Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Para falar de Bach, talvez devamos conhecer um pouco do homem e do ambiente em que viveu. Lembro que Franz Rueb, em seu livro 48 variações sobre Bach, explica o que era a educação escolar no tempo em que Bach era menino. Era algo em torno de 5 horas por dia. Em média, uma hora de matemática e ciências, outra hora para aprender alemão e as restantes 3 horas eram de religião e de cantar música religiosa. Também diz que os meninos eram perigosos à saída da escola. Formavam grupos para cometer pequenos roubos e às vezes perseguiam alguém com pedras nas mãos.

De qualquer modo, a educação terminava quando a família decidia e o filho via de regra aprendia a profissão do pai ou de um parente que admirasse. Claro, os Bach era uma família de músicos, como falarei adiante. E as universidades eram quase impossíveis para quem vivia nas pequenas cidades e principados.

A Alemanha do tempo de Bach não tinha nada a ver com a atual, ela sequer existia. Dividida em pequenos Estados soberanos, dominada majoritariamente pelo luteranismo, cujo impacto na vida cotidiana era fortíssimo, a Alemanha era formada por cortes soberanas. Cada pequeno príncipe, duque ou margrave era senhor em suas terras. A unidade alemã ainda não tinha começado. Cada principado possuía leis e costumes próprios — e, no mais das vezes, uma religião. Eu disse uma. A religião do príncipe (catolicismo, luteranismo ou calvinismo) era a dos seus súditos.

Cada um dos príncipes germânicos tinha seu Kapellmeister, seus cantores e seus instrumentistas, e algumas daquelas cortes tomaram-se centros de música de certo relevo. O que era um Kapellmeister ou Mestre de Capela? “Mestre de capela” é a pessoa que, entre outras obrigações, deve ser responsável pela música de uma igreja. Bach viveu em duas cortes onde foi Kapellmeister: a de Weimar e a de Koethen. A vida nessas cidades pequenas pautava-se pela seriedade, austeridade e gravidade provindas daquela religiosidade que permeava toda a sociedade e regulava a vida de cada indivíduo.

No entanto, na primeira metade do século XVIII, surgiu um elemento novo, o Iluminismo. Um movimento intelectual, em parte sob influência francesa, esboçou-se no interior da sociedade burguesa das cidades alemãs e reagiu contra a tradição luterana e suas estruturas estabelecidas.

Foram 4 as principais forças sociais atuantes na vida e na obra de Bach: as Cortes dos principados, a burguesia urbana, as paróquias luteranas e o Iluminismo. Ou seja, Bach esteve enraizado na sociedade das pequenas cidades alemãs, teve laços que o prendiam à religião luterana, tinha a tentação da vida na corte — da arte sacra e profana — e a cultura Iluminista.

Porém, antes de Johann Sebastian, há os Bach. Eles foram uma família que, longe de constituírem um obstáculo a sua evolução, serviram-lhe como um trampolim de notável potência.

No final do século XVI, o moleiro Veit Bach tocava cítara enquanto olhava o seu grão sendo moído. Ele foi o primeiro Bach conhecido como músico. Até Johann Sebastian, contam-se 33 homens na família: 27 deles foram músicos — organistas, mestres de capela, músicos municipais, violinistas, compositores. O menino Johann Sebastian só via à sua volta irmãos, tios, primos — e seu pai, naturalmente — ligados simultaneamente à música — como a um ofício sólido — e à igreja luterana.

A família Bach parecia ter laços inquebrantáveis com dois desses polos sociais e culturais — à igreja e à música. Não é difícil concluir o poder exercido por essa base familiar sobre a formação do jovem Johann Sebastian. Ele cedo ficou órfão. A família tomou conta dele e o educou. Arranjaram-lhe um lugar como organista — detalhe: ao largar essa colocação, mais tarde, deixou-a para um de seus primos. Ou seja, um Bach nunca estava só na vida. E foi com uma Bach — uma de suas primas — que Johann Sebastian casou.

Seu caminho estava, de certo modo, traçado desde a infância, e as reviravoltas da existência, que em outras circunstâncias teriam podido deixá-lo atrapalhado e isolado, contaram com essa grande e generosa tribo musical.

Johann Sebastian Bach nasceu em 1685, aquele ano espetacular em que também nasceram Haendel e Scarlatti filho. O pai, Ambrosius Bach, que era violinista e “músico municipal” em Eisenach (1), pequena cidade da Turíngia, ensinou o menino a tocar os instrumentos de corda, ao passo que o tio Johann Christoph, excelente compositor e organista na mesma cidade, iniciava-o no órgão. Ainda bem criança, Johann Sebastian fez parte do coro municipal.

Porém, aos nove anos ele já estava órfão de pai e de mãe. Foi seu irmão mais velho, organista em Ohrdruf, que se encarregou de sustentá-lo, ensinando o menino a tocar cravo e composição. Aos quinze anos, por sua própria iniciativa, Johann Sebastian fez-se admitir na escola de São Miguel de Lüneburg (2), onde eram acolhidos jovens pobres com alguma formação musical. Em troca de cantar na igreja, ele recebeu ali uma a educação que provavelmente não receberia em outro lugar, com aulas de retórica, latim, grego, lógica, teologia e, naturalmente, mais música. Lüneburg era uma cidade bem diferente das que Bach havia morado anteriormente: era animada e possuía grande influência da cultura francesa, fosse na música ou na culinária. Talvez seja por isso que Bach decidiu estabelecer-se ali por mais tempo. Trabalhou como cantor em diversos lugares, até que a mudança de voz fez com que buscasse empregos no ramo instrumental. Lá ele aprendeu francês — que era a língua do mundo do espetáculo, da dança, da música de Lully.

