Villa-Lobos, o índio de casaca tornou-se bandeira e bússola

Villa-Lobos, o índio de casaca tornou-se bandeira e bússola

A jovem repórter pergunta: “O que o senhor está compondo agora?”. O velho Villa para, pensa, dá uma baforada no charuto e responde: “Minha filha, na minha idade eu não componho mais nada, eu estou é me decompondo…”.

Heitor Villa-Lobos: compondo e se decompondo

Heitor Villa-Lobos nasceu em 1887 no Rio de Janeiro e faleceu no dia 17 de novembro de 1959, na mesma cidade. Trabalhou durante a época do nacionalismo musical que começara na segunda metade do século XIX, durante o Romantismo, nos países periféricos da Europa. Na virada do século, o movimento tornou-se mais consistente e pesquisador. O húngaro Béla Bartók, por exemplo, ia a campo viajando pelo interior da Transilvânia, Bulgária, Romênia e Hungria a fim de conhecer a música de sua gente e encantava-se com os ciganos. Stravinsky tentava nos enganar, mas usava carradas de músicas folclóricas em seus primeiros balés. Já a Espanha vinha com todo um time de nacionalistas, capitaneado por Manuel de Falla. Enquanto isso, Villa-Lobos, num primeiro momento, nem precisou viajar para pesquisar. Bastou ser violonista de grupos de chorões em sua cidade natal. Aquilo já era suficientemente exótico e acabou rendendo a série extraordinária dos Chôros.

Antes, de Villa, nossa música erudita não passava de Carlos Gomes e de acadêmicos que copiavam o que os europeus faziam. O nacionalismo trouxe voz própria à produção musical do país. Muitos compositores estudavam música fora daqui e depois voltavam a fim de mesclar a música nativa às modernas técnicas de composição aprendidas. Com Villa foi um pouco diferente. Oficialmente, estudava apenas violoncelo, porém, escondido de seus pais, estudava também violão. Melhor esconder mesmo, pois o violão era considerado um instrumento marginal, das ruas, um pobre coitado frente ao aconselhado violoncelo e ao inevitável piano.

O jovem Villa: pesquisas pero no mucho

Um carioca

Apesar de contar com a rica musicalidade carioca ali na calçada de casa, Villa viajava atrás de música pelo Brasil. Dizia ser um índio de casaca — expressão criada pelo poeta Menotti Del Picchia –, mas não parecia tão fanático pela pesquisa quanto seus colegas europeus. Em 1905, visitou os estados do Espírito Santo, Bahia e Pernambuco, passando temporadas em engenhos e fazendas, em busca do folclore e de uma  — por que não? — gastronomia local. Em 1908, chegou à cidade de Paranaguá, estado do Paraná, e cansou. Ficou lá por dois anos, tocando violoncelo para a alta sociedade e violão para os outros. Entre 1911 e 1912 participou de uma excursão pelo interior dos estados do Norte e do Nordeste. Foi nessa viagem que teria conhecido a Amazônia — fato de modo nenhum comprovado – o que marcou profundamente sua obra, segundo ele.

As primeiras composições de Villa-Lobos não diferem das de seus pares, levando o estilo europeu da virada do século XIX para o século XX. Era um sub-Wagner, às vezes um sub-Frank. Depois, evoluiu até um sub-Debussy. Só ganhou voz própria nas Danças características africanas (1914), o que confirmou nos bailados – ainda levemente xaroposos – Amazonas e Uirapuru (1917). Porém, Villa chegou com tudo à década de 1920, compondo os notáveis A Prole do Bebê e as Cirandas, para piano, e o Noneto (1923). Era ainda muito criticado por ter se tornado moderno demais. Mas pouco a pouco ganhava reconhecimento e fama.

