50 livros para morrer antes de ler

50 livros para morrer antes de ler

Publicado em 26 de janeiro de 2013 no Sul21

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Mentira. São 45 livros porque 5 receberam dois votos.

Inspirado por Car­los Wil­li­an Lei­te, do Jornal Opção, de Goiânia, o Sul21 convidou dez romancistas, poetas, ensaístas ou críticos literários para nomearem as cinco piores obras de autores brasileiros que conhecem. Obviamente, a escolha reflete o gosto pessoal e o conhecimento de cada um dos dez “jurados” e não uma condenação irremediável. Trata-se de uma anti-lista, contrária às listas habituais de melhores.

Ampliando a ideia inicial, pedimos que, a cada voto, fosse acrescentada de uma a cinco linhas justificando a escolha. Por iniciativa nossa, informamos aos votantes que não divulgaríamos seus nomes, postura que foi rechaçada por dois deles, Fernando Monteiro e Ronald Augusto, que têm suas iniciais apontadas logo após seus votos. Os outros “jurados” apenas aceitaram as regras sem comentá-las. Deste modo, não podem receber a imputação de terem planejado agir sob o manto do anonimato…

(Carlos André Moreira também pediu que seus votos fossem indicados. Justificativa abaixo (*)).

Por falar em anonimato, o autor desta introdução não votou.

Assim, acrescentamos as iniciais C.A.M. aos respectivos votos. A seguir, então, em ordem alfabética por título, a lista dos 50 livros para morrer antes de ler:

Agosto, de Rubem Fonseca

Tive de ler por obrigação e acabei tomando ojeriza pelo personagem principal do livro: a azia do protagonista.

A Casa do Poeta Trágico, de Carlos Heitor Cony

Romance artificialmente construído, com pretensões de “clima internacional” que termina por criar situações ridículas como a do casal de amantes, personagens centrais, que passam uma noite inteira trepando nas ruínas de Pompeia porque se distraíram (trepando, já) e não perceberam que o sítio arqueológico havia sido aferrolhado, de acordo com o horário de fechamento dos portões (17h). Tudo bem. O homem e a mulher não se incomodam… Sem colchão, sem lençol, sem travesseiro, sem mais nada, continuam a trepar e só vão sair das ruínas quando os funcionários reabrem Pompeia para os turistas, às 10h da manhã seguinte. É mole? Não. Teria que ser muito dura (a noite). Por cenas como essa, melhor morrer antes de ler. (F.M.)

A Casa das Sete Mulheres, de Letícia Wierzchowski

— Essa pérola do cancioneiro gauchesco tem uma das mais mal escritas primeiras páginas da história da literatura universal. O resto do livro vai pelo mesmo caminho.

— Contar a Guerra dos Farrapos a partir das mulheres próximas ao general Bento Gonçalves não é ideia ruim. Mas é tudo canhestro no livro: a narrativa, o enredo, a construção dos personagens. Uma leitura que dura para sempre, no mau sentido.

A Divina Pastora, de Caldre e Fião

Achado um único exemplar num sebo de Montevidéu pelo livreiro Monquelat de Pelotas. Antes nunca o encontrasse!

A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães

Conto de fadas de superação do interdito social. História irrealista que pretendia demonstrar que as tendências (pseudo) democráticas dependiam apenas da boa vontade cristã das pessoas. Daí a Globo ter exibido a novela que tanto agradou a classe média, sempre politicamente equivocada e alienada.

A Guerrilheira, de Índio Vargas

Embora Índio Vargas seja autor de um dos livros mais importantes sobre a ditadura militar, “Guerra é Guerra, dizia o Torturador”, este aqui parece um esboço que alguém mandou inadvertidamente para a gráfica e foi publicado sem passar por revisão. Falta foco, estrutura, cuidado com a prosa, os episódios desmentem uns aos outros, repetem-se, quando não se perdem em digressões que não acrescentam nada, nem tensão. (C.A.M.)

