fora utilizado; Romeu sabia que o público ficaria encantado desde os primeiros segundos daquela música perfeita.
Repetiu-a muitas vezes até ver Elena, já de vestido longo, juntar-se a ele, refazendo os primeiros compassos agora em dueto. Romeu notou que, pouco a pouco, os dois alteravam a dinâmica de tal forma que sua entrada, após a longa introdução orquestral, pareceria um bem humorado mergulho na massa sonora da orquestra. Não pensava absolutamente em mais nada.
O concerto foi um sucesso. Elena, Romeu e a Orquestra Nacional do Porto foram ovacionados, com os solistas e Tardue retornando duas vezes ao palco. No segundo retorno, Tardue fez questão de entrar com o braço sobre os ombros de Romeu, demonstrando ao público seu apoio a um instrumentista da orquestra, a alguém que fazia seu dia a dia ali e que não era um solista internacional.
Foram os três jantar juntos, acompanhados de alguns amigos. Era a despedida de Elena, que viajaria no dia seguinte para Paris. Foi um jantar feliz e cansado; Romeu sentou-se ao lado da lituana e recebia os cumprimentos junto com ela. Não estava preocupado nem ressentido; sabia que fizera boa figura. À saída, quando se dirigiam para a porta do restaurante, Marc Tardue fez questão de pôr-lhe o braço novamente sobre os ombros, perguntando como tinham sido seus trinta minutos de glória. Romeu não respondeu, apenas desvencilhou-se do maestro para despedir-se do restante do grupo. Trocou um longo abraço com Elena.
Chegando em casa, o violista tratou de arrumar a casa antes de dormir. Recolocou a cadeira de frente para a televisão, o cachecol do Boavista voltou a ornamentar a TV, o rádio temático retornou à mesa e só então foi preparar a cama para dormir, pensando que sua sala era melhor que o Bessa Século XXI, o estádio do desastrado Boavista daquele ano.
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O primeiro movimento da Sinfonia Concertante está aqui, a entrada dos solistas ocorre lá pelos dois minutos, após a longa introdução:
E termina aqui:
Observação final: Marc Tardue foi o regente da Orquestra Nacional do Porto por oito anos até o final do ano passado. Não o conheço e nem sei nada a respeito dele. Os outros nomes e personagens foram inventados, exceto o de Elena Sofonova, que foi a atriz principal de Olhos Negros, filme de Nikita Mikhálkov.
O Violista (IV – Presto)
Romeu retornou à casa e procurou imediatamente o telefone para pedir uma pizza. Estava feliz e falou em voz muito alta que queria o mesmo de ontem. A moça disse-lhe o preço e ouviu Romeu perguntar:
– Você sabe qual é a diferença entre Deus e um maestro?
– Não, senhor – disse a atendente brasileira acostumada às piadas de seu consumidor.
– É que Deus sabe que não é maestro!
Ela, excepcionalmente, deu uma autêntica risada. Romeu replicou:
– Depois de meses, consegui fazer-te rir!
– Sim, o Sr. é muito engraçado e hoje o dia está calmo.
– Poucas encomendas? – perguntou Romeu que nunca tinha falado com a moça sobre quaisquer outros assuntos.
– Sim, poucas. Mais tarde começa a correria. O Sr. é músico?
– Sim, toco na Sinfônica do Porto.
– Que interessante! E que instrumento o Sr. toca?
– Viola, sou violista.
– Não sabia que havia violas numa orquestra. Violas são como violões, né?
– Não, viola é um violino maior, de som mais grave.
– Ah, sei. Vocês colocam o instrumento no chão e ficam de pernas ab…
– De pernas abertas? Não, aqueles são os violoncelos… – Romeu tentou resistir… Mas não conseguiu. – Para tocá-lo é necessário ficar como as mulheres gostam de ser tocadas.
Ela não respondeu nem riu e Romeu tentou inicialmente preencher o silêncio com uma risada, depois com um pedido de desculpas. Não houve reação, à princípio, depois – com um tom entre a decepção e a irritação, talvez ambas – ela lhe disse apenas que tinha que trabalhar. Ele insistiu desculpando-se novamente até que ela respondeu com voz tranqüila:
– Não esperava que um brasileiro me tratasse como alguns portugas daqui fazem. Não sou uma prostituta, sou uma brasileira que tenta ganhar a vida neste país. Sou igual ao Sr.