Financiado por amigos e pela família Guinle, viajou para a Europa em 1923. Em Paris, tomou contato com a vanguarda musical da época. Lá teve o apoio do eminente pianista Arthur Rubinstein e da soprano Vera Janacópulus. Recebia as pessoas vestido de vermelho na sua sala vermelha. Paris foi um grande sucesso. Em 1927, retornou à cidade para uma temporada de três anos, com a finalidade de organizar concertos e publicar várias obras pela editora Max-Eschig, à qual foi apresentado quando de sua primeira ida à França. Fez mais amigos, e artistas como Magda Tagliaferro, Leopold Stokowski, Maurice Raskin, Edgar Varèse, Florent Schmitt e Arthur Honneger frequentam sua casa e participam das curiosas feijoadas dominicais.

A partir dessa segunda temporada na capital francesa, ganha prestígio internacional, apresentando suas composições em recitais e regendo orquestras nas principais capitais europeias. Causa forte impressão no público e na crítica, ao mesmo tempo em que provoca reações por suas ousadias.

Sala de aula e Canto Orfeônico

O poder

Villa é às vezes acusado de ter sido apoiado pelo regime de Getúlio Vargas. As relações entre o poder e os músicos e atores sempre deram pano pra manga. Compositores, por exemplo, necessitam de orquestras para divulgar seus trabalhos. Quem tem as melhores? E quem tem os melhores teatros? Mas, sim, talvez Villa tenha sido apoiado demais.

Com o patrocínio do Estado Novo, ele desenvolveu amplo projeto educacional, em que teve papel de destaque o Canto Orfeônico, e que resultou na compilação do Guia prático (temas populares harmonizados). Em 1931, o maestro organizou uma concentração orfeônica chamada “Exortação Cívica”, com 12 mil vozes. Dois anos depois, assumiu a direção da Superintendência de Educação Musical e Artística. A partir de então, a maioria de suas composições se voltou para a educação musical. Em 1932, o presidente Vargas tornou obrigatório o ensino de canto nas escolas e criou o Curso de Pedagogia de Música e Canto. Em 1933, foi organizada a Orquestra Villa-Lobos.

Em 1936, apresentou seu plano educacional em Praga e depois em Berlim, Paris e Barcelona. Já era um cidadão do mundo, compondo muito e sendo convidado para apresentar suas obras no circuito erudito mundial.

O compositor e os inseparáveis charutos

Obra

Mas falemos um pouco sobre as principais obras do compositor. A criatividade selvagem dos anos 20 – que produziram as Serestas, os Chôros, os Estudos para violão e as Cirandas para piano – foi seguida de um período “neobarroco” – em resposta ao neoclassicismo de Stravinsky –, cujo carro-chefe foi a espetacular série de nove Bachianas brasileiras (1930-1945), para diversas formações instrumentais. As Bachianas são conhecidas até de quem não convive com a música erudita, tal é seu uso por artistas populares – Milton Nascimento, Edu Lobo, Tom Jobim – como em propagandas do governo. A mistura de Villa com Bach gerou um dos sons mais autenticamente brasileiros que existem.

Apesar da extraordinária produção para orquestra, suas 12 Sinfonias não são grande coisa.

Já a música para piano é incontornável, mesmo em âmbito mundial. Sônia Rubinsky gravou recentemente a integral de sua obra para piano com enorme sucesso. Foram 8 CDs pela gravadora Naxos. O volume I foi indicado para o Grammy e também foi escolhido pela revista Gramophone um dos cinco melhores lançamentos de 1999. Destaques para Rudepoema (1926), Chôros Nº 5 (1926) e Valsa da dor (1930).

Suas composições para violão também estão entre as principais de sua obra. O Chôros Nº 1 (1924), os 12 Estudos (1924–1929), os 5 Prelúdios (1940) e a Suíte Popular Brasileira (5 peças) (1908-1912 e 1923) fazem parte do repertório habitual do instrumento.

Pouco ouvidos no Brasil, mas presentíssimos no repertório dos quartetos de cordas – principalmente na Europa Oriental – estão seus extraordinários 17 quartetos de cordas (1915–1957).

