Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Um pouco da vida de Johann Sebastian Bach

Para falar de Bach, talvez devamos conhecer um pouco do homem e do ambiente em que viveu. Lembro que Franz Rueb, em seu livro 48 variações sobre Bach, explica o que era a educação escolar no tempo em que Bach era menino. Era algo em torno de 5 horas por dia. Em média, uma hora de matemática e ciências, outra hora para aprender alemão e as restantes 3 horas eram de religião e de cantar música religiosa. Também diz que os meninos eram perigosos à saída da escola. Formavam grupos para cometer pequenos roubos e às vezes perseguiam alguém com pedras nas mãos.

De qualquer modo, a educação terminava quando a família decidia e o filho via de regra aprendia a profissão do pai ou de um parente que admirasse. Claro, os Bach era uma família de músicos, como falarei adiante. E as universidades eram quase impossíveis para quem vivia nas pequenas cidades e principados.

A Alemanha do tempo de Bach não tinha nada a ver com a atual, ela sequer existia. Dividida em pequenos Estados soberanos, dominada majoritariamente pelo luteranismo, cujo impacto na vida cotidiana era fortíssimo, a Alemanha era formada por cortes soberanas. Cada pequeno príncipe, duque ou margrave era senhor em suas terras. A unidade alemã ainda não tinha começado. Cada principado possuía leis e costumes próprios — e, no mais das vezes, uma religião. Eu disse uma. A religião do príncipe (catolicismo, luteranismo ou calvinismo) era a dos seus súditos.

Cada um dos príncipes germânicos tinha seu Kapellmeister, seus cantores e seus instrumentistas, e algumas daquelas cortes tomaram-se centros de música de certo relevo. O que era um Kapellmeister ou Mestre de Capela? “Mestre de capela” é a pessoa que, entre outras obrigações, deve ser responsável pela música de uma igreja. Bach viveu em duas cortes onde foi Kapellmeister: a de Weimar e a de Koethen. A vida nessas cidades pequenas pautava-se pela seriedade, austeridade e gravidade provindas daquela religiosidade que permeava toda a sociedade e regulava a vida de cada indivíduo.

No entanto, na primeira metade do século XVIII, surgiu um elemento novo, o Iluminismo. Um movimento intelectual, em parte sob influência francesa, esboçou-se no interior da sociedade burguesa das cidades alemãs e reagiu contra a tradição luterana e suas estruturas estabelecidas.

Foram 4 as principais forças sociais atuantes na vida e na obra de Bach: as Cortes dos principados, a burguesia urbana, as paróquias luteranas e o Iluminismo. Ou seja, Bach esteve enraizado na sociedade das pequenas cidades alemãs, teve laços que o prendiam à religião luterana, tinha a tentação da vida na corte — da arte sacra e profana — e a cultura Iluminista.

Porém, antes de Johann Sebastian, há os Bach. Eles foram uma família que, longe de constituírem um obstáculo a sua evolução, serviram-lhe como um trampolim de notável potência.

No final do século XVI, o moleiro Veit Bach tocava cítara enquanto olhava o seu grão sendo moído. Ele foi o primeiro Bach conhecido como músico. Até Johann Sebastian, contam-se 33 homens na família: 27 deles foram músicos — organistas, mestres de capela, músicos municipais, violinistas, compositores. O menino Johann Sebastian só via à sua volta irmãos, tios, primos — e seu pai, naturalmente — ligados simultaneamente à música — como a um ofício sólido — e à igreja luterana.

A família Bach parecia ter laços inquebrantáveis com dois desses polos sociais e culturais — à igreja e à música. Não é difícil concluir o poder exercido por essa base familiar sobre a formação do jovem Johann Sebastian. Ele cedo ficou órfão. A família tomou conta dele e o educou. Arranjaram-lhe um lugar como organista — detalhe: ao largar essa colocação, mais tarde, deixou-a para um de seus primos. Ou seja, um Bach nunca estava só na vida. E foi com uma Bach — uma de suas primas — que Johann Sebastian casou.

Seu caminho estava, de certo modo, traçado desde a infância, e as reviravoltas da existência, que em outras circunstâncias teriam podido deixá-lo atrapalhado e isolado, contaram com essa grande e generosa tribo musical.

Johann Sebastian Bach nasceu em 1685, aquele ano espetacular em que também nasceram Haendel e Scarlatti filho. O pai, Ambrosius Bach, que era violinista e “músico municipal” em Eisenach (1), pequena cidade da Turíngia, ensinou o menino a tocar os instrumentos de corda, ao passo que o tio Johann Christoph, excelente compositor e organista na mesma cidade, iniciava-o no órgão. Ainda bem criança, Johann Sebastian fez parte do coro municipal.