A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo

— Bobo. A fantasia não dá nem uma novela das seis, o texto é primário. É um crime fazer os adolescentes lerem essa chatice dizendo que se trata de literatura, pior, de um clássico. Esse livro só tem importância dentro da história da literatura brasileira, coisa que o professor pode resumir numa linha e poupar os alunos.

— Clássico absoluto e abominado nas salas de aula brasileiras, mas permanece sendo lido, vendendo e com lugar cativo na alma de cada mau professor deste grande país!

A Quarta Parte do Mundo, de Clovis Bulcão

A orelha promete um “épico eletrizante”, “baseado em fatos reais” (a malfadada passagem de Villegagnon pelo Brasil). Na verdade, “eletrizantes” são as imagens, algumas das mais feias da história da literatura brasileira, como essa: “Uma robusta garça fora ferida e grunhira como um porco”. O autor criou um mundo perigoso, em que os personagens sentem apenas emoções-clichê, como uma “mistura de pavor e ódio”, e em que podem ser “tragados por piratas ou pelos abismos do mar” (tentemos visualizar isso…). Definitivamente não recomendo.

A Suavidade do Vento, de Cristóvão Tezza

Romance fraquíssimo, que nada tem a ver com a sutileza de um Antonioni, em certa tarde, olhando para árvores descabeladamente agitadas: “Como é fotogênico o vento!”, como registrou o mestre italiano da (verdadeira) suavidade na sua “Trilogia da Incomunicabilidade”, bem longe do realismo rastaquera do Tezza desse livro. (F.M.)

As Parceiras, de Lya Luft

Psicologismo mediano misturado com literatura convencional que tenta disfarçar, sem sucesso, um estilo a meio caminho do entretenimento em tom pastel e da autoajuda intimista. Narrativa para lobas fleumáticas. (R.A.)

Bernarda Soledade, a Tigre do Sertão, de Raimundo Carrero

Muito ruim. Influenciado por Lorca (?) até no título, além das situações de “dramaticidade” de estilo juvenil em torno de mulheres confinadas à maneira exatamente de “A Casa de Bernarda Alba” (sem ter, entretanto, conseguido imitar a qualidade do inspirado poeta andaluz). Em tempo: não seria “tigresa”?… (F.M.)

Cai a noite sobre Palomas, de Juremir Machado da Silva

Há uma diferença bastante grande entre construir personagens inteligentes e colocar frases de efeito e nomes de grandes pensadores em suas bocas. Talvez o Juremir não soubesse disso ao escrever o seu primeiro livro. Triste é perceber que segue sem sabê-lo até hoje.

Canto da noite, de Augusto Frederico Schmidt

Para ser justo com o falecido, eu poderia ter mencionado a obra poética inteira como exemplo da pior poesia feita no Brasil. No gênero, o autor talvez tenha sido a maior impostura de todos os tempos. Por ser endinheirado e porque publicava os grandes poetas de seu tempo, era apontado, por eles, como um grande poeta. (R.A.)

Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre

Não é nem romance nem obra sociológica. Até nos faz pensar que no Brasil se praticou e se pratica a democracia racial , via miscigenação e que na casa grande havia senhores bons e na senzala escravos submissos. Cáspite !!!

Contra o Brasil, de Diogo Mainardi

— A história de um picareta que odeia o Brasil e passa o tempo todo citando frases de viajantes e pensadores que desancaram o País e seus habitantes. Acho que ninguém vai querer ler uma autobiografia do Diogo Mainardi, mas por precaução, foi para a lista.

— Mainardi não tem muita preocupação com ideias, propostas, alternativas. Sua intenção é de apenas bater, sua arte é a da objeção. Um livro cuja intenção é a de vender o complexo de vira-latas do autor. Não obtém o riso, não informa, não nada. Merece presença aqui.

Corpo Presente, de João Paulo Cuenca

É um mistério o prestígio que Cuenca desfruta como “autor da nova geração”, já que sua obra parece reunir justamente os piores maneirismos da sua geração: abuso de ironia, pretensão acima da qualidade de seu texto, investimento em fórmulas que já não convencem. Este seu primeiro romance é um bom exemplo: um “romance urbano” com um “protagonista deslocado”, perdido em “questões de sobrevivência e sexo”, redigido em uma “escrita cinematográfica”, que na verdade é uma prosa que se pretende densa e nebulosa, mas apenas abusa de orações coordenadas sem parecer que sabe onde quer chegar. Puxa, como ninguém pensou nisso antes? (C.A.M.)