Alto risco: gravações históricas com o próprio Villa

Há várias gravações com o próprio Villa regendo suas obras, mas estas devem ser ouvidas com moderação. Os grupos nem sempre são bons e há registros das Bachianas, conduzidos pelo compositor, onde reina uma desafinação que certamente o desesperava. As gravações modernas costumam ser melhores do que as históricas.

Em sua imensa obra, o maestro combinou indiferentemente todos os estilos e todos os gêneros, introduzindo sem hesitação materiais musicais tipicamente brasileiros sobre formas tomadas de empréstimo à música erudita ocidental. E o contrário também.

Sua influência sobra nossa cultura musical foi notável. Impossível saber quantas citações musicais recebeu, desde os Beatles que o citaram em I am the Walrus até uma infinidade de referências feitas por compositores cultos nacionais, hoje entrincheirados na Biscoito Fino e nas gravadoras alternativas. Villa-Lobos foi autor de mais de mil obras. Um décimo bastaria para fazê-lo imortal. Hoje seu legado é “bandeira e bússola”, como sintetizou o violinista Turíbio Santos, responsável, aliás, por uma das melhores interpretações de sua obra para violão.

Um câncer matou Villa-Lobos em 17 de novembro de 1959, no Rio de Janeiro.

Villa mandando ver no violão

Era um espetáculo. Tinha algo de vento forte na mata, arrancando e fazendo redemoinhar ramos e folhas; caía depois sobre a cidade para bater contra as vidraças, abri-las ou despedaçá-las, espalhando-se pelas casas, derrubando tudo; quando parecia chegado o fim do mundo, ia abrandando, convertia-se em brisa vesperal, cheia de doçura. Só então percebia que era música, sempre fora música.

Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada quando Villa-Lobos morreu

Fonte consultada: Site do Museu Villa-Lobos

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Revolução dos Cravos: a primavera após uma noite de 48 anos

Revolução dos Cravos: a primavera após uma noite de 48 anos

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Durou décadas a ditadura em Portugal. A rigor, foram 48 anos entre os anos de 1926 e 1974. Só Antônio de Oliveira Salazar governou por 36 anos, entre 1932 e 1968, e a Constituição de 1933, que implantou o Estado Novo nos moldes do fascismo italiano com seu Partido Único, permaneceu até 1974, por 41 anos.

Capa do jornal república de 25 de abril de 1974 (Clique para ampliar)

Acabou em 25 de abril de 1974 numa revolução quase sem tiros. Morreram apenas quatro pessoas pela ação da DGS (ex-PIDE). A adesão aos militares que protagonizaram o golpe na ditadura foi tão grande que as cinco mortes mais pareceram um desatino final. O nome de “Revolução dos Cravos” foi devido a um ato simbólico tomado por uma simples florista. Ela iniciou uma distribuição de cravos vermelhos a populares e estes os ofereceram aos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas.

Tudo fora bem planejado. A ação começou em 24 de abril de forma muito musical. Um grupo militar instalou secretamente um posto no quartel da Pontinha, em Lisboa. Às 22h55 foi transmitida por uma estação de rádio a canção E depois do adeus, de Paulo de Carvalho. Este era o sinal para todos tomarem seus postos. Aos 20 minutos do dia 25, outra emissora apresentou Grândola, Vila Morena, de José Alfonso. Ao contrário da primeira canção, a qual era bastante popular, Grândola estava proibida, pois, segundo o governo, fazia clara alusão ao comunismo.

Passados 38 anos, todos reclamam em Portugal. Tendo no centro do cenário a atual crise econômica, a esquerda considera que o espírito da revolução se perdeu, assim como várias das conquistas dos primeiros anos, enquanto a direita chora as estatizações do período pós-revolucionário, afirmando que esta postura prejudicou o crescimento da economia. O ex-presidente Mário Soares afirma  que tudo o que ocorreu nos últimos 38 anos pode ser discutido e reavaliado, mas que a comparação entre o passado e o que há hoje é comparar “um passado de miséria, de guerra e de ditadura” com um país onde há “respeito pela dignidade do trabalho, pelos sindicatos e pela democracia pluralista”.