Porém, aos nove anos ele já estava órfão de pai e de mãe. Foi seu irmão mais velho, organista em Ohrdruf, que se encarregou de sustentá-lo, ensinando o menino a tocar cravo e composição. Aos quinze anos, por sua própria iniciativa, Johann Sebastian fez-se admitir na escola de São Miguel de Lüneburg (2), onde eram acolhidos jovens pobres com alguma formação musical. Em troca de cantar na igreja, ele recebeu ali uma a educação que provavelmente não receberia em outro lugar, com aulas de retórica, latim, grego, lógica, teologia e, naturalmente, mais música. Lüneburg era uma cidade bem diferente das que Bach havia morado anteriormente: era animada e possuía grande influência da cultura francesa, fosse na música ou na culinária. Talvez seja por isso que Bach decidiu estabelecer-se ali por mais tempo. Trabalhou como cantor em diversos lugares, até que a mudança de voz fez com que buscasse empregos no ramo instrumental. Lá ele aprendeu francês — que era a língua do mundo do espetáculo, da dança, da música de Lully.

Depois, novamente com a ajuda da família Bach, fez sensação em Arnstadt (3), onde havia uma vaga para organista. Foi contratado sem fazer concurso em 1703, com apenas dezoito anos. A adolescência de Johann Sebastian Bach tem qualquer coisa de admirável. Uma espécie de instinto infalível parece movê-lo sem hesitações no sentido de um conhecimento mais amplo. Ele parecia ser dotado de uma maturidade superior à de sua idade, que guiava suas escolhas de maneira precisa. E, lá do fundo da Alemanha, ele descobre a cultura francesa e italiana.

A Itália veio até ele com a música de Frescobaldi. E havia o apelo dos organistas do norte — Georg Bõhm, o velho Reinken e, finalmente, Buxtehude. Para ouvir este último, Bach chegou mesmo a cometer uma estranha fuga: pediu quatro semanas de licença e acabou ausentando-se por quatro meses. Explicando melhor, em outubro de 1705 (20 anos), obteve uma licença de um mês para ir a Lübeck e ouvir o famoso Buxtehude, o mais destacado organista do norte da Alemanha. Bach fez a pé o trajeto de mais de 350 km. Sua visita deve ter sido proveitosa, pois ele não retornou antes de janeiro de 1706 — quatro meses –, e de imediato sua maneira de acompanhar os hinos mudou completamente, o que despertou protestos entre a congregação que, perplexa, estava acostumada a acompanhamentos simples. Este não foi o único dos problemas que Bach enfrentou. Foi censurado pelo consistório pela sua longa ausência e por causa daquelas “escandalosas” liberdades e improvisos ao órgão que confundiam os fiéis. Tendo de acatar as ordens, pouco depois foi censurado por fazer os acompanhamentos demasiado curtos. Além disso, o coro de meninos que ele tinha de reger era tudo, menos competente e dócil, registrando-se vários episódios de confrontos e altercações violentas, incluindo desafios com espada. Logo se tornou claro que ele não mais poderia permanecer em Arnstadt. Aparentemente a derradeira discórdia foi a reprimenda que recebeu por ter acompanhado ao órgão uma donzela cantora — presumivelmente Maria Barbara — numa uma ocasião em que a igreja estava vazia. Importante: naquela época, era proibido às mulheres cantarem nas igrejas. As vozes de sopranos e contraltos eram cantadas por meninos. (Arnstadt)

Então ele rompeu seu contrato tão logo surgiu outra vaga de organista, dessa vez em Mühlhausen, onde também o admitiram depois de uma audição, sem concurso. Casou-se então — tinha 22 anos — com a prima Maria Barbara Bach.

Depois, trocou Mühlhausen (4) pela corte de Weimar (5), com as funções de organista, violinista e compositor. Era, agora, músico “da corte” e não mais um músico municipal ou da igreja — ainda que suas funções fossem, em parte, ligadas à música religiosa. Estava a serviço de um príncipe, não de uma municipalidade ou de uma paróquia. Isso era uma promoção para ele —- mas, de certa forma, uma ruptura com sua tradição familiar.

A proposta que Bach recebeu em Weimar incluía o valor de uma remuneração que era o triplo do que recebia em Mühlhausen, além de que o alojamento de sua família era por conta da corte. Ele recebia ainda adicionais extras e gêneros como, por exemplo, 30 barris anuais da cerveja produzida no castelo e livre de impostos. Ele sempre pedia mais cerveja, por tinha alunos, filhos, família grande e o consumo era pantagruélico. Gente, cerveja é a bebida de Bach.

Esse tempo que Bach passou em Weimar (1708 a 1717, dos 23 aos 32 anos) trouxe-lhe, por outro lado, um enriquecimento musical considerável. Produziu muitas Cantatas e música para órgão. Trouxe tensões, também. O duque que estava no poder era de trato difícil. Bach era mais amigo de seu herdeiro, um melômano apaixonado. Surgiram dificuldades. Ele pediu demissão e acabou preso por um mês — sim, preso por ter pedido demissão, por ter insistido em sair da corte. Passado esse episódio, conseguiu permissão de deixar Weimar por uma outra corte, a do príncipe Leopold de Kõthen (6), onde permaneceu entre os 32 e 38 anos de idade.

