Carta a um jovem poeta de 23 anos

Carta a um jovem poeta de 23 anos

Recebi este e-mail. Como ainda não pedi permissão para publicar o nome do autor, este fica por enquanto anônimo.

Olá, Milton. Há algum tempo que acompanho seu blog. Como vi no seu curriculum vitae que você possui uma certa sistematização de suas leituras, anotando cada livro lido (com seu número de páginas), e que possui uma vasta bagagem cultural, gostaria de saber como você concilia o trabalho e outras atividades pessoais à leitura de tantas obras literárias e quanto tempo por dia, em média, dedica-se a esse intento. Pergunto isso por me deparar com uma vasta quantidade de clássicos diante de mim e não possuir o tempo que gostaria para apreciá-los. Quantos livros é possível ler em 1 mês? Refiro-me aos grandes: Joyce, Proust, Thomas Mann, Musil, Faulkner… E, para finalizar, já que você sabe quantos livros e páginas leu desde 1971, poderia me dizer quantos foram? Curiosidade de um jovem de 23 anos diante de um abismo de ignorância a ser sobrepujado.

Georges Seurat [ Man Reading ] 1884
Georges Seurat [ Man Reading ] 1884

Em primeiro lugar, não acho que a tal bagagem seja tão grande. O tamanho que possa ter está mais ligado ao tempo em que estou vivo do que a uma suposta sistematização. Em segundo lugar, leio muita ficção e crítica literária, mas não sei nada de filosofia, política e de muitos outros assuntos. Posso ter conhecimentos hipertrofiados aqui e ali, mas fico constrangido quando me chamam de “pessoa culta” porque não ignoro minhas atrofias acolá. Elas me impedem muitos movimentos. O pouco que li e sei não é fruto de uma fórmula pré-determinada e clara, mas tenho certeza de que começa pelo pequeno hábito de ter SEMPRE um livro à mão. SEMPRE significa SEMPRE. Tá bom, não levo o livro que estou lendo ao futebol nem tomo banho com ele ao lado, mas nas outras circunstâncias há sempre um objeto desses por perto. Por exemplo, no último sábado à noite tive de ir a um bar buscar minha filha e amigas. Eu estava saindo de um cinema, era quase meia-noite. Os pessoas costumam perguntar “Para que sair em pleno sábado à noite com um livro?”. É, mas olha só: eu já estava chegando ao bar onde ela estava me esperando quando recebi um telefonema. Uma amiga tinha recém chegado e elas queriam ficar mais meia hora, uma hora. Sem problemas. Ganhei um tempo de leitura num café. Foi bom.

Na correria em que vivemos, sobram muitos espaços de espera. Fazemos inúmeros deslocamentos durante o dia. Garanto que hoje leio mais fora de casa do que sentado confortavelmente. Leio a qualquer hora e já me acostumei com as súbitas interrupções. Outra coisa, se conseguirmos sentar, os ônibus são locais muito bons para ler. Não consigo ler em pé no ônibus porque carrego uma tralha pesada demais e tenho medo que alguém aperte este notebook onde te escrevo. Já no metrô a coisa volta a ficar possível, desde que abraçado a uma daquelas colunas (“pole reading?”).

Aproveito também meu horário de almoço. A lei me dá 1 hora, por enquanto. Então, falo minha refeição em 30 min e subo correndo até a Biblioteca Pública, perto do meu emprego no centro de Porto Alegre, para ganhar 30 min de leitura. Isto me acalma e reorganiza. É um oásis em meio à loucura diária.

Não sei quanto tempo dedico-me a ler e nem me programo. Eu abandonei a leitura antes de dormir, pois o sono me vence facilmente. Há o time eater do facebook, quase inevitável, mas que deve ser dosado.

[ Charlotte Greenwood ] 1928
[ Charlotte Greenwood ] 1928

Quando jovem, fui mais obsessivo e cuidava para ler um mínimo de 30 páginas por dia. Hoje, um negócio desses é inviável. Leio o que dá, quando dá. Outra coisa: não se force a ler o que não gosta. Não adianta. A gente demora muito lendo coisas chatas, pois é penoso manter a atenção. Shakespeare ensina que “ONDE NÃO HÁ PRAZER NÃO HÁ PROVEITO”. É uma verdade. Se não houver prazer, você vai esquecer do que leu. Ler é diversão. Não adianta, se você achar algum Faulkner um saco, mude de livro ou de autor. Se você passar a amar, por exemplo, Kafka, atire-se sobre ele como se sua vida dependesse disso. Em algum momento, Kafka dialogará com outro livro e fará a indicação de quem deve ser lido logo após. Sim, os livros dialogam entre si. Um cita outro ou você, na sua ânsia de descobrir mais fatos sobre um autor de que gosta, pesquisará em qualquer lugar e encontrará outras obras afins pelo caminho. Terá curiosidade sobre elas e a impressão de que são eles, os livros, que te obrigam a lê-los, se formará. Meu who`s next é inteiramente regido por essas escolhas que “eles” fazem entre si.

