Após vencer os perigosos Veranópolis e Avenida pelo elástico placar de 1 a 0, o Inter repetiu a façanha contra a terrível União Frederiquense no Estádio Ecológico Vermelhão da Colina. Todos os adversários que o Inter humilhou — vencendo-os sem jogar futebol, só para lhes mostrar quão ruins são — estão ou na zona de rebaixamento ou quase lá. Testemunhas do excelente e pragmático futebol apresentado pelo Inter, as árvores e os pássaros do outro lado das câmeras de TV não falaram a nossos repórteres.
O Inter tem colecionado um ramalhete de lesões musculares neste ano de 2015. Até agora foram Cláudio Winck (2 vezes), D`Alessandro, Nilmar, Bertotto, Alisson, Aránguiz, Juan, Anderson e Taiberson. (Lisandro López e Léo sofreram problemas articulares). Pois agora, para este jogo avassalador de Frederico Westphalen, Diego Aguirre ganhou mais uma rosa vermelha para seu buquê: as fibras rompidas dos músculos de Alan Costa.
Esta é nossa preparação para a Libertadores. Entrar em detalhes do jogo de ontem? Para quê?
O jogo não existiu. O Inter apenas demonstrou novamente como se vence sem jogar. Os destaques do antifutebol foram os craques Luque e Paulão. Luque demonstrou todo o seu desprezo e asco ao adversário ao escolher não jogar. Já Paulão, brindou-nos com uma colorida coleção de roscas, maus passes e hesitações. Não obstante, saímos de lá com os três pontos.
Fiel ao novo estilo colorado, Aránguiz não fez nada contra o Brasil, em Londres.
Com o livro-reportagem Estádio Chile, 1973 – Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena (Editora Unijuí, 328 páginas), o jornalista Maurício Brum finaliza um projeto de três anos. Foram várias viagens ao Chile — passou lá seis meses, somados todos os períodos –, mais de 50 entrevistas e visitas aos locais onde viveu e morreu o compositor, cantor, diretor teatral e militante político Victor Jara. No livro, Maurício busca reconstruir a trajetória do artista e a multiplicidade de versões sobre sua morte. As entrevistas e relatos permitiram a elaboração de uma vasta crônica sobre a vida e morte de Jara, explicando não somente os fatos e as lendas, mas sua permanência na memória do Chile a da América Latina.
Maurício falou ao Sul21 no último 11 de setembro, dia dos 41 anos do infame Golpe Chileno.
Sul21: Qual foi a origem de Estádio Chile, 1973 – Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena?
Maurício Brum: Ao todo foram três anos de trabalho. Comecei a apuração das informações em meados de 2011 e a parte mais importante da pesquisa foram os seis meses que passei no Chile – somadas todas as viagens que fiz para lá. No Chile, pude obter um material muito rico. Ao todo, fiz cerca de 50 entrevistas, inclusive com pessoas que estiveram com ele no Estádio Chile, local onde ocorreu seu assassinato. Também coletei materiais na Fundação Victor Jara. O material era tão rico que me permitiu organizar não apenas tudo o que se sabe sobre sua morte, reconstituindo os acontecimentos no Estádio Chile, como quem era este personagem, escrevendo uma crônica de sua vida. Não tenho a pretensão de ter escrito a biografia definitiva, mas sei que no livro há muito do homem Victor Jara.
Sul21: Essas entrevistas foram com amigos, músicos…
Maurício Brum: Sim, com pessoas que conviveram com ele, seja na Escola de Teatro, seja como músicos, companheiros de partido, integrantes do Quilapayún, do Inti-Illimani — que foram grupos da Nueva Canción Chilena, movimento do qual ele participou. Também conversei com a viúva Joan Jara Turner, amigos pessoais e outros que se encontraram com ele na prisão política. É um grupo de personagens distintos que cruzaram com ele e que eu procurei juntar. Então, a primeira parte do livro é sobre a vida de Victor Jara e a segunda sobre a prisão política e a morte. Os músicos me ajudaram muito na biografia, mas, obviamente, contribuíram menos para a descrição dos acontecimentos dos dias de prisão, pois não estavam lá.
Sul21: Vamos falar sobre a prisão? O golpe foi na manhã de 11 de setembro, há exatos 41 anos…
Maurício Brum: Pois é, neste horário os militares estavam entrando no Palácio. Talvez Allende já estivesse morto.
Sul21: Como aconteceu a prisão?
Maurício Brum: Na manhã do dia 11, havia uma convocação da CUT chilena — não se imaginava que o Golpe ocorreria, é claro — para que os trabalhadores ocupassem seus postos de trabalho. E eles atenderam ao chamado. Victor Jara foi até a UTE (Universidade Técnica do Estado), pois tinha um compromisso lá. Naquela manhã, Salvador Allende iria ao campus, abriria uma exposição sobre os riscos de uma Guerra Civil e os meios da esquerda pensavam que ele, o presidente, convocaria um plebiscito para definir a continuidade ou não de seu governo. Quando se soube que não haveria o discurso, todos permaneceram na UTE em parte por causa desse chamado da CUT e em parte por causa do toque de recolher imposto pelos militares. Eles ficam o dia inteiro e a noite lá. O campus é cercado e atacado pelos militares. Na manhã do dia 12 eles são presos. As mulheres são quase todas liberadas, mas os homens permanecem detidos e depois são levados para Estádio Chile — que, apesar do nome, é um ginásio, hoje chamado Victor Jara. As mulheres, mesmo liberadas, foram deixadas no centro de Santiago sob toque de recolher. Ou seja, sem transporte, tinham que correr para casa de qualquer maneira passando o risco de serem mortas ou novamente presas. O Estádio Chile era um dos recintos que eles improvisaram como prisão política, era próximo do campus. Dá menos de um quilômetro. Eles foram levados de ônibus e em caminhões.
Sul21: Victor Jara foi logo reconhecido?
Maurício Brum: Sem dúvida! Victor Jara era uma pessoa extremamente conhecida, um cantor popular. Suas fotos estão em todos os lugares. Primeiro ele tenta se livrar da carteira de identidade. Ele a joga no chão para dificultar a identificação, mas não dá certo. Logo na entrada ele já é identificado e apartado dos demais prisioneiros. E ali mesmo já começa a ser golpeado. Os relatos que temos é que já na fila os militares batiam em Victor Jara. Foram para trás da porta do ginásio e vinham coronhadas, de golpes de fuzil, chutes… Aí ele é isolado e permanece dois ou três dias num corredor interno do Estádio que fica atrás da quadra. Neste período, ele é levado ao menos uma vez por dia aos porões — na verdade os vestiários do ginásio –, onde aconteciam os interrogatórios e as torturas. Em torno do dia 13 ou 14, não se sabe precisamente, há uma chegada grande de prisioneiros que ocupa os militares. Então Jara fica sozinho no corredor. É o momento que os detidos da arquibancada dão um jeito de carregá-lo para as arquibancadas e tentam enfim disfarçá-lo com o que é possível. Cortam seus cabelos com cortadores de unha e tentam que ele passe desapercebido. Era uma tentativa desesperada, claro. É nesse convívio nas arquibancadas que surge a maior parte das versões e lendas que depois ficaram famosas. Ele teria tido suas mãos cortadas em frente aos demais prisioneiros. Nada disso aconteceu.
Sul21: Na autópsia posterior, ele tinha as mãos, mas quebradas, certo?
Maurício Brum: Sim, ele teve as mãos quebradas provavelmente pelas coronhadas, pelos chutes, pelas pisadas. Era chutado e humilhado o tempo todo. Havia tremendo ódio em relação à figura dele. Era um personagem importante da esquerda e ele serviu de exemplo para mostrar aos outros até onde o regime estava disposto a ir. Se alguém como Victor Jara não estava imune, o que dizer do prisioneiro comum? E ali onde ele estava com os demais prisioneiros, ele pede um pedaço de papel e escreve seu último poema (*), que ficou inacabado — obviamente com as mãos ainda não totalmente quebradas. E aí a versão talvez seja um pouco romanceada, mas são os relatos que eu consegui: ele estava escrevendo o poema, compondo as últimas linhas e os militares descobrem que ele está ali e o levam novamente para os vestiários e ele não sai de lá com vida. Há relatos de que foi feito um jogo sórdido de roleta russa e que depois todos descarregaram suas armas sobre o cadáver. A última vez que ele foi visto com vida foi no dia 15 de setembro. No dia 16, seu corpo é jogado na rua de um bairro popular de Santiago para dar exemplo. Porém, na própria tarde do dia 16, os militares voltam e recolhem o corpo, que segue para o necrotério. Ele teria se tornado um desaparecido político, mas um funcionário do registro civil que estava como voluntário no necrotério identifica o corpo de Victor Jara, descobre onde ele vivia e consegue a informar a viúva, Joan Turner. E eles obtêm um enterro improvisado assistido por 3 pessoas: Joan, o funcionário e mais um amigo dela.
Sul21: A viúva contribuiu com informações para o livro? Ela vive em Santiago?
Maurício Brum: Ela vive em Santiago. Ela é responsável pela Fundação Victor Jara.
Sul21: Ela sofreu algum tipo de repressão?
Maurício Brum: Não, teve que se exilar, mas não foi presa. Ela retornou secretamente ao Chile nos anos 80 a fim de realizar as entrevistas para seu livro, que é a biografia mais famosa de Victor Jara. No Brasil, o livro é chamado Canção Inacabada. Depois ela voltou pra Inglaterra e só se fixou no Chile ao final dos anos 80.
Sul21: Voltamos a Jara. Sua formação era como ator, certo? Ele nasceu onde?
Maurício Brum: Isso. Ele nasceu no sul, no interior. Seus pais eram trabalhadores rurais. Eram arrendatários, ou inquilinos, como eram chamados os que trabalhavam na terra de outra pessoa. Logo na primeira infância, eles mudam então para um lugar mais próximo de Santiago. O casal briga bastante, se separa e a mãe dele se muda pra Santiago. Na metade dos anos 1950, ele ingressa na escola de teatro da Universidade do Chile. Ali ele inicia de fato a carreira artística. Primeiro ele estuda atuação e depois direção teatral. Vai trabalhar quase só como diretor. Era o final da década de 50, é quando o Partido Comunista sai da ilegalidade no Chile. O Partido passara 10 anos ilegal. O Canto Geral do Neruda fala muito a respeito deste período muito efervescente para a juventude de esquerda chilena. Então, muitos colegas de Victor Jara começam a se filiar ao Partido, o que acaba por ocorrer também com Victor. Ele passa a integrar as Juventudes Comunistas.
Sul21: Foi o período em que ele entrou em contato com o folclore chileno?
Maurício Brum: Exato, é nesta época que ele começa a viajar pelo interior do Chile com a finalidade de conhecer o folclore do país, de coletar suas histórias e canções. A mãe dele era cantora, ela se apresentava no interior do país; ou seja, ele tinha música em casa. Quando um bebê morria, por exemplo, era realizada uma cerimônia fúnebre durante a madrugada que incluía um “canto ao divino” e um “canto ao humano”. Ela cantava nestes rituais que permitiam que o bebê ascendesse aos céus. Havia esta influência. Quando Victor ingressa no teatro, passa a viajar com amigos pelo interior e, de certa forma, acaba por complementar o que Violeta Parra já vinha fazendo: ele recolhia canções. Então, entra num grupo da universidade que cantava e dançava estas músicas e, pouco a pouco, vai se encaminhando para a música, escrevendo também canções próprias.
Sul21: E começa a participar de grupos que ficaram famosos.
Maurício Brum: Sim, ele passa a fazer parte dos Cuncumem, que em mapucho significa “Murmúrio das águas”. Neste grupo, no início dos 60, durante uma excursão à União Soviética, em Moscou, ele faz sua estreia como cantor solista. Tudo porque a cantora titular sucumbira a uma gripe… E, aos poucos, ele vai assumindo o papel de cantor até chegar a uma carreira solo. E ele chega a um dilema, pois gosta mais de ser diretor teatral, só que atinge muito mais pessoas mostrando suas composições e cantando. Desta modo, para ser mais útil à causa de Salvador Allende e do Partido, ele acaba por abandonar o teatro.
