Gentileza gera gentileza. Antes do concerto, já num camarote lateral do Theatro São Pedro, fiz questão de abrir lugar na frente para uma pessoa que sentara atrás. Ele disse que não precisava coisa e tal, mas agradeceu e sentou. Ao final do concerto, dei-me conta de que tinha perdido minha caneta. Não é uma caneta valiosa do ponto de vista financeiro, mas fera um presente de meu pai, falecido em 1993. Como já tive recentemente roubado o relógio de bolso (de ouro) Omega de meu avô, de 1923, além de outras coisas que me foram afanadas, estava irritadíssimo com mais esta perda que me deixaria mais longe daquilo que foi minha nada nobre origem (mas minha). Chamando-me de idiota, retornei aos dois camarotes de onde assistira o concerto, vasculhei ambos e, na volta, quando passava novamente pelo saguão do teatro, lá estava a pessoa para qual abrira lugar. Ele estava me procurando com uma caneta na mão. Agradeci muito, mas esqueci de perguntar o nome daquele rapaz de camiseta azul.
O programa do concerto era bastante curioso, parte dele baseado em artes plásticas. Explico abaixo. O programa:
Hector Berlioz – Les Nuits d´eté, op. 7
Sergei Rachmaninoff – A Ilha dos Mortos, op. 29
M. Mussorgsky / M. Ravel – Quadros de Uma Exposição
Regente: Rodolfo Fischer
Solista: Denise de Freitas (mezzo-soprano)
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Les Nuits d’ été (As Noites de Verão), Op. 7, é um ciclo de canções de Hector Berlioz baseado em seis poemas de Théophile Gautier. Há diversos arranjos do próprio Berlioz para as peças. O original era para piano, claro. O título da coleção de música é uma homenagem ao título francês de Sonho de Uma Noite de Verão de Shakespeare. O mezzo-soprano Denise de Freitas tem voz e musicalidade espantosas. É uma baita cantora e foi um enorme prazer ouvi-la, mas seria ainda melhor se Berlioz não fosse o chato que é. As águas profundas e limpas trazidas por Denise não caíram bem na estagnação berliozana.
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Em 1906, tentando fugir da agitação política do czarismo agonizante, buscando um local onde pudesse compor com tranquilidade, Rachmaninoff mudou-se com todo o seu tamanho e mãos acromegálicas para a Alemanha. Foi para a bela Dresden. Lá, um editor sugeriu-lhe a composição de um poema sinfônico sobre o quadro A Ilha dos Mortos, de Böcklin (acima). Ele sabia que Rachmaninoff compunha quase sempre inspirando-se em um livro, um poema ou um quadro.
O pintor suíço Arnold Böcklin (1827-1901) teve uma vida marcada por perdas familiares, depressão e pobreza. Como era de se esperar, tantas desgraças criaram uma arte sombria e funérea. Em 1880, em Florença, uma sonhadora viúva encomendou-lhe um quadro que possuísse uma atmosfera de sonho. Então, Böcklin pintou-lhe sua obra mais famosa, a ultra soturna A Ilha dos Mortos.
Rachmaninoff vira uma reprodução do quadro, em preto e branco, no verão de 1907. Quando, no início de 1909, o editor Struve sugeriu-lhe uma composição inspirada em A Ilha dos Mortos, Rachmaninoff logo aceitou, pois aquela imagem o perseguia. Ao saber que uma das versões do quadro encontrava-se em Leipzig, a cem quilômetros de Dresden, ele foi conhecê-la. Mas… “Eu não me senti tocado pela cor da pintura. Se eu tivesse visto o original antes, talvez não tivesse composto A Ilha dos Mortos. Eu prefiro em preto e branco”. O estranho é que Hitler, Lênin, Freud, Dalí e Strindberg também amavam o quadro de Böcklin.
A coisa é sombria mesmo. E boa. Para meu gosto é a maior obra de Rachmaninov. Não há nada ali que chegue perto do romantismo melado que o autor tanto praticou. Quem conhece poderá ouvir na música fragmentos do tema gregoriano do Dies irae, que por séculos foi utilizado na Missa de Réquiem. O regente Fischer e a Ospa deram excelente interpretação à fantasmagórica obra, totalmente destituída de felicidade.
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Quadros de uma Exposição é uma suíte para piano por Modest Mussorgsky. Viktor Hartmann, arquiteto e pintor, grande amigo de Mussorgsky, havia falecido recentemente, aos 39 anos de idade, nos idos de 1873. No ano seguinte, aconteceu uma exposição de seus quadros numa galeria de São Petersburgo. Após visitá-la, o compositor resolveu prestar uma homenagem ao amigo. Escolheu dez dentre os quadros expostos e compôs uma música para cada um deles. Uniu-os através de um tema comum (o “Promenade”). Era o passeio, a caminhada do flâneur de um quadro a outro. (Importante: os quadros de Hartmann foram perdidos). As melodias são mega nacionalistas e o estilo de piano é inovador em sua austeridade sartoriana.
Tudo isso era muito estranho, pois estávamos numa época em que o piano era instrumento de brilho virtuosístico. Deste modo, a suíte foi deixada de lado por um bom tempo. Mas Claude Debussy era admirador de Mussorgsky e estudou bastante esta suíte. E Ravel fez mais e melhor.
No verão de 1922, atendendo a um pedido de Serge Koussevitzky, Ravel orquestrou a peça. E salvou Mussorgsky do limbo eterno. Só que Ravel fez tudo do seu jeito. Com sua incrível habilidade de arranjador, soube extrair intenso colorido da obra, dentro do espírito dos temas.
Para deixar a obra ainda mais célebre, no ano de 1971, o grupo de rock progressivo Emerson, Lake and Palmer, gravou ao vivo uma versão rock da suíte. Mostrei esta versão hoje para a Elena, que ficou muito surpresa…
A interpretação da Ospa teve bons momentos, como os solos de trompete de Elieser Ribeiro. Mas o fraseado e sofisticação de Elieser não foram acompanhados pelo restante da orquestra, que respondiam em estilo bem mais simples. Contrariamente ao Rach, Fischer nos ofereceu uma versão indulgente, opaca e descuidada da obra. Uma música tão vivaz apresentada daquela forma?
O concerto valeu, e muito, pelo Rachmaninov. É incrível que eu diga isso — costumo detestar Rach! –, mas foi o que achei. O resto foi ornamento pobre, só que saí de lá satisfeito com a música e com minha caneta.