Houve uma época em que li todos os romances de Balzac em sequência. Só que isso só pode ser feito se você gostar mesmo do autor. Se você não suportar a pieguice de Dickens, não o enfrente. Com o tempo, algum outro autor lhe dirá que há apenas dois Dickens que são muitíssimo bons: Pickwick e Grandes Esperanças. É importante uma boa primeira abordagem, por isso, inicie Flaubert por Madame Bovary, Balzac por Ilusões Perdidas ou Pai Goriot — talvez A Prima Bette — e Joyce por Ulisses ou Retrato do Artista Quando Jovem; evite começá-los pelo duvidoso Salambô, pelo ridículo A Mulher de Trinta Anos ou por Finnegans Wake, ilegível para 99,9% dos mortais mesmo em português, including me.

Eu só aconselho a amar de paixão dois autores que realmente são fundamentais para quem nasceu no Brasil: Machado de Assis e Guimarães Rosa. Não é difícil amá-los e mesmo a prosa à principio intrincada de Rosa passa a funcionar após algumas páginas de sofrimento. Ela requer alguma adaptação mental do leitor, mas o pequeno esforço vale a pena. E como!

Como escrevi no Curriculum Vitae, tinha anotados todos os livros que li. Parei com isso há uns 5 anos. Tinha tudo num caderno, não no Excel. Fazia uma espécie de tabulação anual. Cada louco com sua mania, OK? Posso te dizer é que lia de 18 a 20.000 páginas por ano quando tinha entre 16 e 30 anos, 3.000 páginas nos anos em que meus filhos nasceram, e que hoje fico lá pelas 7 ou 8.000 paginas. Escrever em 2 blogs toma algum tempo, mas escrever me é sempre prazeroso e sou rápido. É impossível dizer quantos livros se lê por mês, se for poesia dá para ler vários, se for Ulysses, dará mais de um.

Bom, era isso. Para ti, FP, o bom seria começar por Doutor Fausto, de Thomas Mann, traduzido por meu amigo Herbert Caro. É uma das maiores obras literárias que conheço e fala bastante de uma coisa que amamos muito.

Grande abraço.

Dora Carrington [ Portrait of Lytton Strachey ] 1916
Dora Carrington [ Portrait of Lytton Strachey ] 1916

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As contribuições de Carpeaux, Caro e Zweig, ilustres imigrantes que chegaram com a guerra

As contribuições de Carpeaux, Caro e Zweig, ilustres imigrantes que chegaram com a guerra
Carpeaux chegou em 1939 e foi trabalhar numa fazenda

Quem conheceu Otto Maria Carpeaux descrevia-o como uma espécie de monstro. O escritor José Roberto Teixeira Leite era seu amigo e desenhava assim a figura do austríaco: “Carpeaux foi um dos homens mais feios que conheci. Sua aparência neandertalesca, todo mandíbulas e sobrancelhas, fazia a delícia dos caricaturistas: parecia um troglodita, mas um troglodita que lia Homero e Virgílio no original, que se deliciava e ensinava sobre Bach e Beethoven, que diferenciava e palestrava sobre Rubens e Van Dyck”. Carpeaux também era gago. Carlos Drummond de Andrade, outro amigo, disse que, numa viagem de carro, ele foi citar Kierkegaard. “Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, Ki… Ki… Ki… e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante’.

Antes de ser Otto Maria Carpeaux no Brasil, ele foi Otto Karpfen, um austríaco que estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Mesmo gago, ele falava e escrevia em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata. Mas não sabia muito da língua portuguesa quando chegou ao Brasil no final de 1939, fugido da Alemanha nazista. Tinha pai judeu e mãe católica. Identificava-se como católico. Quando chegou, foi trabalhar no interior do Paraná, numa fazenda, no campo.

Stefan Zweig veio para uma série de palestras, voltou e morou com a esposa em Petrópolis.