Deus, Pátria e Família (Clique para ampliar)

A ditadura iniciou em 1926 com o decreto que nomeou interinamente o general Carmona para a presidência da República. Após a dissolução do parlamento, os militares ocuparam todas as principais posições do governo. A ditadura teve o condão de unir todos os partidos que antes disputavam entre si. Eles enviaram uma declaração conjunta às embaixadas dos EUA, Inglaterra e França, informando que não reconheciam o governo. Em resposta, a repressão policial foi acentuada e todos os que assinaram a declaração foram presos em Cabo Verde, sem julgamento.

Todas as revoltas foram sufocadas enquanto os militares se viam às voltas com uma crise econômica. Havia duas correntes: uma representada pelo ministro das finanças, o general Sinel de Cordes, que desejava recorrer a um empréstimo externo e outra, de um professor de finanças da Universidade de Coimbra, Antônio de Oliveira Salazar, que pensava não ser necessário o empréstimo externo para resolver a difícil situação financeira do país. O empréstimo não foi feito em razão de que as condições exigidas eram inaceitáveis – quase as mesmas que a “troika” exigiu e levou atualmente. O resultado final do episódio foi o pedido de demissão de Sinel de Cordes e o convite a Salazar para a pasta das finanças.

O ditador solitário

Salazar impôs austeridade e rigoroso controle de contas. Obteve o equilíbrio das contas de Portugal em 1929. Na imprensa, controlada pela censura, Salazar era chamado de “o salvador da pátria”. O prestígio ganho junto ao setor monárquico e católico, além da propaganda, consolidavam pouco a pouco a posição de Salazar, abrindo espeço para sua ascensão. Ele se tornou o esteio dos militares, que o consultavam para tudo, principalmente para as reformas ministeriais. Enquanto a oposição era dizimada, Salazar recusava o retorno ao parlamentarismo e à democracia da Primeira República, criando a União Nacional em 1930, preparando a instalação de um regime de partido único.

Em 1932, foi discutida uma nova Constituição que seria aprovada no ano seguinte. Nela, é criado o Estado Novo, uma ditadura que dizia defender “Deus, a Pátria e a Autoridade”, principalmente a terceira, que depois foi alterada para Família. A ditadura portuguesa foi muitíssimo pessoal e revelava claramente o caráter de seu chefe. Salazar era uma estranha espécie de misantropo que governava um país ao mesmo tempo que amava a solidão e posava de inacessível. Suas palavras são surpreendentes, mesmo para um ditador. “Há várias maneiras de governar e, a minha, exige isolamento… O isolamento muito me ajudou a desempenhar minha tarefa e permitiu-me, no passado como hoje, concentrar-me, ser senhor do meu tempo e dos meus sentimentos, evitar que fosse influenciado ou atingido”. Muito católico, Salazar nunca casou e vivia entre padres. O cardeal de Lisboa, D. Manuel Gonçalves, disse dele: “é um celibatário austero que não bebe, não fuma, não conhece mulheres”, mas, a fim de afastar qualquer inclinação homossexual, ressaltou: “mas ele aprecia a companhia das mulheres e a sua beleza sem, no entanto, deixar de levar uma vida de frade”.