Sul21: E se torna figura nacional.
Maurício Brum: No começo, ele fez pesquisas, chegando a um tipo de música folclórica muito diferente daquilo que a cidade de Santiago pensava ser o folclore do país. Aliás, Violeta Parra também chegara a um gênero muito diferente do daquelas canções para turista que eram “o folclore chileno”. Porém, Jara e Parra não apresentavam o folclore como peças de museu. Eles se apropriaram do folclore, passando a produzir novas canções, normalmente de temática social, política. Na metade dos anos 60, Victor Jara e Violeta Parra são os grandes e mais polêmicos artistas populares do Chile, por serrem excelentes e por estarem identificados como “cantores de protesto”, rótulo que Jara rejeitava, preferindo ser chamado de “cantor revolucionário”.
Sul21: Aparece o viés político da Nueva Canción Chilena.
Maurício Brum: Sim, dele, de Violeta Parra, Rolando Alarcón, Patrício Manns, de Angel e Isabel Parra (filhos de Violeta), do Quilapayún, Inti-Illimani, etc. A liderança do grupo era de Violeta, mas o suicídio dela em 1967 colocou Victor como protagonista.
Sul21: E o movimento cresceu.
Maurício Brum: Sim, houve um incidente muito significativo em junho de 1969. Acontecera um movimento de pobladores (pessoas que saem dos campos e realizam ocupações nas cidades) em Puerto Montt que foi brutalmente reprimido pela polícia. Nove pessoas morreram e Victor Jara imediatamente escreveu uma canção chamada Preguntas por Puerto Montt onde acusava o governo pela repressão. Mais exatamente, ele acusava o Ministro do Interior Edmundo Pérez Zujovic. E ele pergunta ao Ministro: “Você deve responder / Senhor Perez Zujovic / porque ao povo indefeso / responderam com fuzil”. Então, ele foi ao Saint George`s College, em Santiago, um colégio de elite, um colégio inglês, exatamente aquele que é retratado no filme Machuca. Além de educar a elite, este colégio católico fornecia bolsas de estudo para alguns pobladores e jovens de baixa renda. Ali se formara um grupo de esquerda que organiza um seminário para discutir a reforma da educação no Chile. E convidam o Victor Jara para lá cantar. E ele canta as Preguntas. Só que, dentre os alunos, estava o filho de Pérez Zujovic, que tinha se armado de pedras junto com outros colegas. Quando Victor entoa a canção, começam a voar pedras. Ele teve que se proteger com o violão. O show acaba na maior briga.
Sul21: Houve repercussão?
Maurício Brum: A princípio, nada. Passaram-se vários dias e nenhuma notícia. Os jornais conservadores esperaram uma semana e deram a notícia justo no dia da estreia do Festival Nueva Canción Chilena. A manchete do El Mercurio era Incidentes por Infiltração Marxista em Colégio Católico. Talvez seja este o momento em que fica claro para todos que Victor Jara é um artista marxista. Ele será uma figura cada vez odiada para direita até o Golpe.
Sul21: Um Festival seguido de eleições.
Maurício Brum: Sim. A Nueva Canción Chilena ganha este nome em 1969 a partir do Festival. Antes o grupo não tinha um nome que os caracterizasse. O Festival é vencido por Victor Jara com Plegaria a un labrador. E no ano seguinte vem as eleições e ele se torna o cantor mais identificado com a Unidade Popular. No dia da vitória do Allende, este discursa e logo depois vem um show do Quilapayun, grupo do qual Jara não faz mais parte, mas de que fora diretor artístico. Então, o envolvimento da Nueva Canción Chilena com Salvador Allende é total.
Sul21: E começa um governo de minoria.
Maurício Brum: Sim, Allende jamais teve maioria. Venceu com 36 % dos votos. E a Nova Canção, que só obtinha espaço no jornal do Partido Comunista, El Siglo, e só gravava na Discoteca del Cantar Popular, também do Partido, ganha novos espaços – havia algumas rádios progressistas – e realmente passa a ser popular e a apoiar o governo. Claro que permanecia sem espaços na grande imprensa. A NCC torna-se não somente a voz artística do governo, como os cantores passam a ser embaixadores culturais do país. Os grupos viajaram o mundo divulgando o folclore chileno e sua pauta de temáticas sociais. O Quilapayún e o Inti-Illimani tiveram a sorte de estarem na Europa como embaixadores culturais quando do Golpe de 73.
Sul21: Victor Jara denunciava o golpismo?
Maurício Brum: Certamente ele fez canções que só podem ser identificadas como panfletárias, mas que eram cantadas e ouvidas como toda a arte da esquerda chilena naquele momento. O próprio Pablo Neruda escreve naqueles anos Incitación al Nixonicidio y alabanza a la Revolución Chilena, denunciando a atuação da CIA e as iniciativas golpistas. A polarização entre direita e esquerda era fortíssima. A greve dos caminhoneiros de outubro de 72 foi financiada pela CIA. A CIA já tentara impedir a posse do Allende. Pensava-se que a tradição democrática do Chile impediria o Golpe, mas o risco era real, como se viu depois.
Sul21: Como o Victor Jara se tornou um símbolo?
Maurício Brum: Depois do golpe, todas as músicas foram censuradas e seus discos queimados. A ditadura chilena queimou discos e livros. Ele torna proscrito no Chile e divulgadíssimo no exterior. Um disco que ele tinha deixado gravado saiu em 74 no exterior. É o disco de Manifiesto. Ele se torna um símbolo porque era, obviamente, uma das pessoas mais conhecidas que pereceram na prisão política do Chile.
Sul21: A ditadura o usava como exemplo de até onde a ditadura pode ir e o mesmo vale para a resistência.
Maurício Brum: Sim, aí se criam algumas lendas, como a morte romanceada dele cantando o hino da Unidade Popular, o corte das mãos e o fato de Allende ter morrido lutando, quando todos hoje sabem que ele se suicidou. Toda a resistência precisa de heróis e Victor Jara serviu como um deles. Até hoje, quando se fala no Golpe, sua figura é relembrada. Até porque não se fez justiça. No Museu da Memória dos Direitos Humanos do Chile, dedicado à repressão e à Ditadura, bem na entrada, está, em letras gigantescas, o poema que ele escreveu na prisão política.
Sul21: E quem o matou?
Maurício Brum: Ninguém sabe. Nenhum prisioneiro viu ele ser morto. E, com todos os subterfúgios legais, jamais se saberá. Além disso, a Lei da Anistia do Chile é semelhante à nossa. Mas foi encontrada uma brecha na Lei: para o caso dos desaparecidos, o crime não prescreveu e então alguns foram condenados. Para o caso dos mortos, há a Anistia.
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(*) Introdução de Joan Jara: “… Quando mais tarde me trouxeram o texto do último poema de Víctor, soube que ele queria deixar seu testemunho, seu único meio de resistir ainda ao fascismo, de lutar pelos direitos dos seres humanos e pela paz”.
Somos cinco mil
nesta pequena parte da cidade. Somos cinco mil. Quantos seremos no total, nas cidades e em todo o país? Somente aqui, dez mil mãos que semeiam e fazem andar as fábricas.
Quanta humanidade com fome, frio, pânico, dor, pressão moral, terror e loucura!
Seis de nós se perderam no espaço das estrelas.
Um morto, um espancado como jamais imaginei que se pudesse espancar um ser humano.
Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores um saltando no vazio, outro batendo a cabeça contra o muro, mas todos com o olhar fixo da morte.
Que espanto causa o rosto do fascismo!
Colocam em prática seus planos com precisão arteira, sem que nada lhes importe.
O sangue, para eles, são medalhas.
A matança é ato de heroísmo.
É este o mundo que criaste, meu Deus? Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?
Nestas quatro muralhas só existe um número que não cresce, que lentamente quererá mais morte.
Mas prontamente me golpeia a consciência e vejo esta maré sem pulsar, mas com o pulsar das máquinas e os militares mostrando seu rosto de parteira, cheio de doçura.
E o México, Cuba e o mundo?
Que gritem esta ignomínia! Somos dez mil mãos a menos que não produzem.
Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do companheiro Presidente golpeia mais forte que bombas e metralhas.
Assim golpeará nosso punho novamente.
Como me sai mal o canto quando tenho que cantar o espanto!
Espanto como o que vivo como o que morro, espanto.
De ver-me entre tantos e tantos momentos do infinito em que o silêncio e o grito são as metas deste canto.
O que vejo nunca vi, o que tenho sentido e o que sinto fará brotar o momento…”
Um estudo realizado por acadêmicos da Universidade Brock, em Ontário, no Canadá, afirma que pessoas com opiniões políticas de esquerda tendem a ser mais inteligentes do que aquelas com visões de mundo de direita. A pesquisa, que inclui dados coletados por mais de 50 anos, também aponta que crianças com menores índices de inteligência tendem a desenvolver pensamentos racistas e homofóbicos na idade adulta.
O trabalho de pesquisa ouviu mais de 15 mil pessoas, comparando o nível de inteligência na infância com seus pensamentos políticos como adultos. Os dados analisados são do Reino Unido, entre os anos de 1958 e 1970. Para realizar o estudo, os pesquisadores mediram a inteligência de crianças com idade entre dez e 11 anos e voltaram a analisar suas posições políticas aos 33 anos de idade.
“As habilidades cognitivas são fundamentais na formação de impressões de outras pessoas e a ter a mente aberta. Indivíduos com menores capacidades cognitivas gravitam em torno de ideologias conservadoras que mantêm as coisas como elas são, porque isso lhe dá um um senso de ordem”, dizem no estudo publicado no Journal of Psychological Science.
Preconceito burro
A equipe concluiu, então, que menores níveis de inteligência estão relacionados a pensamentos de direita, porque esses os fazem se sentir mais seguros no poder – o que pode se relacionar com o seu nível educacional, inclui o jornal britânico. Além disso, ao analisar dados de um estudo de 1986, nos Estados Unidos, sobre o preconceito contra homossexuais, os pesquisadores descobriram que pessoas com baixa inteligência detectada na infância tendem a desenvolver pensamentos ligados ao racismo e à homofobia.
“As ideologias conservadoras representam um elo crítico por meio do qual a inteligência na infância pode prever o racismo na fase adulta. Em termos psicológicos, a relação entre inteligência e preconceitos podem ser derivadas de qual a probabilidade de indivíduos com baixas habilidades cognitivas apoiarem ideologias de direita, conservadoras, porque eles oferecem uma sensação de estabilidade e ordem “, acrescentou. “No entanto, é claro que nem todas as pessoas pessoas prejudicadas são conservadoras”, disse a equipe de pesquisa.
Acho que tu estás brincando, Aguirre. Pense comigo. O Inter jogou contra um time que provavelmente será rebaixado no Costelão 2015 com três zagueiros, dois laterais e dois volantes. Ou seja, jogou com sete jogadores cujas maiores aptidões são defensivas. Para viver, respirar ar puro e sonhar, tinha apenas Alex, Taiberson e Sasha.
Tu falaste em preparar a equipe para a Libertadores, mas nós vamos simular um jogo fora de casa, contra La U, durante um mês? Simularemos isso em seis jogos? O jogo contra a Universidade do Chile será dia 16 de abril e, uma semana depois, em 22 de abril, já teremos o The Strongest em Porto Alegre, quando teremos de ser ofensivos como NÃO fomos ontem. Como nunca treinamos.
Não seria o caso de entrosar também uma formação mais ofensiva? Desculpe dizer isso, Aguirre, mas tu estás sendo muito burro.
Ontem, foi cômica a forma como o Avenida nos acuou. Sem jogar muito, apenas avançou e nossos sete defensores recuaram, esperando eles virem. É do DNA dos caras que estavam em campo. Eles marcam. Às vezes mal, como Fabrício. E, se não fosse o Alisson, com suas duas defesas milagrosas, hoje todos estariam falando na tua saída do clube. Sabes que um empate contra um quase-lanterna não acrescentaria muita coisa a teu currículo.