E aqui chegamos a, quem sabe, o período mais feliz e importante da vida de Bach. Os cinco anos passados por ele em Köthen tiveram como resultado boa parte da música instrumental de Bach que ouvimos hoje. Até a tristeza pela morte de sua esposa Maria Barbara resultou em música, resultou na Chaconne da Partita Nº 2 para Violino Solo. Há poucos registros de textos escritos por Bach. Porém, quando morou em Köthen, tinha feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

Curiosamente, o cineasta Ingmar Bergman comentou o fato no livro Lanterna Mágica:

Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou foi destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

O príncipe Leopold, de Köthen era inteligente, aberto, agradável e músico (ele era violista). Também reunira em torno de si a melhor orquestra da Alemanha (dezessete músicos, muitos dos quais virtuoses famosos). Lá, Bach gozava não somente de consideração e de bom salário, mas de verdadeira amizade por parte de Leopold e dos que o rodeavam. Essas condições ideais para um artista — ter à sua disposição todos os meios para criar e saber que sua obra é compreendida e apreciada, que artista não sonhou com isso? –, iriam permitir a Bach uma produção abundante. Concertos, sonatas (quase toda a sua música de câmara data dessa época), O cravo bem temperado, as suítes e partitas, as aberturas para orquestra, os Concertos de Brandenburgo…

Muito teria para se falar da música de câmara de Bach, que em sua maior parte data do período de Kõthen: sonatas para violino e cravo, para violino solo e violoncelo solo.

Em Köthen, Bach casou-se pela segunda vez, com Anna Magdalena Wilcken, filha de um trompetista da orquestra e cantora da corte. Manifesta-se, contudo, nesse período, uma insatisfação. E é por onde se pode medir o domínio exercido, consciente ou inconscientemente, pela tradição familiar. O príncipe Leopold era calvinista e, em Kõthen, a música religiosa não tinha qualquer participação no culto. O papel de Bach era, portanto, exclusivamente profano. Ao que parece, Bach teria sentido fortemente a necessidade de voltar a trabalhar para a igreja, como sempre haviam feito seu pai e seus antepassados. Tentou, de início, conseguir um lugar como organista em Hamburgo. Até que apareceu a chance de ir para a Thomasschule [Escola de Santo Tomás] em Leipzig (7).

Então Bach mudou o curso de sua vida e renunciou a todas as vantagens adquiridas. Por um salário menor, escolheu o posto de Leipzig, repleto de inconveniências que não demoraram muito a tornar-se insuportáveis. A Escola de Santo Tomás de Leipzig era uma antiga instituição criada pela Reforma. Meio orfanato, meio conservatório, estava estreitamente inserida na vida da igreja e na da cidade.

A função que Bach exercia já tinha vivido melhores dias. Johann Kuhnau, o predecessor de Bach, era simultaneamente professor de letras, de teologia, professor de música e diretor das atividades musicais da igreja, regente do coro, regente da orquestra e — é claro — compositor. Mas, em 1730, essa função já era anacrônica, tal como a estrutura da escola. E aqui intervém o último dos fatores culturais de que falei mais atrás: o Iluminismo estava provocando uma modificação nas relações e nas estruturas sociais. A Escola de Santo Tomás, com sua organização antiquada, já não correspondia às aspirações intelectuais do século XVIII. O reitor da Escola desejava fazer da Escola de São Tomás algo mais moderno. E a função de Bach era um dos fatores que o atrapalhava. Bach pedia mais recursos para a música religiosa, uma disponibilidade maior dos alunos, enquanto o reitor gostaria de vê-los estudar latim ou grego, de preferência, a gastar horas e horas com ensaios no coro. O impasse era total, e Bach se revelou muito pouco político. Ele apenas brigava e sua música “fora de moda”, não agradava. Ele negligenciava os cursos de latim e os transferia a inspetores. Tudo virou uma grande luta.

A tragédia — pois trata-se autenticamente de uma — é que essa amarga decepção vinha precisamente daqueles para quem havia escolhido trabalhar e consagrar sua vida. Por essa estrutura paroquial ele renunciara à vida fácil da corte e à segurança de Köthen. Ao buscar o modelo social, cultural e religioso que foi o de todos os Bach antes dele e à sua volta, J.S. Bach escolheu um caminho que era já anacrônico e retrógrado.

Os primeiros anos de Bach em Leipzig dão testemunho da felicidade que, no início, a situação lhe proporcionou, o que se pode medir por sua vitalidade criadora: foram 48 cantatas só durante o ano de 1723 — quase uma por semana —, duas Paixões (São João em 1723 e São Mateus em 1729), motetos, e a Missa em si menor em 1733.

Mas, aos poucos, não somente ele se desinteressou da escola, descarregando suas obrigações sobre os inspetores, como se fez mais vagaroso na criação de suas composições: umas poucas cantatas, apenas, ao longo dos vinte últimos anos de sua vida. É que, para Bach, compor era um ofício e como seu ofício parecia ter-se tornado inútil — então ele praticamente se calou. Em Bach não havia a noção de criar uma obra para a posteridade. E a movimentada vida em sua casa, entre filhos e alunos passou a interessá-lo mais.

Os últimos anos de sua vida foram tristes. A música evoluía. O estilo “galante” foi se impondo pouco a pouco. Um compositor menor, mas bom, como Telemann, adaptou-se à perfeição aos novos tempos. Bach não mudou. Seu estilo estava fora de moda. Só uns poucos especialistas o compreendiam. Não escrevia mais que algumas obras difíceis — como A Arte da Fuga –, destinadas a um pequeno número de melômanos capazes de apreciá-las. Recolheu-se a um isolamento altivo e intransigente.