Depois, novamente com a ajuda da família Bach, fez sensação em Arnstadt (3), onde havia uma vaga para organista. Foi contratado sem fazer concurso em 1703, com apenas dezoito anos. A adolescência de Johann Sebastian Bach tem qualquer coisa de admirável. Uma espécie de instinto infalível parece movê-lo sem hesitações no sentido de um conhecimento mais amplo. Ele parecia ser dotado de uma maturidade superior à de sua idade, que guiava suas escolhas de maneira precisa. E, lá do fundo da Alemanha, ele descobre a cultura francesa e italiana.

A Itália veio até ele com a música de Frescobaldi. E havia o apelo dos organistas do norte — Georg Bõhm, o velho Reinken e, finalmente, Buxtehude. Para ouvir este último, Bach chegou mesmo a cometer uma estranha fuga: pediu quatro semanas de licença e acabou ausentando-se por quatro meses. Explicando melhor, em outubro de 1705 (20 anos), obteve uma licença de um mês para ir a Lübeck e ouvir o famoso Buxtehude, o mais destacado organista do norte da Alemanha. Bach fez a pé o trajeto de mais de 350 km. Sua visita deve ter sido proveitosa, pois ele não retornou antes de janeiro de 1706 — quatro meses –, e de imediato sua maneira de acompanhar os hinos mudou completamente, o que despertou protestos entre a congregação que, perplexa, estava acostumada a acompanhamentos simples. Este não foi o único dos problemas que Bach enfrentou. Foi censurado pelo consistório pela sua longa ausência e por causa daquelas “escandalosas” liberdades e improvisos ao órgão que confundiam os fiéis. Tendo de acatar as ordens, pouco depois foi censurado por fazer os acompanhamentos demasiado curtos. Além disso, o coro de meninos que ele tinha de reger era tudo, menos competente e dócil, registrando-se vários episódios de confrontos e altercações violentas, incluindo desafios com espada. Logo se tornou claro que ele não mais poderia permanecer em Arnstadt. Aparentemente a derradeira discórdia foi a reprimenda que recebeu por ter acompanhado ao órgão uma donzela cantora — presumivelmente Maria Barbara — numa uma ocasião em que a igreja estava vazia. Importante: naquela época, era proibido às mulheres cantarem nas igrejas. As vozes de sopranos e contraltos eram cantadas por meninos. (Arnstadt)

Então ele rompeu seu contrato tão logo surgiu outra vaga de organista, dessa vez em Mühlhausen, onde também o admitiram depois de uma audição, sem concurso. Casou-se então — tinha 22 anos — com a prima Maria Barbara Bach.

Depois, trocou Mühlhausen (4) pela corte de Weimar (5), com as funções de organista, violinista e compositor. Era, agora, músico “da corte” e não mais um músico municipal ou da igreja — ainda que suas funções fossem, em parte, ligadas à música religiosa. Estava a serviço de um príncipe, não de uma municipalidade ou de uma paróquia. Isso era uma promoção para ele —- mas, de certa forma, uma ruptura com sua tradição familiar.

A proposta que Bach recebeu em Weimar incluía o valor de uma remuneração que era o triplo do que recebia em Mühlhausen, além de que o alojamento de sua família era por conta da corte. Ele recebia ainda adicionais extras e gêneros como, por exemplo, 30 barris anuais da cerveja produzida no castelo e livre de impostos. Ele sempre pedia mais cerveja, por tinha alunos, filhos, família grande e o consumo era pantagruélico. Gente, cerveja é a bebida de Bach.

Esse tempo que Bach passou em Weimar (1708 a 1717, dos 23 aos 32 anos) trouxe-lhe, por outro lado, um enriquecimento musical considerável. Produziu muitas Cantatas e música para órgão. Trouxe tensões, também. O duque que estava no poder era de trato difícil. Bach era mais amigo de seu herdeiro, um melômano apaixonado. Surgiram dificuldades. Ele pediu demissão e acabou preso por um mês — sim, preso por ter pedido demissão, por ter insistido em sair da corte. Passado esse episódio, conseguiu permissão de deixar Weimar por uma outra corte, a do príncipe Leopold de Kõthen (6), onde permaneceu entre os 32 e 38 anos de idade.

E aqui chegamos a, quem sabe, o período mais feliz e importante da vida de Bach. Os cinco anos passados por ele em Köthen tiveram como resultado boa parte da música instrumental de Bach que ouvimos hoje. Até a tristeza pela morte de sua esposa Maria Barbara resultou em música, resultou na Chaconne da Partita Nº 2 para Violino Solo. Há poucos registros de textos escritos por Bach. Porém, quando morou em Köthen, tinha feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

Curiosamente, o cineasta Ingmar Bergman comentou o fato no livro Lanterna Mágica:

Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou foi destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

O príncipe Leopold, de Köthen era inteligente, aberto, agradável e músico (ele era violista). Também reunira em torno de si a melhor orquestra da Alemanha (dezessete músicos, muitos dos quais virtuoses famosos). Lá, Bach gozava não somente de consideração e de bom salário, mas de verdadeira amizade por parte de Leopold e dos que o rodeavam. Essas condições ideais para um artista — ter à sua disposição todos os meios para criar e saber que sua obra é compreendida e apreciada, que artista não sonhou com isso? –, iriam permitir a Bach uma produção abundante. Concertos, sonatas (quase toda a sua música de câmara data dessa época), O cravo bem temperado, as suítes e partitas, as aberturas para orquestra, os Concertos de Brandenburgo…

Muito teria para se falar da música de câmara de Bach, que em sua maior parte data do período de Kõthen: sonatas para violino e cravo, para violino solo e violoncelo solo.