– Desculpe, não foi minha intenção ofendê-la. Por favor, acredite.
Desligaram e ele explodiu:
– Sou um imbecil! Um idiota!
Imaginando a idade e a aparência da moça, Romeu começou a arrumar a casa, retirou o cachecol do Boavista da parede e teve vontade de jogar o rádio alvinegro no lixo. Não o fez, mas tirou ambos de sua vista. Sentou-se na cadeira de sempre, postada no meio da sala, com a caixa da viola sobre os joelhos, achando-se desconfortável. Girou a cadeira até ficar de costas para a televisão e, com um leve sorriso, atacou o Presto, terceiro movimento da Sinfonia Concertante. Sentia-se reconciliado com o instrumento. Tocou de tal forma que agradou até este narrador. Enquanto repetia alguns trechos mais rápidos e difíceis, pensava no conflito com o maestro Tardue. Vários de seus colegas o cumprimentaram ao final do ensaio, parabenizando-o pela coragem de enfrentar o todo-poderoso.
– Deixaste-o com a pata na poça – disse um.
– Ele parvou e te sentiste no dever de fazer-lhe ver a verdade? – riu outro.
Porém, à saída, o maestro olhou-o bem nos olhos e Romeu teve a certeza de que, como as guerras, aquela discussão não finalizaria enquanto o dominado não aceitasse a superioridade do dominador.
Era heróico, talvez, mas não era inteligente um violista desafiar o maestro publicamente, assim como um recruta não deve fazer sugestões ao General em frente à soldadesca. Ele que esperasse. Mesmo refletindo dessa maneira, Romeu sorria, feliz com a vitória parcial. Será mesmo que Tardue se vingaria dele? E quando? Não acreditava numa demissão; afinal, não havia descumprimento nem extraordinária insubmissão. Vamos ver, pensava ele, ainda sorrindo.
O problema resume-se nisto, refletia Romeu: quanto menos tempo temos, menos conteúdo comunicamos ao ouvinte. Acelera-se a música quando ela tenta expressar a alegria, ou o contraste com algum momento anterior; também apressamos o andamento se buscamos o virtuosismo ou o aplauso. Porém, alguns regentes fazem adágios precipitados por pura incapacidade de expressar conteúdo. Quando pressentem que este será inevitavelmente pobre e entediante, aumentam a velocidade da execução da música para que esta cause alguma impressão. Substitui-se a beleza pela habilidade. A lituana era mesmo muito boa, avaliava Romeu, pois sublinhava nuances que ele nunca percebera no movimento lento da Concertante. E mandava em todos, como muitas mulheres conseguem fazer. Afinal, a cada frase que seu violino pronunciava, ela sugeria ou impunha um sotaque à resposta do violista. A luta, na verdade, era entre ela e Tardue, tinha pouco a ver com o novo herói da orquestra. De modo submisso, ele, e depois a orquestra, foram induzidos por Elena que, consciente de que introduziria o tema do Andante, tinha o poder de arrastar todos consigo, não obstante a resistência do regente. Assim, garantiria uma interpretação cheia de intenções e conteúdo; aquilo não era para qualquer um.
A relação entre conteúdo e tempo é mesmo curiosa, às vezes paradoxal, pensava Romeu, e tem de ser levada em conta. Faz parte de nossa época este desrespeito ao conteúdo; a TV mostra diariamente as notícias mais complexas de forma condensada, o que nos torna todos críticos e “sumidades” sobre qualquer assunto, ao mesmo tempo que nos priva dos meios para exercer críticas consistentes. Só agora ele dava-se conta que comprara uma briga que, na verdade, era de Elena Sofonova. Tardue ignora ser impossível fazer aquele Mozart sob o formato tacanho que lhe agrada e Elena Sofonova combatia a superficialidade do maestro.
Porém, no movimento que Romeu ensaiava, a velocidade era fundamental e ele acelerava seu solo ao ritmo de seus pensamentos. Pensava que era um violista rápido e nas piadas que inventaria, ao mesmo tempo que orgulhava-se de saber que estaria acompanhado, no dia seguinte, por uma instrumentista de primeira linha.