Salazar e Franco: colaboração e frieza

Tal como fazia na vida privada, Salazar criou uma curiosa política e um bordão não menos. Praticava uma política de isolacionismo internacional sob o lema Orgulhosamente sós. Atuava de forma tortuosa. Apoiou Franco na Guerra Civil de 1936, mas manteve com este uma relação fria e desconfiada. Durante a Segunda Guerra Mundial, agarrou-se à neutralidade como se disto dependesse sua vida. Talvez tivesse razão. Próximo ideologicamente do fascismo italiano, Portugal não hostilizou o eixo Roma-Berlim-Tóquio, apesar de ter tornado ilegais os movimentos fascistas, prendendo seus líderes. Comprou armas, mesmo durante a Guerra, tanto na Alemanha quanto da Inglaterra, evitando o confronto e a adesão. Acendendo uma vela para cada um dos lados, Salazar aceitava dar vistos a judeus em trânsito vindos da Alemanha e da França. Também concedeu aos Aliados uma base nos Açores.

O ditador foi homenageado por Fernando Pessoa.

Antonio de Oliveira Salazar

Antonio de Oliveira Salazar.

Três nomes em sequencia regular…
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.

Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.

Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…

Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…

Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.

Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.

Após a Segunda Guerra Mundial, manteve a política do Orgulhosamente sós, mas nem tanto assim, pois Salazar desejava permanecer orgulhosamente só, porém, com suas colônias. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional e a ONU passaram a defender políticas de autodeterminação dos povos em regiões colonizadas. Salazar ignorou o fato, levando o país a sofrer consequências negativas tanto do ponto de vista econômico como culturais.

Charge de 1957, publicada em jornal clandestino

Internamente, a violência da democracia de fachada de Salazar não ficava nada a dever a suas congêneres latino-americanas. O Estado Novo tinha sua polícia política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a qual era antes chamada de PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e depois de DGS (Direção-Geral de Segurança). Em comum, a perseguição e morte aos opositores do regime. O regime autoritário, mas sem violência é uma fantasia que muitos católicos portugueses gostam de manter, pois a Igreja Católica sempre era citada por ele. Até hoje, alguns saudosos de Salazar misturam fascismo e catolicismo.

Em março de 1961, ocorreu uma chacina de colonos civis no norte de Angola. A resposta de Salazar foi uma Guerra Colonial chamada  Para Angola rapidamente e em força. Depois, novas guerras em Guiné e Moçambique, sempre com o propósito de permanecer orgulhosamente só, mas com as províncias ultramarinas sob sua bandeira. As Guerras Coloniais tiveram como consequências milhares de vítimas e forte impacto econômico sobre o país, tendo sido uma das causas da queda do regime.

Salazar foi afastado do governo em 27 de Setembro de 1968, após uma grave queda em casa, o que lhe causou uma trombose cerebral. Seu fim foi digno de opereta: naquele 1968, o então Presidente da República, Américo Tomás, chamou Marcello Caetano para substitui-lo. O curioso é que, até morrer, em 1970, Salazar continuou a receber “visitas oficiais” como se fosse ainda o presidente do país, nunca manifestando sequer a suspeita de que já o não era, no que não foi contrariado.

Negociações para a rendição da PIDE/DGS, no dia 26 de Abril de 1974. Fotografia de Joaquim Lobo.

O longo inferno foi finalizado pelo 25 de Abril, tal como o conhecem os portugueses. O Movimento das Forças Armadas (MFA) foi composto por oficiais intermediários da hierarquia militar, na sua maioria, eram capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram apoiados por oficiais e estudantes universitários. Este movimento nasceu por volta de 1973, baseado inicialmente em reivindicações corporativistas das forças armadas envolvidas nas guerras coloniais, acabando por se estender a protestos contra a ditadura. Sem grande apoio e com a adesão em massa da população à Revolução dos Cravos, a resistência do regime foi praticamente inexistente, registrando-se apenas cinco mortos em Lisboa pelas balas da famigerada DGS.

Após o 25 de abril, foi criada a Junta de Salvação Nacional, responsável pela nomeação do presidente da República. Assim, em 15 de Maio de 1974, o general António de Spínola foi nomeado presidente.

Estabilizada a conjuntura política, prosseguiram os trabalhos da Assembleia Constituinte para a nova constituição democrática, que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976, o mesmo dia das primeiras eleições legislativas da nova República.

