Retrato de um Casamento, de Nigel Nicholson

Very english, para o bem e principalmente para o mal. Cheguei a indicar Retrato de um Casamento, de Nigel Nicolson, a uma amiga. Estava no começo da leitura; arrependi-me. Este livro de 1973 foi traduzido com enorme sucesso no Brasil em 1976. Trata-se da biografia da aristocrata Vita Sackville-West escrita por seu filho Nigel, mas também é uma autobiografia. Explico melhor: é um livro em que dois longos capítulos são retirados do diário de Vita Sackville-West e três outros – também longos – são escritos por Nigel.

Mamãe Vita foi uma escritora de muitos livros e o filho Nigel tornou-se um político conservador inglês. Só que o político escreve muitíssimo melhor que a escritora. O primeiro capítulo de Nigel é maravilhoso. Então vem Vita e é uma tragédia! Tal fato diz tão mal da personagem principal que me foi impossível não achá-la ridícula. Pensava: “Então quem faz isto, também escreve aquelas expressões cheias de uma adjetivação obtusa?”. Blergh!

O livro trata basicamente do amor entre Vita e sua amiga Violet Trefusis, que escrevia muito melhor, a julgar pelas cartas que Nigel transcreve. Esta paixão magoa o marido homossexual Harold Nicolson, pois ele vê nela uma real ameaça de abandono. Ele não admite perdê-la, apesar de não ter interesse físico por Vita. É um estóico: não reclama, permanece gentil, prestativo e apaixonado. Very english, indeed.

Então esqueçamos os capítulos escritos por Vita e fiquemos com os três de Nigel. Dono de uma prosa elegante, ele narra os segredos sexuais e emocionais de sua mãe. É desconfortável e este é o grande ponto de interesse, na minha opinião. Nigel fala também do pai, Harold, e do fortíssimo e inabalável amor deste por Vita, que cresceu, recebeu retribuição platônica e se tornou cada vez mais importante com o passar dos anos. Era o porto seguro a que ambos regressavam após as aventuras de Harold com jovens rapazes e de Vita – uma delas com Virginia Woolf.

Para que a imagem de Vita saia ainda mais machucada do livro, o filho faz questão de salientar o profundo esnobismo de Vita e a seu profundo desprezo pelos pobres e plebeus. É o único momento em que ele parece perder o controle, falando abertamente mal da mãe. Francamente, que atitude inadequada, Nigel!

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Una novelita lumpen, de Roberto Bolaño (crítica publicada no El Pais do último sábado)

No hay un Bolaño menor

Por JORDI GRACIA

 

Esta novela breve nació como un encargo y el resultado fue valioso, como sucede con tantos otros encargos que felizmente la industria editorial hace a los autores de los que se fía (o en los que confía). Quizá por eso Herralde ha decidido rescatar este relato de Roberto Bolaño, escrito por encargo de Claudio López de Lamadrid para una colección de Mondadori en 2002 (lo ha contado por escrito el propio Herralde). Transcurre en Roma pero podría transcurrir en las quimbambas mientras hubiera casas grandes y pisos pequeños, comercios de alquiler de vídeos y personajes con biografías complicadas o infinitamente sosas. La de la protagonista es anodina y amputada, peluquera de poco futuro, amante mecánica y urgente de un par de tipos que viven azarosamente en su propia casa, huérfana de edad indefinida pero ya crecida, y a cargo de un hermano desorientado y más joven que ella.

El cuadro es simple y muy poco prometedor: lo que sucede es todo mate. No hay melodrama ni hay autocompasión ni fantasías redentoras más allá de la mera ilusión de mejorar de vida. Pero hay una gran habilidad en dotar de una irresistible inocencia a la protagonista que narra una breve etapa de su vida y donde vibra sin notarse la inteligencia sentimental del mejor Bolaño. Algunos somos más decididamente partidarios del Bolaño comedido y sutil -el de esta novela breve o el de Estrella distante– que del Bolaño arrebatado por la ambición y la desmesura de Los detectives salvajes o de 2666. En las más extensas demasiadas veces acude la pregunta de para qué, y en ésta cada línea tiene un para qué inequívoco, fatal. Quizá precisamente porque el propio Bolaño no debió tomársela demasiado en serio.

Está el mejor Bolaño sin desatarse: el de la piedad difusa y sin huellas visibles, el de la amargura de las vidas malsanas sin culpa, el de las frustraciones veladas pero invencibles, y el de la vitalidad psicológica suficiente como para trazar personajes de escasa complejidad cuyo papel sin embargo desemboca en relatos complejos. Todo es fácil y directo en Una novelita lumpen y sin embargo la novela trata de la infelicidad y de las recompensas falsas dentro de la infelicidad, de la valentía para cambiar de rumbo y de la lucidez súbita sobre el rumbo real de la vida de cada cual: un pedazo de realismo inteligente sin sermón.

(Una novelita lumpen, Anagrama, Barcelona, 2009, 151 páginas. 15 euros.)

Mais um artigo encontrado e enviado por Helen Osório. Obrigado!

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A cabeça do futebol, vários autores

Ganhei de presente este livro de um de seus autores, o escritor Fernando Monteiro. Trata-se de uma coletânea de crônicas futebolísticas organizada por Gustavo de Castro, Samarone Lima e Carlos Magno Araújo. O time contratado é cheio de estrelas, algumas habituais na crônica esportiva, outras bem menos. Como em qualquer grupo de atletas, tivemos bons e maus desempenhos, porém o trio dirigente manteve o comando do vestiário e o time saiu amplamente vencedor, apesar de algumas derrotas que revoltaram a torcida, a qual pediu insistentemente a cabeça do técnico, pretendendo jogá-la no fundo do entulho. Porém, a Casa das Musas manteve-se firme, declarando que não pagaria multas rescisórias à preguiçosos. O treinador permaneceu e o time mudou sem mudar.

Livros assim são um perigo, pois não adianta só saber escrever, há que saber ver o futebol. Conheço torcedores apaixonados para os quais tanto faria estar dentro de um estádio ou num hipódromo. Eles querem é torcer, não se preocupam em entender o que acontece em campo; suas sugestões são tolas, equivocadas, “irritam ao erudito”… Amam absolutamente o futebol, mas eu sei que, para entendê-lo a ponto de penetrar na cabeça de alguns técnicos, para adivinhar-lhes as reações, posturas e substituições, há que ter um gênero de observação especial que, curiosamente, não grassa por aí.

O livro abre com um bom relato de um caso uruguaio a cargo do espanhol Enrique Vila-Matas. Depois, o time chega cansado de Barcelona, sofrendo uma fragorosa derrota em São Leopoldo, a cargo de Fabrício Carpinejar — um conhecedor de futebol que veio com uma poesia banal, obra do cansaço da viagem, certamente. Fabrício, inclusive, acabou expulso de campo pelo árbitro. Na Vila Belmiro, José Roberto Torero, cronista habitual da área, assinou o mais emocionante e talvez melhor texto de todos, passando a bola a Juca Kfouri que, direto dos porões paulistanos da ditadura militar, fez excelente lançamento a Samarone (com um nome desses, o que seria de se esperar?) Lima que venceu o Velez e o Boca com tranquilidade em Buenos Aires. Após algumas derrotas surpreendentes, como a de Xico Sá, que marcou até gol contra, o time retornou à senda de vitórias com a extraordinária Selma Oliveira, que nos recomprovou que o olhar feminino sobre o futebol veio para ficar. Ela deu um passe a Abel Menezes, que pisou na bola. Sorte que o rebote caiu nos pés de Juremir Machado da Silva, o qual redimiu os gaúchos com um belo gol. Bola no centro. Então, a redonda ficou com Fernando Monteiro que, com o auxílio de Camilo José Cela, obteve inédita vitória com o Íbis. Daniel Piza escreveu uma crônica cujo tamanho só pode ser explicado pelas longas concentrações. Parece que ele resolveu deitar num texto tudo o que sabe de futebol. Sabe bastante, OK, mas a maratona gerou tal série de lesões e cartões amarelos que causou uma queda de rendimento com muitos empates verdadeiramente letárgicos. O time voltou ao bom caminho nas mãos competentes de Carlos Magno Araújo (CEUB?), Hilário Franco Junior (talvez um tanto erudito demais), Sérgio Xavier Filho (bonito relato sobre o futebol praticado pelos cegos), José Castello (O Fluminense está com Amok!) e Moacy Cirne (que me enganou até o final). Surpreendente mesmo foi a goleada sofrida por Humberto Werneck, um craque fora das quatro linhas. Tal derrota fez com que nossos dirigentes deixassem seus cargos à disposição. Sorte que a Casa das Musas não aceitou e mandou-lhes voltar ao trabalho, após tacar-lhes uma multa de 60% de seus vencimentos.

Vale a pena ler!

Organizadores: Gustavo de Castro, Samarone Lima e Carlos Magno Araújo.

Com Fabrício Carpinejar, José Roberto Torero, Juca Kfouri, Raimundo Carrero, Juremir Machado da Silva, Fernando Monteiro, Daniel Piza, Vladir de Sá Lemos, Inácio França, Luiz Zanin Oricchio, Luiz Martins da Silva, Klecius Henrique, Selma Oliveira, Josmar Jozino, Hilário Franco Jr., Humberto Werneck, Sérgio Xavier Filho, Abel Menezes, Moacy Cirne, José Castello, Rubens Lemos Filho, Elianne Diz de Abreu, Edmundo Barreiros, Xico Sá e o espanhol Enrique Vila-Matas.