E acho que William tem que estar na lista de jogadores para a próxima fase da Libertadores, se lá estivermos. O Léo é ruim demais, simples assim. E o teu 3-5-2 é ridículo, Aguirre.
A noite era perigosa. Era necessário todo o cuidado. Concertos em igrejas deixam nossas bundas quadradas e as costas doendo. Sei por experiência própria que a Igreja do Colégio Anchieta tem cadeiras especialistas nestes quesitos. Acho que elas foram compradas do DOPS nos anos 80. O sofrimento foi amenizado pela presença amiga do Gustavo Melo Czekster, que pegava fogo — suando com um condenado — no banco atrás de mim. Ele tinha dois desconfortos; eu, inexplicavelmente, não sentia calor. Pingando, ele me disse que estas crônicas que escrevo sobre a Ospa são a continuação natural dos concertos e que ele as lia sempre. Como veem, um cara de bons hábitos. Mas, minha nossa, sei que nem todos gostam disso aqui! Ele completou dizendo que apreciava as descrições do ambiente e eu pensei: como não fazer isso se aquele ventilador ali à esquerda mia como um gatinho faminto?
A última vez que tinha visto o Réquiem de Fauré fora na Saint-Martin-in-the-Fields em fevereiro de 2013. Saudades daquela viagem com a Bárbara. Mas não pensem que a versão ospiana da peça estava pior. Talvez estivesse até melhor que a versão londrina. O Coro Sinfônico da Ospa e o trabalho do pequeno efetivo orquestral utilizado garantiu uma bela viagem pelo peculiar universo de Fauré. Seu Réquiem não é nada desesperado e indica o caminho de um descanso eterno no paraíso. O Coro foi magnífico em toda a peça, mas especialmente na abertura do último movimento In Paradisum, quando anjos nos levam para lá pela mão. Não é um Réquiem para ser gritado e tal concepção da obra foi respeitada. O soprano Elisa Machado esteve um degrau acima de seu partner Daniel Germano. Elisa foi perfeita, demonstrando compreensão do estilo do Réquiem. Discreta, a orquestra esteve impecável.
No intervalo, a situação era a que segue: ainda embalados pelo Réquiem e em pé, tentando fazer nossas bundas retornarem a seus formatos originais. Tudo era alívio. Então, o paraíso foi invadido, mas não por trombadinhas fazendo um arrastão na praça de alimentação de um shopping, mas por algo muito mais primitivo e agressivo.
O maestro Manfredo Schmiedt, tão mansinho e compreensivo na primeira parte do concerto, começou a mexer os braços chamando os pterodáctilos para invadirem o paraíso. A tal Fantasia Sinfônica A Tempestade, Op. 18,de Tchaikovsky, era inédita em Porto Alegre. Deveria ter permanecido assim para sempre. Trata-se de bombásticos temas russos batendo firme nos personagens da última peça de Shakespeare. Pobre Próspero, pobre Miranda, coitado de Ferdinand, só o deformado Calibã pode ter gostado. Fiquei pensando que a tempestade que trouxera Alonso e Antônio para a ilha de Próspero talvez estivesse na música, mas não, nunca, a magia de Próspero e nem, jamais, nunca, haveria espaço para a gloriosa frase dita pelo pai de Miranda: Nós somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos; com nossa curta vida cercada pelo sono. Ou, em tradução mais completa e competente que a minha: Esses atores eram todos espíritos e dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável. Um dia, tal e qual a base ilusória desta visão, as altas torres envoltas em nuvens, os palácios, os templos solenes, e todo este imenso globo hão de sumir-se no ar como se deu com esse tênue espetáculo. Somos feitos da mesma substância dos sonhos e, entre um sono e outro, decorre a nossa curta existência.
Onde estava o genial Próspero, Tchai?
No final do concerto, estava com desejo de música, claro. O Tchai tinha me matado. A noite acabou no Café Fon Fon, na festa de aniversário da Isolde. Bem tarde, com o bar quase vazio, acomodados naquele ambiente tranquilo, largado e risonho de fim de festa, a Elena foi sentar-se no lugar da Bethy Krieger para tocar — sim, no piano — Beatles (Here, there and everywhere e Because) e, a meu pedido, de Bach, o BWV 639, Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ, que ela toca maravilhosamente e que deixo para vocês com a Lisitsa:
Ver o o Inter jogar com este time de reservas é uma bobagem em termos de análise da evolução do grupo. O time muda tanto e é tão desentrosado que só podemos analisar valores individuais. William, Rodrigo Dourado, Alisson Farias e Taiberson foram destaques da partida deste domingo contra o Veranópolis, vencida por 1 x 0. Os dois últimos mudaram a partida. Acho que William e Dourado já podem disputar posições no time da Libertadores. William está jogando mais do que o desatento e inábil Léo e que Winck, o que não marca. Mas não está inscrito nesta fase da Libertadores… Dourado está. Infelizmente, não vejo o lateral esquerdo Géferson como uma possibilidade de titularidade. Espero estar errado. A surpresa: Jorge Henrique jogou muito bem como volante.
Aguardamos os titulares na próxima quarta-feira.
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Novak Djokovic 2 x 1 Roger Federer. Se Nole permanecer mais 15 semanas como nº 1, passa à frente de Nadal em número de semanas no primeiro lugar do ranking. Nadal tem 141 semanas, Djokovic, 127. Será merecido, pois o sérvio é mais tenista do que Nadal jamais foi. Já Federer… Este é o melhor de todos os tempos, com inalcançáveis 302 semanas na liderança. Aos 33 anos, ainda joga esplendidamente e mantém a segunda colocação no ranking.
Introdução nada a ver tudo a ver. Quando sento no proscênio do Theatro São Pedro — onde se fica literalmente uns três metros sobre os instrumentistas — ou ouço atentamente os músicos aquecerem antes de um concerto da Ospa, tenho a impressão de que ela é um grupo muito heterogêneo. Exemplos positivos são gente como o pianista André Carrara, que numa noite dessas atacou uma Hammerklavier cheia de estilo na Assembleia, ou Elieser Ribeiro, que aquecia para o musical Chimango realizando o solo inicial do Concerto em Sol Maior para piano de Ravel com enorme leveza. Há muitos outros exemplos positivos de músicos praticando o que vão tocar logo depois, mas há também alguns que beiram o constrangedor. Digo isso porque acho que os músicos adultos da cidade — os que trafegam longe da faixa do tatibitate — devem dar sua contribuição a fim de movimentar a música de câmara da cidade. Existe algo melhor do que a música de câmara? Ainda mais na excelente acústica do StudioClio, nosso Wigmore Hall?
E chegamos à noite de ontem. Diego Grendene de Souza, músico da Ospa, poderia ficar na zona de conforto, entre a vida tranquila de funcionário público com o salário a ser parcelado pelo Sartori e os cachês, mas resolveu aventurar-se por um belo e complicado repertório de obras do século XX para clarinete e piano junto com Olinda Allessandrini. Fez bem. A dupla saiu-se maravilhosamente e o público retirou-se eufórico da sala.
O programa:
— Leonard Bernstein (1918-1990): Sonata para Clarinete e piano (1941-42)
— Carlos Guastavino (1912-2000): Sonata para Clarinete e piano (1970)
— Gerald Finzi (1901-1956): Five Bagatelles, op. 23 (1940-41)
— Francis Poulenc (1899 -1963): Sonata para Clarinete e piano (1962)
Olha, foi um recital realmente esplêndido. A conhecida sonata de Bernstein poderia soar mais jazzy. Penso que o piano de Olinda não acompanhou o humor da peça, mas mesmo assim a dupla foi soberba. Complicado de aguentar foi o romântico tardio Guastavino que ameaçou melar o Clio com seus favos. Não acredito muito nisso, mas o Diego me disse que pensou em mim durante a execução. A coisa teria sido mais ou menos nestes termos: o Milton deve estar detestando tanto romantismo… É verdade, mas também é verdade que ele é uma pessoa gentil.
A coisa melhorou muito com o para mim desconhecido inglês Finzi. Suas bagatelas formam um mosaico tristonho, mas há joias na peça, como os dois últimos movimentos, Forlana — o preferido da neocolorada Elena — e Fughetta.
Mas o melhor ficou para o fim: a Sonata de Poulenc dedicada a postumamente a Arthur Honneger e que Benny Goodman estreou. Muito pessoal, tem uma estrutura que foge do padrão rápido-lento-rápido das sonatas tradicionais, tanto que o primeiro movimento –, que recebe o título um tanto paradoxal de Allegro tristamente — é ele próprio dividido nas três seções descritas. Como outras obras de Poulenc, a sonata parece incontrolável, sempre em movimento, mas, curiosamente, ela mantém o sentimento de luto. Como? Realmente não sei.
O segundo movimento , Romanza, é claro e violento. A melodia do clarinete é simples e sombria mas perde a compostura ao fazer o clarinete gritar desesperadamente, lembrando a ausência de Honneger. O terceiro movimento é delicioso e a gente esquece da morte. Diego e Olinda estiveram perfeitos numa peça que exige expressões variáveis e nada triviais ou comuns.
Foi uma bela noite de música de câmara. Ao final, atopetados na entrada, ninguém queria ir embora do StudioClio. Que outros músicos repitam e mostrem suas caras! E repito: existe algo melhor do que a música de câmara? Ainda mais na excelente acústica do StudioClio, nosso Wigmore Hall?
Stephen Bantu Biko, ou Steve Biko, nasceu em 18 de dezembro de 1946 e morreu em 12 de setembro de 1977, aos 30 anos, após ser preso e torturado. Ativista anti-apartheid da África do Sul na década de 1960 e 1970, Biko não faz somente parte da memória política da África do Sul, mas também da memória da cultura ocidental. O Movimento da Consciência Negra de Biko agregou para si o slogan Black is Beautiful, que nos Estados Unidos destinava-se a dissipar a noção de que as características físicas dos negros — como cor da pele, detalhes do rosto e cabelos — seriam feias. O movimento também incentivava homens e mulheres a pararem de esconder seus traços afros alisando o cabelo, clareando a pele, etc. Porém, na África do Sul, a luta análoga era outra, muito mais básica, e o Black is Beautiful de Biko significava algo como “você tem que olhar para si mesmo como um ser humano e aceitar a si mesmo como você é”.
A música brasileira homenageou o movimento norte-americano através da belíssima canção homônima dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, famosa na versão de Elis Regina.
O roqueiro inglês Peter Gabriel foi mais direto e escreveu Biko, verdadeiro hino cujas primeiras palavras são September ’77 / Port Elizabeth weather fine / It was business as usual / In police room 619.
Mas tais referências culturais são apenas ornamentos para a vida de um grande mobilizador da população negra sul-africana. As muitas organizações fundadas por Biko iam no caminho inverso das lições de inferioridade racial ministradas aos negros por ordem do governo da África do Sul. Ele desejava que os negros tivessem consciência de suas capacidades, que pudessem ocupar cargos destinados apenas aos negros, além do fim da educação limitada, pois muitas disciplinas simplesmente não podiam ser ministradas aos negros do país.
Em 18 de agosto de 1977, Biko foi preso em uma barreira policial e interrogado por oficiais da polícia. Esse interrogatório ocorreu na sala de polícia nº 619 do Edifício Sanlam em Port Elizabeth. O interrogatório durou 22 horas e incluiu tortura e espancamentos, resultando em coma. Ele sofreu graves ferimentos na cabeça e, após as torturas, foi acorrentado às grades de uma janela durante um dia inteiro.
Dias depois, em 11 de setembro de 1977, a polícia resolveu levá-lo, nu e algemado, para uma prisão com instalações hospitalares, mas ele morreu logo após chegar, em 12 de setembro. A polícia divulgou que sua morte foi resultado de uma prolongada greve de fome, mas a autópsia revelou múltiplas contusões e escoriações. Seu fim deveu-se a uma hemorragia cerebral. O jornalista Donald Woods, editor e amigo de Biko, e Helen Zille, mais tarde líder do partido político da Aliança Democrática, expuseram a verdade sobre sua morte.