Dois Irmãos, de Milton Hatoum

Já houve um Jorge Amado, e foi suficiente.

Estorvo, de Chico Buarque

— O que dizer quando o título diz tudo? Chico, como escritor, costuma, na minha modesta opinião, emular outros escritores, com resultados sempre inferiores aos do original.

— A prova impressa de que a genialidade em determinado campo artístico não implica em qualquer tipo de brilhantismo nos demais. Compositor de raro talento, Chico é um escritor medíocre, infelizmente. Acho que nem fã de carteirinha aguenta esse árido calhamaço de coisa alguma.

Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho

Outro livro enorme, uma biografia excessivamente ocupada do varejo, do trivial-mínimo, da vida pessoal de Fernando Pessoa, que o autor jura ter visto nas ruas de Lisboa (isto é, a alma penada do poeta), talvez sinalizando que ele, Cavalcanti Filho, escrevesse sobre quantas vezes, por exemplo, um bardo alfacinha é capaz de ir ao banheiro, num único dia, depois de ter repetido o fundo prato da caldeirada do “Martinho das Arcadas”… (F.M.)

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Charles Kiefer, o incendiário tranquilo

Charles Kiefer diz que gostaria de ser um homem calmo como foi seu avô. Porém, após conhecê-lo, fica difícil imaginar alguém mais mais tranquilo que o escritor. Kiefer recebeu o Sul21 em seu gabinete na PUCRS e a impressão que tivemos é a de que poderíamos ter conversado muito mais do que a uma hora e quarenta minutos que está resumida a seguir.

Nascido em Três de Maio, no noroeste do Rio Grande do Sul, Kiefer tem 30 livros publicados, foi oito vezes finalista do Prêmio Jabuti – ganhou três -, dá aulas na universidade, comanda oficinas literárias, fundou uma associação de incentivo à leitura e guarda na gaveta mais de um livro quase pronto para publicação. Toda essa atividade parece natural ao sorridente professor.

Suas notas biográficas apontam que nasceu em 1958 e que estreou na ficção em 1982, com Caminhando na chuva, novela que já está na 20ª edição e vendeu 100 mil exemplares. Sairá uma nova edição em 2012, comemorativa aos 30 anos de lançamento do livro, pela editora Leya. Porém, logo abaixo saberemos que Caminhando é seu quarto livro e que os anteriores são comprados e queimados pelo próprio autor.

“A literatura não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Há algumas décadas atrás, o escritor era considerado o reflexo ou uma espécie de reserva moral da sociedade, uma figura importante, ouvida sobre vários assuntos de sua época. Hoje ele foi deslocado deste papel. Qual é, atualmente, o papel do escritor na sociedade?

Charles Kiefer – Boa pergunta, hoje dei uma aula sobre isso. Discutimos sobre o realismo e a função social do escritor. Mas eu começaria a responder falando sobre um livro que eu adoro, chamado Era uma Vez a Literatura, de José Hildebrando Dacanal, no qual ele diz que numa sociedade iletrada, onde a base social são analfabetos ou semiletrados, o escritor vira gigante, pois ele domina um código oculto. Então, numa sociedade de baixo nível cultural, a literatura toma um papel fundamental, assim como nas sociedades recém-formadas. Quando tu não tens um conceito de nação, a literatura é quem faz o papel de construtora da identidade nacional. No Conesul, se não existisse o romance de Ricardo Güiraldes, Don Segundo Sombra, essa imagem do gaúcho que temos hoje não existiria. A literatura está por trás disso. Ela é quem trouxe a imagem que chamamos, na teoria, de mitopoética, que acaba reproduzida pela população.

Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio.

Sul21 – Isso numa sociedade rebaixada.