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O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov / O irmão de Sergio

E então nós íamos conhecer o tal do monte da cidade mais plana que conheço, Montevidéo. Estávamos no carro de nossos amigos uruguaios Roberto Markarian e de sua mulher, Ana Ferrari. Foi quando eu disse que, na noite anterior, eu tinha assistido à peça que nos fora indicada por eles. Markarian virou-se, perguntando o que tínhamos achado. Estávamos entusiasmados com a montagem uruguaia e eu disse que lembrava de O Jardim das Cerejeiras como uma história de confronto aberto entre o ex-mujique — agora endinheirado — e a velha e decadente aristocracia. Roberto respondeu:

— Não, é tudo muito sutil, Milton. Porém, o conteúdo ideológico da peça é dos mais claros.

Ana concordou. Não havia muito a dizer sobre o grande texto de Tchékhov.

Conheço Roberto Markarian há mais de vinte anos. Ele morou na casa de um casal de amigos meus durante um bom período, nos anos 80, enquanto escrevia sua tese de doutorado na UFRGS. É um sujeito engraçado, inteligentíssimo e que parece conhecer tudo. Matemático conhecido no mundo inteiro (pelos matemáticos), teve sua carreira interrompida pela ditadura militar uruguaia, que preferiu vê-lo preso. Aos 36 anos, em 1983, ele apareceu em Porto Alegre a fim de recomeçar as atividades em sua área, após 10 anos de inatividade. É daquelas pessoas que qualquer um gostaria de ter como amiga. Sempre sorrindo e contando coisas com graça, Markarian é gentil até para discutir. Lembro que uma vez ele defendeu a tese, para mim indiscutível, da superioridade da literatura em língua espanhola sobre a de língua portuguesa. Contra bobos protestos nacionalistas, permaneceu tranqüilo, rebatendo facilmente os contra-ataques. Com a convivência soube também de sua família. Surpreendi-me com a profissão de seu irmão: técnico de futebol.

Sim, meu amigo Roberto (acima) é irmão de Sergio Markarian. Então aquele matemático que se vestia como um alguém muito pobre — sempre usando uma estranha combinação de chinelos de dedos, bermudas e camisas de manga curta, mesmo para sair à noite; aquela figura latinoamericana para quem os outros sempre faziam o movimento de pagar seu ingresso, seu restaurante, seu deslocamento, fato que, na verdade, nunca o vi permitir ocorrer (não por orgulho idiota, mas porque não precisava); aquele armênio hispano hablante que não se interessava de modo nenhum por esportes, era irmão de um técnico de futebol de sucesso? Estranho.

Pois é. Sergio Markarian (ou Sergio Apraham Markarian Abrahamian), assim como o hoje mundialmente famoso matemático Roberto -– não, repito, não é exagero –, sempre obteve sucesso como entrenador. Foi técnico do Olímpia entre 1983 e 1986, do Cerro Porteño entre 1990 e 1991, da Seleção Paraguaia na Copa de 1992 e novamente entre 1999 e 2002, do Panathinaikos que chegou às quartas de final da Liga dos Campeões em 2004 e da Copa da UEFA em 2003, esteve no Libertad eliminado pelo Inter na Libertadores de 2006 e agora está no Universidad do Chile, La U. Sem dúvida, uma tremenda carreira.

Lembro da figura do irmão de Roberto ao lado do campo enquanto sofríamos para vencer o Libertad de Guiñazu. Ele ficava tranqüilo enquanto Abel esbravejava. Eu pensava que, se Sergio fosse como o irmão — que estudava a Teoria do Caos –, poderia repentinamente fazer qualquer coisa para embolar nosso meio de campo como bolas de bilhar movimentando-se sem atrito. Mas quem realizou a mágica foi Alex, num tiro comprido e enganador. Sergio reagiu balançando a cabeça como quem diz tsc, tsc, tsc. É, Roberto é melhor.

Nunca falei com Sergio, mas cito sempre seu nome quando penso em substitutos para os técnicos do Inter. Seria uma questão de simetria receber outro Markarian.

Porém, quando comecei a divagar, estavávamos no carro indo para o monte que deu nome à cidade. Roberto já contava que, na noite anterior, eles tinham ficado até às 4 da manhã numa festa em que a atriz que fazia Duniacha na peça, a criada de quarto, chegara logo depois da montagem que víramos. Soubemos que o casal Markarian dançara bastante ou, como literalmente dissera Roberto, tentara movimentar seus corpos de acordo com o que ouviam.

Porém, antes eu falava de Tchékhov. Lembram que eu, na semana passada, lera e “resenhara” A Gaivota e que o livrinho português continha outra peça, exatamente O Jardim das Cerejeiras? Pois é, eu tive o privilégio de relê-la logo após a peça e digo a vocês que é perfeita e sutil, sutil e sutil. E ideológica, ideológica e ideológica. A cara de espanto dos nobres que se negam a acreditar que sua familiar e tradicional propriedade foi para as mãos de um mujique é a cara de um mundo que absolutamente não deseja compreender e aceitar o futuro. E o trabalho que ele dará.

Ah, Tchékhov. Tudo isso em apenas 44 anos?

P.S.- Ana e Roberto, obrigado pelos encontros, pelos vinhos, pela compra dos ingressos, por tudo. E desculpem nossa demora em telefonar. Somos assim imprevisíveis, como Chaotic Billiards.

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Nuevo Rincón de Haikus, de Mario Benedetti

O haikai clássico (ou haicai, ou haiku) tem apenas 17 sílabas, com distribuição invariável em suas três linhas: a primeira com cinco; a segunda, sete; a terceira, cinco. Portanto, isto é um haikai:

cheguei ao fórum
com sede de justiça
num baio lilás

Foi o meu primeiro haikai. O meu não é, mas o haikai deve ser um poema mínimo, completo. Colocar em 17 sílabas uma dúvida, uma opinião, uma paisagem, uma ironia ou uma piada tornou-se um jogo para Benedetti, que escrevia haikais às pencas. Neste livro que comento, há 300, um por página. Li todos de enfiada, o que me deixou meio maluco, construindo um haikai a cada pensamento que me ocorre.

haydn inventou
o quarteto que bartók
tornou perfeito

as minhas sogras
sempre me adoraram
e eu a elas

É verdade, sempre tive sorte com sogras. Aliás,

à alzira, minha
sogra, prefiro chamar
de al jazeera

E ela nunca me processou.

Os de Mario Benedetti são infinitamente melhores e garanto-lhes que é muito divertido viajar sete horas ouvindo minha mulher recitar os haikais na estrada.

qual casamento
abriga em si amor
pós sete anos?

O nosso, sem dúvida! Eu ao menos acho, quem sabe, sei lá. Bom, eu digo que sim.

em montevidéo
algumas declarações
foram trocadas

E a Claudia é franca até demais. Bom, mas vamos ao Benedetti. Ele pode ser inteligente:

es casi ley
los amores eternos
son los mas breves

Sim, sim, mudou de categoria. Sai Milton, entra Mario. Ele pode fazer piada:

no hay laberinto
tan complicado como
los intestinos

Ser como todos nós:

cada cinco años
emborracharse un poco
tiene su encanto

Vejam como ele rouba um pouco: esse aí acima tem 6-8-6, o anterior, 6-7-5. Nos meus, tentei ficar nos 5-7-5 regulamentares. Mas como é poético!

todos tenemos
nuestro intenso y privado
apocalipsis

Mais poético ainda:

por ser secretas
las charlas del amor
son en voz baja

Pode advertir:

mujer lejana
si ja no te interesso
no me vigiles

Ser óbvio:

los periodistas
cuando preguntan tienen
ya la respuesta

Pode escrever coisas belas:

quisiera verte
cuando te quedas sola
a ver qué haces

Ser antirreligioso:

si un rayo mata
al toro / su vaquita
se vuelve atea

Dizer o que senti ao final da viagem:

cuando uno viaja
a veces le indigesta
tanto paisage

E o resto vai sem meus ruídos:

la patria es linda
sobre todo cuando uno
la recupera

me gustaría
mirarme en un espejo
que me mintiera

pobre ciervito
no tiene más remedio
que ser cornudo

el desexilio
es el manso reencuentro
con lo que fuimos

desde la foto
me miram cinco rostros
que ya non miran

los sordomudos
fueron son y serán
los más discretos

las profecías
suelen desintegrarse
en el futuro

en tiempos duros
no hay refugio más sano
que la tristeza

a tu vecino
confiésale secretos
pero de otros

prohibir um livro
es el modo más fácil
de promoverlo

los pies desnudos
saben por donde pisan
y donde pasan

quieras que no
en el bidet se lavan
viejos rencores

en el pretérito
pluscuamperfecto queda
lo que no fuimos

Preciso dizer que gostei do livro? Hein?

se não fui claro
podem me avacalhar (*)
em comentário

(*) Como estou sendo discretamente perseguido por feministas, explico. Acho que avacalhar é o melhor verbo aqui e desconheço um correspondente masculino. Se existir, mudo!