A notícia espalhou-se rapidamente. O funeral foi assistido por mais de 10 mil pessoas, incluindo numerosos embaixadores e outros diplomatas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. O mesmo Donald Woods fotografou seus ferimentos no necrotério. Woods foi mais tarde forçado ao exílio, passando a fazer campanha contra o apartheid na Inglaterra. Também foi autor do livro Biko, mais tarde transformado no filme Cry Freedom, de Richard Attenborough, com Denzel Washington no papel de Biko.
Em 1978, a Justiça sul-africana decidiu que não havia provas suficientes para acusar os oficiais de homicídio. Faltariam testemunhas. E, em outubro de 2003, o Ministério da Justiça Sul-Africano anunciou que os cinco policiais acusados de matar Biko não seriam processados também em razão de insuficiência de provas.
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Steve Biko nasceu em Ginsberg, bairro de King Williams Town. O nome do bairro é o do dono da fábrica de velas instalada no local no início do século 20. Ginsberg não gostava que seus empregados fossem muito longe quando não estavam na fábrica. Então, conseguiu que a administração municipal mandasse construir em torno dela as primeiras casas do futuro bairro.
Foi em uma dessas casinhas que Steve Biko cresceu. Foi criado pela mãe Alice, cozinheira no hospital vizinho. Inteligente e com grande capacidade de liderança, Biko estudava medicina quando foi expulso da Universidade da Província de Natal, no ano de 1972, em razão de suas atividades políticas. No ano seguinte, foi “banido” pelo governo do apartheid. A punição era incrível: ele não estava autorizado a falar com mais do que uma pessoa de cada vez. Também não podia escrever publicamente ou falar com a imprensa. Esta também foi proibida de citar qualquer coisa que ele dissesse.
Steve Biko tinha grande preocupação com o desenvolvimento de uma consciência negra. Pensava que tal desenvolvimento teria duas fases: a primeira seria de “libertação psicológica” e a segunda de “libertação física”. A bibliografia aprecia fazer a ligação entre Biko e a não-violência de Gandhi e Martin Luther King, mas ele sempre entendeu que a libertação física só se daria fora das realidades políticas do apartheid. Ou seja, havia antes que derrubá-lo. Outro fato que costuma ficar oculto são suas posições políticas. “Racismo e capitalismo são faces da mesma moeda”, dizia.
Em 1972, Biko foi um dos fundadores da Black Peoples Convention (BPC). Trabalhava em projetos de melhorias sociais nos arredores de Durban. Com o tempo, o BPC acabou por reunir cerca de 70 diferentes grupos de consciência negra e associações como o South African Student’s Movement (SASM), que desempenhou um papel significativo na Revolta de Soweto de 1976, a National Association of Youth Organisations e a Black Workers Project que apoiaram os trabalhadores cujos sindicatos não foram reconhecidos sob o regime do apartheid. Biko foi eleito o primeiro presidente do BPC e, como recompensa, recebeu a citada expulsão da escola médica.
Sobrou-lhe trabalhar em tempo integral para o BCP. Mesmo banido pelo apartheid, Biko ajudou a criar Zimele Trust Fund, fundo de assistência financeira a presos políticos e a suas famílias. Steve Biko era considerado perigoso pela habilidade para organizar a população e porque procurava investir nas comunidades e inspirar a juventude negra do país.
As circunstâncias brutais da morte de Biko tornaram-no um mártir e um símbolo da resistência negra ao regime de apartheid. Logo após seu assassinato, o governo sul-sfricano proibiu que uma série de pessoas falassem — incluindo Donald Woods — e fechou várias organizações, especialmente os grupos da Consciência Negra associados a Biko. O Conselho de Segurança das Nações Unidas respondeu com um embargo de armas contra a África do Sul.
Representando este homem também interessado por artes, educação e desenvolvimento econômico, a família Biko recusou a ideia de construir um mausoléu. Um túmulo grandioso talvez o retirasse da companhia de camaradas enterrados, como ele, em modestos pedaços de terra.
Nelson Mandela disse a respeito de Biko: “Eles tiveram que matá-lo para prolongar a vida do apartheid“.
É óbvio que nós não fomos ao Equador para jogar bem, fomos especular e um ponto estaria de bom tamanho. Afinal, entramos com três zagueiros (Juan, Réver e Ernando) e três volantes (Freitas, Nilton e Aránguiz). Sobram dois laterais em crise técnica (Leo e Fabrício) e apenas duas esperanças de bom futebol (Alex e Sacha). Ou seja, era para marcar bem e jogar mal e foi o que fizemos, ao menos até a expulsão de Lastra, quando nos tornamos péssimos.
O Emelec achou um gol no primeiro tempo. Digo “achou”, porque tratou-se da única chance dos equatorianos e foi um lance bastante estranho, improvável mesmo. O jogo virou em 1 x 0 para o Emelec. No início do segundo tempo, o Emelec ficou com dez jogadores e o Inter logo empatou o jogo com Vitinho, que entrara no intervalo no lugar de Aránguiz. (Aliás, quando é que o chileno voltará da Copa do Mundo?). O incrível foi que, após o empate, começamos a tomar um baile dos dez remanescentes deles. Não conseguimos em momento nenhum ameaçar o gol de Dreer. Com onze em campo, o negócio era avançar sobre o adversário na base da troca de passes, mas como fazê-lo se não acertamos três passes consecutivos, Aguirre? E os laterais conseguiram o difícil milagre de errarem TODOS os cruzamentos. Acho que gostaram de ver o goleiro Dreer erguer os braços sozinho em sua pequena área para pegar cada um deles.
Uma coisa, Aguirre. Nosso próximo jogo na Libertadores 2015 será só no dia 16 de abril, em Santiago, contra a Universidade do Chile. Até lá, precisamos de um time mais compacto e com melhor toque de bola. É impossível continuar com esse futebol deficiente. Nossa defesa ontem foi novamente muito mal contra um time desfalcado. Não vamos longe desse jeito. Aliás, para bom entendedor, foi o que disseste ontem nas entrevistas pós-jogo. Vamos com os titulares no Gauchão ou seguirás preservando-os? Pensam que eles devam jogar e jogar. Estamos em março, o preparo físico já deve ter chegado e está na hora de eles demonstrarem a que vieram.
Gentileza gera gentileza. Antes do concerto, já num camarote lateral do Theatro São Pedro, fiz questão de abrir lugar na frente para uma pessoa que sentara atrás. Ele disse que não precisava coisa e tal, mas agradeceu e sentou. Ao final do concerto, dei-me conta de que tinha perdido minha caneta. Não é uma caneta valiosa do ponto de vista financeiro, mas fera um presente de meu pai, falecido em 1993. Como já tive recentemente roubado o relógio de bolso (de ouro) Omega de meu avô, de 1923, além de outras coisas que me foram afanadas, estava irritadíssimo com mais esta perda que me deixaria mais longe daquilo que foi minha nada nobre origem (mas minha). Chamando-me de idiota, retornei aos dois camarotes de onde assistira o concerto, vasculhei ambos e, na volta, quando passava novamente pelo saguão do teatro, lá estava a pessoa para qual abrira lugar. Ele estava me procurando com uma caneta na mão. Agradeci muito, mas esqueci de perguntar o nome daquele rapaz de camiseta azul.
O programa do concerto era bastante curioso, parte dele baseado em artes plásticas. Explico abaixo. O programa:
Hector Berlioz – Les Nuits d´eté, op. 7
Sergei Rachmaninoff – A Ilha dos Mortos, op. 29
M. Mussorgsky / M. Ravel – Quadros de Uma Exposição
Regente: Rodolfo Fischer
Solista: Denise de Freitas (mezzo-soprano)
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Les Nuits d’ été (As Noites de Verão), Op. 7, é um ciclo de canções de Hector Berlioz baseado em seis poemas de Théophile Gautier. Há diversos arranjos do próprio Berlioz para as peças. O original era para piano, claro. O título da coleção de música é uma homenagem ao título francês de Sonho de Uma Noite de Verão de Shakespeare. O mezzo-soprano Denise de Freitas tem voz e musicalidade espantosas. É uma baita cantora e foi um enorme prazer ouvi-la, mas seria ainda melhor se Berlioz não fosse o chato que é. As águas profundas e limpas trazidas por Denise não caíram bem na estagnação berliozana.
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Em 1906, tentando fugir da agitação política do czarismo agonizante, buscando um local onde pudesse compor com tranquilidade, Rachmaninoff mudou-se com todo o seu tamanho e mãos acromegálicas para a Alemanha. Foi para a bela Dresden. Lá, um editor sugeriu-lhe a composição de um poema sinfônico sobre o quadro A Ilha dos Mortos, de Böcklin (acima). Ele sabia que Rachmaninoff compunha quase sempre inspirando-se em um livro, um poema ou um quadro.
O pintor suíço Arnold Böcklin (1827-1901) teve uma vida marcada por perdas familiares, depressão e pobreza. Como era de se esperar, tantas desgraças criaram uma arte sombria e funérea. Em 1880, em Florença, uma sonhadora viúva encomendou-lhe um quadro que possuísse uma atmosfera de sonho. Então, Böcklin pintou-lhe sua obra mais famosa, a ultra soturna A Ilha dos Mortos.
Rachmaninoff vira uma reprodução do quadro, em preto e branco, no verão de 1907. Quando, no início de 1909, o editor Struve sugeriu-lhe uma composição inspirada em A Ilha dos Mortos, Rachmaninoff logo aceitou, pois aquela imagem o perseguia. Ao saber que uma das versões do quadro encontrava-se em Leipzig, a cem quilômetros de Dresden, ele foi conhecê-la. Mas… “Eu não me senti tocado pela cor da pintura. Se eu tivesse visto o original antes, talvez não tivesse composto A Ilha dos Mortos. Eu prefiro em preto e branco”. O estranho é que Hitler, Lênin, Freud, Dalí e Strindberg também amavam o quadro de Böcklin.
A coisa é sombria mesmo. E boa. Para meu gosto é a maior obra de Rachmaninov. Não há nada ali que chegue perto do romantismo melado que o autor tanto praticou. Quem conhece poderá ouvir na música fragmentos do tema gregoriano do Dies irae, que por séculos foi utilizado na Missa de Réquiem. O regente Fischer e a Ospa deram excelente interpretação à fantasmagórica obra, totalmente destituída de felicidade.
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Quadros de uma Exposição é uma suíte para piano por Modest Mussorgsky. Viktor Hartmann, arquiteto e pintor, grande amigo de Mussorgsky, havia falecido recentemente, aos 39 anos de idade, nos idos de 1873. No ano seguinte, aconteceu uma exposição de seus quadros numa galeria de São Petersburgo. Após visitá-la, o compositor resolveu prestar uma homenagem ao amigo. Escolheu dez dentre os quadros expostos e compôs uma música para cada um deles. Uniu-os através de um tema comum (o “Promenade”). Era o passeio, a caminhada do flâneur de um quadro a outro. (Importante: os quadros de Hartmann foram perdidos). As melodias são mega nacionalistas e o estilo de piano é inovador em sua austeridade sartoriana.
Tudo isso era muito estranho, pois estávamos numa época em que o piano era instrumento de brilho virtuosístico. Deste modo, a suíte foi deixada de lado por um bom tempo. Mas Claude Debussy era admirador de Mussorgsky e estudou bastante esta suíte. E Ravel fez mais e melhor.
No verão de 1922, atendendo a um pedido de Serge Koussevitzky, Ravel orquestrou a peça. E salvou Mussorgsky do limbo eterno. Só que Ravel fez tudo do seu jeito. Com sua incrível habilidade de arranjador, soube extrair intenso colorido da obra, dentro do espírito dos temas.
Para deixar a obra ainda mais célebre, no ano de 1971, o grupo de rock progressivo Emerson, Lake and Palmer, gravou ao vivo uma versão rock da suíte. Mostrei esta versão hoje para a Elena, que ficou muito surpresa…
A interpretação da Ospa teve bons momentos, como os solos de trompete de Elieser Ribeiro. Mas o fraseado e sofisticação de Elieser não foram acompanhados pelo restante da orquestra, que respondiam em estilo bem mais simples. Contrariamente ao Rach, Fischer nos ofereceu uma versão indulgente, opaca e descuidada da obra. Uma música tão vivaz apresentada daquela forma?