Voltou ao telefone a fim de conferir se seu sapato já tinha recebido o salto que o faria acompanhar Elena com mais quatro centímetros de altura. O homem o tranqüilizou. Estava feliz, refletindo que a experiência já valera a pena e que o público aficionado da cidade do Porto reconheceria nele um instrumentista seguro e eficiente.
Não pensou no Boavista nem enquanto devorava a pizza. Esqueceu todos os programas esportivos que normalmente assistia para ficar apenas ensaiando. Tinha a impressão de que o tempo retrocedera e que podia tornar-se aquilo que ambicionara na juventude. Imaginava a formação de um grupo com outros músicos da orquestra para interpretar Hindemith ou, quem sabe, talvez fosse mais fácil criar um quarteto de cordas?
Abaixo, o Presto com Maxim Vengerov (Violino) e Yuri Bashmet (Viola):
Amanhã, às 12h, o final.
O Violista (III – Andante)
Véspera do concerto, dia do segundo ensaio. Romeu caminhava lentamente para o teatro obedecendo a ordem do maestro Marc Tardue. A secretária da orquestra havia-lhe deixado um recado para que chegasse meia hora antes. Romeu imaginava o conteúdo da conversa e preparava-se, refletindo que deveria argumentar com segurança, mas o que lhe passava pela cabeça era um tumulto de frases soltas, de conteúdo bastante agressivo.
Entrou e a jovial secretária avisou que ele já era esperado. Tardue estava ao telefone. Sem parar de falar, levantou-se para cumprimentar Romeu e voltou a sentar-se atrás de sua mesa. O assunto era algum problema administrativo que não interessou a Romeu. Quando desligou, ofereceu um café ao violista e reclamou que as tarefas administrativas inerentes ao trabalho de maestro tomavam-lhe muito tempo.
– É difícil ser artista e administrador ao mesmo tempo – replicou Romeu.
Não fora um começo muito promissor e ele tentou emendar imediatamente.
– Quero dizer que deve ser irritante ter de negociar e eventualmente fazer concessões. O ideal para um artista seria a recusa a quaisquer concessões, mas creio que um regente morreria se não as fizesse.
Tardue, acostumado a afagos, estava mais surpreso do que ofendido com o início da conversa e resolveu ignorá-la, indo na direção do assunto principal.
– Sr. Martins, convidei-o à minha sala com a finalidade de saber o que causou aquele desempenho inteiramente insatisfatório no ensaio com Elena Sofonova. O Sr. me deixou muito preocupado.
Romeu tinha preparado uma justificativa de ordem pessoal para sua atuação – um mau dia, problemas em casa, quem sabe? -, mas ao ver o ar autenticamente interrogativo e nada hostil de Tardue, optou por outro caminho. Explicou-lhe que as facilidades de um violista de orquestra acostumaram-lhe mal e que chegara muito relaxado ao ensaio.
– Determinado grau de tensão e mobilização é necessário, maestro – completou.
Tardue pegou uma caneta e pareceu hesitar. Fez uma pequena anotação na folha sobre a mesa e foi ainda mais direto.
– O que desejo saber é se precisaremos adequar os andamentos às dificuldades dos solistas ou não. Esta é a primeira obra de Mozart que está fora da concepção galante, é a primeira vez que aparece uma arquitetura mais monumental, ao mesmo tempo que íntima. Não é música superficial e é muito dialogada; sendo que a viola muitas vezes é instada a repetir imediatamente o que foi tocado pelo violino e, se houver erros nas repetições, será um fiasco, toda a platéia notará.
– Não se preocupe maestro, o que aconteceu no ensaio… – tentou Romeu.
– O ideal seria um primeiro movimento afirmativo, um movimento central dramático e um presto bem rápido e virtuoso, superficial até.
– Maestro, eu e Elena faremos a música que …
– Sr. Romeu, desculpe interrompê-lo, mas, quando rejo uma orquestra, eu faço a música e vocês tocam as notas. Eu sou o fator de inspiração e quero saber se meus recursos estão à altura daquilo que irei exigir.
