Quando eu era criança, costumava fechar a porta do meu quarto para narrar futebol em voz alta com maior liberdade. Minha irmã me enchia o saco, dizendo para eu parar de inventar aquilo. Narrava jogos espetaculares onde o Inter vingava-se de todas as humilhações que o Grêmio nos submetia naqueles anos 60. Era uma vida interior movimentada, que fazia minha garganta doer pelo esforço de gritar tantos gols. Também sonhava com jogos, escrevia escalações, contratava jogadores inatingíveis – muitas vezes era um deles — e fazia cálculos, anotando num caderno vermelho todos os jogos dos campeonatos que o Inter participava. Era uma coisa meio demente, ainda mais num tempo em que o Campeonato Gaúcho valia alguma coisa e em que o Grêmio havia vencido 12 dos últimos 13. Era uma tragédia ter 11 anos naquele 1968 que terminaria com o AI-5. Mas tinha certeza que os anos me fariam melhorar. Minha mãe também.
É, mas não mudou muito. É um grave defeito de fabricação. Vocês não me pegarão mais aos berros no meu quarto – ainda mais se estiver acompanhado –, mas minha vida interior, quando não estou submetido a estresse, inclui aquele momento em que passo a pensar no próximo jogo, na próxima escalação e, ainda, nas próximas jogadas. Entro no elevador e de repente vejo D`Alessandro pisando na bola, retardando o ataque… Aquilo me irrita e já saio do elevador preocupado. No dia seguinte, acordo e de cara levantam uma bola em nossa área. Sandro salva e partimos para um contra-ataque com Taison e Nilmar: gol certo enquanto escovo os dentes.
Acho que há pessoas que pensam em dinheiro e mulheres o tempo inteiro — eu até perco muito tempo também nisso –, mas a vida interior do torcedor de futebol é um pouco diferente. Claro que todo este interesse está associado a um clube que amamos e que, por definição, é mais importante do que todos os outros. E quando este clube tem um inimigo, este será o mais odioso e horrendo – e sifilítico e purulento e idiota e filha da puta e a nossa cara. Sim, acabo de descrever sucintamente o Grêmio.
E então este clube faz cem anos, contingência inevitável para quem, mesmo endividado, não morre e a gente fica todo bobo, achando que o dia 4 de abril nos oferecerá vales onde correm o leite e o mel, com 11.000 virgens amorosas vertendo Baileys das tetas. Confesso que balancei quando meu sobrinho me convidou para ir ao jantar do centenário, mas recuei ao saber que custava R$ 200,00. Também não me entusiasmei pelos tais fogos — quase sempre fecho minhas noites de sextas-feiras em cinemas –, mas achei legal a coisa da caminhada até o Beira-rio no sábado, a tal Marcha do Centenário.
Fiquei indignado quando um pessoal aí, os quais são indiscutivelmente os maiores representantes das torcidas gaúchas (preciso indicar a ironia?), convidaram o prefeito gremista para a caminhada e ameaçaram até com a Yeda. Céus, que gente mais sem noção! Para que misturar a mais simples das comemorações – a procissão de colorados do incerto local onde o clube foi fundado até o Beira-Rio – com mais uma tentativa desesperada de manter a troca de favores com o poder? E eles seriam retaliados, vaiados, precisariam de seguranças. Nosso momento cívico ficaria uma merda.
Sim, eu disse cívico, pois colorado é o que sou. Se habito fisicamente a Rua Gaurama, tenho uma segunda vida com endereço aqui; se tenho um telefone, também tenho e-mail; se sou Suda de modo geral, sou especificamente brasileiro; se tenho o futebol em minha vida interior — assim como tenho a Gaurama, o blog, o número do telefone, o endereço de e-mail, a Suda e o Brasil — esta se foca repetida e especificamente para o Inter. O Inter e seus grandes times moram em mim, completam um século neste sábado e é fato dos mais dignos de celebração que eu possa imaginar, mesmo que tenha achado todos os outros centenários (principalmente aquele) manifestações ridículas e sentimentalóides, sem intersecção com nosso centenário. Não tinha pensado nisso, mas devo me comover na caminhada. Afinal, ninguém consegue ser crítico de si mesmo e o Inter, sei, sou eu.
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