Em Köthen, Bach casou-se pela segunda vez, com Anna Magdalena Wilcken, filha de um trompetista da orquestra e cantora da corte. Manifesta-se, contudo, nesse período, uma insatisfação. E é por onde se pode medir o domínio exercido, consciente ou inconscientemente, pela tradição familiar. O príncipe Leopold era calvinista e, em Kõthen, a música religiosa não tinha qualquer participação no culto. O papel de Bach era, portanto, exclusivamente profano. Ao que parece, Bach teria sentido fortemente a necessidade de voltar a trabalhar para a igreja, como sempre haviam feito seu pai e seus antepassados. Tentou, de início, conseguir um lugar como organista em Hamburgo. Até que apareceu a chance de ir para a Thomasschule [Escola de Santo Tomás] em Leipzig (7).

Então Bach mudou o curso de sua vida e renunciou a todas as vantagens adquiridas. Por um salário menor, escolheu o posto de Leipzig, repleto de inconveniências que não demoraram muito a tornar-se insuportáveis. A Escola de Santo Tomás de Leipzig era uma antiga instituição criada pela Reforma. Meio orfanato, meio conservatório, estava estreitamente inserida na vida da igreja e na da cidade.

A função que Bach exercia já tinha vivido melhores dias. Johann Kuhnau, o predecessor de Bach, era simultaneamente professor de letras, de teologia, professor de música e diretor das atividades musicais da igreja, regente do coro, regente da orquestra e — é claro — compositor. Mas, em 1730, essa função já era anacrônica, tal como a estrutura da escola. E aqui intervém o último dos fatores culturais de que falei mais atrás: o Iluminismo estava provocando uma modificação nas relações e nas estruturas sociais. A Escola de Santo Tomás, com sua organização antiquada, já não correspondia às aspirações intelectuais do século XVIII. O reitor da Escola desejava fazer da Escola de São Tomás algo mais moderno. E a função de Bach era um dos fatores que o atrapalhava. Bach pedia mais recursos para a música religiosa, uma disponibilidade maior dos alunos, enquanto o reitor gostaria de vê-los estudar latim ou grego, de preferência, a gastar horas e horas com ensaios no coro. O impasse era total, e Bach se revelou muito pouco político. Ele apenas brigava e sua música “fora de moda”, não agradava. Ele negligenciava os cursos de latim e os transferia a inspetores. Tudo virou uma grande luta.

A tragédia — pois trata-se autenticamente de uma — é que essa amarga decepção vinha precisamente daqueles para quem havia escolhido trabalhar e consagrar sua vida. Por essa estrutura paroquial ele renunciara à vida fácil da corte e à segurança de Köthen. Ao buscar o modelo social, cultural e religioso que foi o de todos os Bach antes dele e à sua volta, J.S. Bach escolheu um caminho que era já anacrônico e retrógrado.

Os primeiros anos de Bach em Leipzig dão testemunho da felicidade que, no início, a situação lhe proporcionou, o que se pode medir por sua vitalidade criadora: foram 48 cantatas só durante o ano de 1723 — quase uma por semana —, duas Paixões (São João em 1723 e São Mateus em 1729), motetos, e a Missa em si menor em 1733.

Mas, aos poucos, não somente ele se desinteressou da escola, descarregando suas obrigações sobre os inspetores, como se fez mais vagaroso na criação de suas composições: umas poucas cantatas, apenas, ao longo dos vinte últimos anos de sua vida. É que, para Bach, compor era um ofício e como seu ofício parecia ter-se tornado inútil — então ele praticamente se calou. Em Bach não havia a noção de criar uma obra para a posteridade. E a movimentada vida em sua casa, entre filhos e alunos passou a interessá-lo mais.

Os últimos anos de sua vida foram tristes. A música evoluía. O estilo “galante” foi se impondo pouco a pouco. Um compositor menor, mas bom, como Telemann, adaptou-se à perfeição aos novos tempos. Bach não mudou. Seu estilo estava fora de moda. Só uns poucos especialistas o compreendiam. Não escrevia mais que algumas obras difíceis — como A Arte da Fuga –, destinadas a um pequeno número de melômanos capazes de apreciá-las. Recolheu-se a um isolamento altivo e intransigente.

Ainda houve ocasiões festivas, como a viagem à corte de Potsdam, onde seu filho Carl Philipp Emanuel era cravista e durante a qual Frederico II dispensou-lhe honrarias. Mas a saúde de Bach se enfraqueceu. Ele teve catarata e ficou totalmente cego após um charlatão operá-lo. Este charlatão foi o médico John Taylor. A existência de Taylor foi altamente destrutiva para a música. As cirurgias de Taylor incluíam o uso de sangue e de fezes de pombos recém abatidos, além de açúcar e sal. No final de março de 1750, Taylor operou duas vezes a catarata de Bach em Leipzig e o cegou. Bach adoeceu logo após a segunda operação e faleceu menos de quatro meses depois. Oito anos depois, Taylor operou e cegou também Handel, que morreu logo a seguir.

Muito se tem simplificado a personalidade de Bach. Porque teve vinte filhos, porque sua vida transcorreu aparentemente como um fio ininterrupto sem maiores perturbações, sem paixões tempestuosas, sem aventuras, centrada no estudo e no trabalho, resolveu-se fazer dele um modelo de perfeito cidadão, pai perfeito de 20 filhos, marido perfeito, compositor perfeito. Em parte é verdade: Bach constitui um desmentido ao estereótipo da arte maldita, da arte inadaptada, do gênio marginalizado. Parece ter passado pouco por dramas íntimos, mas teve, sem dúvida, sofrimentos e dores. Sua vida nas cortes e nas igrejas, à exceção de Köthen, era a de brigar por mais recursos sendo muito pouco político. Sim, era um brigão, um resmungão. Houve a morte de uma mulher amada, a de numerosos filhos, dos quais dez não chegaram à adolescência. Ou seja, não se deve aceitar facilmente essa ideia de serenidade perpétua.