O sangue subiu ao rosto de Romeu. Pensou que deveria responder apenas que ele era um recurso com o qual Tardue poderia contar para qualquer obra e interpretação, que estava disposto a colaborar e obedecer com o melhor de si. Foi o que fez. E despediu-se.
Faltavam dez minutos para o ensaio e o violista foi ao banheiro na tentativa de acalmar-se. Passou água fria no rosto e após fechou-se numa privada. Sentado e de olhos fechados, tentou esquecer a conversa com Tardue e retornar ao espírito de seu ensaio em casa. Lembrou do Boavista e dos gols de Nuno Gomes, mas conseguiu rejeitar as más lembranças. Na hora exata, entrou no palco dirigindo-se diretamente a Elena, à qual cumprimentou efusivamente, sem olhar para seus pés e ignorando a diferença de altura. A moça era mesmo bonita. Tardue, depois de perguntar se todos estavam presentes e preparados, escolheu ensaiar o segundo movimento da Sinfonia Concertante. Elena, que parecia ser incapaz de parar de sorrir, aproximou sua cabeça loira da de Romeu e cochichou-lhe em inglês, pedindo que ele ouvisse atentamente seu violino e seguisse dialogando com ela.
– Vou tocar lentamente, vamos sem pressa, como fazem os casais… – foi o que falou a Romeu de forma bem humorada e não isenta de cinismo.
Ele gostou do que ouviu e Tardue fez a orquestra tocar a breve introdução ao Andante. Elena iniciou seu solo muito lentamente e Romeu respondeu-lhe da mesma forma com o som mais grave da viola. A música seguiu seu colóquio verdadeiramente apaixonado e, enquanto sentia que a música estava passando de seu cérebro a seus dedos, Romeu reviu em imaginação vagas imagens do filme Afogando em Números, que utiliza o tema. Ele sorria, mas não era páreo para a luminosa violinista. Os dois sentiam-se refletindo perfeitamente a música de Mozart um no outro quando Tardue interrompeu tudo. Nervoso, reclamou dizendo que os solistas estavam arrastando-se e que aquilo era intolerável. Elena permaneceu com sua cara feliz, agora olhando para a platéia vazia e, quando Tardue acabou seu discurso, voltou-se para Romeu, não sem antes balançar ligeira e negativamente a cabeça. Naquele gesto havia um acordo tácito: a de repetir tudo de forma exatamente igual. Ela estava satisfeita. Romeu também.
A segunda tentativa foi interrompida pelo maestro já no primeiro solo de Elena. Ele mandou-a acelerar. Na terceira vez, Elena fez exatamente o mesmo e Tardue fê-la parar novamente. Durante a explicação, Romeu, com surpreendente coragem se considerarmos o temor que a orquestra tinha de seu regente titular, interrompeu-o argumentando, um tanto romanticamente, que Sofonova estava determinando sua expressão à música e que esta estava de acordo com a concepção que ele, Romeu, também tinha. Até Elena ficou séria, temendo que a resposta do regente ao violista tivesse que ser medida por sismógrafo.
Tardue não perturbou-se, apenas fez piada citando um estudo que mostrava serem os músicos os profissionais mais insatisfeitos em sua profissão, seguidos dos médicos. Completou dizendo que muitos médicos tinham por hobby tocarem algum instrumento e que vários na orquestra davam aulas particulares para doutores. “O mundo é paradoxal e as relações se alteram de forma meio carnavalesca… às vezes”, disse. Depois ergueu os braços, perguntou maldosamente se os solistas estavam prontos para sua dar expressão à obra, e mandou a orquestra reiniciar o Andante. Elena acelerou um pouco, bem pouco, no que foi imitada até o final por Romeu, encantado com seus novos poderes.
Depois atacaram o majestoso primeiro movimento. Tardue deu diversas instruções, mas não à dupla solista. Quando considerou boa a execução, falou a todos em voz alta que, afinal, estava aliviado pois
– Não haverá o temido fiasco anunciado no ensaio de anteontem.
Seguiu depois para o terceiro movimento, em que fez novas solicitações à dupla solista, mas cada uma delas possuía o civilizado tom de sugestão.
Ah, querem ouvir/ver o andante? Claro!
Continua amanhã às 12h.