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Cinzas do Norte, de Milton Hatoum

Cinzas do Norte foi o vencedor do Prêmio Jabuti como o melhor romance de 2005. Não discordarei do prêmio e nem poderia, pois não conheço nem um quinto da produção brasileira do ano passado. Mas é óbvio que o Jabuti agora se agarra ao livro como uma grife, dizendo a todos: é coisa boa.

E, no começo, não me decepcionei. A leitura fluiu rápida, levada por um autor de entonação clássica e tranqüila. Nos intervalos da leitura, pensava sobre como a devoção de Hatoum à Guimarães Rosa – confessada num curso que ele ministrou em Parati durante a Flip 2004 – não possui nenhuma repercussão em sua literatura. Sem problemas, quase todos os autores gostam de Kafka. o que não significa que seus projetos literários tenham algo a ver com o tcheco. Porém, mesmo assim, é surpreendente que Hatoum seja tão “clássico”. Cinzas do Norte tem uma estrutura em tudo semelhante a de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, com os capítulos numerados da história sendo interrompidos contrapontiscamente por outros não numerados, escritos em itálico e que contam uma história complementar.

O romance é ambicioso: narra a amizade entre Raimundo (Mundo) e Olavo (Lavo); aquele, filho de um poderoso e provinciano empresário de Manaus, este – que é também o narrador do romance -, um órfão criado pela tia costureira e pelo tio, digamos, aproveitador e sedutor. Mundo tem personalidade de artista, mas seu pai (Jano) é ostensivamente hostil a seus desenhos, quadros e idéias. Há ecos da extraordinária novela de Thomas Mann Tonio Kroeger na formação de Mundo como pintor. Jano prefere Lavo que, apesar da amizade com Mundo, está destinado a uma vida tranqüila como advogado em Manaus. Mundo – seu apelido é significativo – é o personagem que quebra a precária estrutura familiar, como o Bazarov de Pais e Filhos. O mérito de Hatoum está no contar uma boa história ligando elementos díspares como a truculência de Jano e da Revolução de 1964 massacrando um artista nascente, a tensão entre estabilidade (Lavo, Jano, Ramira, Arana) e instabilidade (Mundo, Alícia, o tio Ranulfo), entre amar ou deixar o país e, principalmente, entre espera ou evasão, entre rebeldia e conformismo. Os personagens são construídos lentamente, vão tomando corpo em meio a um tema nada fácil e Hatoum nos leva com grande segurança até quase o final – li o livro absolutamente apaixonado -, quando, num momento de desatino, dá um inexplicável tiro no pé!

Ignoro o que levou Hatoum a mexicanizar o final do romance. Como se estivesse possuído por um escritor inglês do século XVIII – não me refiro a Sterne, é claro -, ele resolve, em 30 páginas, amarrar todos os laços soltos da história. Faz questão de explicar e dar destino a tudo e a todos. Eu preferiria não saber sobre a paternidade de Mundo; aquela incerteza apenas sugerida era elegante, convinha à história como conveio a Machado não dizer quem era o pai do Ezequiel de Capitu. Porém, meu xará tem um ataque parecido com os que tinham alguns autores de TV e, analogamente aos montes de casamentos que ocorriam nos finais das novelas antigas, apresenta-nos um caminhão de novidades que não acrescentam nada ao romance e que quase o estragam. Como já disse, as explicações sobre a paternidade são desnecessárias e o é mais ainda a exposição do sofrimento de Alícia, com direito a copiosas lágrimas e a cenas melodramáticas como a destruição dos quadros do filho.

Melhor ficar com o resto do livro e é isto que estou fazendo. Como o personagem de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, vou apagar o final de meu cérebro e pensar que Cinzas do Norte é – e é mesmo! – um belo romance sobre a amizade, a rebeldia, a destruição e a truculência. Nem lembro mais do tiro no pé.

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Pequeno manual prático de coisas inúteis, de Theo G. Alves

Li vários livros lançados por blogueiros e ex-blogueiros. Alguns são muito fracos e, é claro, há os médios e os bons. Os melhores que li foram os de Branco Leone e Theo Alves. O último é morador da pequena Currais Novos, no Rio Grande do Norte. O primeiro livro que li de sua autoria foi A Casa Miúda. Formado por narrativas curtas, na verdade pequenos poemas em prosa — a referência  ao título de Baudelaire é proposital –, são condensadas e de tal modo significativas que fariam a alegria de Pound.

Não pensem que vou me despedir sem que vocês leiam o Theo. Vou publicar amostras de suas pequenas narrativas. Pedi permissão a ele para digitar três ou quatro de seus contos com a finalidade de que meus sete fiéis leitores tomassem contato. (Não pedi permissao para os poemas…!). Escolhi-os quase ao acaso, pois na verdade marquei quase todas as histórias para reler. Poderia ter copiado o belo e triste Pássaros mortos ou Destes caminhos; talvez A história de Cido Marinheiro, ou quem sabe maravilhoso A primeira vez que vi Eva, mas elegi os que estão abaixo.

E agora Theo lança um livro de poemas: Pequeno manual prático de coisas inúteis. OK, nada mais inútil do que a ficção e a poesia. OK, nada mais humano do que a gloriosa necessidade de ficção, de ilusão e de novos e desconhecidos (ou reconhecidos) mundos. É inútil por ser destituída de valor prático tangível, porém… Entre o irônico, o surpreendente e o desencantado, Theo Alves realiza…

Porém quem sabe eu paro de encher o saco de vocês e mostro um pouco do Theo? Os contos e poemas são curtos, fáceis de digitar. Ah, só mais uma coisa. Eu pus contos e poemas alternados porque creio que estes aí dialogam mais ou menos claramente.

Meu silêncio é Gregor Samsa

Não posso pensar no silêncio em que me encontro sem que recorde a imagem amedrontada e perdida, confusa de Gregor Samsa a dormir gente e acordar-se besouro na palavra virtuosa de Kafka.

É para mim dificílimo crer que algum de nós não tenha, em um dia sequer, ainda em uma hora absurda, se encontrado diante do espelho a rodar de costas ao chão, sem que a couraça duríssima nos permitisse virarmo-nos e pormo-nos em pé.

Pois este silêncio que me toma é o olhar de Gregor Samsa. Ponho-me diante do espelho e estou estranho a tudo: a esta aparência que carrego invariavelmente desde que nasci, a este quarto insólito por onde me entregam os pratos de comida que nem mesmo como, a esta voz surda e horrenda que se fez em minha garganta.

Sou estes dias de silêncio. Meu silêncio é Gregor Samsa.

A necessidade de encontrar um caminho que não sei onde começa, o movimento em falso, a distância que tantas vezes me golpeia no ventre, a distância de mim e dos meus: isto é meu silêncio, estas madrugadas inteiras a não lançar sobre os papéis uma palavra fértil sequer. A voz séssil, ainda que momentaneamente, ainda que dêem a esse calar absurdo o nome delicado e inteligente de “hiato”.

Não é hiato. Não é fenda. Nem abismo. É silêncio. Assustador e asqueroso como Gregor Samsa e, como ele, ainda vivo e amedrontado, essencialmente humano.

De A Casa Miúda

Um besouro

quando samsa
acordou-se besouro
a carapaça colada ao chão
era seu inferno

um bom deus
teria dado também
um escudo à consciência
do homem feito bicho

quando samsa
acordasse besouro
não pensaria no medo
ou noutras coisas inúteis

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis

Da fé

Quando começamos a nos organizar em hordas e a percorrer as terras no início dos tempos, logo depois de aprendermos a magia do fogo, quando não nos tratávamos mesmo por nome algum, testemunhamos então a primeira morte de um de nossos homens.

Ao vê-lo imóvel, deitado sobre seu braço, ao fim dos dois dias em que descansávamos e comíamos sob arvores esparsas, retomamos a trilha deixando o primeiro de nosso mortos na mesma posição em que ele não se acordara.

Caminhamos por algumas horas até que um de nós, talvez o mais jovem, retornou ao acampamento abandonado empunhando um pequeno lume sob a luz pegajosa do dia e o deixou ao lado de nosso primeiro morto.

Apenas hoje, tantos anos depois daquele dia fatídico, é que volto a recordar seu gesto e compreendo que o fogo posto ao lado do corpo abandonado era uma esperança de que Deus — o Deus em que nenhum de nós havia pensado ainda — pudesse enxergá-lo, mesmo sob o peso daquelas noites sem lua.

De A Casa Miúda

A Memória

a memória —
perfumaria da alma —
e suas pequenas inutilidades
pesam constantemente
sobre as vigas frágeis
do corpo

a maldição da memória
reinventa o tempo —
que já não carece ser
inventado —
e torna amargo
qualquer sabor pueril

apenas o tempo —
nem outra coisa —
é menos útil que
uma lembrança precisa

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis

Dos reencontros e de Cabíria

Pensei que aquelas noites com Cabíria se haviam perdido no tempo e noutros puteiros baratos.

Mas a surpresa de reencontrá-las, de rever antigos movimentos, de reencontrar toda a gente e a escuridão dos becos de Currais Novo, sempre inacreditavelmente lindos às três da manhã, foi de um amargor doloroso ainda que delicadamente belo.