O austríaco Stefan Zweig chegou aqui já famoso. Era um romancista muito popular. Judeu e austríaco, foi também poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Para as gerações mais antigas, Zweig era principalmente o autor de biografias. Escreveu várias: de Dostoiévski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi, Stendhal e uma famosíssima na primeira metade do século XX, de Maria Antonieta. Conseguiu o reconhecimento como romancista nas décadas de 20 e 30. Neste período, destacam-se os romances “Amok” (1922), “Angústia” (1925) e “Confusão de Sentimentos” (1927).

Em 1934 deixou o país e passou a viver na Inglaterra, entre Londres e Bath, onde se naturalizou cidadão britânico. Com o início da Segunda Guerra Mundial e o avanço das tropas de Hitler, o casal atravessou o Atlântico em 1940 e se estabeleceu nos Estados Unidos. Em 22 de agosto do mesmo ano, veio pela primeira vez ao nosso país. Ao todo, Zweig e sua esposa Lotte fizeram três viagens ao Brasil. Durante a primeira, entre 1940 e 1941 para uma série de palestras, escreveu:

“Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante. Hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta), as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso — , a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz — uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora”.

É uma visão sociologicamente ingênua, mas demonstrava algum amor pelo país que adotaria.

Caro veio para o Brasil porque lhe disseram que era barato

O judeu Herbert Caro veio da Alemanha para Porto Alegre. Tinha em comum com Carpeaux a cultura literária enciclopédica e o profundo amor pela música. Na Alemanha, fora impedido de exercer a advocacia devido à promulgação das primeiras leis antissemitas pelo governo nazista. Primeiramente, refugiou-se na França, onde estudou Letras Clássicas na Universidade de Dijon. Para sustentar-se, dava aulas de latim e pingue-pongue – Caro havia integrado a seleção alemã de tênis de mesa durante seis anos e sido um dos dirigentes da federação de 1926 a 1933. Permaneceu um ano na França. Pressentindo a proximidade da guerra, buscou novo exílio. O Brasil surgiu como a melhor opção. Afinal, um amigo dissera que era um país barato de se viver. E Herbert Caro chegou a Porto Alegre em 7 de maio de 1935. Na mala, pouca coisa; no cérebro, um vocabulário de cerca de três mil palavras que aprendera em algumas aulas de português antes da viagem.

O vocabulário permitia que ele entendesse o Correio do Povo e pedisse informações na rua sem compreender perfeitamente a resposta. O ouvido ainda não estava acostumado. Seus conhecimentos de Direito eram inúteis e o doutorado em Filosofia também pouco valia na Porto Alegre da década de 30. O domínio de várias línguas proveu a subsistência nos primeiros anos e direcionou sua vida.

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Orgulho e preconceito: os 200 anos de um livro arrebatador

Era a mais bela capa para o Sul21. Na época, o lay-out de nossa página tinha uma foto grande e a capa do jornal ficara assim por alguns minutos:

orgulho e preconceito caoa

Só que, justo naquele domingo, houve a tragédia na boate Kiss e tivemos que mudar tudo. Abaixo, o extraordinário artigo de Nikelen Witter sobre um dos melhores livros de todos os tempos.

.oOo.

A página inicial da primeira edição de 1813. Ironia desde o princípio: “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa”. (Clique para ampliar).

Publicado no Sul21 em 27 de janeiro de 2013

Por Nikelen Witter (*)

No final do século XVIII, uma jovem inglesa escreveu um romance. Não era algo incomum em sua época, nem era seu primeiro texto de ficção. Como era de costume, ela fez leituras para sua família que, depois de alguns debates, parece tê-lo aprovado. Sua intenção, inicialmente, era a de fazer um romance epistolar, algo muito em voga no período, mas as cartas minguaram dentro do texto, mesclando-se com a narrativa. O pai da jovem, acreditando no talento da filha mais nova, levou o manuscrito a um editor, que recusou a história. Este poderia ter sido o fim de First Impressions, título do romance recusado, mas, como qualquer escritor sabe: a primeira versão de um livro nunca é sua versão final. A jovem aspirante voltou a trabalhar seu texto, ao mesmo tempo em que escrevia outros. Em 1811, ela publicou seu primeiro romance e, aproveitando o sucesso deste, no dia 28 de janeiro de 1813, há 200 anos atrás, finalmente o texto anteriormente recusado chegou ao público. Tinha um roteiro melhor trabalhado, um texto mais perspicaz e um novo título: Pride and prejudice ou, em nosso idioma, Orgulho e preconceito. Nascia, assim, o romance mais popular de Jane Austen – uma das mais brilhantes escritoras inglesas – e, com ele, uma notoriedade que já perdura por duzentos anos.