O concerto valeu, e muito, pelo Rachmaninov. É incrível que eu diga isso — costumo detestar Rach! –, mas foi o que achei. O resto foi ornamento pobre, só que saí de lá satisfeito com a música e com minha caneta.
Meu amigo Carlos, um paulista que nunca tinha visitado Porto Alegre, veio trabalhar aqui por alguns dias. Foi difícil conciliar nossos horários. Porém, lá por quinta-feira, ele me telefonou para dizer que passaria também o fim-de-semana na cidade e que desejava combinar um encontro em que eu teria de explicar-lhe umas coisinhas sobre a cidade. Marcamos para conversar na sexta-feira à noite, no Bar do Beto lotado, em meio ao maior barulho.
— Milton, me diz porque eu andei por todo o lado desta cidade e não vi o rio. Esta porra é um porto ou não?
— Olha, comecemos do começo, bem do começo. Parece que não somos banhados por um rio e sim por uma lagoa.
— ?!
— Pois é, na minha época de estudante, diziam que o Guaíba era um estuário, que é um tipo de foz mais larga que o normal. Mas agora virou lagoa… É que aqui deságuam vários rios que vão dar na Lagoa dos Patos…
— Não entendi nada, mas me diz porque eu não vi o rio.
— Não o procuraste direito.
— Mas eu andei pelo centro, pelo tal Mercado Público que devia estar na frente do porto e não vi nada.
— É que houve uma enchente em 1941 que inundou o centro da cidade, então construíram um enorme muro para evitar uma nova enchente, só que ela nunca ocorreu e, bem, ficamos com uma muralha que nos impede de ver do rio. Para vê-lo tem que entrar por uns portões. Dá para ver o muro do Mercado Público.
— Acho que vi. Mas como é que foi inundar a cidade se a água vai para uma lagoa que deságua no mar?
— Não sei, talvez os ventos tenham represado as águas por aqui.
— Pode ser. Mas você acha normal que construam um muro bem na frente daquele que seria potencialmente o cartão postal da cidade?
— Não, é totalmente anormal. Temos uma relação difícil com o rio.
— Lagoa.
— Sim, lagoa. Tens que ir mais longe para vê-lo, ou vê-la, desculpe.
— E o porto?
— Fica escondido atrás do muro.
— E por que o estádio Beira-rio tem este nome se fica ao lado de uma lagoa?
— Não sei. Provavelmente por ignorância e porque todo mundo chama o Guaíba de rio.
— E por que a rua principal do centro chama-se Rua da Praia, se não tem praia?
— É que havia antes, mas aí poluíram tanto que hoje só dá para olhar. É “imprópria para banhos”.
— Olhar? Com o muro na frente?
— É, já disse, é difícil de olhar, tem que caminhar um pouco.
— E as pessoas tinham que contornar o muro para tomar banho?
— Antes do muro não, né? Só depois. Mas no final da Rua da Praia não há muro.
— Ah.
— E por que todo mundo chama de Rua da Praia se o nome é Rua dos Andradas?
— Antigamente, há uns 50 anos, era Rua da Praia.
— Mas ninguém diz Andradas?
— Não, ninguém. Sabes que o nome da Av. Beira-rio é Av. Edvaldo Pereira Paiva?
— É?
— E que a Rua da Ladeira chama-se Gen. Câmara?
— Hum… Subi a ladeira. Há boas livrarias ali.
— E que o Estádio Olímpico, do Grêmio, tinha este nome devido aos Jogos Olímpicos de Porto Alegre?
— Que nunca aconteceram!
(risadas)
— E o rio, a lagoa, é bonitinha?
— Sim, muito. Tem um desenho de ilhas bem aqui na frente que é muito interessante.
— Só que não se vê.
— Sim, só se vê o desenho delas do alto de alguns edifícios..
— Vocês são uns neuróticos.
Naquele momento, passou uma morena equipada com um rosto e sorriso lindos. Meu amigo quedou-se mesmerizado.
— De onde saiu esta maravilha, Milton? Me explica isto! Estou estupefato. A beleza doeu fundo em mim. A beleza dói quando é excessiva. É injusto. É injusto para quem apenas vê sem tocá-la.
Dia desses, tomei uma mijada por escrever posts tão pessoais quanto este. Levei bastante a sério a advertência — em geral, costumo receber bem as críticas — porque vinha de um querido amigo, mas não vou permitir mais autocensura.
No meu blog, eu me coleciono, para o bem e para o mal. Como isso aqui é uma especie de retrato meu, não consigo levá-lo tão a sério. Publico o que me dá na veneta, sendo às vezes muito pessoal. Ou seja, os posts de foro íntimo seguirão. E a vida já está difícil, o gênero confessional já foi a regra deste blog. Os posts em que falava sobre meu umbigo já foram muito mais numerosos e vão continuar aqui e ali. Acho que já convivo com demasiada autocensura. Sabem onde há autocensura? Vou tentar explicar abaixo.
Como um dos editores do Sul21, não me sinto mais com toda aquela liberdade do passado. Não posso tirar sarro de forma escrachada de alguém que vamos entrevistar um dia, por exemplo. Os repórteres reclamariam de mim: Pô, Milton, o cara estava de má vontade por tua causa. Os assuntos políticos também ficaram mais raros, claro, pois há alguns assuntos que evito. Por exemplo, sabem que eu paguei R$ 11.257,00 para a Mônica Leal em 2014, por conta de uma publicação e de um juiz de direita? Isso intimida e gera mais autocensura. Tive de pagar porque era a única forma abrir o inventário de minha mãe. Só não pedi ressarcimento pelo Catarse porque uma amiga me prometeu fazer voltar cada centavo a meu bolso quando vencer outra ação.
Não gostaria de agregar mais autocensura e deixo para meu amigo dois poemas nos quais pensei enquanto escrevia.
Um de Drummond (os primeiros versos de Mundo Grande):
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo, por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
E outro de Chico Buarque (esse uma óbvia vingança por ter sido ameaçado de não poder falar de meu amor por Elena). É o final de Juca::
Juca ficou desapontado
Declarou ao delegado
Não saber se amor é crime
Ou se samba é pecado
Em legítima defesa
Batucou assim na mesa
O delegado é bamba
Na delegacia
Mas nunca fez samba
Nunca viu Maria [leia-se Elena].
Isso não diminui a notável coleção de erros do PT, porém, se os protestos eram contra a corrupção, por que só vi cartazes contra o PT? E o PP, o PMDB, o PSDB? E o religioso Eduardo Cunha, e Renan Calheiros, presidentes da Câmara e do Senado? E os outros? E, bem, falar em intervenção militar, reclamar de bolivarismo, por favor… Aí já é muita tolice.
Dilma não foi nada inteligente ao ser votada pela esquerda para depois tentar governar com a direita. Desagradou todo mundo que não encara o PT como seu time de futebol. Perdeu seus formadores de opinião e, agora, as ruas.
O resultado é que doravante vamos ter que nos ver com a massa cheirosa. E ainda temos a bancada religiosa no poder. Boa parte deste pessoal de amarelo tem ideias muito primárias e esses evangélicos… Não vou conseguir lhes contar que grande merda de ano será 2015.
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Falei em futebol ali? Pois é. Segunda é dia de futebol neste blog. Como o Gauchão só interessa mesmo na fase final e olhe lá, vamos tratar de um enorme buraco, um rombo recorde.
Meus sete leitores sabem que eu detesto Giovanni Luigi Calvário (seu nome completo) tanto quanto o Roberto Siegmann. Discordo da forma como Luigi pensa, age, fala, caminha, do jeito que ele escova os dentes. Um líder sem ideias tende a cercar-se de outros incompetentes e foi o que ele fez por quatro anos. O organograma parecia uma árvore de incapazes. Quase deixei de pagar a mensalidade do clube quando Luigi se reelegeu sem ir para o pátio. Aquele mês, em mais de duas décadas, foi a única vez em que atrasei o pagamento. Mas pago e, por isso, posso falar.
Daqui alguns dias, Luigi vai entregar o balanço do ano passado. Já se sabe que o déficit será de R$ 49 milhões. Isso só no ano passado. Um resultado verdadeiramente vermelho. O Inter gastava os tubos em contratações, contratos longos e trocas de técnicos, enquanto o futebol era uma verdadeira piada em campo. Tentativa e erro, tentativa e erro, sem uso do cérebro e da observação, sem um projeto.
Claro que isso chegará ao futebol. Os efeitos da administração Luigi durarão anos. Espero que não se tornem nossa Arena.
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O Gauchão segue como se espera. No início de março, com a dupla igualada ao restante dos times no quesito preparo físico, sua qualidade aparece e até o time de reservas do Inter vai a Pelotas e bate o Brasil. É muita diferença, não é um campeonato entre iguais. É Grêmio x Inter, só. Esses regionais…
Há cem anos – em 1914, dia 26 de agosto –, nascia Julio Cortázar. Eu poderia seguir assim por páginas, mas sei que o velho cronópio não tinha paciência com a burocracia, daí que pensei em comemorar a data redonda de um modo não muito redondo, às vezes me deixando levar por digressões entusiasmadas. Mais, como o texto foi escrito faz um certo tempo e retomado várias vezes, contém acréscimos em forma de ps, o que, em minha opinião, deixou tudo mais vivo, ou desleixado se você quiser.
Gabriel García Márquez disse que “Os ídolos infundem respeito, admiração, carinho e grandes invejas, claro. Cortázar inspirava todos esses sentimentos como muito poucos escritores, mas além disso inspirava outro menos frequente: a devoção”. Aí está: devoção. Mas por quê? Que diabos Cortázar tem que desperta devoção em tantos leitores? Eu mesmo, um leitor bastante crítico, até maledicente segundo os maledicentes, continuo devoto. Por quê? O texto a seguir é, entre outras coisas, uma tentativa de resposta a essa perguntinha.
Um tal Julio ou amores literários
“A melhor qualidade de meus antepassados é a de estarem mortos; espero modesta mas orgulhosamente o momento de herdá-la. Tenho amigos que não deixarão de me fazer uma estátua em que me representarão de bruços no ato de chegar a um charco com rãzinhas autênticas. Botando uma moeda numa ranhura, me verão cuspir na água, e as rãzinhas se agitarão alvoroçadas e coaxarão durante um minuto e meio, tempo suficiente para que a estátua perca todo o interesse.”
Julio Cortázar, Rayuela.
Grandes escritores há muitos, mas amados são poucos, não? Faça as contas: quantos você ama? Admiração e simpatia não valem. Falo de amor a sério, tipo Romeu e Julieta, Dante e Beatriz, Jane Calamidade e Wild Bill Hickok, por aí.
Você ama Dostoievski? Ama Flaubert? Certamente há quem ame, como Mario Vargas Llosa a Flaubert e Robert Arlt a Dostoievski, mas você, mas multidões? Eu sou permissivo em matéria de literatura. Demais, quem sabe. Tenho paixões, casos, flertes: Julio Cortázar, Mario Quintana, Jorge Luis Borges, Stendhal, Gogol, Turguenev, Tchecov, Rabelais, Cervantes, Melville, Stevenson, Graham Greene, John le Carré, Georges Simenon, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Sérgio Faraco, Ivan Lessa, Luis Fernando Verissimo, Rex Stout, Erle Stanley Gardner, Edgar Allan Poe, Dickens, J. D. Salinger, Philip K. Dick, Brian W. Aldiss, Stanislaw Lem, Raymond Chandler, Ross Macdonald, Sófocles, Henry Miller, Campos de Carvalho, Irmãos Grimm, Kafka, T. S. Eliot, Drummond, Rubem Braga, Ítalo Svevo, Anne Tyler – eu poderia continuar por páginas e assim mesmo esquecer alguns. Olha aí, tinha me esquecido de Nabokov, como é que pode?