O que impressiona na vida de Bach, como em sua obra, é uma força e persistência imensas. Não foi um homem amável ou diplomata. Desde a adolescência, Bach parece ter sido adulto. Solucionava seus problemas familiares — duas esposas, vinte filhos, incontáveis alunos — com uma segurança que poucos artistas parecem ter possuído. Se houve serenidade, foi uma conquista. Talvez sua obra contenha sofrimento e dor, sentidas e superadas.

Johann Sebastian Bach

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O fundamento da gramática musical de Bach é o contraponto. Pode-se dizer que tem no contraponto a sua língua materna, sua maneira natural de falar. Bach é o herdeiro de toda a tradição polifónica europeia — digamos, de cinco séculos de polifonia. Uma melodia, para Bach, nunca vem só: engendra por si mesma uma ou muitas outras, independentes e complementares. O pensamento musical de Bach apresenta-se sempre, e da maneira mais espontânea, como uma polimelodia, uma estrutura combinatória em que mais de uma linha musical conserva toda a sua independência melódica.

O virtuosismo de Bach no domínio do contraponto é espantoso. Ele parece capaz de “combinar” qualquer melodia com uma outra, ou consigo mesma, de todas as formas imagináveis.

Homens como Lully e Haendel, por exemplo, pensam a música de outra forma. Com eles, só a melodia principal move-se no tempo; sua harmonização é pensada em função da eficácia imediata do acorde. Bach, no entanto, pensa “simultaneamente” nos dois sistemas, e nisso está a fonte da extraordinária eficácia de sua linguagem musical. Virtuose do contraponto, ou seja, sempre à espreita da “perspectiva” desenhada pelas melodias ao longo de seu desenrolar no tempo, jamais perde de vista o resultado produzido no imediato pela superposição das notas captadas em sua simultaneidade.

Isso explica, também, que Bach não tenha herdeiro musical. Sua síntese é única, porque não se poderia fazer algo assim senão entre 1700 e 1750. A evolução da estética musical torna-a impossível mais tarde. Já no fim de sua vida, Bach era incompreendido e “superado” aos olhos de seus contemporâneos. Seu filho Friedemann, tão próximo do pai no pensamento musical, viveu dilacerado pela impossibilidade de realizar um ideal estético anacrônico.

Bach é ao mesmo tempo um arquiteto e um miniaturista. Mas a força de seu discurso musical, o poder de sua invenção melódica são tais que essas inflexões e essas intenções expressivas acham-se sempre perfeitamente integradas. Uma obra de Bach tem sempre duas dimensões, assemelhando-se de certo modo àqueles quadros flamengos que podem ser decifrados a duas distâncias. A uma primeira distância, admiram-se as linhas, as massas, as proporções, a luz, as figuras, o desenho. Ouve-se uma cantata ou a Paixão segundo São Mateus como quem olha, a dois metros, o retrato de Arnolfini e de sua esposa por Van Eyck. Mas, se chegarmos mais perto, perceberemos, no espelho que está por trás do casal, todo um mundo em miniatura, como um quadro dentro do quadro e que a dois metros não era possível distinguir.

Bastante adaptado a partir de trechos do capítulo sobre Johann Sebastian Bach, publicado no livro História da Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin.

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A inicial B na música erudita

A inicial B na música erudita

É incrível o número de bons combositores cuja primeira letra do sobrenome é B. Estava bebendo vinho agora e falando pra Elena: Bach, Beethoven, Bartók, Brahms, Bruckner, Biber, Buxtehude, Britten, Borodin, Bowie, BacCartney, Barber, Boulez, Bizet, Brokofiev, Bernstein, Beatles, Berlioz, Bahler, Bozart, Berg, Bussorgsky, Bellini, Bley, Bottesini, Bendelssohn, Joe Bean — autor de Garota de Ibanema –, enfim, são muitos.

Bolfgang Abadeus Bozart (1756-1791)

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Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Perfil: há 55 anos o tenor Antônio Télvio de Oliveira solava a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa

Milton Ribeiro

Antônio Télvio de Oliveira | Foto: Joana Berwanger / Sul21

Há uma canção de Chico Buarque, Sentimental, onde uma menina de 16 anos que acredita em astrologia afirma simplesmente que “o destino não quis”. Em outro gênero, realmente digno de uma Sherazade, a escritora dinamarquesa Karen Blixen escreveu 5 surpreendentes contos sob o título Anedotas do Destino. Também há uma frase atribuída a Woody Allen: “Se você quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”.

Tudo conspirava para que o jovem Antônio Télvio de Oliveira tivesse uma carreira internacional como tenor. Começou a carreira de maneira fulminante solando a 9ª Sinfonia de Beethoven com a Ospa sob a regência de Pablo Komlós, aos 22 anos. Depois, foi para fora do país, obteve bolsas e mais bolsas de estudo, só que o destino lhe preparou das suas. O mundo deu muitas voltas e Télvio se safou por ter também os talentos de desenhista e técnico em eletrônica. Mas sempre poderá dizer que cantou com Montserrat Caballé antes de ela cantar com Freddie Mercury.

Conversamos com Antônio Télvio em seu apartamento no bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vamos à história.

Abaixo, um registro de 1966 onde você poderá ouvir sua voz de tenor. Esta gravação foi realizada na Capela do Colégio Rosário com o organista Camilo Vergara, o Coro de Meninos do Colégio Roque Gonzales e regência de Aloísio Staub.

Guia21: Teu nome completo é?

Télvio: Eu nasci no dia de Santo Antônio, por isso me botaram o nome de Antônio. Antônio Télvio Azambuja de Oliveira, mas eu nunca usei todo meu nome, às vezes uns jornais botavam Antônio Oliveira, outros botavam Antônio Télvio. Na Espanha, me chamavam de “Azambuia”.

Guia21: Como e quando começou o seu interesse pela música?

Télvio: A minha mãe era musicista amadora. Tocava piano de ouvido. A minha vó também tocava piano. A minha casa era muito musical.

Guia21: Faziam saraus na tua casa?