Jane Austen: uma moça simples e, curiosamente, muito letrada

A autora

Quem nunca leu nada de Jane Austen pode acabar tendo uma ideia errada de seus leitores-amantes, vendo-os como cegos seguidores de um certo tipo de culto, que elegeu a autora inglesa como musa e deusa. A quantidade (e o tipo) de menções na mídia à escritora, por outro lado, pode fazer com alguns venham a imaginá-la como uma espécie de Norah Efron (**) da virada do século XVIII para o XIX. De fato, já conheci leitores que interpretaram seus livros superficialmente, como quem lê um roteiro hollywoodiano, acreditando que seus romances não passam um conjunto bem amarrado dos clichês do tipo moça encontra rapaz e vice-versa. E, desde sempre, houve aqueles que a acreditaram como autora de livros tipicamente femininos, contos conservadores para “mulherzinhas” sonhadoras. Contudo, nada poderia ser mais enganoso. Primeiro, porque nenhum fã de Austen deixará de lhe fazer críticas na mesma medida em que reconhece sua genialidade. Segundo, porque se as comédias românticas beberam em Austen, fique-se certo que ela nunca bebeu delas. Por fim, dispensar um grande escritor com base num conceito duvidoso de literatura de meninos e meninas, diz mais sobre o leitor do que sobre o livro em questão, então, melhor deixar pra lá.

Keira Knightley e Matthew MacFadyen: A adaptação mais famosa: a de Joe Wright, realizada em 2005

O fato é que Jane Austen continua, após dois séculos de existência de sua obra, um fenômeno tanto de crítica, quanto de público. O número impressionante de adaptações pelas quais seus livros são lembrados e recriados, porém, não é o suficiente para que se compreenda como inglesa de vida obscura tem conseguido manter tanta vitalidade. Arrisco a dizer que, para entender o fenômeno Jane Austen é preciso lê-la e, se me permitem, fazer isso mais de uma vez. O gênio de Austen é o de fazer muito com o mínimo. E tal talento exige um leitor capaz de divertir-se como quem observa pessoas pelos buracos das fechaduras, entendendo-as mais pelo que fazem e dizem, do que por longas apresentações retóricas sobre quem realmente são. Os livros da Jane Austen são como pinturas delicadas, dadas como um presente aos observadores atentos. Sem “efeitos bombásticos” (usando as palavras de Sir Walter Scott, seu grande admirador), Austen dominava como ninguém a arte de representar o cotidiano em suas grandezas e misérias, em sua beleza e mediocridade. O resultado é um espelho atemporal das relações humanas que ultrapassam em muito as relações amorosas entre homens e mulheres. Em Austen, o minúsculo da existência aparece como um caminho que, em qualquer época ou lugar, pode refletir o que somos e onde estamos. Sobretudo, o fato de que, na grande maioria das vezes, não conseguimos estar onde gostaríamos, apesar de nossas melhores intenções.

Elizabeth (Keira Knightley) e seu pai (Donald Sutherland): raro entendimento

Austen escrevia sobre pessoas e sobre gerações. Falava dos mais velhos acomodados a suas manias, controles, posições e fracassos. E escolhia como protagonistas jovens que precisavam abrir caminho ante tudo isso. Destes jovens, ela se ocupou mais das mulheres, criaturas sem qualquer poder ou destinação que não o casamento; muitas vezes, prisioneiras da ignorância, da vida sem perspectiva ou ilusões, assombradas pela decrepitude física (decretada antes dos 30 anos) e pela ruína econômica. Jane Austen colocava o amor como uma questão importante, mas o via por meio de um caleidoscópio, pois ninguém ama ou é amado solitariamente. O difícil relacionamento amoroso com a família na fase adulta é, para a autora, um tema tão forte quanto à busca de um amor companheiro para construir um novo núcleo familiar.