Charles Kiefer – Sim, daí vem um negócio chamado democracia… Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio. Por exemplo, aqui na PUCRS, 40% dos meus alunos vêm do Prouni, são bolsistas e alunos maravilhosos, pois sabem que aquela é a única chance deles, e a agarram com tudo. Enfim, o que está acontecendo é que nós estamos entrando para o que antigamente a gente chamava de concerto das nações. Antes a gente tocava um bumbo lá no fundo e de forma desafinada, agora somos primeiro violino, dando tom para o resto da orquestra. A literatura ainda tem um espaço num contexto destes? Não. E sim, ao mesmo tempo. Ela não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas. Ela conserva e reproduz beleza artística, assim como o cinema, o teatro, a música, a pintura. Aquela coisa do “doutô” da literatura, que é letrado e superior, acabou, não há mais distinção. Agora nós temos um papel de ator coadjuvante. E a outra coisa que aconteceu foi a internet. O conhecimento, que antes era um feudo, está distribuído, o poder está distribuído. Com a internet cada vez mais barata, tu escreves o teu texto, tu fazes o teu jornal. Essa disseminação da informação, essa democratização, tem consequências ainda desconhecidas, muito interessantes, como as que houve nos países do norte da África e na Espanha.

“Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Vários ensaístas reclamam que nas últimas décadas houve uma decadência geral na qualidade artística, tu concordas?

Charles Kiefer – Isso é uma baita bobagem. Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos. Quando a gente tiver distanciamento crítico a gente vai ver a qualidade de muitas coisas. Talvez estejamos vivendo uma nova Renascença. Leio textos fantásticos até em sala de aula.

Sul21 – E os grandes temas estão mantidos?

Charles Kiefer – Amor, dinheiro, poder, guerra e paz?

Sul21 – Eu diria morte, também, e deus.

Charles Kiefer – Sim, sim, mas eu gosto de colocar as coisas em duplas dialéticas, amor e ódio, vida e morte, guerra e paz, fé e ciência. Acho que os grandes temas estão presentes desde o início do tempos, senão não interessa. Apenas mudou a abordagem.

Sul21 – E é curioso como a literatura dialoga com o restante das artes. Se tu melhoras o nível da leitura, melhoras todo o resto em termos culturais, a música, o cinema, o debate político, a visão de mundo…

Charles Kiefer –– … até o cabelo, a roupa, a arte muda totalmente uma pessoa.

Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno.

Sul21 — Voltando à questão dos grandes temas, a literatura busca novos temas, ou ela usa mesmos do passado?

Charles Kiefer – Eu escrevi um livro todo sobre isso, A Poética do Conto: de Poe a Borges – um passeio pelo gênero. O último cara na civilização ocidental que acrescentou coisas novas ao imaginário popular foi Edgar Allan Poe. Isso em 1840, 1849… naquela década. Olha só o que o Poe inventou literariamente: ele inventou o romance policial, o alienígena, as viagens espaciais, inventou também o romance psicológico, dedutivo. A única coisa que ele não inventou é toda essa comunicação de internet. Ele quase chegou a criar isso, num conto dele, de um jogador de xadrez automático.

Sul21 – O Autômato Jogador de Xadrez.

Charles Kiefer – Exato! Ali já é um computador. Ele poderia ter ido adiante e inventando algum sistema eletrônico que resolvia o negócio. Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno. Entretanto ele não é um grande escritor, as histórias dele são mecânicas, os personagens são maníacos, muito neuróticos, o amor é pouco natural, não há nele seres humanos verdadeiros, há obsessões, ele abriu o caminho para Stephen King, Lovecraft.

“Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 Como funciona o projeto Associação Jovem Leitor?

Charles Kiefer – Nós temos muitos escritores, está faltando é leitores. A AJL é uma entidade civil, pública. Eu e os meus alunos fazemos projetos de leitura, criamos bibliotecas e doamos livros para crianças e jovens das comunidades menos aquinhoadas. Temos vários tipos de projetos para atender várias necessidades. Aproveitei o momento em que era patrono da Feira do Livro para dar maior visibilidade ao projeto.