Ainda houve ocasiões festivas, como a viagem à corte de Potsdam, onde seu filho Carl Philipp Emanuel era cravista e durante a qual Frederico II dispensou-lhe honrarias. Mas a saúde de Bach se enfraqueceu. Ele teve catarata e ficou totalmente cego após um charlatão operá-lo. Este charlatão foi o médico John Taylor. A existência de Taylor foi altamente destrutiva para a música. As cirurgias de Taylor incluíam o uso de sangue e de fezes de pombos recém abatidos, além de açúcar e sal. No final de março de 1750, Taylor operou duas vezes a catarata de Bach em Leipzig e o cegou. Bach adoeceu logo após a segunda operação e faleceu menos de quatro meses depois. Oito anos depois, Taylor operou e cegou também Handel, que morreu logo a seguir.

Muito se tem simplificado a personalidade de Bach. Porque teve vinte filhos, porque sua vida transcorreu aparentemente como um fio ininterrupto sem maiores perturbações, sem paixões tempestuosas, sem aventuras, centrada no estudo e no trabalho, resolveu-se fazer dele um modelo de perfeito cidadão, pai perfeito de 20 filhos, marido perfeito, compositor perfeito. Em parte é verdade: Bach constitui um desmentido ao estereótipo da arte maldita, da arte inadaptada, do gênio marginalizado. Parece ter passado pouco por dramas íntimos, mas teve, sem dúvida, sofrimentos e dores. Sua vida nas cortes e nas igrejas, à exceção de Köthen, era a de brigar por mais recursos sendo muito pouco político. Sim, era um brigão, um resmungão. Houve a morte de uma mulher amada, a de numerosos filhos, dos quais dez não chegaram à adolescência. Ou seja, não se deve aceitar facilmente essa ideia de serenidade perpétua.

O que impressiona na vida de Bach, como em sua obra, é uma força e persistência imensas. Não foi um homem amável ou diplomata. Desde a adolescência, Bach parece ter sido adulto. Solucionava seus problemas familiares — duas esposas, vinte filhos, incontáveis alunos — com uma segurança que poucos artistas parecem ter possuído. Se houve serenidade, foi uma conquista. Talvez sua obra contenha sofrimento e dor, sentidas e superadas.

Johann Sebastian Bach

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O fundamento da gramática musical de Bach é o contraponto. Pode-se dizer que tem no contraponto a sua língua materna, sua maneira natural de falar. Bach é o herdeiro de toda a tradição polifónica europeia — digamos, de cinco séculos de polifonia. Uma melodia, para Bach, nunca vem só: engendra por si mesma uma ou muitas outras, independentes e complementares. O pensamento musical de Bach apresenta-se sempre, e da maneira mais espontânea, como uma polimelodia, uma estrutura combinatória em que mais de uma linha musical conserva toda a sua independência melódica.

O virtuosismo de Bach no domínio do contraponto é espantoso. Ele parece capaz de “combinar” qualquer melodia com uma outra, ou consigo mesma, de todas as formas imagináveis.

Homens como Lully e Haendel, por exemplo, pensam a música de outra forma. Com eles, só a melodia principal move-se no tempo; sua harmonização é pensada em função da eficácia imediata do acorde. Bach, no entanto, pensa “simultaneamente” nos dois sistemas, e nisso está a fonte da extraordinária eficácia de sua linguagem musical. Virtuose do contraponto, ou seja, sempre à espreita da “perspectiva” desenhada pelas melodias ao longo de seu desenrolar no tempo, jamais perde de vista o resultado produzido no imediato pela superposição das notas captadas em sua simultaneidade.

Isso explica, também, que Bach não tenha herdeiro musical. Sua síntese é única, porque não se poderia fazer algo assim senão entre 1700 e 1750. A evolução da estética musical torna-a impossível mais tarde. Já no fim de sua vida, Bach era incompreendido e “superado” aos olhos de seus contemporâneos. Seu filho Friedemann, tão próximo do pai no pensamento musical, viveu dilacerado pela impossibilidade de realizar um ideal estético anacrônico.

Bach é ao mesmo tempo um arquiteto e um miniaturista. Mas a força de seu discurso musical, o poder de sua invenção melódica são tais que essas inflexões e essas intenções expressivas acham-se sempre perfeitamente integradas. Uma obra de Bach tem sempre duas dimensões, assemelhando-se de certo modo àqueles quadros flamengos que podem ser decifrados a duas distâncias. A uma primeira distância, admiram-se as linhas, as massas, as proporções, a luz, as figuras, o desenho. Ouve-se uma cantata ou a Paixão segundo São Mateus como quem olha, a dois metros, o retrato de Arnolfini e de sua esposa por Van Eyck. Mas, se chegarmos mais perto, perceberemos, no espelho que está por trás do casal, todo um mundo em miniatura, como um quadro dentro do quadro e que a dois metros não era possível distinguir.

Bastante adaptado a partir de trechos do capítulo sobre Johann Sebastian Bach, publicado no livro História da Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin.