Porém, ledo engano dos que, sem a terem lido, imaginam-na como uma autora sentimental. Se bem que Mark Twain, que detestava seus livros – especialmente Orgulho e Preconceito –, talvez acreditasse nisso. Já Charlotte Brönte, autora de Jane Eyre, a acusava de ser fria, de não ter fogo ou paixão e classificava seus romances como insípidos. Minha leitura de Jane Austen a percebe como uma racionalista, até mesmo um tanto radical em seus termos. Isso é claro em Razão e sensibilidade e não menos em Orgulho e Preconceito. Os muito românticos podem ficar chocados, mas Jane Austen parece defender a ideia de que o amor é, antes de tudo, uma mistura de desejo, afeto e discernimento. A receita para o desastre está na falta de qualquer um destes. Claro que não se há de ler nenhuma declaração de amor em seus livros como a que Edward Rochester faz a Jane Eyre, porém, para Austen, o amor, mais que por palavras, é demonstrado por ações que nada exigem em troca. Numa sociedade tão apegada ao jogo de favores e cortesias, nada poderia ser maior que o desinteresse na retribuição, que a paz e felicidade do outro como único reconhecimento.

A casa dos Austen em Steventon: nada de herança para mulheres

Vida e morte

A biografia de Jane Austen é bem conhecida, quando não, esmiuçada para explicar a escritora e a impressionante longevidade e popularidade de sua obra. Houve críticos que, inclusive, se utilizaram de sua trajetória para opor-se a seus escritos. Ora, o que, afinal, uma solteirona provinciana poderia saber de amor, de casamentos e, especialmente, das universalidades do gênero humano?

Jane nasceu em 16 de dezembro de 1775, em Steventon, um vilarejo ainda hoje de aspectos rurais, ao norte do condado de Hampshire, no sul da Inglaterra. Originária da gentry, pequena nobreza rural, ela era oriunda de uma numerosa família, sendo a sétima filha do pastor George Austen e de sua esposa Cassandra, o mesmo nome de sua única irmã e confidente. O pai era também reitor e tutor de alunos, os quais recebia e educava em sua casa.

É difícil saber se por atenção às novas exigências da época quanto ao ensino das moças – nos últimos 50 anos do século XVIII, sob influência da burguesia ascendente, se passou a valorizar a educação feminina no mercado de casamentos – ou se por convicção professoral, o fato é que os Austen preocuparam-se em fornecer às duas filhas instrução de alto nível. Cassandra e Jane moraram com uma tutora em Southampton e, mais tarde, no internato de Reading. Sabe-se, porém, que o próprio pai foi um dos grandes educadores dos próprios filhos. Ele mantinha em sua casa uma ampla biblioteca e se orgulhava da família ser ávida na leitura de romances, além de outros tipos de literatura.

O manuscrito de Orgulho e Preconceito: leiloado por 5 milhões de reais em 2011. (Clique para ampliar).

É interessante notar que se as bibliotecas particulares já não eram nenhuma novidade por esta época, o estímulo à leitura, em especial de romances e pelas mulheres, estava ainda sob forte ataque. São bastante conhecidos os textos do período que criticam a chamada “fome por leitura”, a qual, no entanto, espalhava-se pelos alfabetizados num volume cada vez maior. Tais textos eram opositores à leitura feita “por qualquer um”, e acreditavam que nada poderia ser mais pernicioso para a vida de uma moça do que a leitura de romances. Os detratores do gênero acusavam-no de estar repleto de fantasias e aventuras absurdas, que só fariam adicionar à cabeça “fraca” das jovens desejos que nunca poderiam ser satisfeitos, mergulhando-as na melancolia. Pior, poderia fazê-las falhar com seus deveres de boas filhas, irmãs e esposas, tornando-as ávidas de sensações moralmente recrimináveis e passíveis de se lançarem nas mãos dos aproveitadores e inescrupulosos que rondavam as famílias. Em prol da segurança das jovens e das linhagens, devolveu-se grandemente uma literatura moralista, baseada em textos bíblicos, que tinha função de orientar as moças em direção à caridade e a conformação com a vida limitada, que todas tinham pela frente.

Alguns destes livros devem ter passado pela biblioteca do reverendo Austen e Jane os conhecia bem. Pode-se acreditar nisso porque determinadas ideias destes textos estão presentes em seus escritos. Afinal, Jane não se furtava em criticar romances com perspectivas irrealistas da vida ou das relações amorosas. Northanger Abbey, sua obra de juventude publicada postumamente, é justamente sobre as tolices das jovens que se deixam levar pelo imaginário dos romances. Por outro lado, Austen não era nenhuma entusiasta da longa e aplicada leitura dos moralistas. Em Orgulho e preconceito, este detalhe é inserido como parte da personalidade patética de pelo menos dois personagens: o infame Mr. Collins e Mary Bennet, a menos encantadora das cinco irmãs.

Cena de Becoming Jane, com Anne Hattaway.