Se alguém estranhar na mesma lista nomes como Borges e Stout, Melville e Gardner, meus mais sentidos pêsames. Isto aqui não é um concurso de seriedade. Isto é uma festa. Falo de amor ou de puro prazer. Também falo de inquietações, mas vamos deixar para os bustos de bronze a pose de intelectual preocupado com o grave destino deste vale de lágrimas.
Se na hora de subir na arca Noé reclamasse do excesso de bagagem? Se eu pudesse levar apenas um autor? Acho que escolheria Cortázar. Cheio de remorsos eu escolheria Cortázar. Sei que minha escolha será apoiada por muitos com grande algazarra. Com Cortázar sim pode-se falar de multidões. Por quê? Não acho que tudo o que ele escreveu seja divino, maravilhoso, pelo contrário, mas continuo fiel, mesmo com Borges tomando a dianteira todo santo dia, mesmo que hoje eu mal suporte algumas coisas que me encantaram na adolescência, como certa partes de Los premios, por exemplo. Isso apenas complica a pergunta, não?
Tenho uns palpites. Quer dizer, eu pensava que tinha, porque há meses tento escrever estas notas e em poucas frases acabo enrolado nos meus próprios argumentos. Quando consigo ser legível, não passo disso – falta cor e brilho ao meu texto. O pobre parece um anúncio de néon desligado: informa mas e daí? O mais sensato seria desistir, só que aí me sinto injusto: Cortázar faz parte da minha biografia, não posso, não devo nem quero silenciar.
O jeito talvez seja ir lembrando algumas leituras.
Primeiro Round
Foi amor à primeira leitura. Uma colega de aula, a jornalista Heloísa Golbspan, me emprestou Los premios. Que susto! Então era possível escrever assim? Adolescente sem a mínima graça, ainda não tinha metido na cabeça ser humorista, mas era freguês de caderno (H) de Mario Quintana e fazia plantão na banca de jornal, toda semana, à espera do Pasquim. O diabo é que agora encontrava o humor e a irreverência num romance. Eu não era um ignorante total, conhecia Oscar Wilde, Mark Twain, o Machado de Assis de O alienista e o García Márquez de Cem anos de solidão, mas faltava a eles alguma coisa. Por mais que eu me divertisse, por mais que eu me encantasse, não poderia dizer: estão falando comigo, diretamente comigo, como a um camarada ali no bar da esquina – sem solenidade, sem impostura. Se você não é sensível a isso, sinto muito, meu nego, mas nunca me convide pra um chope.
Fiquei louco com a intimidade que sentia com os personagens. Mal tinha começado o livro, me vi sentado com Lopez no London bebendo uma Quilmes Cristal não muito gelada. Era isso. Até a temperatura da cerveja era real. Como esse tal Cortázar conseguia isso? Como conseguia que eu aceitasse tão prontamente o seu jogo? Por que eu me sentia participante desse jogo? Por que logo eu me esquecia de que era um jogo?
Na certa o humor influi. Não uma série de tiradas, de gracinhas, que podem perturbar, mas um jeitinho, o astral de algo que está como quem não quer nada entre as palavras e vai se infiltrando em nosso sangue e logo rola manso em nossas veias como os primeiros goles de um bom tinto. Isso modifica nossa disposição para com a – suspiro – vida. Não é que a gente se torne indulgente, é que há uma espécie de desdramatização, ou a supressão daquele ar de peste que liquida com tantas ficções, porque Los premios tem muitos momentos dramáticos. Cortázar anota ridículos e infâmias dos seus personagens sem tremer a mão, mas há, sei lá, compaixão e ternura – ele nos diz as piores coisas sobre nós mesmos sem que haja aí uma ânsia de extermínio da humanidade.
Outra coisa: o mimetismo. Parece uma besteira, mas só quem tentou sabe como é difícil. Cortázar se cola nos personagens: o que está escrito é o que eles pensam, sentem e veem. Mais: o texto não nos informa sobre uma ação, tenta ser essa ação – isso nos puxa para dentro do livro. O autor é um intermediário invisível entre o que é dito e nós, leitores.
Releio os dois últimos parágrafos com cansaço. Explicam um pouco, mas não o que importa, o estado de graça efervescente em que o livro me deixou. Cortázar uma vez disse: “Essa biblioteca me deu milhares e milhares de horas de felicidade. Quando escrevo sou feliz e penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando digo felicidade não estou dizendo felicidade beata: pode ser exaltação, amor, raiva, digamos: potenciação”.
Estamos ficando quentes. Você, não sei, mas eu realmente me senti feliz, o que acabou sendo um problema. Depois de provar o gostinho da felicidade, a maioria dos autores se tornou muito chata, muito mais chata do que já me parecia. Na certa isso acontece com outras pessoas em relação a outros escritores e na certa, como eu, sentem que tiveram uma sorte danada, que de algum modo foram salvas. Salvas, entende-se, de passar o resto da vida à procura da ponta do próprio nariz.
PS: Outro dado nada desprezível: Cortázar procurava evitar os truques sempre, ou criava novos. É preciso muita cancha ou muitas releituras para se saber como foi que ele escreveu, principalmente os contos. Mas alguns desses contos me resistem até hoje. Parece que sempre existiram, como pedras, árvores, rios. Parece que apenas usaram Cortázar para se revelar. Eu ao menos não consigo pensar no mundo sem “La casa tomada”, “Después del almuerzo”, “Circe” ou “Las fases de Severo”. O próprio Cortázar repetia não ter mérito pelos contos, não ser responsável por eles, que era o primeiro a se surpreender com o que saía da máquina.
PS2: Pensando em contos como “Las fases de Severo”, “Circe”, “Después del almuerzo”, “Cefalea”, “Las puertas del cielo”, “Cartas a mamá”, “El perseguidor”, “Los venenos”, “La puerta condenada”, “Las Ménades”, “Final de juego”, “Intrucciones para John Howeell, “Todos los fuegos el fuego”, “El otro cielo”, “Los pasos en las huellas”, “Manuscrito hallado en un bolsillo”, “Verano”, “La noche de Mantequilla”, “Tango de vuelta”, “Fin de etapa”, “Satarsa”, “La escuela de noche”, “Pesadillas”, “Silvia”, “Siestas” e “Ciao, Verona” me pergunto: Cortázar é mesmo um autor só pra adolescentes? Deve ser. Tenho visto muitos adolescentes com quarenta ou cinquenta anos ou mais. Na verdade, tenho visto até alguns vovôs ainda em plena adolescência.
Outra coisa: muitos críticos dizem que lá pelas tantas Cortázar começou a se repetir, que contos como “Noche boca arriba” e “Todos los fuegos el fuego” ou “La puerta condenada” e “Cartas de mamá” são a mesma história contada do mesmo jeito. Nos primeiros, a mistura de tempos e lugares distantes. Nos outros dois, o horror despontando no final de uma situação cotidiana. Sim, e daí? São os mesmos problemas vividos por pessoas diferentes, daí o clima e as emoções serem outros. O próprio ritmo, que é fundamental em Cortázar, uma espécie de dança em que mete o leitor, também é diferente. Mas mesmo que nem clima, emoções e ritmo fossem diferentes, por que todo esse nariz torcido? Qual escritor não se repete? A rigor, pra não se repetir, o cara tem que escrever apenas um livro. Ninguém troca suas obsessões como quem troca de camisa ou cueca. Sem falar que, se vamos ver direito, temos uma tendência a usar camisas e cuecas do mesmo tipo.
PS3: Muitos meses depois, mas com Cortázar me acontece isso, retomo a conversa como se não houvesse interrupção nenhuma. Em Conversaciones con Cortázar, de Ernesto González Bermejo (Edhasa, 1978), há um trecho revelador:
Bermejo: “Las fases de Severo” talvez seja o conto mais inquietante de Octaedro, e o mais desconcertante”.
Cortázar: “Inquieta a mim mesmo. É como aquele continho de Bestiário, ‘La casa tomada’. Um dia me perguntei por que entre todos os meus contos esse inquieta muito mais do que os outros e agora acho que tenho a explicação: esse conto é a escrita exata de um pesadelo que tive.
“Sonhei o conto – com a diferença de que não havia ali esse casal de irmãos; eu estava sozinho –, o típico pesadelo onde você começa a ter medo de algo inominável, que nunca chega a saber o que é porque o terror é tão grande que você acorda antes da revelação.
“Nesse caso se tratava de uns ruídos confusos que me obrigavam a me atirar contra as portas, a fechá-las e a ir retrocedendo enquanto os ruídos continuavam avançando e algo tomava a casa.
“É curioso como lembro: era pleno verão em minha casa de Villa del Parque, em Buenos Aires; acordei banhado em suor, desesperado, frente a essa coisa abominável, e fui diretamente para a máquina e em três horas o conto estava escrito. É a passagem direta do sonho para a escrita.
“E então acho que o interesse que as pessoas têm por esse conto tem que ver não apenas com o prazer literário que possa lhe produzir, mas com algo que toca suas próprias experiências profundas. O que dizíamos de Jung e o inconsciente coletivo.
“‘Las fases de Severo’ nasceu de uma espécie de alucinação visual. Um dia eu estava lendo ou escutando música – não lembro bem – e num certo momento me apareceu mentalmente um rosto humano totalmente coberto de mariposas, de traças.
“Me produziu uma sensação de horror aquele rosto prateado, móvel, recoberto de milhares de animais, como certas máscaras astecas ou equatorianas.
“Foi tudo o que vi e, de repente, senti que o conto estava aí, que isso fazia parte de uma série de rituais. Mas isso não bastava para fazer um conto. Severo é uma espécie de profeta, de xamã que naquele clima de velório – onde parece que o estão velando – prediz os destinos, anuncia a ordem em que os presentes vão morrer. É uma coisa inventada no momento em que vi todo o conto, porque se me limitasse a descrever as fases, isso não teria sido um conto”.
É isso, me parece: somos presas do fascínio da literatura de Cortázar porque ela lida com nossas experiências mais profundas, porque essas experiências passam direto, ou quase, do sonho para o papel. A carga de emoção é avassaladora. Só depois, só muito depois, a razão ensaia alguma reação. Eu ao menos leio Cortázar como uma criança ouvindo contos de fadas, ou o botocudo ouvindo os mitos da tribo.
Parece um dado menor, mas não é, não: se apenas descrevesse as fases, não haveria conto. Se apenas descrevesse as fases, teríamos jornalismo. Sentimos as fases se formando sob nossos olhos – há a surpresa, o mistério do instante. Sentimos intimamente que o próprio Cortázar não sabia aonde aquilo ia dar nem o que exatamente significava. Ele pressentiu alguma coisa e está atrás, tocando de ouvido.
Segundo Round
Para rebater Los premios, a Heloísa – gracias, Helô – me emprestou Final de juego. Em seguida fui correndo comprar Bestiario. Desde o começo os contos de Cortázar me deram a impressão de alguém que acorda com uma aranha andando pela cara e que tenta se livrar dela com um tapa, imagem usada pelo autor em algum lugar. Sinto em cada linha a tensão, o desespero do gesto – o gesto é quase sempre inútil para o personagem, mas o personagem não renuncia a ele, nem se lamenta. Romantismo? Talvez também se possa chamar isso de saúde.
A gente sabe que cada conto (ou pelo menos os melhores) era uma aranha que Cortázar tirava de cima de si mesmo. Ao contrário de muitos, não morria abraçado com a aranha. Porque, se uma literatura cheia de aranhas não me leva a um exorcismo qualquer, nem parece admitir que essas aranhas tenham um avesso ou nem deem um segundo de folga, me sinto num jogo de cartas marcadas. Sou prisioneiro e o autor, uma espécie de carrasco. Deve-se notar que o carrasco também é um prisioneiro: ao escrever, o autor vive a aventura que eu, leitor, vivo em seguida. No fundo o carrasco é mais prisioneiro, porque o autor não conseguiu deixar de escrever, não teve opção, enquanto que eu posso muito bem ler umas linhas e atirar o livro pela janela e escolher outro.