Tanto Mar, de Chico Buarque

Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Grândola, Vila Morena:

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O Último Minuto, de Marcelo Backes (Fim)

o-ultimo-minuto_marcelo-backesComo escrevi na primeira parte deste texto, a voz de Yannick Nasyniak ou João, O Vermelho, não é única no livro de Backes. Concordo, é ele quem fala por quase todo o romance através de um copioso discurso livre indireto, mas há importantes interrupções de parte do narrador-interlocutor. Ou seja, o livro não é um longo monólogo que se estende por 224 páginas, como li em algum lugar. Uma das qualidades do livro está no contraponto, no diálogo, no reflexo das palavras de João-Yannick sobre o seminarista. Como já escrevi, o livro chega a apresentar uma inversão de posições, dando espaço ao monólogo do seminarista! Outro fato que me causou contrariedade foi a redução feita por alguns jornais, como se o livro apenas argumentasse sobre o futebol como metáfora da vida. Ok, é uma das teses presentes no livro, mas é apenas uma delas. O Último Minuto é bem mais rico. Fiquei feliz ao ler meu amigo Carlos André Moreira na ZH de hoje. Ele caracterizou bem o livro de Backes, passando o centro do romance para a paternidade de Yannick.

De forma muito curiosa, o evento de hoje no StudioClio propõe o tema “A Voz da Prisão” em autores como Nabokov, Sabato, Dostoiévski e Graciliano. É uma boa ideia estabelecer diferenças entre estes ícones e o livro que estaremos comentando. Nestes livros e em O Último Minuto, a posição que cada narrador ocupa é diferente. É lamentável que eu tenha estudado tão pouco o assunto. Vamos, um tanto esquematicamente, ao que lembro destes livros narrados por prisioneiros. Read More

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O silêncio da intelectualidade gaúcha

Só a indiferença é livre. O que tem caráter distintivo nunca é livre; traz a marca do próprio selo; é condicionado e comprometido.

THOMAS MANN

Ironicamente, no dia de Finados, o RS Urgente publicou um post sobre o silêncio da intelectualidade gaúcha. O post era mais do que simples, apenas reproduzia um comentário do leitor Franklin Cunha:

O que mais nos impressiona nessa cortina de silêncio em torno das denúncias de crimes do atual governo, é a absoluta ausência de manifestações da intelectualidade gaúcha. Descrevem o pôr-do-sol, os ipês floridos, a feira do livro, as festas gauchescas, preocupam-se com os monumentos públicos, como se todas essas “monstruosidades” geradas no Piratini, não existissem. Não podemos acreditar que todos eles foram cooptados pelas benesses do poder.

Sim, simples, mas provocativo na medida certa e mais do que suficiente para gerar um bom debate. Quero começar definindo o que entendo por intelectualidade. São os moços dos cadernos de cultura, são as pequenas celebridades que gostam de tentar reflexões inteligentes sobre costumes, política internacional, escritores, arte em geral, sociologia, antropologia e o diabo. São aqueles que acorrem aos jornais para dar sua interpretação dos fatos, os que preveem, os oráculos que escrevem hoje para poderem dizer “eu avisei” amanhã. E são os bons escritores, ensaístas e articulistas que produzem essa coisa intangível que chamamos cultura ou conhecimento. Ou seja, minha concepção da palavra é pré-Gramsci e pré-antiga.

Há tais pessoas por aqui e em todo lugar.

Em primeiro lugar, esta intelectualidade parece traumatizada com um fato que começou em meados do século XX e que hoje mostra cada vez mais seus resultados: a pouca importância que os intelectuais passaram a ter. Em tempos nem tão remotos, escritores e artistas eram convidados pelo poder para participarem não apenas de regabofes mas para grudarem suas grifes neles. Apenas para seguir a senda de palavras iniciadas por “gr”, diria que Graham Greene, por exemplo, era habitué de vários primeiros-ministros ingleses e presidentes americanos quando o encontro era internacional. Greene foi uma das últimas celebridades do gênero “escritor famoso que trata de política internacional em seus livros”. Lembro que, certa vez, pediu para ser apresentado a Augusto Pinochet apenas para ter o prazer de negar-lhe um cumprimento. Foi o que fez. Só que hoje há um problema: a literatura fracassou e não cria mais celebridades, sejam planetárias, sejam no microcosmo brasileiro. A importância do escritor e do artista diminuiu.