Das leituras à escrita, Jane revelou precocemente o talento e o desejo de compor seus próprios textos. Pequenos esquetes representados pela família na reitoria, paródias da literatura da época em que ela exercitava seu humor e capacidade crítica, presentes igualmente nas longas cartas escritas para a irmã Cassandra, nos breves períodos em que ficavam separadas. Os biógrafos apontam que entre 1795 a 1799, Austen também teria desenvolvido o cerne de alguns de seus principais romances, os quais foram, depois, longamente retrabalhados. No início dos anos 1800, fala-se da existência de alguns pequenos interesses de cunho amoroso, porém, nenhum deles seguiu adiante. (Em 2007, esses quase enlaces de Jane Austen, foram costurados num único – Thomas Lefroy – pelo roteiro do filme Becoming Jane, que se utilizou de Orgulho e Preconceito para construir um argumento romântico, numa livre interpretação da vida da escritora).

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O Fausto de Sokurov e o mecenato de Putin

Fausto de Sokurov é um filme ESTUPENDO. O Fausto de Sokurov é um filme de Tarkovski de cabo a rabo. No ritmo, no estilo, na dramaturgia, no extremo cuidado estético. Não que isso o prejudique, de modo algum. Mas não vou fazer o elogio do filme, quero ressaltar outro aspecto, pois o que poucos sabem é a dobradinha que Sokurov faz com Putin. Não o censuro, muitíssimos artistas do passado — e que hoje admiramos — tiveram mecenas que roubavam e matavam, desta forma, nem sempre suas posses eram, digamos, legais. Muitos destes poderosos não tinham o menor interesse pessoal na arte e pareciam desejar o perdão e a imortalidade atráves de seus protegidos. Então, não chega a surpreender o fato de Putin — como um imperador — ter repassado dinheiro do estado para a obra. “Fiquei espantado e não entendi o motivo pelo qual Putin, que nunca foi um amigo meu, decidiu apoiar o filme”, disse Sokurov.

Mais ou menos, né? Talvez seja o momento de esclarecer aos sete leitores deste blog  que, apesar de não ser seu “amigo”, Sokurov é um politicamente conservador e apoia Putin. “Putin me chamou para conversar. Eu disse a ele que, se não obtivesse os recursos, Fausto jamais seria filmado (ou seja, Sokurov pediu o dinheiro). Alguns dias mais tarde, me disseram que o dinheiro que precisava estava sendo entregue. Como e porque isso aconteceu eu não sei. Talvez seja porque ele tem muito conhecimento da cultura alemã e da história. Eu creio que tenha sido por minha causa.”

O complemento de Sokurov é quase cômico: “Quando eu o encontrei recentemente, ele perguntou se eu dublaria Fausto para o russo. Li entre as linhas da mensagem e a entendi como uma espécie de ordem. Não teria medo nenhum de negar-lhe o pedido, porém, o dinheiro é do estado, não dele próprio. Eu não sei se ele tem dinheiro. De acordo com o seu salário oficial, ele não deve ter nenhum dinheiro.”

Porém, o que realmente me surpreende é que — apesar dos típicos arroubos russos e do estilo tarkoviskiano — o tema é germânico até o último fio de cabelo. As deslumbrantes imagens também baseiam-se em obras de pintores germânicos. O produtor Andrei Sigle esclarece alguma coisa sobre o interesse de Putin: “Fausto é um grande projeto cultural russo e isto é muito importante para Putin. Ele pensa que um cineasta como Sokurov, realizando uma obra como aquela, pode introduzir a mentalidade russa dentro da cultura europeia, promovendo a integração cultural”.

Se a intenção de Putin era a de integrar, fez boa escolha. Sokurov tem uma sintaxe russa e se considera o sucessor de Tarkovski. Justo. “Eu nunca quis ser seu aluno. Eu o amava como pessoa. Sua morte foi a maior perda da minha vida. Eu tinha metade de sua idade, mas ele me tratou como um igual, com carinho e confiança ilimitada. eu ficava envergonhado. Tinha que demonstrar a ele toda a minha admiração, mas sua naturalidade no trato impedia”. Ao mesmo tempo, Sokurov diz ser “mais um Europeu”. “Dickens, Flaubert, Zola são o meu mundo. Isso é o que me criou.” É neste contexto que ele declara que ele não gosta muito de cinema, o que é mais uma curiosidade…

Se Tarkovski era um dissidente soviético e buscava representações do país em histórias do passado, Sokurov é um aliado do czar que faz o mesmo para representar nosso tempo. Fausto é um tremendo filme tanto do ponto de vista ontológico quanto do estético e só o tempo dirá se servirá ao projeto cultural secular do déspota (esclarecido) Vladimir Putin.