Troppo belli, delicatto.

Quando se decide ir embora, voltar é o pior castigo. E, quando voltei para casa, trazendo um par ou dois de fracassos bem sólidos na mochila, senti ainda uma alegria hesitante de rever as ruas antigas, o tempo antigo, a vida que deixei alinhavada nas esquinas e em alguns bares minúsculos, ainda que merecedores de grandes honras.

Reencontro minha cidade e meu tempo. A cidade a que chamo costumeiramente Macondo é hoje a minha Cabíria, a minha puta que amava o amor, como em Fellini.

De A Casa Miúda

Instruções para reconstruir um homem

juntar os
cacos de um homem
não refaz
um homem inteiro

há sempre
um caco de homem perdido
excerto de
um homem inteiro

mas os
cacos amealhados
refazem mais que
um homem inteiro:

um homem refeito
e um caco a mais de esperança

Do Pequeno manual prático de coisas inúteis

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Todos os fogos o fogo, de Julio Cortázar

Querida filha.

Quando li a relação de livros que vocês leem no primeiro ano do ensino médio me surpreendi com a qualidade da lista: O Continente, Édipo Rei, Lisístrata, Hamlet, A Morte de Ivan Ilitch, Um Jogador, A Metamorfose, O Estrangeiro, Levantem bem alto a cumeeira, carpinteiros, enfim, um show de bola que me deixa até satisfeito de pagar a fortuna que pagamos todos os meses. Menos mal. Mas, o que me assustou mesmo foi a presença de Todos os Fogos o Fogo. Entendi melhor quando soube que era um dos livros para leitura em aula. O outro é o maravilhoso Nove Histórias.

É que… sabe? É um livro que requer vivência para ser entendido. Não é difícil, mas quem de vocês descobriria, por exemplo, que o narrador asmático de Reunião é Ernesto Che Guevara? Sim, aquele homem bonito cujo pôster está no quarto do teu irmão.

Todos os fogos o fogo não parece um livro de contos destes que o escritor junta e o editor publica, parece mais uma antologia de contos perfeitos. Vale a pena ler, viu?

O livro abre com o esplêndido A autoestrada do sul. Trata-se da narrativa sobre um engarrafamento numa rodovia que vai dar em Paris. Sim, é semelhante ao retornos da praia que NÃO costumamos fazer por sermos mais sensatos que a maioria. Sim, todos os carros parados. Mas tu sabes, Bárbara, que os gregos inventaram uma coisa genial chamada “hipérbole” que é a intensificação de um fato até o inconcebível. É um tipo de superexagero até que o fato torne-se uma caricatura e passe a significar outra coisa. Bom, Bárbara, os caras passam um ano inteiro engarrafados na estrada. Paradinhos. É genial. Criam outras relações, outro comércio, outra vida, outras disputas, outras lutas, outra forma de sobrevivência. Quando os carros andam, a gente chega a ficar um pouco triste. É genial, já disse. É uma idéia simples que o autor leva ao paroxismo.

Bárbara, o japa Inagaki mata a pau em sua análise de A autoestrada do sul. Clica aqui. E em linguagem clara e lúcida.

Depois vem A saúde dos doentes. É outra farsa. Uma família quer evitar transmitir más notícias a uma mãe enferma que parece estar com vontade de sobreviver a todos. Não é nada grandioso, mas é muito interessante.

Reunião comemora os primeiros dias da guerrilha cubana. É arrepiante, só que é preciso ter algum conhecimento da história de Cuba e de Che para descobrir a que se refere. Sabes que eu tenho a mania de escrever nos livros. Antes de Reunião escrevi: Bárbara, provavelmente o conto a seguir seja incompreensível para ti. Peça para que eu te conte sobre a Revolução Cubana, seus tiros, serras e charutos. Ah, o narrador — médico e asmático — é Che Guevara. Recomendo também o filme “Diários de Motocicleta” e talvez o “Che” com o Benício del Toro que logo vai passar nos cinemas.

A homenagem que Cortázar faz à Cuba revolucionária, neste livro de 1966, é belíssima.

Em Senhorita Cora a coisa complica. É uma história delicada e sensível sobre um jovem doente, sua mãe e uma enfermeira um pouco mais madura e muito atraente. Cortázar trabalha com vários personagens narradores, às vezes dentro de um mesmo parágrafo. É necessária toda a atenção. Quando a gente pensa que um está contando, é outro. Nunca esqueça que o cara gosta de jogos e está se divertindo ao não dar caminhos óbvios para a compreensão de quem é quem. Mas, com algum esforço, entende-se tudo e, puxa, como vale a pena!

A ilha ao meio-dia começa a flertar com os contos finais do livro ao contar a história de uma obsessão meio boba que acaba em drama. É o primeiro conto onde a paixão tomará conta do personagem.

Instruções a John Howell. Mais um jogo, este bem misterioso e que ocorre durante uma peça de teatro. Uma tentativa de deixar Howell mais ou menos como a tua avó…, ou seja, Howell deverá demonstrar características de duas ou mais personalidades, cada uma com sua maneira de ver as coisas e interagir com as pessoas. Sim, complicado.

Façamos um negrito em Todos os fogos o fogo, pois trata-se de outra obra-prima. A expressão significaria algo como “todas as paixões acabam em destruição e morte”. Duas histórias de final trágico são contadas paralelamente. A princípio tudo é meio louco e uma não tem relação com a outra – até porque a primeira se passa no Império Romano e outra na Paris do século XX – mas as paixões descritas tem o mesmo final. O efeito causado pelo conto é inesquecível. Tu vais gostar desse, tenho certeza.

O outro céu é, em minha opinião, o melhor conto do livro. O personagem principal tem uma vida entediante, mas dissocia-se a cada momento em outro, que vive em misteriosas galerias entre prostitutas – é apaixonado por uma delas –, cafetões, assassinos e revoluções. A forma como Cortázar muda de um mundo para outro é sempre de arrebatador virtuosismo. (Pobre Irma que nunca saberá dos céus de gesso sob os quais vive Josiane…). Todas as experiências com duas vozes realizadas durante o livro tem neste conto melhores resultados ainda.

Bom, evitei contar DEMAIS as histórias para não estragar o livro, que é MUITO BOM. Agora, vai ler, vai!

Beijo do pai.

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Duas Vezes Junho, de Martín Kohan

Como primeira observação, declaro o mais fundamental, ou seja, minha impressão ao fechar o livro: é excelente e muito bem traduzido – aleluia! – por Marcelo Barbão. (Eu ia comprar o livro em espanhol, mas recuei após saber do preço. Não me arrependi de ler a versão em português, da Amauta Editorial, com a bela e estimulante capa acima.)

Gostaria de delimitar algumas coisas relativas ao livro. Seu título refere-se a dois junhos de Copa do Mundo, o de 1978 (dias 10, 11 e 12 de junho) e o de 1982 (dia 29 de junho, penso eu). São dias – e isto não é casual – de derrotas do futebol argentino, porém, isto apenas serve para reforçar uma metáfora, pois Duas Vezes Junho fala é da Grande Derrota Moral da Argentina daquele período. E não, não é um livro apenas para futebolistas, é um livro que usa o futebol na sua mais gloriosa função periférica, a de servir como representação de nossas vidas. O futebol fica sempre no fundo do cenário, como a lembrar que, ali ou na vida, as coisas podem não sair confome o previsto.

Martín Kohan começa o livro com uma curiosa indagação presente numa espécie de diário de bordo de uma das prisões argentinas: A partir de que idade se pode começar a torturar uma criança? Esta pergunta, de um absurdo quase cômico para quem está fora do contexto, vai tomando proporções e significados diferentes à medida em que o relato avança. E o relato avança em dezenas de pequenos capítulos contrapontísticos, onde várias vozes vão contando e completando seus temas para estabelecer o todo. Raramente uma destas vozes exalta-se ou é confrontada; cada uma delas tem sua lógica, sua razão e a função de formar o mosaico de Kohan. O resultado deste mosaico é estarrecedor e a inconclusão do momento dramático mais importante do livro – a cena entre o soldado e a mulher torturada na prisão, ocorrida no mesmo momento em que os “médicos” discordam e que é o único capítulo em que o contraditório comparece plenamente – nos dá a medida de uma história que repetiu-se tantas vezes a ponto de tornar-se pedra de um outro mosaico ainda maior, o da verdadeira tragédia que representaram os governos militares daquele país.

Ao ler o som dessas vozes, algumas contando fatos que ficam inacabados, ao ler a forma como Kohan finaliza as duas seções de sua novela, ao perceber que não há excessos em Duas Vezes Junho não consigo deixar de pensar no Tchekhov dramaturgo. Isto é um dos maiores elogios que este modesto escriba pode fazer a alguém.