Télvio: Sim. Inclusive minha mãe tinha uma gaitinha de boca que era um chaveiro, ela tocava o Boi Barroso num chaveiro! Era uma musicista nata. Não tenho essa musicalidade.

Guia21: E então, como tudo começou?

Télvio: Bom, quando eu estava no ginásio, havia uns festivais de música, coisa do interior. Minha família era muito social e eu cantava de vez em quando. Então começaram a solicitar que eu cantasse. Eu alcançava uns agudos que nem sei como… Uma vez, nós fizemos uma excursão até Santa Maria para jogar futebol ou basquete. E, à noite, fomos a uma boate chamada Casbah. O local tinha uma decoração de casa de sultão. Aí eu, com meus colegas todos, todos de 18, 19 anos, ouvi alguém gritar: “Esse canta, esse aqui canta!”. E eu tive que cantar no meio de uma boate de estilo Oriente Médio.

Guia21: Sem acompanhamento?

Télvio: Na base da porrada, a cappella mesmo! Cantei umas canções napolitanas naqueles tapetes. Foi um aplauso danado. O cara da boate quis me contratar. Os meus amigos disseram pra ele: “Vai falar com o pai dele, que tu vai levar um corridão”. Meu pai não era muito desses negócios, era o tipo de cara que se escutasse uma buzina de automóvel ou uma canção, era a mesma coisa. E aquilo morreu por ali… Só que eu fiquei com aquilo na cabeça. Aquela música… Eu a cantava em casa. Depois começaram aquelas Ave Marias que eu era chamado para interpretar em casamentos de vez em quando. E eu pensei “Pô, vou estudar canto”.

Guia21: Nisso tu tinhas 16 anos, mais ou menos?

Télvio: Sim, 16, 17, por aí. Naquele tempo eu era meio vagabundo, terminei o ginásio só com 17, não gostava de estudar. Aí vim para o Colégio Rosário em Porto Alegre — vim para fazer o científico, atual segundo grau — e ao mesmo tempo me matriculei no curso preparatório de canto no IBA (Instituto de Belas Artes da Ufrgs) e comecei a estudar. Vamos abrir um parêntese? Minha família costumava veranear em Iraí, naquela estação de águas. Hoje não se fala mais nas águas termais de Iraí, mas naquela época Iraí era um lugar onde ia muita gente no verão… E, certa vez, estava lá dona Eni Camargo. Ela foi uma personalidade muito interessante aqui de Porto Alegre. Ela era cantora e professora na Ufrgs. No hotel onde ficávamos havia saraus de música em que ela cantava e tocava piano. Era uma veranista em Iraí, como nós. Então, em Porto Alegre, antes de começarem as aulas, eu a visitei. Fui lá, me apresentei e a Eni Camargo quis escutar alguma coisa. Eu lembro que cantei Torna a Sorrento. Aí ela olhou pro marido dela, o Osvaldo Camargo, e disse assim: “Olha aí, Osvaldo. Esse cara tem uma voz que parece a do Mario del Monaco. Eu nem sabia quem era Mario… Aí ela me aconselhou a estudar no Belas Artes com a professora Olga Pereira. Eu saí de lá e passei numa loja de discos para ver quem era esse Mario del Monaco, mas a minha voz não era parecida com a dele, nunca foi.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E tu entraste no Belas Artes.

Télvio: Comecei a estudar lá em 1959. O canto é um negócio complicado, tu demoras para fazer alguma coisa que preste. Um ano antes de concluir o curso, eu fiz vestibular para Filosofia, que achei que seria fácil de passar. Passei. Entrei na Filosofia por causa do meu pai. Achava que tinha que dar satisfação pro velho, né? Ele queria Direito ou Engenharia. Ele pensava que o Canto não era sério — meu pai ficava estranho comigo quando o assunto era Canto, como se eu fosse viado, sabe como é. O curioso é que eu estudava Filosofia, Canto e gostava muito de eletrônica, vivia criando verdadeiras parafernálias, equipamentos.

Guia21: Tu sempre tiveste duas tendências então, da música e da eletrônica?

Télvio: Desenhava também, mas isso desenvolvi depois.

Guia21: Foi nessa época que tu cantaste a Nona de Beethoven com Pablo Komlós e a Ospa?

Télvio: Aconteceu o seguinte: com o advento do coral da Ufrgs, ficava mais fácil de fazer a Nona. Eu não lembro direito, mas tenho a impressão de que foi a própria Eni Camargo que me apresentou ao fundador do coral propondo que eu solasse a 9ª Sinfonia como tenor. Fui fazer um teste com o Komlós e ele gostou. O Komlós chegou e me disse “depois você vai fazer um dos personagens secundários da ópera Carmen”. Eu respondi que não ia fazer. Ele deve ter me achado o fim da picada, porque eu disse que ele, um dia, ia me convidar para fazer o papel principal. O Komlós me olhou como quem dissesse “que metido!”. (risos)

O Correio deu | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Como era a Ospa naquela época?

Télvio: Naquela época, não havia Ospa como fundação, mas sim como sociedade. Quem sustentava a Ospa era a colônia judaica, que fazia chás e não sei mais o que a fim de sustentar a orquestra. Não era ainda um esquema profissional. Além da sociedade judaica, os descendentes de alemães também ajudaram muito a música de Porto Alegre, eles tinham o Clube Haydn na Sogipa. Então, havia duas orquestras sinfônicas aqui. Para a 9ª, veio para cantar junto comigo o Lourival Braga, do Rio. Uma voz extraordinária, um barítono precioso. Foi uma loucura aquilo! Aí cantamos a 9ª Sinfonia de Beethoven, uma beleza!

Télvio está de óculos, sentado, bem no centro da foto, durante a execução da 9ª com a Ospa em abril de 1963 | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Onde foi?

Télvio: Foi no Salão de Atos da UFRGS, antes da reforma, claro (foto acima).