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Em silêncio, Brasil vê o mundo comemorar o bicentenário de Charles Dickens

Charles Dickens (1812-1870): poucas edições no Brasil

Popular e piegas, social e relevante, a obra de Charles Dickens (1812-1870) cumpre longa agonia no Brasil. É difícil estabelecer o que aconteceu primeiro: se as más traduções ou os poucos leitores. Porém, se pensarmos que as más traduções também perseguiram outros autores que têm sido sistematicamente retraduzidos — com a admissão de que a maioria das traduções de décadas passadas eram mesmo de baixa qualidade — e reeditados, talvez cheguemos à conclusão de que há algo em Dickens que não bate conosco. Contrariamente a nosso silêncio, o mundo comemorou na última terça-feira (7) o bicentenário de nascimento do autor. Até o Google alterou seu logotipo por 24 horas (imagem abaixo) a fim de homenagear o grande escritor.

Consideremos três grandes livros de Dickens: Os Pickwick Papers (1836), David Copperfield (1849-1850) e Grandes Esperanças (1860–1861). A última edição brasileira dos Pickwick Papers foi de 2004 pela Editora Globo e a tradução era ainda a da velha Livraria do Globo dos anos 50. David Copperfield não foi publicado neste século, apenas em versão recontada e o mesmo vale para o esplêndido Grandes Esperanças. Mas nossa intenção não é a de revelar aos sebos que Dickens, que ora completa 200 anos de nascimento, é uma raridade. Nossa intenção é a de demonstrar que Dickens foi um escritor importantíssimo e por quê.

Ilustração de uma edição inglesa de Oliver Twist (Clique para ampliar)

A historiadora Nikelen Witter considera Dickens um colega de trabalho: “Minha percepção de Dickens envolve muito o que o romance dele representou em sua época e quem ele foi como escritor. Minha leitura juvenil do autor, confesso, foi totalmente reestruturada pelo meu estudo da história do século XIX. Talvez meu gosto por ele seja menos em razão de seu texto do que pelas ferramentas que ele disponibiliza para entender o século XIX. Dickens está entre os autores que recomendo a meus alunos de História Contemporânea e minha intenção não é a de causar diabetes em ninguém. A descrição de Dickens das gangues infantis é bastante precisa, bem como da reprodução das estruturas de poder dos adultos nas crianças abandonadas. A lacrimosa saga de Copperfield abre espaço para uma série de questionamentos históricos sobre legitimidade, pátrio poder e escolaridade, além, é claro, da irresponsabilidade do agir das classes mais altas. Há em Dickens uma defesa da igualdade”.

Pip e um mendigo: ilustração para Grandes Esperanças, seu romance mais maduro e sofisticado (Clique para ampliar)

Não sem razão, Witter refere-se ao diabetes e à defesa da igualdade. Dickens era mesmo açucarado. Oliver Twist e David Copperfield são verdadeiras torrentes de lágrimas. A morte de personagens como a pequena Nell em The Old Curiosity Shop (O Armazém de Antiguidades) é algo de deixar sóbria qualquer novela mexicana. Witter discorda do termo “piegas” e justifica: “Os livros do Dickens e das irmãs Brönte que tematizavam as agruras dos órfãos e abandonados na Inglaterra chegaram a provocar o que foi chamado de Movimento pela Infância (que começa por volta dos anos 1840), o qual lutou contra o trabalho infantil e exigiu melhorias nos orfanatos. A burguesia e a classe média leitora sensibilizaram-se com textos que demonstravam o sofrimento envolto num realismo poético — à falta de palavra melhor e para não usar o termo piegas, que, creio, teve seu conceito inventado por esta época. O fato é que o texto de Dickens são de denúncia das mazelas provocadas pelo capitalismo, em especial quando atingia os mais fracos: os pobres e as crianças abandonadas. Não é à toa que o próprio Marx foi seu admirador”.