Todos nós sabemos que a posição do Brasil em relação à literatura argentina é o inverso de sua posição futebolística… Acho lamentável que o Brasil, que também sofreu uma ditadura duríssima – casualmente com um de seus piores períodos ocorrendo durante a Copa de 70 -, tenha tão poucos romances dedicados ao assunto. Os que li são da época dos “Romances de Resistência dos Anos 70”. Há bons romances – Quarup, Incidente em Antares, Bar Don Juan, a obra-prima esquecida Quatro-Olhos, de Renato Pompeu, e outros -, mas os poucos que atualmente dedicam-se àquele periodo preferem utilizar um tom emocionado muito próximo da indignação e do discurso político. A opção de Kohan por uma narrativa fria, distanciada e paradoxalmente nostálgica, causa um impacto muito maior. Vejam bem, escrevi distanciada, não escrevi cínica. Não se precisa descrever as entranhas e cada atitude de um monstro para sentir-se quão terrível ele é. Se espreitarmos algumas atitudes dele, nossa imaginação faz o resto de modo muito mais eficaz.

Final futebolístico: o que não assustava muito era aquela seleção argentina de 78, cujos zagueiros centrais eram dois pigmeus – Galván e Passarella – e cujo inexistente ponta-esquerda – Ortiz – fora dispensado do Grêmio por deficiência técnica. Lembro de Grenais em que Ortiz era vaiado pelos próprios torcedores bananas. Como os argentinos venceram aquela Copa? Ah, não sei; havia o Peru, havia Videla, havia a hinchada argentina e havia Claudio Coutinho preferindo Chicão a Falcão. É melhor nem pensar a respeito.

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A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro

Estou terminando de ler a surpreendente novela do modernista português Mário de Sá-Carneiro “A Confissão de Lúcio”. Procurei no Google algum artigo que falasse sobre as questões de identidade sexual suscitadas pela obra, mas não encontrei quase nada, só algumas observações pudicas feitas por portugueses preocupados em negar ou esconder a homossexualidade – a meu ver inegável – do autor por trás de considerações oníricas… O simbolismo do livro é claro e não há problema algum em ser homossexual, o curioso é a forma com que os portugueses parecem querem proteger seu clássico das más-línguas. Para um clássico, o livro é muito descuidado. Foi escrito rapidamente em 27 dias.

Mário nasceu em 1890 e suicidou-se em 1916, em Paris, antes de completar 26 anos. “A Confissão de Lúcio” trata basicamente do triângulo amoroso formado pelo escritor Lúcio, o poeta Ricardo de Loureiro e a sua esposa Marta. Uma noite, em conversa com Lúcio e antes de conhecer sua esposa, Ricardo resolve revelar-lhe uma estranheza de sua personalidade. Deixemos a palavra a Sá-Carneiro:

Ricardo deteve-se um instante, e de súbito, em outro tom: – É isto só: – disse – não posso ser amigo de ninguém… Não proteste… Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afetos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! (…) Para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou homem ou mulher. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo, eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.

(As expressões grifadas são do original de Sá-Carneiro).

E Ricardo diz mais:

Entretanto estes desejos materiais (ainda não lhe disse tudo) não julgue que os sinto na minha carne; sinto-os na minha alma. Só com a minha alma po­deria matar as minhas ânsias enternecidas. Só com a minha alma eu lo­graria possuir as criaturas que adivinho estimar – e assim, satisfazer, isto é, retribuir sentindo as minhas amizades.

Depois, Ricardo casa-se com uma belíssima mulher, Marta. Lúcio a conhecerá e será seu amante, porém, mesmo com toda a intimidade adquirida, nunca saberá nada de seu passado ou de seus planos. Saberá apenas que ela também mantém casos amorosos com alguns outros amigos de seu marido. Depois, Lúcio, presa de loucos ciúmes dos outros e sem entender a aparente indiferença de Ricardo a tudo isto, resolve matá-lo e, matando-o, faz desaparecer Marta. É como se ela nunca houvesse existido.

Ainda Ricardo falando a Lúcio:

– Ai, como eu sofri… como eu sofri!… Dedicavas-me um grande afeto; eu queria vibrar esse teu afeto – isto é: retribuir-to; e era-me impossível!… Só se te beijasse, se te enlaçasse, se te possuísse… Ah! mas como possuir uma criatura do nosso sexo.

E ele volta à lenga-lenga:

… Marta é como se fora a minha própria alma… estreitando-te ela, era eu próprio quem te estreitava… Satisfiz minha ternura: venci! Chegou a hora de dissipar os fantasmas… Repito-te: foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se materializasse para te possuir…

Então ouve-se o tiro disparado por Ricardo contra sua esposa Marta, mas quem morre é Ricardo. No mesmo momento, Marta desaparece como que por encanto. É um suicídio, claro. Ricardo, dando um tiro em sua alma sexualizada e materializada, mata-se. Mas Lúcio é quem cumpre pena por ter matado o amigo.

Concordo com a portuguesa Maria Estela Guedes quando ela diz sobre Sá-Carneiro:

Ele, o Esfinge Gorda! Ora me parece a mim que o mistério maior da vida dele é não haver nela mistério nenhum. Lançar a dúvida na mente dos outros é a sua Grande Obra, rasgo francamente genial.

Genial? Nem tanto. O livro é muito curioso, simbólico e com prazo de validade vencido. Mas vale a pena lê-lo. Comprei-o por R$ 5,00, numa edição da Editora Moderna, 2001.

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Reparação, de Ian McEwan

Reparação é tudo o que não há em Reparação (Atonement), de Ian McEwan. A tradução brasileira acrescenta uma curiosa ironia ao romance em que Briony comete e procura reparar uma crueldade infantil, mas que não chega a conseguir. Os portugueses fazem melhor ao traduzir Atonement por Expiação, mas convenhamos, não é um nome bonito para um romance tão bom.

McEwan é um grande escritor, mas acho exagerados os tonitruantes elogios que este romance habitualmente recebe. Coloco Reparação em um nível muito alto, apenas discordo daqueles que o citam como “o melhor da década”, “o melhor que já li” e outras sandices do gênero. Menos, gente. É um livro esplêndido, em que McEwan mantém-se extremamente próximo dos personagens, detalhando suas ações a cada mínimo passo ou pensamento. Neste sentido, é ontológico no grau exato, não entrando na microscopia do argentino Saer, um parente próximo e ainda mais detalhista que McEwan.

O livro é dividido em quatro seções muito distintas entre si. A primeira parte do romance passa-se num dia de verão de 1935 na casa de campo da família Tallis. A narrativa alterna seu ponto de vista entre Cecilia, irmã mais velha de Briony que tem por volta de 18 anos, Robbie, o agregado filho da faxineira da casa, protegido do patriarca Tallis, Briony (de 13 anos) e sua mãe Emily. Os artifícios narrativos de McEwan são muito inteligentes e requerem algum virtuosismo. A narrativa é lenta e nunca sabemos exatamente a sequência exata dos acontecimentos. Porém, conseguimos organizá-los pois, aqui e ali, cenas que haviam sido narradas do ponto de vista de um personagem voltam a ocorrer, agora descritas a partir de outro ponto de vista, permitindo outras interpretações. Essa relatividade, além de ser perturbadora, serve para que compreendamos os fatos e seu efeito estético é arrebatador.

O plot é muito semelhante ao do clássico de E. M. Forster, Passagem para a Índia. No livro de Forster, o Dr. Aziz leva a moderninha vitoriana Adela Quested para conhecer as Cavernas de Marabar, a “verdadeira Índia”. Algo então acontece e Adela foge morro abaixo, machucando-se muito. Adela acusa Aziz de tentar estuprá-la. O médico desce o morro preocupado, sem saber o que aconteceu com Adela, se está perdida no labirinto de cavernas ou não, e é surpreendido pela acusação. O Robbie de McEwan, após passar a noite procurando duas crianças fujonas, retorna vitorioso com elas nos braços e recebe a acusação de ter, durante sua procura, estuprado Lola, uma insinuante adolescente de 15 anos, prima de Cecilia e Briony. O testemunho de Briony — que sabemos fantasioso, imaginativo, vingativo, ciumento, preconceituoso e mentiroso — é absolutamente decisivo.

Não é uma cópia, longe disso; faço as comparações para demonstrar uma curiosa comunicação entre dois grandes romances ingleses. Se lá em Forster o tema é o preconceito inglês contra os indianos e a amizade, aqui o leque é muito mais amplo. Mas não nos adiantemos.

Na segunda parte, em 1940, Robbie já cumpre sua pena. Deixou a cadeia em troca de alistar-se como soldado na Segunda Guerra Mundial. O romance muda, torna-se mais ágil, menos interessante, quase comum. Mas é um trecho absolutamente necessário. Afinal, é a primeira expiação, a do inocente.

A terceira parte foca-se na expiação de Briony, ao tentar finalmente reparar seu erro. Aqui, McEwan volta a ser grandioso. É mostrada em toda a extensão as consequencias de um ato de crueldade. O autor espreme até a última gota a culpa de Briony, a relação do casal Cecilia-Robbie com um ato de inconcebível maldade e da gratuidade, o perdão, o remorso, a fantasia e a mentira. McEwan mostra-se um escritor do tamanho de seus temas e isso não é pouco: o desafio era complicadíssimo.

A quarta parte do romance é curta, 24 páginas. Traz Briony aos 77 anos, em 1999. Ficamos sabendo que ela é a narradora do romance. E que a reparação é-lhe negada de todas as formas possíveis.

É um tremendo romance.