Pra mim a leitura de um bom conto de Cortázar sempre foi a revelação da aranha sobre meu rosto com o consequente tapa. O tapa é que faz a diferença. Cortázar uma vez disse que, se não tivesse escrito Rayuela, talvez tivesse se atirado no Sena. Em Rayuela Horácio Oliveira enfrenta o diabo a quatro e no fim se mata, ou enlouquece, ou afunda na mediocridade, ou espera pacientemente recuperar o fôlego antes de tentar de novo. Seja qual for o final preferido pelo leitor, Oliveira se dá mal. Mas Cortázar se salvou através dele e nós, leitores, de uma certa forma também. Não afundamos num maelström de aranhas.
Mas houve mais, houve a invenção, houve o senso lúdico e não fui capaz de passar o fio de uma navalha entre eles. Claro que eu acho que deve ter de tudo um pouco, mas Cortázar me converteu à invenção para sempre. Acho que a realidade é um bicho muito arisco. Não se deixa nem apontar com o dedo, muito menos pegar. É preciso grande astúcia e paciência para surpreendê-lo um instante antes que fuja de novo. Parece que quanto mais a gente o persegue, mais o danado do bicho escapa e mais zomba de nós. A invenção, por aparentar fazer pouco caso do bicho, por aparentar estar se afastando dele, acaba burlando suas defesas, sem falar no que existiu em nós mesmos trabalhando a seu favor. É, se você inventa e é fiel à invenção, à sua lógica interna, suas opiniões sobre a Vida, sobre a Existência, sobre tantas coisas que se diz em maiúscula, têm menos chances de interferir e estragar a festa. Quando se inventa, o inconsciente, esse outro bicho arisco, acaba mostrando o focinho ou deixando a ponta do rabo de fora.
Depois, a invenção quase sempre é mais plástica. O que um jornalista poderia nos dar sobre um homem botando um blusão? Se for inteligente, é capaz de intuir algumas coisas sobre o homem, mas acho duvidoso ainda que essa reportagem, no caso de ultrapassar a mera correção, consiga chegar à beleza. Cortázar nos deu “No se culpe a nadie”, em Final de juego, conto que é um verdadeiro bailado de suspense e terror.
Mas veja, Cortázar não transformou uma situação cotidiana numa aventura mortal. Ele arrancou dela uma aventura mortal. Ele descobriu nela a aventura que estava latente – porque, estamos cansados de saber, não se inventa a partir do nada. Quem não lembra de se embaraçar com um blusão quando era criança? Aquela sensação de ficar meio amarrado, meio sufocado. O conto é essa sensação levada ao limite. Se Cortázar fosse realista, se dissesse que a gente sentiu isso, a coisa morria aí mesmo, podia ser um parágrafo não muito interessante numa outra história. Não. Ele nos faz reviver a sensação. O conto deu forma à sensação, como nos sonhos. A razão, as palavras vêm depois. Mas você pode muito bem passar sem elas. Algo em você, algo no fundo do seu sangue, já entendeu, já foi tocado. Ítalo Calvino, ao comentar esse conto, disse que se sentia surrado, fisicamente. Acho muito boa essa observação, não sei se porque senti a mesma coisa. A melhor parte do “sentido” desse conto é essa surra. Difícil explicar isso pra profe botar na ficha de leitura. Fica mais fácil a gente cavar com a pá da psicanálise ou encolher os ombros: ah, os fundos falsos da realidade.
Outro detalhe, talvez ligado a isso: os melhores contos de Cortázar me deixam a sensação de serem objetos, coisas entalhadas. Simenon é que dizia que escrevia assim, como um artesão trabalhando um pedaço de madeira. Cortázar tem um pequeno texto em que mostra como se veste uma sombra. Texto poético, erótico, mas podia muito bem ser uma metáfora da escrita, não? Com as palavras e o tato certos você pode vestir uma sombra mal entrevista entre outras. Se você a vestir direitinho, ela pode parecer sólida e tridimensional.
Quanto ao senso lúdico, nem sei por onde começar. Sabe-se, uma criança que não brinca é uma criança doente. O brinquedo é um espaço que a criança abre na realidade para instalar a própria realidade num modelo mais flexível e aí poder explorá-la, aí poder se expor. Mas e nós, marmanjos? Se alguns brinquedos já caducaram para nós, outros nos aguardam, basta termos preservadas essa disposição infantil de explorador e a capacidade de encarar a realidade não como um bloco de granito mas como uma massa de modelar.
A literatura é como o brinquedo, ou é um brinquedo, a criação de um território onde a gente ensaia outros gestos, onde busca um sentido. Mas Cortázar me pegou na hora em que o vi levando o brinquedo para dentro do brinquedo. Isso dobra as possibilidades de prazer de um livro e dobra a liberdade de movimentos do escritor, coisas que vão repercutir no leitor, se é que dois mais dois é quatro.
Terceiro Round
Não li, tomei um porre de Rayuela. Por vinte anos eu o esperava sem saber que o esperava e sem saber que preparava meu fígado apenas para ele. Foi de uma violência e de uma maravilha difícil de explicar e mais difícil ainda de engolir. Levei quase outros vinte anos e outros dez ou quinze autores para fazer um quatro razoavelmente equilibrado. Reli mais outros livros, sim, mas uma coisa é certa: tudo o que me aconteceu depois em literatura foi para me defender de Rayuela. A defesa começou a ficar interessante na hora em que passei a usar contra Rayuela as armas que a própria Rayuela me deu.
Já se disse que é um livro que agrada aos jovens. Só pode. Trata-se de uma busca – e uma busca nada sóbria. Cada página se levanta como um galo de briga contra tudo quanto é certeza, contra o que um crítico e Cortázar chamaram de status quo literário. Como eles, acho que é uma crítica imperfeita, quer dizer, o galo apanha em muitos momentos, mas veja a sangueira e o andar trôpego do vencedor. O mero sucesso de Rayuela é um sinal claro de que há algo de podre no reino das belas letras, detalhe que jamais entrará na cabeça dos Josué Montello ou Nélida Piñon desta vida, ou daquela gente que caiu de quatro com os malabarismos técnicos de Cortázar e pensa que isso é o melhor Cortázar, que isso é Cortázar.
Mas antes da crítica, muito antes na verdade, o que me encantou na época e continua me encantando agora é a atmosfera, o uso da linguagem (a luta contra os lugares-comuns, incluindo ainda os narrativos e psicológicos) e a fluência espantosa de Cortázar. Num mundo ideal, nenhum escritor seria considerado como tal se não fosse fluente, porém, contudo, todavia, as coisas sendo como são, vemos as livrarias cheias de autores que precisam de papel pautado pra escrever e deixam à mostra a bengala que usam entre uma palavra e outra. Notei, sem estranhar, que vários autores que insistem que Cortázar é um autor pra adolescentes, que eles mesmos se deslumbraram na adolescência e depois caíram si, quando ficaram adultos, fazem parte dessa turma da bengala e do papel pautado. Eles podiam se conformar com a mediocridade de um modo mais digno, me parece.
Não custava nada a Cortázar pegar Rayuela e fazer cortes, amarrar pontas, preencher vazios. Provavelmente teríamos um livro perfeito, mais um livro perfeito, mas não teríamos Rayuela. Cortázar se propõe uma espécie de esponja monstruosa que tenta absorver tudo, mesmo o que não pode ou não deve. Temos o romance e sua cozinha, o serviço sujo, confundindo assim um pouco leitura e escrita, o que exige maior participação do leitor, o que o torna quase um cúmplice, como virou moda dizer. Nas palavras de Cortázar, ou do personagem Morelli, Rayuela é o romance em gestação, autor e leitor vivendo-o juntos, no mesmo instante.
Isso tudo parece ligado ao improviso, que Cortázar amava no jazz e tentou transplantar para o papel. Mas não se pense que para Cortázar improviso era encher páginas de qualquer coisa que lhe passava pela cabeça e deixar por isso mesmo. O poder de associação e o senso de ritmo do homem são miraculosos, e treinados uma vida inteira. Logo nas primeiras palavras, nos grandes momentos, o texto acerta o passo, entra numa cadência e segue, nos levando juntos. Cortázar disse através de Morelli que “escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não por isso que chamam de pensamento e que faz a prosa, literária ou não (…). Esse balanço, esse swing em que a matéria confusa vai se formando, é para mim a única certeza de sua necessidade, porque apenas cessa compreendo que já não tenho nada que dizer. E é também a única recompensa de meu trabalho: sentir que o que escrevi é como as costas de um gato sob a carícia, com faíscas e um arquear-se cadenciado”.
Para isso é preciso uma entrega e uma vigilância totais. Qualquer interferência, qualquer cochilo, pronto, perde-se o fio das associações, perde-se o pulso do ritmo. Depois ainda tem que Cortázar revisava de forma implacável os seus textos – como disse Borges, nele cada palavra foi escolhida. Quer dizer, aquele ar de desleixo é apenas isso, ar. Como Juan, o herói de 62, Cortázar gostava de contar as coisas com uma espécie de desorganização artística, o que ajuda a disfarçar o esqueleto que sustenta a narrativa.
Por falar em ritmo, Cortázar era fanático por música. Inúmeras vezes disse que era um músico frustrado, que teria sido mais feliz na música do que na literatura. Pois é. Mas lendo-o, eu me pergunto: se ele não era, quem é músico, então?!
Cortázar é sempre movimentado, não tem nada de canção de ninar. Lemos longos trechos, onde não acontece grande coisa, de modo inflamado, como criança acompanhando o mocinho a toda no seu cavalo alazão, dando vinte tiros com seu revólver de seis. Isso é importante na medida em que muitos romances atulhados do que se chama ação se mostram intragáveis como ofícios burocráticos.
Rayuela ainda me deu o modo como Horácio Oliveira lida com as palavras, como já falei de passagem. Lembro direitinho de quando lia a cena final do primeiro capítulo, Oliveira às voltas com o cubo de açúcar no restaurante. O cubo caiu no chão e rolou, em vez de ficar parado “por razões paralelepípedas óbvias”. Não ri – não ri de pura surpresa. Eu acabava de descobrir um negócio chamado linguagem.
Foi uma sarna. Quanto mais eu me coçava, mais vontade tinha de me coçar. De tanto me coçar, com os anos comecei a achar que em grande parte do que escreveu Cortázar não se livrou das palavras: o fato de viver falando na traição delas, de surrá-las em público não demonstra como estavam ligados? Há momentos em que ele não nos deixa esquecê-las. Claro que as palavras são um prato cheio para o humor, mas não sei se não preferia um Cortázar menos luxuoso, menos exuberante às vezes. Balanço entre o autor que aponta para as palavras e o que as deseja invisíveis, como se fosse possível o leitor nem se dar conta de que lê.
Hoje, quando releio algum trecho de Rayuela, me dou conta de que continuo amando várias cenas, mas vejo com tristeza que outras parecem ter se esgotado. Quanto aos contos, bem, os que eu gostava mais são justo os que gosto cada vez mais. Talvez porque agora os compreenda melhor, porque agora sei das manhas e mesmo assim eles resistem.
Quarto Round
A lua de mel continuou febril: Todos los fuegos el fuego, Las armas secretas, Historias de cronópios y de famas, La vuelta al día en ochenta mundos, Último round, 62 – Modelo para armar e Octaedro. Eu não era mais um leitor, era um crente. Esses livros me pareciam e me parecem mais interessantes do que outros mais bem acabados, ou profundos. Talvez eu aceite suas fraquezas porque, além do charme avassalador, Cortázar se arrisca sempre, não engorda sobre território conquistado. A literatura de Cortázar é de combate permanente, linha a linha, muitas vezes contra si mesma e contra a literatura em geral, talvez sem razão às vezes, mas e daí? Essa atitude de busca, de invenção contra a rotina, de luta mesmo quando a sabe perdida de saída, me toca e então torço, me orgulho e agradeço. Quero ser assim quando crescer. Como se vê, com Cortázar – como com todos os que realmente valem a pena – não se trata apenas de literatura, mas de visão de mundo, de postura frente a essa baderna que chamam de realidade.
Aí vieram os anos de cão.