Dickens: açúcar e defesa da igualdade

Era uma abordagem nada indignada, mas muito ressentida e dolorida da pobreza e da infância. Afinal, aquilo tinha sido a infância de Dickens. Educado pela mãe, que lhe ensinou inglês e latim, ele dizia que não fora muito mimado e que passara muito tempo lendo as novelas picarescas e romances de Henry Fielding, Daniel Defoe, Jonathan Swift e de seus contemporâneos, assim como de Cervantes e “As Mil e uma Noites”. Durante um curto período, pôde frequentar uma escola particular. Contudo, a situação piorou quando tinha dez anos. Seu pai foi preso por dívidas após esgotar os parcos recursos da família no afã de manter uma posição social digna. Nesta época, a família mudou-se para o bairro popular de Camden Town em Londres, onde ocupavam quartos baratos. A biblioteca familiar que tinha feito as delícias do jovem Dickens foi vendida, os talheres empenhados e, com doze anos, Dickens já tinha a idade considerada necessária para trabalhar colando rótulos em frascos de graxa. Ou seja, quando Dickens falava e chorava os pobres da Revolução Industrial, não estava apenas representando ou fazendo tese.

Gravura da última leitura pública de Charles Dickens (Clique para ampliar)

A defesa da igualdade era implícita. Quando Bernard Shaw comparou Marx e Dickens e quando lemos sobre o profundo apreço de Hobsbawm pelo autor, damos-nos conta do Dickens político. Só que a tribuna de Dickens era outra. Para entender sua importância, é fundamental saber que o texto de Dickens era multiuso. Ele não se tornou o mais popular autor do século XIX casualmente: tinha extremo conhecimento de seu público e dava especial atenção às formas de divulgação de seus trabalhos. A primeira forma adotada por Dickens era testar seus textos lendo-os em voz alta. Isto era fundamental por dois motivos: primeiro pelas constantes leituras públicas que o autor fazia e que lhe deram celebridade, e também porque sabia que seria lido em reuniões familiares, hábito comum na época. (Depois, reforça a historiadora Nikelen Witter, “estes leitores debateriam o que foi lido e, especialmente, ouvido. E — desejo expresso de Dickens — olhariam sob outra forma os mendigos que se acumulavam nas estradas e arrabaldes das grandes cidades inglesas”). Em segundo lugar, as publicações vinham em folhetins, então o final de cada capítulo necessitava de uma alta temperatura emocional e de suficiente expectativa para justificar a compra do próximo. Seria totalmente inválida a caricatura de que os livros de Dickens seriam um Criança Esperança misturado com novela das oito?

Sam Weller e Mr.Pickwick num prato vitoriano

Só que com qualidade muitíssimo superior. Dickens era engraçadíssimo e seu Pickwick Papers é tão intensamente cômico que demonstra não apenas a genialidade de Dickens como também o fato de ter aprendido as lições de Fielding e Swift. Mesmo seus livros mais dramáticos contêm fartas doses de humor e, dentre os personagens secundários de seus romances, há tipos inesquecíveis. Personagens como Uriah Heep, Miss Havisham, a esposa do Sr. Micawber, Sam Weller e dezenas de outros povoam sua páginas em cenas absolutamente hilariantes. Quase sempre atuam com a mesma seriedade que um membro do Monty Python atuaria. Aliás, há algo de Dickens nos filmes do Monty Python, principalmente em O Sentido da Vida. A curiosa adjetivação das cenas cômicas é matéria de estudo e os tais personagens “secundários” são tão importantes que, quando Pickwick Papers foi lançado, a recepção do público não foi calorosa no início — Dickens era um estreante de 24 anos — , mas quando apareceu a personagem de Sam Weller, o criado de Pickwick que acompanha as aventuras de seu amo, as vendas do folhetim subiram de 400 exemplares para 40 000! Sam Weller é simplesmente impagável!

O Google mudou seu logotipo no dia dos 200 anos de Dickens em homenagem ao autor (Clique para ampliar)

Então, por que Dickens é tão famoso no mundo inteiro, mas não no Brasil, onde mal tem seus livros editados e traduzidos? Será pelos enredos inverossímeis, cheios de coincidências e reviravoltas? Bem, mas não é isso o que se vê em nossas novelas? Será que Dickens não esconderia demais sua crítica social? Será complicado concluir que o ingrediente base de Oliver Twist e Nicholas Nickleby é a denúncia da condição infantil e da situação de muitos estabelecimentos de ensino? Seria igualmente complexo notar que A Casa Soturna é um romance contra a corrupção e a ineficiência do sistema jurídico inglês, tal como A pequena Dorrit? Será este último lido apenas como a típica história do pobre que enriquece e não como uma violenta sátira ao judiciário da época? Ficam as perguntas. O fato é que Dickens, aos 200 anos de nascimento, é celebrado em grande parte do mundo enquanto agoniza no Brasil.

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