Sul21 – Como foi montado?

Charles Kiefer – Eu fui para os Estados Unidos há anos atrás e vi as tais Gideon Bibles, umas bibliazinhas pequenas onde estava escrito take it, coloquei no bolso e pensei “que coisa legal”. E dentro estava escrito que aquilo era resultado da decisão de alguns ricos empresários cristãos que distribuíam bíblias de graça. E pensei “por que não fazer isso com literatura?”. Eu estava sempre com essa ideia de ficar um dia rico, e quando estava hospitalizado – passei dezessete dias sem nada para fazer -, fiquei pensando, lendo, e constatei que grande parte do PIB do Estado passava pela minha sala de aula nos ensinos particulares. Há gente riquíssima estudando e pensei “por que não reunir todo esse pessoal para fazer algo? Vamos fazer uma associação”. E então mandei um e-mail para os meus alunos e a coisa explodiu. Agora temos CGC, eu fui o primeiro presidente, agora é o Ayala Aguiar. Trabalhamos em parceria com a Câmara Riograndense do Livro. Há muita gente que conseguiu vencer e ganhar dinheiro na vida sem grande instrução. Há muitos alunos de mais idade e bom poder aquisitivo em oficinas minhas, eles notam que estão atrás do resto dos alunos e me pedem indicações de livros, de coisas para preencherem estas lacunas e vencer o atraso. Eles conseguem e sabem o quanto é importante o complemento cultural.

Sul21 – Teu primeiro livro foi escrito aos 17 anos. Soube que tu desejas jogar fora todos os exemplares, queimar se possível…

Charles Kiefer – Verdade, eu compro nas livrarias e queimo. E é pior, porque são três livros, na verdade: O Lírio do Vale, Vozes Negras e Os Caminhantes Malditos. Me arrependo de tê-los publicado. Mas é lógico que não posso tirar o primeiro degrau da escada. Eu era jovem, imaturo, o peso da emoção naqueles livros era infinitamente maior que o da razão. Com essa idade você é só sentimento. E, enfim, depois veio Caminhando na Chuva, que é o primeiro livro do escritor, enquanto os outros são livros do adolescente. Ele é na verdade meu quarto livro, mas a própria editora colocou-o como o primeiro.

Sul21 – Caminhando na Chuva é um grande livro.

Charles Kiefer – Com 53 anos eu posso olhar para trás e achar interessante, mas na época eu nem percebia. (risos) Quando eu tinha 22 anos, morava ali na Avenida Pará, em Porto Alegre, em cima de um açougue, num lugar horrível, e daí eu pensei que minha adolescência estava acabando e que nunca mais teria aqueles sentimentos e emoções. Eu estava vendo novas coisas surgindo em mim, sabia que estava mudando; foi então que decidi, é agora ou nunca, ou registro isto ou nunca mais vou ter a oportunidade. Sentei e escrevi o livro em 17 dias. Quando eu comecei a escrever, queria fazer um memorial de adolescente, sob o ponto de vista de alguém que está saindo dessa fase mas ainda está nela. Por isso tem aquele ar de autenticidade, eu consegui o equilíbrio. O Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein, “depois tu só escreveste porcaria”. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar, apesar de ter feito coisas meio loucas como O Escorpião da Sexta-feira.

“Vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Onde tu colocas a questão da razão e da emoção no excelente Quem Faz Gemer a Terra?

Charles Kiefer – Ah, esse livro foi muito repensado, eu passei uns seis meses pensando “de que ângulo vou partir para contar essa história?”. Eu vi aquela briga do Olívio (Dutra, na época prefeito de Porto Alegre) enfrentando baionetas, eu vi tudo ao vivo, e quando cheguei em casa a imprensa já estava transformando todos em marginais, era tudo uma mexicanada zapatista e eu me enfureci, um furor santo, e decidi escrever o livro. O fato de eu ser de Três de Maio também me feriu, pois vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental. Então, quando eu fiz o recorte, vi que tinha o problema do foco narrativo e pensei muito. Até que chegou o momento em que concluí que tinha que contar do ponto de vista do colono. E eu precisava expressar isso numa linguagem ou do colono ou minha, mas escolhi um meio termo, pois ele está preso, o fato aconteceu cinco anos antes e ele recebeu muitas visitas, até de jornalistas, e contou tanto a história, tantas vezes, que o discurso já está polido. Foi o modelo estrutural ideológico que desenvolvi para conseguir equilibrar a visão do personagem com a minha sem errar muito.

Foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. Já eram ladrões de terras e viraram monstros assassinos.

Sul21 – Lembro dos jornais no dia seguinte. A morte de um brigadiano foi tratada como “massacre”. Era um caso difícil, havia um corpo e os jornais apareciam cheios de argumentos para não dar nenhuma dimensão humana ao sofrimento dos colonos. Parecia que o mundo burguês ia acabar pelas mãos do MST.

Charles Kiefer – O acontecimento foi grave, claro. Mas foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. A imprensa já os tinha transformado em ladrões de terra. Viraram monstros assassinos. Indignado com isso, escrevi o livro. Até hoje essa pecha segue associada ao MST. O fato é que eles enfrentam o setor mais conservador da sociedade, então parece adequado qualificá-los como sua antítese, o que não é verdade. O livro é um relato muito autêntico.

Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra.

Sul21 – E o colono veio morar na Avenida Pará… Tu eras um menino pobre de Três de Maio que ouvia Bach, Mozart e Beethoven.

Charles Kiefer – Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra. É complicado… Eu era pobre, estudava numa escola de crianças ricas, pois minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos para mim. Eu não tinha dinheiro para comprar sequer comida no recreio, levava um pãozinho de milho com melado que abria para comer. Era a piada da escola. Eu tinha que ir comer bem afastado num campo de futebol para ficar em paz.

“Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz ‘Não vai lá porque ele está lendo'” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Bullying?

Charles Kiefer – Eu acho que sim, eles implicavam com um blusão de lã que eu tinha, eles pegavam no meu pé, eu coloco isso no Caminhando na Chuva. Era um blusão que eu tinha ganhado da minha mãe e usava ano após ano, era o que ela tinha conseguido me dar, enfim. Mas nada disso me influenciou muito, o que realmente tem peso são meus avós, meu avô paterno era um grande leitor e ainda era músico. Lembro de quando era criança, eu sentado no colo do meu avô, ele contando as histórias do Charles De Coster, como As Aventuras de Till Eulenspiegel. Esse autor ninguém conhecia aqui no Brasil. Meu avô era violinista também, chegou a tocar numa orquestra em Cachoeira do Sul, ele e um irmão dele. Eles casaram com duas mulheres irmãs e foram viver no mesmo terreno, mas as mulheres brigaram, e um dia o irmão do meu avô, de madrugada, bateu com o facão na porta gritando “vem pra fora se tu é homem”. Meu avô, que era muito calmo – era o homem que eu gostaria de ser e não sou – , me contou que, se pegasse o facão e saísse, seria um morto ou um assassino. Então ele não saiu, mas fez as trouxas dele para ir embora para sempre com a mulher. Naquela madrugada, estava saindo um comboio de carroções, como no faroeste, de pessoas indo para a serra. Ele já tinha sido convidado para ir mas não aceitou, daí mudou de ideia e colocou a mulher, os dois filhos, e foi embora, durante dezoito dias no meio do mato até chegar em Três de Maio. Havia três localidades, uma perto da outra – Consolata, Vista Alegre e Caravaggio –, formadas de minifúndios. Mas, enfim, a influência mitopoética que mais me influenciou foi quando eu descobri, numa análise em divã, a imagem do meu bisavô. Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz “Não vai lá porque ele está lendo”. Aquilo era um misto de sentimentos, de ciúmes do livro, da magia daquele negócio. Ele tinha aquela caixinha mágica, eu ficava esperando que dobrasse aquele monte de papéis, fechasse a caixa, para então ficar livre para ir lá no colo dele. E ele contava, abria a caixinha e mostrava o que estava dentro. Eu lembro disto, do louco desejo de conhecer aquilo, por isso já estava lendo aos três anos. Ele gostava muito do que se chama Bildungsroman.