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100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich

100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich

Talvez não tenha existido um artista mais representativo do que o foi o Século XX, com todos os seus paradoxos, vanguardismos, violências, guerras e desvios, do que Dmitri Shostakovich (1906-1975). Ele foi exaltado e massacrado pelo poder, censurado e novamente elogiado. Foi presidente da Associação dos Compositores da URSS e depois não podia mais ver executada sua música no país. Talentosíssimo, foi moderno, adequou-se ao realismo socialista e voltou a ser moderno. Escreveu coisas da mais completa alegria, do mais completo sarcasmo, da mais acabada grandiosidade dramática e refletiu a morte e a depressão como poucos artistas.

Dmitri Shostakovich

E foi um herói para muita gente. Por ter sido covarde quando não havia como ser diferente e por ter sido (muito) ousado quando lhe deram frestas. Como escreveu o romancista inglês Julian Barnes, “Shostakovich pagou a César o que lhe era devido — e César era muito exigente naqueles dias –, protegeu a sua família, esperou por dias melhores e desesperou-se enquanto produzia uma obra verdadeiramente sofrida e brilhante. Há mais formas de heroísmo do que as óbvias”.

Sua vida já começou complicada. Exemplo? Bem, ele era considerado o primeiro grande artista revelado pela Revolução. Era saudado pelo poder. Criou sua Primeira Sinfonia em 1926. Tinha 19 anos e estava entusiasmado com o ambiente russo. A Sinfonia obteve repercussão mundial. Tudo era sucesso, mas três anos depois, a pessoa a quem a obra era dedicada foi presa e fuzilada.

Muitíssimas vezes, quando ouvimos a música de Shostakovich, sentimos certa estranheza, notamos intenções, torna-se palpável a ironia, a revolta e o desconforto do autor. Outras vezes, fica claro seu enorme sarcasmo. O poder que as notas escritas por ele têm de comunicar é miraculoso. Percebe-se claramente o drama e os contrastes vividos pelo compositor, sejam eles de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas.

Há três pontos importantes para a compreensão do homem que foi Shostakovich. O Ocidente costumava simplificar os fatos, conferindo ao autor uma condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais enganos datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje.

O Comunista: Shostakovich foi um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda. No início de sua carreira de compositor, Shostakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre. Depois, lentamente, as coisas foram mudando e o trio renunciou a suas esperanças, às vezes de forma trágica.

Shostakovich foi bombeiro durante a Segunda Guerra Mundial

Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não esteva preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de se retirar do país. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora da URSS. Também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra em alegres visitas. Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades para emigrar, não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas jamais foi o dissidente típico. Seus problemas sempre foram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país, que muitas vezes tratou de ridicularizar.

A Morte: Shostakovitch era, por natureza, um grande pessimista: as fotografias em que aparece sorrindo são raríssimas. Além do que, ele parecia obcecado — como seu ilustre predecessor Mussorgski — pela ideia da morte.  Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Quarteto Nº 8,  Trio Nº. 2,  Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e sua melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão como causados pelas pressões das autoridades soviéticas.

O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da URSS. Sob este aspecto, estava muito enganado. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos após a morte de Lênin.

Apesar de todo o prestígio de que gozou como compositor, nem por isso foi menos perseguido como resultado dos ditames ideológicos dos dirigentes políticos e culturais de seu país — em 1936, o próprio Stálin advertiu-o; em 1948 houve o “Relatório Jdanov”; em 1962, a Sinfonia n° 13, que se apoiava no grande poema Baby Yar de Evgueni Evtuchenko, foi executada sob oposição oficial.

1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém há detalhes jocosos. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Stálin achou-a um horror e chamou Lady Macbeth de Mtsensk — cujo tema foi retirado da esplêndida novela de Nikolai Leskov — de “pornofonia”. Desta forma, ela foi banida de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo. É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras.

Para se recuperar, Shostakovich compôs em 1937 a Sinfonia Nº 5, clássica, grandiosa, linda e bem comportada, que este ano tem sido muito executada por completar 80 anos. E foi perdoado. Poucos anos depois, Shostakovich comporia o símbolo da resistência da União Soviética ao invasor, sua Sinfonia Nº 7, Leningrado. Depois de realizada a primeira audição na União Soviética em 5 de março de 1942, a partitura microfilmada da sinfonia atravessou as linhas de combate, chegando até Nova York, onde Toscanini a fez ouvir em julho do mesmo ano. Em agosto, a Sétima de Shostakovitch ressou na própria Leningrado, sob o cerco dos alemães e transmitida para eles pelo rádio em execução memorável, com os músicos e a população famintas.

Durante a guerra, Shostakovich foi levado para um local seguro, longe dos combates. Estava de amores com o governo e este temia que ele morresse.

Sua carreira foi gloriosa e constantemente posta em questão, repleta de honrarias oficiais e de inclusões em index não menos oficiais. Shostakovitch amargou todos os dissabores de sua condição, a ponto de por vezes ter imaginado que a melhor solução só poderia ser o suicídio. Nem por isso faltou-lhe coragem para seguir incansavelmente, com uma regularidade sem falhas. Até sua morte, em 1975, criou uma obra prolífica e amplamente regeneradora para todo o povo soviético, ao qual Shostakovitch esteve sempre ligado. “A música pode ser amarga, mas jamais pode ser cínica”, dizia o compositor.