Guia21: E o medo do palco? Tu tinhas 21, 22 anos.

Télvio: Eu estava nervoso, é óbvio. Tem aquela história da famosa atriz francesa Sarah Bernhardt. Sarah tinha uma escola de teatro e costumava perguntar para os alunos se eles ficavam nervosos no palco. Um dizia “eu fico bastante nervoso, sim”, outro dizia “eu não fico nada nervoso, entro no palco sem medo” e ela respondia para estes, “é… o nervosismo vem com o talento”.

Guia21: Se o artista não está nem um pouco nervoso, não está mobilizado.

Télvio: Eu sempre fiquei muito nervoso antes de entrar no palco. Me borrando mesmo. Mas, no momento em que dava a primeira nota, eu começava a me sentir poderoso. Acho que com todo músico é assim, apesar de que a música que tu estás sentindo dentro de ti é diferente da que o outro está escutando. Ou seja, tu podes estar te achando o máximo e o resultado não ser o esperado. Quando terminou esse concerto, o presidente da Sociedade de Cultura Artística do Rio de Janeiro me disse que tinha uma bolsa de estudos para dar. Ele me escutou novamente no Belas Artes e me disse que ia me dar a tal bolsa. Eu fiquei num estado de animação total e comecei a contar para todo mundo que tinha ganhado a bolsa, mas não veio nada… Fui trouxa.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: E seguiste cantando.

Télvio: Depois da Nona, o Pablo Komlós me convidou para cantar O Rei Davi, de Honegger. Eu ensaiei esta ópera como um louco. Até hoje sei tudo de cor, sonho com aquela música. Eu estudei e ensaiei com unhas e dentes aquela música complicada acompanhado pelo pianista Hubertus Hoffmann. Um dia, o Hoffmann me diz que eu não iria cantar O Rei Davi… Que quem ia cantar era a Ida Weisfeld. Eu ri e respondi: “Isso é para tenor, não é para mezzo soprano”. E nem falei com o Komlós, pensei que fosse uma invenção dele. Só que o Komlós realmente fez aquele absurdo e eu ainda assisti. Ela cantou a parte do tenor, acredita? Depois, soube de duas informações contraditórias: a primeira era a de que eu fora considerado muito jovem para o papel, a segunda era a de que eu não tinha aparecido num ensaio geral — o que é uma mentira, eu não tinha sido era avisado. Então, neste ensaio, quando estavam todos me esperando, o Komlós perguntou se alguém podia fazer a minha parte e a Ida apareceu. Deu uma passadinha na partitura com o pianista Roberto Szidon — também ele cantava no coral — e ficou prontinha. É óbvio que aquilo foi uma armação deles, porque ninguém canta O Rei Davi sem muito ensaio, ninguém no mundo canta aquilo à primeira vista. Ela já viera preparada. Assim era a Ospa, um saco de gatos, uma coisa bagunçada, suja. O Komlós criava situações horríveis. Marcava três récitas, convidava a gente para a terceira e ela não saía. Só para fazer a gente ensaiar. Uma vez o Paulo Melo, outro cantor, disse que ia processá-lo se não saíssem todas as récitas. Aí saíram, claro. A Ospa tinha uma aura de sacanagem, de psicopatia.

Guia21: Mas tu acabaste viajando.

Télvio: Sim, com essa mesma 9ª Sinfonia, surgiu uma pequena possibilidade de um curso em Santiago de Compostela. Era um curso de três meses, mas não dava passagem de ida nem de volta. Fui falar com o maestro Komlós e falei pra ele “olha, o Belas Artes me deu uma carta de recomendação para o consulado espanhol”. Então ele escreveu outra, também me recomendando. Eu levei tudo ao consulado e a bolsa surgiu. Tinha um voo da Panair que saía do Rio com desconto só para portugueses e brasileiros. Meu pai fez uma vaquinha para me ajudar. Peguei um ônibus aqui, fui até o Rio e viajei. Passei três meses em Compostela. Só tinha cem dólares, menti para o meu pai que eles iam pagar a viagem de volta. A juventude é assim, né? Não sabia o que eu ia encontrar lá, eu não sabia nada! Parecia que as coisas de lá eram melhores do que tudo aqui, mas não era tanto assim. Na Espanha, cantei em várias audições e recitais, mas quando terminou o curso, bom, e agora José?

Guia21: Teus professores lá eram gente conhecida?

Em pé, Télvio e Montserrat Caballé | Foto: Arquivo Pessoal / Joana Berwanger / Sul21

Télvio: Sim. Um monte de lendas: Andrés Segovia, Montserrat Caballé, cantei com ela (foto acima). Estava cheio de artistas internacionais ali. Eu estava apaixonado por uma das cantoras, que era de Barcelona. Outros alunos já estavam se juntando para prestar um concurso em Barcelona e eu pensei “tenho que ir também”. Mas os meus cem dólares não davam cria, pelo contrário! Com recomendações, consegui uma bolsa de 6 meses junto ao Instituto de Cultura Hispânica. Me senti garantido. Me davam cem dólares por mês. Era o suficiente para uma vida bem modesta, então comecei a fazer outros trabalhos, eu sempre desenhei. Lá pelas tantas consegui trabalho. Passaram-se mais 6 meses e renovaram a bolsa. No final deste segundo período, minha professora me perguntou se eu queria retornar para Santiago de Compostela e fazer o curso de lá novamente, tinha todo ano. Eu disse que não, mas me deu medo de ficar sem dinheiro e no fim retornei para Santiago de Compostela, para ganhar por mais três meses. Lá em Compostela foi fantástico. Por exemplo, estreamos uma Cantata do argentino Isidro Maiztegui e eu fiz a parte do tenor.

Guia21: E a paixão?