Pois esse meu bisavô era um assassino. Ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e virou Losekann. Quando chegou aqui viveu a vida do outro.

Sul21 – O romance de formação de origem alemã.

Charles Kiefer – Sim, ele lia bons livros e é uma figura mítica para mim, ele era de uma leva de alemães que foram para a Rússia, e se deram muito mal por lá, ficaram miseráveis e tiveram que migrar. E bem, há um crime na minha família, que foi o que originou meu primeiro romance que vou ter de reescrever logo. Pois esse meu bisavô era um assassino. Numa viagem de navio, uma mulher que tinha um jovem marido se apaixonou por outro homem, ele. E ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e meu bisavô, que era qualquer coisa, virou Losekann, quando chegou aqui, viveu a vida do outro. Claro, não havia foto nos documentos, ninguém o conhecia, não deve ter sido difícil mudar de identidade.

Sul21 – Que história fantástica.

Charles Kiefer – Eu precisava escrever um romance sobre isso, né? Não podia ignorar. A minha bisavó, quando estava para morrer, livrou-se da angústia chamando toda a família ao pé da cama, e contou para seus filhos que o pai deles era um assassino. Ela até falou o nome real dele mas ninguém anotou, ninguém teve coragem. Eu até procurei, mas ninguém lembrava.

“As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Uma família alemã de sangue quente essa… Mas eu li no teu blog um texto reclamando que teus livros passaram para a Record e tu achaste que ia aumentar muito as vendas, mas não foi o que ocorreu.

Charles Kiefer – É, é uma coisa meio lamurienta mesmo. O ponto principal é o fato de que quem vendia x exemplares por ano, hoje vende muito menos, e isso é para todos. Com a internet, o pessoal lê menos livros, mas veja como são as coisas: eu publiquei aquele ensaio Para ser escritor e em menos de 40 dias o livro esgotou a primeira edição. Já está na 2ª ou 3ª e circula em oito países. Mas ele não é ficção. Há uma estatística da Associação Mundial do Livro que revela que a ficção está caindo 20% ao ano nas últimas duas décadas. Para isso acho que há uma explicação psicanalítica, psicológica. Hoje em dia, as novas mídias já nos suprem completamente a necessidade de ficção. Na internet você vê filmes em poucos cliques, dentre tantas outras coisas. Há milhares de textos, interesses, estímulos. Por que você vai então ler? Além disso, há problemas de distribuição. As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti. Elas tem uma curva de equilíbrio que tem de ser atingida em tantos dias, e se isso não acontece você fica meio de lado. Elas também não ajudam a tua performance pois não fazem reposição. E bem, aumentou geometricamente o número de autores no mercado, e eu até contribuí com isso através de minhas oficinas. Somando-se a isso o problema de distribuição e a internet, a venda vai lá embaixo. Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros. Eu já até fiz uma coisa louca com a Editora Leya. Eu não cobro direito autoral adiantado. Nunca sei se vou morrer ou não, não quero ficar com conta para pagar. Então, depois de três meses eles me apresentam a primeira prestação de contas. É um dinheiro efetivo que entra. Pela Record, eu recebi já por 3 mil exemplares de uma edição e estou em dívida, pois eu só vendi 6 exemplares no último trimestre. O livro, que é de contos, está em débito com eles, vou demorar uns 50 anos para pagar. Meu novo livro está pronto, Dia de Matar Porco, mas eu preciso revisar, fechar bem ele, e falei para minha editora fazer um contrato para daqui dois anos e sem adiantamento.

Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros.

Sul21 – Me diz como foi tua experiência como secretário municipal de Cultura e secretário adjunto?

Charles Kiefer – Não quero falar disso… o que passou passou.

Sul21 – Foi tão ruim?