A maioria de minhas sinfonias são monumentos funerários. Gente demais, entre nós, morreu não se sabe onde. E ninguém sabe onde os corpos foram enterrados. Mesmo os que eram mais chegados a eles não sabem. Isso aconteceu a uma porção de amigos meus. Onde se pode erguer um monumento a Meyerhold ou a Tukatchevski? Somente a música pode fazê-lo. Estou disposto a dedicar uma obra a cada uma das vítimas. Infelizmente, é impossível. Dedico-lhes, então, toda a minha música.

Em 1948 foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Jdanov colocava no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram novamente do repertório.

Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o grande líder. O segundo movimento da espetacular Sinfonia Nº 10, especialmente raivoso, seria um retrato de Stálin.

(Já o terceiro movimento é uma valsa onde Shostakovich assina seu nome no ar. Em meio ao movimento, a orquestra silencia para ouvir as notas D-S-C-H (ré-mi bemol-dó-si), a partir da transliteração alemã de seu nome, D. Schostakowitsch. O motivo é ouvido de forma ostensiva também no quarto movimento. Parece dizer: “Stálin, ainda estou aqui, sobrevivi”).

O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nº 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko (1932-2017) e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar crimes nazistas não seria um problema, mas o poema de Ievtuchenko fala na colaboração soviética durante o episódio. Hoje, há certeza de que houve colaboração na mortandade de judeus. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada e mais foi estreada na forma original sob a regência do lendário e corajoso maestro Kiril Kondráshin.

Shostakovich finalizou sua obra escrevendo prelúdios e fugas ao estilo de Bach e fazendo referências à Beethoven em sua música. Essa dupla escolha levada a efeito pelo compositor não deve ser encarada como casual, tanto mais que Shostakovich escreveu suas últimas obras no leito de morte. Os alemães não eram bem vistos no país não apenas devido à Guerra, mas desde o século XIX. As mentalidades coletivas russas e soviéticas sempre foram hostis aos alemães, que aparecem frequentemente como personagens ridículos nos romances clássicos russos. E, desde o surgimento de uma consciência musical nacional, as referências à escola germânica não eram bem aceitas.

E, mais uma vez, Shostakovitch não hesitou em enfrentar um tabu cultural. O último discurso musical que produziu, a Sonata para viola e piano, é uma saudação beethoveniana à liberdade. Ao escolher essa referência a Beethoven, ele opta pela fraternidade universal e, saudavelmente, faz abstração das querelas que dividiam o mundo em dois blocos antagonistas. Sob este aspecto, pode-se dizer que ele triunfou sobre os sucessivos dirigentes de sua pátria.

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Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram  um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.

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Dmitri Shostakovich (I)

Pois hoje é o Dia Mundial da Música! Então inicio uma série sobre Dmitri Shostakovich que publicarei a cada sexta-feira, OK?

A música pode ser amarga, jamais pode ser cínica.

DMITRI SHOSTAKOVICH


Muitíssimas vezes, quando ouvimos Shostakovich (1906-1975), sentimos certa estranheza, notamos intenções ou um torna-se palpável uma enorma revolta e desconforto. Percebe-se que o drama e os contrastes apresentados referem-se a acontecimentos externos, sejam de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas e da vida pessoal do compositor. Isto já pode ser notado desde a sua Sinfonia Nro. 1, composta antes dos vinte anos e que o deixou célebre internacionalmente antes mesmo de finalizar seus estudos.

Vamos começar esta série pela parte mais difícil: as relações do músico com o poder. Aqui há três pontos importantes para a compreensão de Shostakovich. O Ocidente costuma simplificar os fatos conferindo ao autor a condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais “enganos” datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje. Aqui, procurarei equilibrar as coisas através de leituras mais recentes que fiz. Procurarei expor os fatos políticos e tomarei partido apenas da obra do compositor, a qual amo apaixonadamente.

O Comunista: Shostakovich foi, certamente, um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda, ou a alegria e  o sarcasmo. A segunda de suas sinfonias (A Revolução de Outubro, de 1927), apesar de fraca, pertence às obras autênticas, já a décima-segunda (À Memória de Lênin, de 1961) parece ter sido obra de um autor amargo, sarcástico e que  estava mandando provisoriamente sua obra às favas.  No início de sua carreira de compositor, Shoatakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre, antes de renunciarem a suas esperanças, às vezes de forma trágica. Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não estava preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de fugir. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora do país, também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra … Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades que o compositor teve para emigrar – não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas nunca foi o dissidente típico. Seus problemas eram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país e não com aquilo que a imprensa ocidental desejava.

A Morte: Após a doença, Shostakovich era obcecado pela idéia da morte. Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Trio Nº. 2, Op. 67, de 1944, a Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e a melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão numa conta do geopolítico…

O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da União Soviética. Sob este aspecto, era ele quem enganava-se. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e… músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos depois da morte de Lênin.