No último encontro entre Briony, Robbie e Cecilia, Robbie pergunta:

“Você acha que eu estuprei sua prima?”
“Não.”
“E achava na época?”
Ela procura as palavras. “Sim, sim e não. Eu não tinha certeza.”
“E por que você tem tanta certeza agora?”
Ela hesitou, consciente de que ao responder estaria oferecendo uma espécie de defesa, uma justificativa, e que isso poderia irritá-lo ainda mais.
“Porque cresci”.

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José Saramago, Gabriel García Márquez e Ela

Dois escritores de línguas latinas, dois velhos, um com 83 anos, outro com 77, os dois ganhadores do Prêmio Nobel, ambos mestres reconhecidos mundialmente e homens de esquerda, publicaram livros em 2005. Como se não bastasse, o tema de As Intermitências de Morte e de Memória de Minhas Putas Tristes é o mesmo: a morte. E são, apesar de se utilizarem de abordagens inteiramente diferentes, excelentes romances, vivos, belos e otimistas, apesar do realismo de ambos impedir quaisquer frases menos claras do que esta de García Márquez: “Faça o que você fizer, neste ano ou em cem, você estará morto para sempre e jamais”.

E aqui cessam as semelhanças, pois talvez a intenção e a expectativa dos dois sejam diversas. Se Saramago escreveu um de seus melhores livros, uma obra muito ambiciosa e original, García Márquez criou um delicado divertimento, uma obra menor – o que não é demérito nenhum -, que fica no terreno do onírico e do poético. Porém, paradoxalmente, o livro de Saramago, aquele que não é um “divertimento”, é engraçadíssimo e posso dizer que há anos não ria tanto lendo um livro.

(Gostaria de acalmar meus 7 leitores dizendo-lhes que não contarei as histórias dos livros. Na verdade, duvido que alguém NÃO tenha comparado estes dois livros ainda. Mas pesquisei no Google e não encontrei nada… Adiante!)

As Intermitências de Morte pode ser dividido em duas partes; a primeira é a mais cômica e descreve o momento em que a morte desiste de matar os habitantes de um pequeno país. Este passa a crer-se como protegido por Deus, há euforia e atmosfera de orgulho no ar, porém a governo e a Igreja incomodam-se muitíssimo. Depois a morte volta a atuar, mas de outra forma, e acaba tendo sérios problemas com um habitante, o qual não consegue absolutamente matar. O caráter da Morte de Saramago é bem diferente do que vemos usualmente em obras artísticas. Trata-se apenas de uma burocrata com, digamos, excessivo poder e que organiza seu trabalho em fichas. Às vezes, ela se atrapalha, estando bem distante daquela Morte imaginada por Bergman em O Sétimo Selo e que aceita jogar xadrez com sua vítima, demonstrando ser uma jogadora suja e implácavel. A segunda parte dá notável e justo destaque à 6ª Suíte para Violoncelo Solo de J. S. Bach, que é eleita pelo autor como uma espécie de símbolo da imortalidade , o qual é respeitado e admirado até pela Morte. Aqui o romance torna-se mais reflexivo e lento, estamos dentro do terreno do destino inexorável e o senso de estilo de Saramago dobra-se e adapta-se perfeitamente a este clima, levando-nos a um final literária e literalmente arrepiante.

García Márquez optou por ser bem mais modesto. Se Saramago apresenta-nos a Morte “viva”, movendo-se e dialogando como Thomas Mann fez com o Demônio num dos capítulos mais gloriosos de toda a literatura, García Márquez dá a uma prostituta de 14 anos a representação da morte. O personagem principal e narrador, um jornalista de 89 anos ainda em atividade e que manteve-se solteiro por toda sua vida, pede uma menina ainda virgem a sua velha amiga cafetina, no dia em que completará 90 anos. Esta menina chama-se Delgadina, provavelmente uma ironia para com a figura da morte, sempre delgada e elegante em sua existência de puro-osso. Delgadina – sempre cansada do trabalho – costuma permanecer dormindo nas “noites de amor” com o velho, que parece descobrir pouco a pouco a vantagem de nunca acordá-la e de deixar-lhe apenas mimos, enquanto a jovem prostituta reclama para a cafetina o fato de nunca ser acordada e de ainda ser virgem… Porém, nem sempre ele conseguirá que seja assim.

Trata-se de um livro mais leve, poético e “fácil”, mas, se tivesse que sugerir leituras de férias a meus 7 leitores, sugeriria os dois livros; mas, se fosse obrigado a escolher apenas um, os mandaria direto ao assunto, direto a Saramago.

Para terminar, gostaria de destacar mais uma curiosíssima coincidência entre os livros:

García Márquez: Às quatro horas tentei me apaziguar com as seis suítes para cello solo de Johann Sebastian Bach, na versão definitiva de dom Pablo Casals. Acho que é o que de mais sábio existe em toda a música, mas em vez de me apaziguar como de costume me deixaram num estado da pior prostração.

José Saramago (utilizo a mesma grafia do romance): Por um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até as paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até a sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior para violoncelo de johann sebastian bach composta em cöthen e não precisou ter aprendido música para saber que havia sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua.

Sim, Bach, sempre ele, o homem de obras elas quase tantas como foram as da criação (ainda Saramago), Bach e suas suítes para violoncelo solo, aquelas mesmas que dou a tantos amigos, que falam como os homens, que trazem a humanidade em si e que podem tornar a morte humana, ao menos na arte.

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Sexo Anal [uma novela marrom], de Luiz Biajoni

O Biajoni, nosso amigo da Verbeat, fez o seguinte: escreveu a novela Sexo Anal e, antes de procurar uma editora, mandou confeccionar 180 exemplares para que os amigos e potenciais editores pudessem lê-los em formato agradável. Trata-se de um respeitável investimento. A quem não faz falta R$ 1.500,00? Pois o livro ficou bonito, com depoimentos de vários blogueiros na contracapa, com o Idelber e seus títulos numa orelha e com uma foto desnecessária do autor na outra.

Tenho que começar comentando o título da novela. Recebi-a na Primavera dos Livros em São Paulo e deixei-a sobre a minha mesa de autógrafos – estávamos em novembro, época do lançamento do Blog de Papel. Notei logo que as pessoas olhavam espantadas para o livro do Bia e depois para o meu. Tratei de virá-lo, escondendo sua capa. O Bia, há 100 metros da mesa e com olhos de lince, viu minha atitude e desesperou-se… Eu estava envergonhado de sua novela! Fato semelhante ocorreu numa sala de espera de um médico. Todo um mulherio desconhecido estava aguardando comigo e eu não quis ser identificado por elas como o cara que lê Sexo Anal. Sou um cara discreto, meio sem graça, aceitavelmente simpático. Então, peguei minha agenda, pus meu sexo anal dentro dela, sorri vitoriosamente para aquelas doentes e continuei minha leitura. Aliás, recebi importantes feedbacks e o Bia tem que saber disso: os homens dão gargalhadas com o título, as mulheres são discretas quando lêem “Sexo Anal”, mas o subtítulo “Uma Novela Marrom” causa-lhes rejeição e horríveis caretas. Quando a gente começa a ler, fica sabendo que a história em grande parte retrata a vida dentro da redação de um jornal da imprensa marrom, porém quem lê o título acha que o marrom alude a outra coisa… É um jogo de palavras bem ao estilo do Bia, porém minha irmã, a Claudia e também a bela Belly, do Mishappenings – que veio iluminar uma manhã meio chata aqui no escritório – torceram o nariz para a coloração da coisa. Sabemos que o cérebro feminino funciona diferentemente do nosso, muito mais simples.

Faço todo este blá-blá-blá porque a novela é muito boa e é uma injustiça pensar que trata-se de um título escandaloso a encobrir uma história chata e de prosa raquítica. Pelo contrário! O Biajoni é um escritor pop, o gênero de ficção que ele faz é pulp, ele está totalmente voltado a contar uma história e o faz com grande fluência (li as 200 páginas em três dias, o que é muito rápido para quem trabalha bastante como eu). Com personagens muito bem construídos, a novela grudou em mim e Biajoni – tudo para contar a história – usa bastante e habilmente um achado que funciona bem, acelerando a narrativa. Numa novela cheia de diálogos, o Bia faz assim, ó:

– Vamos voltar?
– …
– Vamos voltar ao que era antes… No final de semana vamos dançar, etc.

Aquelas reticências utilizadas como resposta no diálogo tornam desnecessárias grandes explicações. O leitor sabe que do outro lado está alguém ouvindo e que a frase anterior teve alguma repercussão. O conteúdo dela pouco interessa, o que interessa é que algo bateu do outro lado. Nós, com a nossa experiência, trataremos de dar-lhe algum significado. Isto acelera a narrativa e evita os parágrafos descritivos. Muito bom.