Em segundo lugar, Swift era um gênio e sempre teve razão ao chamar de Laputa a terra dos intelectuais em Gulliver. Em geral, sempre estivemos — e já que as ofensas serão duras, passo a dar a cara ao tapa –- à venda. Greene não, porém muitos outros sim. Olhem para o Brasil. E olhem para o habitual. Adoro Drummond, mas o que ele fazia com Capanema durante o Estado Novo? Ah, compreendo, eram amigos de infância… Deixo a palavra ao poeta Fernando Monteiro, que não habita Laputa.

Nossos parnasianos, condoreiros, simbolistas,
modernistas, praxistas e taxidermistas
da poesia do pantanal depois da lama seca
descobrem de novo o Brasil de Cabral,
trabalham para Capanema e não faz mal,
tomam remédio para dor de cabeça
e vão dormir em Pasárgada,
onde são mais que amigos do rei
de espadas dos jogos de cartas
marcadas da carreira literária
do acadêmico Getúlio Vargas

Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Todos eles aspiram ao céu de palmas abertas
soltando as batatas quentes na corrida
dos mil metros para ocupar ministérios,
secretarias da cultura e bibliotecas nacionais
reservadas para os insistentes em Poesia Sempre
(palmas para eles com uma só mão no ar rarefeito
da imortalidade a cacete, chá e simpatia
de casca dos bóias-quentes).

(Trecho do poema Vi uma foto de Anna Akhmátova)

Não é um exagero. É a razão. Estamos sempre prontos a aderir, mesmo que seja a um Getúlio Vargas. Exemplos há aos montes. Lembram quem foi o autor de Zélia, uma paixão? Pois é, foi o incensado autor de Encontro Marcado, Fernando Sabino.

Mas voltemos ao Rio Grande. O que quero dizer é que a LIC (Lei de Incentivo à Cultura) tornaram os autores ainda mais dependentes e putos. Quem falará mal de Yeda Crusius se sabe que ela toma chás com bolachas acompanhada da Secretária da Cultura Mônica Leal? Tal fato serve de pretexto para quem já não tem lá muita disposição para tratar de temas espinhosos. Não posso protestar porque meu projeto está nas mãos deles… Aqui temos um raro e débil protesto onde a governadora é tratada com um respeito, digamos, patético.

Secretária Mônica Leal (acima, à direita)

Em terceiro lugar, há a pequena grande imprensa gaúcha. Não há nenhuma disposição nela para abraçar vozes dissonantes. Obviamente, tal fato não libera nossos gloriosos produtores de cultura de seus compromissos éticos, mas afirmo que a maioria deles conta com a divulgação de seus trabalhos por nosso órgão maior, nem que este muitas vezes acabe apontando para seus rabos. A justificativa aqui é a de que, Pô, fiz uma catilinária contra a situação, mas eles jogaram no lixo… O onipresente e sorridente Luís Augusto Fischer, que trabalhou Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre durante a gestão de Tarso Genro, parece estar desobrigado de qualquer comentário sobre o Estado e lembro apenas de ter lido uns muxoxos quando vimos o acervo de Erico Verissimo seguir para o Rio de Janeiro.

Nada justifica o silêncio. A única exceção que vejo é vergonhosa para a esquerda gaúcha. Trata-se do professor e escritor Juremir Machado da Silva. Juremir é uma das pessoas mais afastadas da esquerda que conheço, porém é o único ter coragem de ironizar o estado das coisas. O resto fica tipo assim, entende?

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