Charles Kiefer – Foi bem ruim, mas… Aconteceu uma coisa maravilhosa, que foi minha filha Sofia. Acabei me envolvendo de fato com a Marta nessa época porque a política nos ajudou, a gente estava sempre se encontrando. Casamos e tivemos a Sofia. Foi o que de melhor me trouxe a política…. o resto é resto and the rest is silence (risos).

Sul21 – Tu tens três Prêmios Jabutis, né?

Charles Kiefer – Sim, e fui oito vezes finalista. Perdi até para o Chico Buarque…

Sul21 -Tu perdeste para Budapeste ou para Estorvo?

Charles Kiefer – Foi um estorvo na minha vida. (risos) Olha, talvez tu me perguntes sobre o caso Edney x Chico…

“Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – É óbvio.

Charles Kiefer – Ser jurado de prêmio é muito complicado. Eu dou um prêmio, o Prêmio Sofia de Literatura, dou 3 mil reais para o primeiro lugar, e mais 3 mil reais para o primeiro lugar dos alunos. Eu contrato especialistas em literatura para dar um dos prêmios, e os próprios colegas dão o outro. Esse ano aconteceu algo incrível: os especialistas deram seus prêmios e os alunos deram exatamente a mesma coisa, só que na ordem inversa… Isso mostra que cada pessoa lê um livro diferente.

Sul21 – Com quais livros tu ganhaste o Jabuti?

Charles Kiefer –Com o O Pêndulo do Relógio, Um outro Olhar e Antologia Pessoal.

Daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso.

Sul21 –Bem, vamos falar das tuas oficinas, há alunos épicos que estão há 18, 19 anos contigo.

Charles Kiefer –Engraçado né? Isso começou quando eu estava em Iowa, nos Estados Unidos, convidado pelo governo americano para o International Writing Program. Lá, além de frequentar algumas aulas na universidade, a gente fez um grupo de escritores latino-americanos e alguns asiáticos e europeus. Nos reuníamos nas quintas à noite, no salão de festas de nosso prédio, para apresentar textos uns aos outros. A gente contratava uma moça alemã para nos traduzir, o  Marcelo Carneiro da Cunha também traduziu vários contos meus também. Mas olha… eu gastei cerca de 51 mil dólares lá, um dinheiro nada meu, o governo americano pagava todo o transporte e estadia. Quando a gente quisesse viajar era só ligar para Washington – talvez por isso estejam tão mal hoje… E eu ainda trouxe dos EUA um dinheiro suficiente para comprar um apartamentinho ali na Santo Antônio onde eu coloco minhas quinquilharias, é meu escritório. Mas enfim, daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso. Foi na Casa de Cultura Mário Quintana. Daí, no dia que cheguei para a primeira aula, a Simone Schmidt, que era chefe do departamento de literatura da Biblioteca Lucília Minssen, me disse que teríamos que cancelar: tinha apenas três inscritos. Eles não poderiam me pagar o cachê. Então eu decidi fazer de graça para respeitar o trio. Se Mozart fez concerto para apenas um em Paris, por que o Charles Kiefer não daria aula para três? Hoje eu tenho sete turmas particulares, dou aula aqui de noite (na PUCRS), de manhã na Palavraria, e tenho 1400 pessoas em lista de espera. Tem gente há oito anos esperando uma vaga. Eu desmanchei os dois grupos de sábado pois vou dar aula aqui também, e ali estava o Reginaldo Pujol Filho, que participava há 17 anos.

Sul21 – Eu sou um cético em relação às oficinas…

Charles Kiefer – Como o Dacanal…

Sul21 – Ele tem um livro contra as oficinas. Quais seriam os teus argumentos a favor então?

Charles Kiefer – Uma vez, um professor que me entrevistava fez uma pergunta mais ou menos assim. Daí eu brinquei com ele e disse que todo o ovo nasce para ser galo ou galinha, mas se o ovo não for galado não vai ser nada além de um ovo. Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura. Bem, eu estou participando da equipe que está montando o Curso de Mestrado e Doutorado de Escrita Criativa. Pela primeira vez na América Latina haverá um curso assim, com cadeiras específicas, de estudo de cinema, teatro, literatura, poesia. Olha, é um curso integral, fascinante.

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