E a história de Virgínia, Luiz, Ana, do outro Luiz e de sua filha, entremeada do ambiente de redação de um pequeno jornal que sobrevive de manchetes sanguinolentas é muito boa. Virgínia é uma jornalista que namora Luiz, um funcionariozinho sem graça de um escritório de contabilidade que lhe dá aquilo que ela gosta. Só que ela o trai com seu médico e, por pura honestidade, conta para Luiz. O que vem depois é a história da crise entre os dois, onde participam o amigo legal (o outro Luiz), Ana (a homossexual interessada em Virgínia), a filha de Luiz e toda a fauna do jornal em que Virginia trabalha. Para perturbar ainda mais a namorada do funcionário, seu chefe passa a encarregá-la de trabalhos cada vez mais importantes dentro do órgão marrom que chefia, o que a faz pensar que Luiz não seria um bom investimento para uma jornalista prestes a tornar-se famosa, mas até tal ascensão é relativa… Bom, não vou contar tudo!

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Para não ficar só nos elogios, tenho algumas restrições ao final do livro e disse isto ao Bia. É uma questão de gosto pessoal. Acho que o livro deveria ir algumas páginas além, complementando a história da filha do Luiz. O que fazer se a considerei uma personagem especial e me preocupei com ela?

Como special guest star, temos um certo Alexandre, um sujeito absolutamente tarado por pés e que protagoniza patéticas cenas lambendo, beijando e etc. os pés das heroínas… Fazendo uma interpretação não autorizada, diria que Bia está “homenageando” seu grande amigo blogueiro Alex Castro, altíssimo intelectual e notório podólatra carioca, que fotografa e manipula os pés de suas amigas, às vezes criando uma verdadeira podoteca em seu blog.

Fico pasmo pela dificuldade do Bia em encontrar editora para sua novela. É pura diversão, não há teses, não irá mudar o mundo, não é auto-ajuda e… e daí? Sexo Anal é eficiente naquilo que se propõe – contar uma história grudenta e tornar interessantes – e são!, e devem ser contadas! – as vidas de pessoas absolutamente comuns. E, por favor, não pensem que é uma novela pornográfica ou erótica. Também é, mas penso que Sexo Anal sirva melhor à diversão do que à masturbação.

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Pó de parede, de Carol Bensimon

Observação inicial: Quando peguei este Pó de parede, logo pensei: ih, autora gaúcha, lá vem confusão. Acontece que alguns comentaristas sulinos ficaram nervosos quando achei apenas correto o romance Música Perdida de Luiz Antônio de Assis Brasil ou repetitivos alguns Noll. Há pessoas que vêem política, interesse e “intenções” suspeitas nessas curtas anotações diletantes a que chamo pretensiosamente de resenhas e cuja maior motivação é, singelamente, a de não esquecer o livro. Claro que nelas revelo o maior ou menor prazer que tive ao terminá-lo, mas, pô, nada de nervos, gente.

Carol Bensimon veio recomendadíssima: aposta de Luiz Ruffatto na Bravo!, artigo na Aplauso, além de elogios ouvidos aqui e ali a uma jovem escritora e é óbvio que comprei seu belo livro de estréia na Feira, obra da também gaúcha Não Editora.

Pó de parede é formado de três novelas na tradição de alguns volumes muito queridos meus: há as três clássicas de Tolstói na tradução de Boris Schnaiderman, Sonata a Kreutzer, A Felicidade Conjugal e A Morte de Ivan Illich; as três de Turguenev, O primeiro amor, Ássia e Águas primaveris; as três de Flaubert, Uma alma simples, A lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade; as três de James, A lição do mestre, O desenho no tapete e A vida privada; ou seja, parece que os autores ou os editores gostam do formato do trio de novelas. Mas vamos ao livro.

A primeira surpresa é a inventiva prosa de Carol. Ela tem um pensado trabalho de linguagem em que toda rebarba fica de fora, mas o resultado não é daquele gênero no qual a inteligência e o suor do autor acabam por sufocar quem lê; não, o resultado é leve, coloquial e poético. Seus diálogos, por exemplo, são ótimos, transcritos de forma pouco convencional, variando entre o formato utilizado por Saramago, o de Pedro Rosa Mendes e disposições que parecem poesia, soltas no ar. O texto é pontuado por analogias muito próprias e femininas, distantes de quaisquer clichês ou influências reconhecíveis. Sim, Carol Bensimon é excelente escritora.

Todas as histórias tem o ponto comum de referirem-se a casas. É como um jazzista que repete o tema tocado pelo solista anterior para dar unidade à música. A primeira história, A caixa, é muito bonita. Dividida em capítulos cujos títulos são os anos em que se passa a ação, A caixa acaba por ser um mosaico de onde emerge clara a amizade entre Laura e a narradora. Falta céu é a melhor das três novelas. É curta mas trata de um grande número de personagens contra um triste cenário de construção-desconstrução. É uma novela nada esquecível, realista, de boa história, personagens bem construídos e polifonia arrebatadora. Capitão Capivara é bem humorado e simples, possuindo o clima triste de alguns filmes de Allen e Altman, com personagens insatisfeitos vivendo num estranho Sanatório Berghof que faz marketing adoidado.

Boa escritora, poética e delicada, Carol Bensimon não fala de seu umbigo, não se apóia apenas em sexo e violência e muito menos naquela autenticidade “do caralho”. Acho que só faz parte da Nova Literatura por fazer literatura e ser bem novinha. 26 anos, imaginem.

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A pista de gelo, de Roberto Bolaño

Este é o primeiro romance do Bolaño, publicado em 1993. Se A pista de gelo ainda não apresenta a furiosa polifonia dos livros seguintes, já temos três narradores alternando-se para contar uma falsa história detetivesca. O livro poderia também chamar-se “Era para ser um whodunit…”. Não digo isso por achar que A pista de gelo seja um fracasso como livro policial — não se trata de um fracasso, longe disso –, mas para reforçar o tom de paródia que o romance mantém por trás de sua originalidade. Ou seja, ele não quer ser um whodunit.

É um livro leve, curto, onde se pode espreitar o grande autor que viria a seguir. Três personagens oriundos do mundo literário, o empresário com pretensões literárias Remo Morán, o poeta lúmpen Gaspar Heredia e o político filha-da-puta Enric Rosqueles contam e participam da história que se passa no balneário de Z, na Espanha, durante um verão. A ação gira em torno da patinadora Nuria para a qual Rosqueles constrói uma pista de gelo num palacete abandonado, onde ocorre um assassinato. O crime ocorre na segunda metade do livro — prova de que Bolaño diverte-se mais com as vozes e suas interações — e o responsável pela morte é revelado quase de má vontade, com se fosse uma concessão ao leitor que, afinal, há de querer saber alguma coisa sobre aquele assunto. O que sobressai no livro é a notável capacidade de Bolaño para construir personagens, as cenas sempre montadas de forma sedutora e sua prosa ágil. Mesmo não sendo um policial típico — e como seria com aqueles narradores? –, é impossível largar o livro antes da última página. Coisas de um grande autor.

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Dois livros d`Os Viralata: Branco Leone e Luiz Biajoni

Li dois livros editados pela Os Viralata, editora que penso ser de propriedade do Branco Leone. Um dia, os Viralata ainda editará(ão) algo de Milton Ribeiro, mas não temos pressa alguma e nunca fizemos nada nesse sentido nem em outro. É uma editora que trabalha sob demanda, você compra o livro e rapidamente eles o produzem para envio. Ou têm um estoque diminuto para enviá-lo rapidamente. Ao menos acho que é assim, nunca investiguei nem perguntei.

O primeiro que li foi Os melhores (e alguns dos piores) textos de Branco Leone, de Albano Martins Ribeiro. É óbvio que, sendo neto de Manoel Martins Ribeiro, de São João do Loure, distrito de Aveiro, eu só posso simpatizar muito com o Albano de mesmos sobrenomes e santa terrinha.

O livro é formado por crônicas que foram posts. Não conheço os originais, mas a maioria delas merecem o status de crônica, enquanto outras nasceram e morrerão efêmeros posts. Estou convencido que o autor — qualquer autor — não sabe julgar sua obra. Eu, por exemplo, sempre estou tentando explicar que aquilo que as pessoas gostam é o pior de mim e que o bom é isso ou aquilo, mas elas sempre discordam. No livro do Branco, há uma tal disparidade entre a esmagadora maioria de textos bons e os poucos textos ruins que eu fico pensando o quanto sua filtragem passou pelo emocional e aí, meus amigos, é onde mora o perigo.

Sem puxar o saco de meu futuro editor, aviso que os textos do Branco são engraçadíssimos. Ele tem o domínio de vários gêneros de humor e nos surpreende com coisas escrachadas e sutis, às vezes separadas apenas por uma linha ou nem isso. O humor escrachado de O Galaxão, onde quase adolescentes compram um Gálaxie na certeza de que, com ele, comeriam muitas mulheres; a cuidadosa escolha dos adjetivos e das analogias mais inusitadas em Picrato de Butesin, que me fez lembrar Dickens, talvez por livre-associação; o típico enrolador de Turmalino von Münchausen; o humor negro carinhoso de Um tio; a nostalgia de A senha; o hilariante Rivotril, uma história de alegria que eu e minha mulher lemos às gargalhadas dentro de um avião; a infância de A primeira gargalhada e a inteligência de A vida não imita a arte, mas deveria são os pontos mais altos deste livro, na minha sempre contestável opinião.