Shostakovich sofreu gravemente três vezes os efeitos de restrições a seus trabalhos. 1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém, em minha opinião, os detalhes jocosos da primeira proibição superam em muito o que ela tem de funesto para sua carreira. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Lady Macbeth de Mtsensk — baseada na esplêndida novela de Nikolai Leskov e só encontrável em espanhol (recomendo a leitura) — conta como uma mulher se tornou assassina por amor e demonstra que, se ela foi levada a cometer crimes, a causa estava no comportamento odioso de suas vítimas, na realidade autênticos carrascos. Sim, uma distorção pero no mucho do Macbeth original. Stálin, que era um grande apreciador de óperas e ouvinte de música erudita, detestou-a. Mostrou-se chocado com o erotismo de certas cenas, com a complicada escrita vocal, com o uso brincalhão e extravagante dos instrumentos e o ritmo esbaforido da música. Chamou Lady Macbeth de “pornofonia” — termo surpreendente em qualquer época — e baniu-a de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo… É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras. Talvez Gógol imponha mais respeito que Leskov…

A segunda vez que Shostakovich entrou no index ocorreu independentemente de qualquer obra. Logo após a notoriedade internacional da Sinfonia Nº 7 — que descreve com pungência inalcançável o sofrimento passado pelo povo soviético durante o cerco de Leningrado — foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Isto ocorreu em 10 de fevereiro de 1948 e colocou no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram do repertório.

Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o ditador.

O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nro. 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar os crimes nazistas não seria problema, mas o poema de Ievtuchenko fala sobre como os soviéticos insistiam em considerar russos e ucranianos os mortos, em vez de judeus. É claro que o motivo de suas mortes era a etnia judaica e não outro. É claro, que aquele foi um episódio meio obscuro, onde há indícios de colaboração. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada.

Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram  um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.

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O Imprescindível na Música Erudita – Parte II

Continuando esta empreitada maluca e superior a mim

1722: O Cravo Bem Temperado (Vol.1) – BWV 846-869, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Um verdadeiro golpe de estado na música. O que Scarlatti fizera apenas instintivamente, Bach sistematizou. O império da separação rigorosa de tons maiores e menores começa aqui. A pureza de cada uma das tonalidades e a faculdade de se utilizar, em qualquer composição, todas as 24 tonalidades possíveis encontra aqui sua Bíblia. É uma profissão de fé a favor das tonalidades (ou temperamentos) iguais. A primeira das duas coletâneas de 24 prelúdios e fugas sob o estranho nome de “Cravo Bem Temperado” é um marco na história da linguagem musical. Trata-se de um manifesto sonoro. É a conclusão, o resultado de um século e meio de pesquisas, por meio das quais a música passou, progressiva e empiricamente, do sistema modal e de temperamento desigual, à estrutura sonora que foi utilizada desde o classicismo e romantismo até a época moderna. Só isso. Como se não bastasse, os 24 prelúdios e fugas deste volume 1 tornaram-se parte do repertório dos pianistas e cravistas por seus méritos musicais, além dos teóricos. Mesmo durante a época em que tantas outras obras-primas de Bach caíram no esquecimento, O Cravo Bem Temperado continuou a ser estudado e trabalhado por pianistas. Até hoje é assim. São modelos perfeitos de escritura polifônica para teclado. Muitíssimas gravações. Destaco as grandes e clássicas gravações de Wanda Landowska (cravo) e de Glenn Gould (piano), mas atualmente fico com a gravação maravilhosa e cheia de detalhes surpreendentes de Daniel Chorzempa (Philips, 4 CDs 446 690-2). Maurizio Pollini acaba se aventurar no volume 1 com excelente resultado.

1723: Magnificat – BWV 243, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Por que não dizer que são é a versão vocal dos Concertos de Brandenburgo, de tal forma esta música está impregnada de alegria e otimismo? Emoldurados por dois corais (inicial e final), seus movimentos são breves e de características emocionais bem definidas. É grande música; suave e etérea. Talvez tenha que pensar muito para encontrar outra música de tamanha simplicidade e exuberância. Em 1730, Bach revisou esta obra em latim, que é muito utilizada no Natal e na Páscoa pelas igrejas. Nos outros dias do ano, costuma ser ouvida em muitos templos profanos… como nossos apartamentos. A gravação da Naxos (8.550763) é barata e boa.

1723: Os Concertos para Violino – BWV 1041-1043 e 1052, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Minha mulher não deve ler isto, mas a verdade é que aqui está o melhor Vivaldi que se tem notícia. Bach passou anos estudando, transcrevendo para o órgão e arranjando os concertos de Vivaldi, Marcello e Corelli — compositores italianos que amava. Só que um dia o inevitável ocorreu: ele mesmo resolveu compor concertos italianos e os fez muito melhor que seus modelos. Há muitíssimas gravações excelentes desta música tão popular. Novamente indico a Naxos com seus CDs de bom preço. O Vol.2 dos Complete Orchestral Works (8.554603) é uma jóia. A regência é de Helmut Müller-Brühl e a orquestra é a Cologne Chamber Orchestra.