Télvio: Todas estas andanças pela Europa foram crivadas de paixões por mulheres maravilhosas, muitas delas artistas. E o abandono daquilo lá me deixou muito amargurado. O Sérgio Faraco, que estudou na União Soviética, diz o mesmo. Aquelas mulheres… Entre as cantoras que eu conheci lá há uma que ficou muito famosa e com a qual eu não tive nenhum caso amoroso… Era a Montserrat Caballé. Uma tremenda cantora e um péssimo ser humano. Por exemplo, houve um momento em Compostela que uns cantores argentinos quiseram organizar um recital. E a Montserrat deu apoio, estava auxiliando em tudo. Só que numa aula, ela, com menosprezo, chamou algumas cantoras argentinas de índias. Bem, as argentinas se irritaram, claro. Os brasileiros se uniram a elas e ninguém cantou. Depois, ela foi convidada para cantar no Rio e São Paulo e teve seu visto negado por alguém que sabia daquelas ofensas. Deu a maior confusão e ela só pode vir em outra data. Cantou depois até em Pelotas. Era mais do que temperamental, era uma pessoa deselegante.

Guia21: Cantaste muito na Espanha?

Télvio: Sim, fiz algumas gravações em Barcelona e Madrid. Era estranho porque as pessoas diziam para eu cantar Mozart, mas eu preferia coisas mais pesadas.

Guia21: E no final desta sequência de cursos e bolsas de estudo?

Télvio: Eu falei com Hans von Benda, que se encontrava em Compostela, e ele me sugeriu estudar na Alemanha. Recebi dele uma carta de recomendação para eu levar na Embaixada Alemã. Fui na Embaixada em Madrid. Lá, é claro, me avisaram que eu, como brasileiro, deveria me dirigir à Embaixada da Alemanha no Brasil e não na Espanha. Então eu recebi uma carta que foi decisiva na minha vida. Era uma carta seca, escrita por meu pai, pedindo que eu retornasse imediatamente porque minha mãe estava muito doente, estava mal, seria internada, etc. Houve uma espécie de chantagem emocional, como tu verás. Antes de viajar, eu ainda cantei em Madrid. Lá, entre outras obras europeias, quase todas de câmara, eles sempre pediam para eu cantar brasileiros como Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, etc.

Em catalão: um programa de um recital de Télvio em Barcelona | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E voltaste…

Télvio: Sim, peguei os últimos dólares que tinha, comprei uma passagem de navio e voltei. 15 dias de viagem. Quando cheguei ao Rio, fui à Embaixada da Alemanha – era no Rio na época – e entreguei a carta para estudar lá.

Guia21: E foste ver a família.

Télvio: Bem, a situação familiar em Santiago não era nada trágica. Eles só queriam que eu voltasse. Quando encontrei minha mãe, ela estava bem e disse que quem estava doente era o meu pai. Enfim, era algo confuso. Ninguém estava doente, parecia. Vim para Porto Alegre e, passado um tempo, recebi a resposta dos alemães dizendo que eu tinha que me apresentar em Köln em determinado dia. Voltei a Santiago para me despedir e, talvez, conseguir algum dinheiro com o velho. Então, um tio meu, médico, me disse que meu pai tinha uma bomba no bolso, ou seja, que havia perigo de um enfarto. Me pediu para adiar a viagem em um ano. Concordei em ficar.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Guia21: Perigo.

Télvio: Pois é. Escrevi para a Alemanha solicitando adiamento e os alemães disseram que o adiamento dependeria do orçamento para o ano seguinte. E nunca mais. Eu perdi a oportunidade. Só isso.

Guia21: E o que fizeste?

Télvio: Enquanto eu esperava a tal chamada da Alemanha, voltei a trabalhar com desenho em Porto Alegre. Comecei a me desligar da música. Ainda cantei muito, mas aquilo marcou o início de meu afastamento. Neste período, o Komlós me convidou para cantar I Pagliacci. Eram duas récitas, numa eu ia cantar Canio e em outra o Arlequim. Naquele tempo, era no Araújo Vianna. Tinha um cara que tinha uma carroça puxada por um cavalo, que vendia lanches fora do auditório. E tu sabe que os palhaços tinham uma espécie de carroça onde ficava seu palco.

Guia21: Normal, em O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, os atores têm uma carroça. Eles abriam uma cortina e virava um palquinho…

Télvio: Isso! Exatamente isso! E naquele espetáculo, nós entrávamos, os cantores, os atores, dentro daquela carroça de lanches. O Araújo Vianna é redondo, tem portas largas e o carro entrava no palco conosco dentro cantando, com o cavalo puxando. E começava a história. De noite, o cavalo pastava no gramado ao lado do Araújo Viana. Nunca fugiu. Na segunda récita, veio a maior chuva, foi aquela correria de músicos, com os violinos, tudo. E a ópera não aconteceu mais.

Guia21: O Araújo não tinha cobertura na época.

Télvio: Sim, molhava tudo.

Guia21: E a carreira?

Télvio: Na verdade, eu poderia seguir a carreira de músico fazendo o que a maioria dos cantores fazem: dando aulas. Só que eu detesto dar aulas. Nesta volta, ainda fiz algumas gravações, mas já estava desistindo da carreira. Passado algum tempo, só desenhava e trabalhava com eletrônica. Abri mão de tudo, passei mais de dez anos sem cantar nada, sem dar uma nota. Então, com quase 40 anos, voltei a cantar óperas e cantatas de Bach e Buxtehude. Com a Ospa novamente, ali na Igreja Santa Cecília. A Ospa com suas fofocas e futricos… Bá, eu tinha uma raiva daquilo! Cantei Britten também naquela época.

O programa do concerto de Télvio e da Ospa apresentando Cantatas | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: Sobre a tua desistência. Foi uma coisa do ambiente? Não tinha perspectiva?

Télvio: Se eu tivesse ficado na Europa, faria uma carreira musical. Aqui eu não tinha perspectiva. Ninguém tem como seguir só cantando. E eu não queria dar aula.