Li também a novela Virginia Berlim, de Luiz Biajoni. O Bia mudou e desta vez nos conta uma história rarefeita. Ele deixa que a imaginação do leitor preencha as lacunas de um enredo que deixa laços soltos e sem explicação. O foco narrativo parte da primeira pessoa do singular – um sujeito preso em seu apartamento por motivos que não declinarei aqui – e Biajoni dá ao narrador o mesmo conhecimento que temos ao contar nossas histórias de amor: um conhecimento parcial e extremamente insatisfatório. Essa falta de detalhes que seriam fundamentais numa novela convencional e a atenção masculina que o narrador dá a seu próprio sofrimento é a grande charme da narrativa. Detesto a simples idéia de um debate com Alex Castro – o homem gosta de briga mesmo! -, porém discordo quando ele escreve no prólogo que o estilo do Biajoni é não ter estilo e concordo quando ele diz que é suado e deu trabalho ser tão transparente — apesar de achar que o termo musical-geográfico “rarefeito” seja mais adequado do que transparente. Discordo porque Virginia Berlim é uma novela reveladora de que o Biajoni tem senso de estilo – outro termo roubado à musica – e trata cuidadosamente de não pisar sobre a linha que poderia levar a novela à detalhismos inúteis ou ao melodrama convencional. Como charme adicional, a novela vem com um CD com as músicas “ouvidas” no livro. Alex, tudo aqui é estilo, elegância… E eu gosto.

(A novela é tão boa que a gente chega a esquecer as opiniões do Biajoni sobre Jorge Luis Borges…)

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A Ocasião, de Juan José Saer e Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen

Eu mesmo começo este texto pensando se não seria demasiadamente absurdo comparar o argentino Saer (1937-2005) e o dinamarquês Jacobsen (1847-1885).

Quem me convenceu a ler Saer foi a crítica argentina Beatriz Sarlo, que falou sobre ele com imenso entusiasmo na Flip de 2005. Como se já não bastasse, a Rascunho do mês de agosto fez nova reverência ao escritor que morreu em Paris, há 3 anos. Comprei seu romance A Ocasião (Cia. das Letras, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman) e estou absolutamente encantado com “a transformação de cenas banais em verdadeiras apoteoses descritivas”, para usar a expressão do crítico Moacyr Godoy Moreira, da Rascunho. É um romance de frases longas, cujo tema principal é a ausência e que, em seu ritmo e pela qualidade das descrições, realiza curioso diálogo dentro de mim com o notável Niels Lyhne de Jacobsen (Cosac & Naify, tradução de José Paulo Paes), o lírico fundador da escola naturalista na literatura escandinava, morto em Thisted, na Dinamarca, há 123 anos.

Os temas de um e outro livro tocam-se levemente. Se aqui há a ausência, ali há a despedida. E é só. Seus pontos comuns estão nas descrições de precisão microscópica que fazem com que cada atitude ou objeto nos chegue de forma distinta de qualquer outro. As diferenças entre atos de mesmo gênero vêm esmiuçadas até o ponto de serem únicas. Ambos donos de impecável precisão vocabular e de arrebatador virtuosismo, Saer e Jacobsen tornam seus dois romances lentos, mas nunca pesados. Não são leituras trabalhosas ou difíceis e minha experiência com Saer demonstra que só preciso retornar algumas linhas quando o pensamento foge, pois todos os detalhes significam, completam e “empurram” a narrativa. Ricardo Piglia tem toda a razão quando declara que “dizer que Saer é o melhor escritor argentino atual é uma maneira de desmerecê-lo. Para ser mais exato, é preciso dizer que é é um dos melhores escritores atuais em qualquer língua”. Já Otto Maria Carpeaux dizia que o Niels Lyhne de Jacobsen não era um romance, seria algo que dissolvia-se em quadros maravilhosos, como uma obra episódica de altíssimo nível. O mesmo se pode dizer de A Ocasião e o crítico Moacyr Godoy Moreira escreve “que há passagens que poderiam ser contos independentes, mas que, aos poucos colam-se como retalhos, servindo de arremate ao entendimento de alguns pontos obscuros da história”. Certamente o Lyhne deixa muitos mais pontos em aberto, porém deixo que um crítico dialogue com o outro até para me certificar de que minha comparação não é tão absurda quanto me parecia no começo.

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O Poste de Vapor, de Ferenc Molnár

O escritor não sabe quando aprende.
FERENC MOLNÁR

É estranha a trajetória do húngaro Ferenc Molnár (1878-1952). Autor de crônicas em jornais húngaros, de livros infanto-juvenis — é dele o clássico Os Meninos da Rua Paulo –, de peças de teatro em sua maioria muito bem escritas mas sentimentalóides, acabou emigrando para os Estados Unidos onde tornou-se requisitado dramaturgo, principalmente para a Broadway. Várias de suas histórias cômicas foram passadas para o cinema em filmes de Henry King, Billy Wilder, Michael Curtiz e outros. Não era somente popular, mas um escritor respeitado. Imaginem que este autor da Broadway recebeu adaptações de Arthur Miller para rádio e o teatro e Tom Stoppard fez o mesmo modernamente. Molnár é um raro caso de sucesso popular e literário.

Mas isto ocorria separadamente, obra a obra: há um posfácio neste O Poste de Vapor que nos explica que Molnár produziu às vezes “para a literatura” e outras vezes “para o mercado” — expressões minhas. Concordo com o autor do posfácio: certamente, este livro pertence à parte literária de sua obra. O narrador é um jovem jornalista que descreve as loucuras de certo falso capitão, seu colega numa estação de águas termais, localizada na bela ilha Margarida, que fica entre Buda e Pest, no rio Danúbio.

As inverdades e loucuras do capitão dos hussardos, em si muito engraçadas, são apenas o primeiro plano de uma demonstração da inconseqüência de muitas atitudes — boas ou maldosas — e do oportunismo de outras. Não é um livro otimista ou que promova bons sentimentos ou de final feliz, mas é curiosamente sedutor e agradável. Vá entender.

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A trégua, de Mario Benedetti

Eis um excelente escritor. Muito pouco lido no Brasil, o velhinho Mario Benedetti está às vésperas de completar 88 anos. É um poeta, romancista, cronista e ensaísta uruguaio. A trégua é o diário de Martín Santomé, um viúvo de quase cinquenta anos, pai de três filhos, que vive há mais de vinte entre a criação dos filhos, o trabalho de contabilista e casos de uma noite com mulheres quaisquer. É um sujeito apagado e deprimido, um bom funcionário que detesta seu trabalho, mas que o faz bem; um pai que, com os filhos crescidos, recebe deles a indiferença e o desejo de distância. Tudo muda lentamente com a entrada de Laura Avellaneda como sua funcionária no escritório. Jovem, tímida, contida e muito inteligente, ela proporcionará uma trégua à vida de Santomé.

Dito assim, parece uma história como tantas outras, mas não é, não da maneira como o faz Benedetti. Fino observador, ele conta a história com o exato grau de minúcia, explorando principalmente a insegurança do viúvo em sua relação com uma mulher vinte e dois anos mais nova. É quase um estudo da solidão, da felicidade e do passar do tempo em forma de ficção. Vale a pena ler este pequeno romance com mais de cem edições em espanhol.

Minha única estranheza foi a forma como Benedetti refere-se ao homossexualismo antes do episódio do politicamente correto. Não é agressivo, porém não é nada compassivo. Compreende-se, o romance é de 1960.

Soube que a editora Alfaguara traduziu mais dois livros de Benedetti: El Buzón del Tiempo, lançado como Correio do Tempo, e Primavera con una Esquina Rota (ainda sem título). Mas fiquemos antes com A trégua. Indico fortemente.

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Incompletos, de Albano Martins Ribeiro (Branco Leone)

IncompletosEu acho mais simpático e engraçado Branco Leone, mas o outro nome também está adequado; afinal, meu avô chamava-se Manoel Martins Ribeiro, nascido em São João do Loure, Portugal.

De todos os autores que apareceram através dos blogs, Albano-Branco é o que mais gosto. E não li poucos. Vamos começar pelo título do livro. Fico na dúvida se Incompletos é uma referência aos personagens do livro — sempre em busca do outro (em alguns casos em fuga) –, ou se aponta para a estrutura voluntariamente fragmentária dos contos. É um belo título. E um belo livro. Os contos são curtos, parecem instantâneos de um fotógrafo muito indiscreto. São muito bem escritas “cristalizações do fugidio” amoroso, como diria Erico Verissimo, contadas na voz característica do autor, entre a bem-humorada indulgência e a absoluta crueza. A única coisa que me perturbou na coletânea foi a história da qual gostei mais. (sexta à noite, no purgatório) é a maior narrativa do volume – 28 páginas -, a mais fragmentária e a que me causou a estranha sensação de pertencer a algo maior, que não nos foi dado a conhecer… Queria mais, parece haver mais. Haverá? Talvez seja porque a mim, o sarcástico narrador deste conto fez lembrar o extraordinário narrador da obra-prima Homo Faber, de Max Frisch. Mas isso é problema meu. Tiago Casagrande, ao comentar o livro, escreveu que Incompletos era um livro rarefeito, daqueles que nos deixam com mais dúvidas que esclarecimentos. Perfeito. Quem quiser verdades estabelecidas que vá a outro quintal, quem quiser o prazer da leitura que venha aqui.

O excelente livro é da editora Os Viralata.

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