1729: A Paixão Segundo São Mateus – BWV 244, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A maior obra de Bach? Talvez. É tão dramática quanto os Oratórios de Handel, sobretudo nos coros do povo, curtos e incisivos; é da mais profunda e sincera emoção religiosa, “capaz de converter um ateu”. Seria preciso escrever muitos posts para dar idéia do terreno em que acabo de entrar. Trata-se de uma obra colossal, síntese incomparável da mística gótica, da devoção luterana e da inspiração dramática do barroco. E é, acima de tudo, acima mesmo de qualquer determinação estilística ligada a este ou àquele período histórico, como uma mensagem que nos chega de um outro mundo que por misericórdia se digna a falar nossa língua. É a Revelação , no sentido bíblico. E aqui escreve um ateu. Dois coros (mais um de crianças), duas orquestras, dois órgãos que se respondem de partes distantes da igreja – herança dos venezianos, novamente – solistas vocais e instrumentais. As árias desta música… Se começo a descrever não paro mais. Aqui serei mais firme: penso que a melhor gravação seja a que John Eliot Gardiner fez para a Archiv com The Monteverdi Choir, The London Oratory Junior Choir e The English Baroque Soloists (427648-2). É cara.

1730: Sonatas para cravo, de Domenico Scarlatti (1685-1757).

Quando alguém fala em Scarlatti, está se referindo ao pai, Alessandro, e não a Domenico, o filho. Este homem tímido escreveu 555 pequenas sonatas de um movimento para cravo e não precisou de mais nada. Durante os dez anos em que esteve ligado à corte portuguesa como mestre de capela e professor de música da jovem princesa Maria Bárbara, D. Scarlatti compôs quase toda sua obra. Há indícios de um “caso psicológico” aqui. Enquanto seu pai era vivo, Domenico escreveu óperas sem importância; depois da morte de Alessandro, enveredou por caminhos totalmente diversos e tornou-se um grande compositor. Maria Bárbara — que depois tornou-se rainha — salvou seu professor do anonimato, fazendo publicar, para seu uso pessoal, os 13 volumes das famosas sonatas, que hoje estão fora de moda. Por quê? Não sei. Entre os anos 70 e 80 gravava-se D. Scarlatti aos borbotões. É música de primeira linha, alegre, onde soam as expressões mais íntimas ao lado dos sons das festas populares ibéricas. As gravações que Ralph Kirkpatrick e Gustav Leonhardt fizeram das sonatas são extraordinárias. Difícilmente alguém encontrará melhor introdução à música erudita do que as belas sonatas no esquecido Scarlatti.

1731: Cantatas BWV 80 e 140, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Poderíamos passar horas discutindo sobre a melhor das Cantatas de Bach. Há para todos os gostos, mas, além da que já destaquei, tenho que citar estas duas. A espetacular BWV 140 trata da parábola das virgens prudentes e imprudentes, mas ouça antes de rir… O coral central (o famoso Coral dos Tenores) é esplêndido. À melodia do hino que é entoada pelos tenores junta-se uma melodia completamente diferente vinda dos violinos. É de uma doçura raramente encontrada nas cantatas de Bach: aí se descreve a graciosa procissão das donzelas saindo ao encontro de Jesus, o noivo celeste. Já disse, ouça a música antes que seu sorriso se congele. É uma obra-prima! A BWV 80 é uma festa e foi escrita para isso mesmo. Foi ouvida pela primeira vez no Festival da Reforma de 1724 e revisada depois. É música absurdamente bela, cheia de contrastes em que os temas de Bach cantam poemas do próprio Lutero. Um espanto! Só ouvindo. O primeiro coral e a primeira ária (dueto) são inesquecíveis. São cantatas facílimas de achar. A Naxos tem uma grande gravação da BWV 80, mas não sei se ela gravou a BWV 140.

1736: Stabat Mater, de Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736).

Morreu aos 26 anos. Dizem que era muito bonito e um conquistador inescapável. Uma lenda conta que um marido ciumento o envenenou. Mas outros o descrevem como feio e aleijado. Não dá para saber. Seu Stabat Mater é muito gravado e executado. Também é de pouca profundidade emocional e NUNCA deve ser ouvido após qualquer obra de Bach. Mas é tocantemente lírico e tem muitos admiradores, inclusive eu. É bonito. A polifonia passa longe de Pergolesi — ele é um melodista e, talvez, um compositor de óperas nato –; os críticos hostis gostam de lembrar que sua grande obra seria a ópera-cômica La Serva Padrona, mas isto só a Claudia, minha mulher, pode avaliar. A ópera é terreno dela. Estou fora. A gravação de 1985 de Claudio Abbado com a London Symphony Orchestra é impecável.

1738: Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

A maior. A campeã. Ler aqui.

Paro ao examinar quais seriam as próximas músicas. São duas obras que mereceriam posts exclusivos, assim como a Missa em Si Menor acima: o Messias, de Handel, e as Variações Goldberg, de Bach.

Bibliografia além da memória:
– Encartes de milhares de CDs e vinis.
– História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin. Editora Nova Fronteira, 1997, 1256 págs.
– Johann Sebastian Bach, de Karl Geiringer. Jorge Zahar Editor, 1985, 366 págs.
– Uma Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux. Alhambra, 1977, 356 págs.

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