Romeu voltou a seu pequeno apartamento envergonhadíssimo de seu desempenho. Um vexame, pensava, um instrumentista com sua experiência não poderia ser suscetível a chiliques daquele gênero. Afinal, construíra uma reputação segura, ainda que obscura, e não poria tudo a perder.
Entrando em casa, passou a falar sozinho e a guardar suas coisas da forma organizada e sistemática que só os solteirões convictos são capazes. Não admitia nada fora do lugar e ficava furibundo quando esquecia-se de deixar os óculos, as chaves ou o casaco no lugar correto. A sala do apartamento tinha aspecto bastante original: havia uma grande e confortável cadeira bem no centro. De cada lado, duas mesas menores onde o usuário da cadeira poderia talvez servir-se de iguarias, livros, jornais, etc. Sua posição ficava estrategicamente voltada para o real destaque da sala: um enorme televisor, tão imenso e inadequado ao tamanho do aposento que parecia estar ali temporariamente, quiçá por empréstimo de um amigo. Mas este narrador, atento, fixou-se num detalhe sobre a TV. Ali, existia um cachecol preso à parede, estendido diagonalmente, e que parecia ser ainda mais importante que a TV e a cadeira.
O narrador onisciente então posicionou-se entre a cadeira e a televisão, voltado para o cachecol do Boavista F.C., girou 180 graus e viu claramente muitas marcas de cigarro sobre a cadeira. Quem sentava ali fumava como uma chaminé. Então, o dono retornou à sala e o narrador sumiu em suas brumas. Romeu pegou o telefone e pediu uma pizza grande. Escolheu o sabor, informou-se do preço, confirmou a solicitação e prestou informações desnecessárias tais como que “morava sozinho mas queria uma pizza grande para que sobrasse para a próxima refeição”. Brincou com a atendente perguntando-lhe qual era a diferença entre um maestro e uma pizza grande:
– Ora, é que uma pizza satisfaz, de uma vez só, quatro pessoas.
A moça do outro lado da linha deu seu risinho protocolar e ouviu Romeu dizer que tomaria um banho durante os próximos 20 minutos e que a pizza não deveria chegar antes. Estava loquaz.
No dia seguinte, voltou a praticar a Sinfonia Concertante. Não entendia porque tocara tão mal no ensaio. Não era uma peça fácil, o primeiro e terceiro movimentos requeriam alguma habilidade, mas o movimento central era cantabile e Romeu apenas precisaria acentuar as notas da forma correta. Não era uma obra grandiloqüente, era bonita e Romeu poderia esquecer o detestável romantismo tão comum dos metais em brasa e violinos ardentes. Violinos ardentes… Como seria a lituana na cama? Sempre pensara que as loiras altas de seios grandes eram as mulheres que mais mantinham relações sexuais dentre todos os outros fenótipos e começou a irritar-se novamente. Estudou a peça por mais de seis horas e disse para si mesmo que o fiasco não se repetiria. Recuperara a auto-confiança.
Olhou o relógio e assustou-se, faltavam pouco menos de quarenta minutos para o início de Benfica x Boavista. Correu à cozinha, abriu o congelador e jogou a pizza no forno de microondas. Caminhou preocupado pela casa, torcendo as mãos; trouxe um peculiar rádio pintado de branco e preto como um tabuleiro de xadrez, colocando-o à sua frente, no chão. A geringonça, bastante usada e remendada, ficou ali cuspindo detalhes acerca da partida enquanto Romeu enchia um balde de gelo e garrafas de cerveja que pousou na mesa à esquerda da cadeira e arrumava três maços de cigarros sobre a mesa da direita, acompanhados de um isqueiro com as cores do Boavista. O narrador desconfiou estar observando um ritual e sorriu levemente ao leitor. Momentos antes do início da peleja, ligou a TV sem som, buscou a pizza e colocou o prato sobre o colo. Mesmo olhando muitas vezes para a TV com ar preocupado, devorou o prato com extraordinária rapidez e, quando a bola foi para o centro do gramado, correu à cozinha a fim de jogar o prato sujo na pia.