Guia21: Sim, os cantores dão aula. Quase todos eles dão aula, acho.

Télvio: Eu não gostava e tinha outras maneiras de ganhar dinheiro. Eu publicava revistas de quadrinhos, fazia desenhos para jornais. Cheguei a chefe do departamento de eletrônica da Narcosul Aparelhos Científicos, uma empresa que fabricava aparelhos eletrônicos voltados para a área médica.

Guia21: Sim. Tu te sustentavas, evidentemente. E o que tu publicavas em jornais?

Télvio: Eu criava desenhos para ilustrar matérias, cadernos, tudo. Tenho guardados vários trabalhos meus para o Jornal do Comércio.

Caderno sobre a Revolução Farroupilha ilustrado por Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Télvio: Já na Narcosul eu fiquei muitos anos. Trabalhei também na Parks com equipamentos para comunicação digital.

Guia21: Mas tu és formado em…

Télvio: Em nada. Fiz um ano de Filosofia só e larguei.

Guia21: Mas e a eletrônica? Como aprendeste, como ela entrou na tua vida?

Télvio: Eu sempre estudei eletrônica. Desde guri, só por diletantismo. Posso mostrar os equipamentos que eu fiz, tu não vai acreditar. Eu até hoje não acredito! No dia em que eu comecei a estudar computadores, a primeira coisa que fiz foi montar um. Fiz ligação por ligação. E funcionava!

Guia21: Mas disseste que voltaste a cantar lá pelo 40 anos.

Télvio: Eu cantava aqui e ali, em concertos e recitais. Com a Ospa, cantei uma operazinha regida pelo Túlio Belardi, mas já me considerava um diletante. Não ganhei dinheiro nenhum com aquilo, nem queria. Aí houve outro fato que aí sim, aí eu disse “não vou fazer mais porcaria nenhuma”. Iam fazer uma ópera sobre os Farrapos e outra sobre as Missões. O autor era Roberto Eggers, que foi o primeiro regente de orquestra aqui em Porto Alegre. Ele escreveu duas óperas: Missões e Farrapos. Dizem que neste fim de semana vão estrear a primeira obra musical que foi escrita sobre a Revolução Farroupilha, uma ópera rock… Não sabem de nada. Um dia, o Emílio Baldini, que era colega meu, professor, me levou até o Eggers para ele me escutar, para a gente fazer a ópera sobre Missões. Aprendi toda a Missões. No dia em que era para começar os ensaios…

Guia21: Isso foi depois do Belardi e as Cantatas?

Télvio: Sim, pós Belardi. Com a Ospa de novo… Confusão daqui, confusão dali, mudaram todo o elenco. O Eggers disse que não ia deixá-los fazer sua ópera. Eu respondi “não, não faz uma coisa dessas. Sou um amador, não vou ganhar dinheiro com isso. Tu não. Não seja bobo. Fica quieto”. Aí, disse para mim mesmo “Bom, encerro. Não quero mais saber desse troço. Enchi o saco”.

Guia21: Tu já estava na Narcosul nessa época.

Télvio: Sim.

Guia21: Na Narcosul tu eras o chefe da eletrônica, certo? E, no desenho, que que tu fizeste?

Télvio: Desenhava para propaganda, desenhava charges, ilustrava matérias, fazia figuras de pessoas. Todo o dia o Jornal do Comércio tinha um desenho meu. Eu guardei algumas coisas, devia ter guardado mais, mas, na época, não dava valor para aquilo.

Matéria do Jornal do Comércio com ilustração de Antônio Télvio | Foto: Reprodução de Arquivo Pessoal

Guia21: E aí tu te tornaste um ouvinte do PQP Bach.

Télvio: Um grande ouvinte do PQP Bach. Tenho muita coisa de lá.

Guia21: E que papel tem a música hoje na tua vida?

Télvio: Olha, cara, hoje eu estou aposentado, fico no meu canto, mas ouço muita música, sim.

Guia21: Tu passa os dias escutando música?

Télvio: Não. Nunca pensei quanto tempo eu escuto música, mas é bastante. Eu ouço bastante. Só que certamente não ouço mais do que tu.

Guia21: Ouço mais ou menos uma hora por dia.

Télvio: Eu até ouço mais, às vezes.

Guia21: Tu cantarolas por aí?

Télvio: Não. Nada.

Guia21: Nada?

Télvio: Nada.

Guia21: Se tu te entusiasma por alguma coisa, tu não canta?

Télvio: Não canto. Há umas gravações minhas por aí, nem ouço mais. Também fiz várias edições extraordinárias em jornais onde eu desenhava tudo de cabo a rabo, mas não fico olhando.

Guia21: E tu frequentas concertos?

Télvio: Pouco. Esses dias fui ver o ensaio de uma ópera de Mozart. Não cantaram duas árias porque o tenor estava doente. Ele cantou outras, mais fáceis. Não tinha substituto! Isso é inconcebível num lugar sério. Aliás, as substituições são muito comuns, inclusive. Acontece de bons cantores substitutos se aproveitarem dessas oportunidades e roubarem a cena. Isto é, pelo visto a coisa não mudou tanto assim em todos esses anos. Olha, quando tu tens apenas uma opção de vida, “só posso ser cantor”, tu tenta de novo, tu insistes. Quando tu tem várias — eu tinha a eletrônica e o desenho que também me satisfaziam internamente –, tu buscas outra saída.

Guia21: Tu não ficaste frustrado?

Télvio: Eu sempre seria frustrado, porque é impossível abraçar tudo.

Guia21: Porque hoje tu tens 77 anos e a gente ouve que tu ainda tens equipamento, uma voz muito bonita e forte.

Télvio: É, sempre tive uma voz forte, dizem que boa…

Guia21: Isso eu estou ouvindo.

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Com decupagem de Nikolay Romanov e revisão de Elena Romanov.

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