Retornou estalando os dedos, vendo e ouvindo o Benfica armar seu primeiro ataque. Acendeu um cigarro sem tirar os olhos da televisão, mas, antes que este chegasse à metade, acendeu outro. Dizia palavrões, chamava o presidente do Boavista de mafioso, os jogadores de imbecis e proferia coisas que este narrador trata de filtrar cuidadosamente a fim de não escandalizar o leitor mais sensível. Estava transtornado! O Boavista jogava miseravelmente e o primeiro gol da “equipa” lisboeta não tardaria, era mera questão de tempo, conforme disse o pobre homem do rádio antes de levar um potente chute de pé direito desferido por Romeu, fazendo com que as pilhas e pedaços do aparelho voassem longe. Preocupado em remontar o rádio, Romeu não viu o gol de Cardozo, o qual cumpria as previsões do recém chutado narrador.
Depois de recolocar a última pilha e já com rádio falando, permaneceu prostrado sobre a cadeira durante o intervalo. Quando começou o segundo tempo, houve um fulminante contra-ataque do Boavista que resultou no gol de empate: Benfica 1 x 1 Boavista, gol de Jorge Ribeiro!
Em cena que causou algum receio ao narrador, Romeu passou a beijar o rádio, a pedir desculpas ao radinho querido de seu coração, mais parecendo um psicótico. Abriu uma cerveja e aumentou o volume do rádio, logo depois, abria a segunda, convidando-a de forma acentuadamente lúbrica:
– Vem cá, loirinha!
Abriu a terceira, a quarta e a quinta, cada vez mais lentamente, pois o Benfica parecia cada vez mais contrariado com o placar. Repentinamente, este narrador ouviu o outro mudar de tom ao mesmo tempo que uma garrafa voava em direção a uma parede lateral. Por pouco não voou pela janela. Como o inteligente leitor já percebeu, o Benfica fizera mais um gol, através de Maxi Pereira. Um belo gol, arriscaria dizer, mas não em voz alta. Romeu não preocupou-se com os cacos da garrafa e voltou aos cigarros.
Passou novamente a acendê-los um no outro, tragando como se daquilo dependesse sua existência, só parando para ver a falha do defensor que permitiu a Cristian Rodriguez assinalar o 3 x 1. Mais quatorze minutos e Romeu vê um jogador do Boavista acertar desgraçadamente o poste do gol do Benfica e, na seqüência, observa com ar bovino um defensor do Boavista fazer o quarto gol benfiquista contra suas próprias redes. Romeu estava arrasado. Houve um pênalti e Nuno Gomes fez o quinto, marcando logo depois também o sexto. “Dois golos de Nuno Gomes em apenas quatro minutos!”, berrava o aparelho. O Boavista perdera o controle da partida e Romeu o de sua pessoa. A partir daquele momento, tremia enquanto fumava sofregamente e lamentava cada passe errado do desgraçado clube desportivo português dirigido por mafiosos burros, formado por jogadores imbecis, canalhas e pusilânimes e orientados por um certo Jaime Pacheco – alguém que não deveria ter nascido, tamanho o mal que fez ao mundo. Quando o radinho gritou dizendo que os Panteras Negras estavam inapelavelmente batidos em campo, Romeu levantou-se e simulou um chute no estranho aparelho axadrezado, mas preferiu sair da sala com cara de choro e deitar-se. Emitia urros de dor e lamentava-se:
– Que porcaria de merda de bosta de time! Pelas luvas pretas de João Alves, matem esse treinador, enterrem o presidente demissionário, troquem todos os jogadores e envenenem o Nuno Gomes traidor! Dois gols, os últimos, uns gols desnecessários e humilhantes daquele jogador que já foi nosso! Meu Deus, por que escolhi o Boavista, por que não escolhi o Porto e o violino, ficando com o Boavista e a viola?
Acabou adormecendo.
Agora que meu personagem está apaziguado, apresento-lhes a ficha técnica da partida.
Continua amanhã às 12h.