Estava tentado a deixar pra lá, não por covardia e sim por cansaço de ver que nas discussões em que entram a política e a religião as pessoas ouvem apenas o que querem muito mais do que nas outras. Mas é aquilo, se a gente cala… Como Cortázar é um autor cheio de babados formais, manadas de oligofrênicos evadidos das faculdades de Letras, na calada da noite, cometeram todo tipo de atentado ao pudor. A política naturalmente atraiu novas manadas, pitorescas como as outras, mas bem mais sinistras.
Eu poderia citar uma porção de ataques a Cortázar, ataques que vão da canalhice ao absurdo, sem faltarem os chiliques do mais deslavado nacionalismo. Seria divertido e instrutivo, só que agora me interessam principalmente duas coisas, a literatura e o militante Cortázar. Como minhas informações sobre o militante não são muito profundas, fico num ponto que me parece chave, abrindo aspas para um pequeno texto de Cortázar que saiu em Último round, chamado “No te dejes”:
“É óbvio que tratarão de comprar todo poeta ou narrador de ideologia socialista cuja literatura influa no panorama de seu tempo; não é menos óbvio que do escritor, e só dele, dependerá que isso não aconteça.
“Em troca, será mais difícil e penoso para ele evitar que seus correligionários e leitores (nem sempre uns são os outros) o submetam a toda gama de extorsões sentimentais e políticas para forçá-lo amavelmente a se meter cada vez mais nas formas públicas e espetaculares do ‘compromisso’. Chegará um dia em que, mais do que livros, lhe reclamarão discursos, conferências, assinaturas, cartas abertas, polêmicas, idas a congressos, política.
“E assim esse justo, delicado equilíbrio que permite seguir criando uma obra com ar nas asas, sem se transformar num monstro sagrado, o prócer que exibem nas feiras da história cotidiana, se torna o combate mais duro que o poeta ou narrador terá de livrar para que seu compromisso continue se cumprindo ali onde tem sua razão de ser, ali onde brota sua folhagem.
“Amarga e necessária moral: Não se deixe comprar, garoto, mas tampouco vender”.
É, Cortázar não se deixou comprar, quando isso seria facílimo, mas – amarga e necessária observação – se deixou vender. Esteve em todas as feiras, com artigos, discursos, conferências, polêmicas. Até arriscou a pele algumas vezes em territórios quentes. Apoiou Fidel Castro sem reservas. Pôs toda a sua fama a serviço da publicidade cubana, depois nicaraguense. Segundo Saúl Yurkiévich, no suplemento de El País, “nunca deixou de ser escritor. Mas nos últimos anos escrever implicava literalmente se esconder do mundo, necessitando uma energia e uma vontade enormes que nem sempre encontrava. Dava escapadas, se refugiava em ilhas”. Agora, Cortázar não apenas entrou na roda-viva política, como passou a depreciar muito do que tinha escrito, dizendo por exemplo que os primeiros livros não problematizavam nada além da própria literatura, enfim, que eram livros do tempo da arte pela arte.
Sempre vi a expressão arte pela arte usada de modo pejorativo. Por quê? Se arte, para ser arte mesmo, precisa ir fundo no homem, jamais será uma coisa gratuita, feita de nada em pleno ar para admiradores de nada que vivem no ar. Um poema de amor é engajado, me parece, já que até o último mendigo ou o mais feroz revolucionário tem seus probleminhas amorosos. Se você acha que assuntos como a fome e a tortura têm primazia, escreva você mesmo. Para outros pode ser a solidão, a alegria, o sexo, o sonho, o brinquedo, sei lá. Mais: não se anda atrás dos temas, os temas é que vêm até a gente. Não é possível controlar o processo criativo na base da força de vontade, ou é, mas o resultado não vale um dólar furado. Limitar os temas que devem ser abordados, ou limitar os ângulos de abordagem desses temas, é o que foi dito: limitar. Qualquer pessoa, por mais imbecil que seja, é um bicho muito complexo para caber nos esquemas de crentes de qualquer espécie. Arte pela arte pode ser uma legenda pejorativa para gente que pensa que a arte é um adorno, um mero enfeite, ou deseja que ela funcione como um decreto governamental ou uma forma de assistência do tipo Exército da Salvação. Mas pode também ser a determinação do artista em ser fiel à arte, ao que a arte supõe de compromisso, quer dizer, ser profunda, tentar pegar o homem inteiro, da fome ao sonho mais delirante, não ser apenas um manual de sociologia ou economia, ou uma campanha publicitária de determinada causa, por mais justa que a causa possa ser.
Me perdoem o discurso, mas é que me tira do sério ver gente dizendo que o melhor de Cortázar está em Alguien que anda por ahí e Queremos tanto a Glenda (publicado aqui como Orientação dos Gatos). Penso que é exatamente o contrário. O pior da ficção de Cortázar está nesses livros. Em Queremos tanto a Glenda há uns bons contos, mas falta o brilho, aquela força que arrasta tudo pela frente. Bons contos? Talvez contos corretos, com uma exceção, uma senhora exceção: “Tango de vuelta”. Com uma história mínima, e sem esforço aparente, Cortázar dá um baile em muito joyceano de plantão em matéria de como se escreve um monólogo. Por falar nisso, as oficinas de literatura deviam dar cursos sobre a técnica de monólogo de Cortázar. Coisa simples, de uns cinco anos, três vezes por semana.
Essa falta de brilho tinha sido pior em Alguien que anda por ahí, também com uma exceção, o último conto, “La noche de Mantequilla”, onde temos a implacável descrição da execução de um militante pelos próprios companheiros durante uma luta de boxe, espécie de reedição melhorada de “Los amigos”, de Final de juego. Acho que se pode falar de outra exceção ainda: “Las caras de la medalla”. Um conto de amor angustiante, muito discreto e estranho dentro da obra de Cortázar, que só pode ser compreendido inteiramente ao se ler “Ciao, Verona” (um belo conto, por sinal), que foi publicado postumamente em Papeles inesperados. No conto “Alguién que anda por ahí” Cortázar dá um show de carpintaria literária, mas isso basta? Um bom conto não é algo mais do que um texto impecável? Em “Apocalipsis de Solentiname” Cortázar parte para a denúncia política. Muito bem, este Cortázar pode ser uma pessoa melhor do que a que escreveu “La casa tomada”, o mais famoso conto dos tempos da “arte pela arte”, agora, cá pra nós, como escritor é um arremedo desse Cortázar anterior.
Veja, “La casa tomada” vai mais fundo do que a denúncia de “Apocalipsis” porque “Apocalipsis” se esgota na comprovação da denúncia, quando sobre “La casa” você pode escrever um tratado. “Apocalipsis” só permite uma leitura. “La casa” quase tantas quantas forem seus leitores. Para se ter uma ideia, houve quem viu nela “a angustiosa sensação de invasão que o ‘cabecita negra’ (o povão peronista) provoca na classe média”. Não é uma piada minha, não, para reforçar meus argumentos – embora eu goste de humor grotesco –, nem uma tentativa de fazer um conto mais fantástico do que os que Cortázar produziu. Isso foi dito por um tal Juan José Sabreli em Buenos Aires – Vida cotidiana y alienación.
Um texto que permite uma única leitura é um texto raso, mecânico, numa palavra: morto. A maleabilidade de “La casa tomada” – como a palavra do profeta, é tudo para todos, como diria Borges, que Alá o proteja para sempre – aproxima o conto da própria realidade, do que ela tem de inquietante e misterioso, de ambíguo. Isso é vivo – e nada que é vivo é inofensivo, nada que é vivo nos deixa indiferentes. Através do pesadelo dos irmãos de “La casa tomada” sei mais sobre as pessoas, sobre o que há de sombra nelas, o que me deixa mais armado para compreender o que há de sombra em mim mesmo. Com “Apocalipsis” eu não tenho nada além da informação que eu teria em qualquer página de jornal.
Penso que Cortázar só acertou o passo entre sua vocação de contista fantástico com seu interesse pela política, alcançando a velha e mortal eficácia dos melhores momentos, no último livro de contos, Deshoras, com “Pesadelos”, “Satarsa” e “La escuela de noche”. Aqui a gente até agradece seu interesse pela política, porque isso ampliou o território de sua literatura, ou quem sabe do conto fantástico, que em termos de política quase nunca ultrapassou a sátira, não? Aqui a gente sente assombro por um talento que sobreviveu a uma máquina de moer carne que trabalhou incessantemente por mais de duas décadas.
PS: Quando reclamaram de sua militância política, invocando os altos destinos da literatura, já que a relegara a um segundo plano, ele disse que pouco ligava pros altos destinos da literatura, que pra ele uma ação ética valia qualquer livro que pudesse escrever. Pode parecer um peitaço da vaidade, não? Uma bela enrustida, não? Mas ele publicou Libro de Manuel sabendo que, literariamente, o livro deixava a desejar, mesmo que tenha inúmeras páginas de dar água na boca. Publicou por motivos pedagógicos — note-se, em benefício da esquerda, não da direita, e nenhuma delas parece ter entendido patavina, a julgar pelas resenhas. E não ganhou um tostão com ele. A grana foi toda pra oposição a Pinochet. Entre parênteses: admiro essa banana a uma carreira literária, mas sou egoísta, preferiria mais livros de Cortázar. O que ele escrevia, só ele escrevia. Já sua contribuição política, em termos práticos, foi mínima e poderia ser dada por quase qualquer pessoa. Mas ele tinha esperanças e era um bom sujeito, ao contrário de mim.
Quinto Round
Em algum ponto de Rayuela se discute o momento certo de parar. Fala-se de Armstrong e Picasso.
“Agora os dois estão feito uns porcos. Pensar que os médicos inventam curas de rejuvenescimento… Vão continuar nos fodendo outros vinte anos, vai ver.
“– Nós não – disse Etienne. – Nós já demos um tiro neles no momento certo, e tomara que me acertem quando chegar minha hora.
“– A hora certa. Não pede nada, cara – disse Oliveira, bocejando. – Mas é isso, já demos o tiro de misericórdia neles. Com uma rosa em vez de uma bala, digamos. O que continua é costume e papel carbono (…).”
Com Alguien que anda por ahí e Queremos tanto a Glenda me senti traído: Cortázar estava na fase papel carbono e não tinha se dado conta. Não é fácil, como nota Oliveira, mas eu estava mal acostumado com tanta lucidez e ironia. Levei um bom tempo para digerir o sapo.
A notícia da morte de Cortázar me pegou como a notícia da morte de um tio distante. Morria o Cortázar de Alguien que anda por ahí, não o das Armas secretas, digamos. É horrível dizer, mas esse morto não me fazia muita falta. Tempos depois li Un tal Lucas, um bom livro, me parece, mas meio rarefeito, meio como se tivesse sido escrito por um discípulo aplicado de Cortázar. O próximo, Deshoras, veio realmente fora de hora. Na época, não consegui o original e a tradução brasileira tardou mais do que devia. Deshoras fechou minha boca. Cortázar não estava velho, não estava acabado coisa nenhuma. Apenas tinha estado fora de órbita uns tempos. Mas continuo achando que devia ter posto no lixo os maus contos, tenho a mesma sensação do grupo do conto “Queremos tanto a Glenda”, o desejo de corrigir as imperfeições do nosso amor nem que seja apelando para o assassinato.
Minha última leitura, Los autonautas de la cosmopista, foi uma tristeza. A ideia da viagem me parece bela. Apenas a ideia já deixa entrever o que foi Cortázar, esse homem com jeito de menino travesso brincando de gente grande que brinca de ser menino travesso. Mas é isso, uma bela ideia muitos podem ter. O que fez a diferença foi que Cortázar a executou. Mais: executou-a em péssimas condições, ele e a mulher à beira da morte. A gente sente isso em cada linha. O livro parece escrito porque Cortázar e Carol resolveram escrever, porque precisavam escrever como se não escrever fosse admitir a derrota. Não há alegria, não há entusiasmo, não há prazer nas palavras. Até as tentativas de humor não têm graça nenhuma. Admiro a atitude dos autores, esse compromisso com o brinquedo, o compromisso de brincar com toda a seriedade até o fim, de não desobedecer as regras.Mas o livro é penoso. Não consegui terminá-lo e não consigo afastar a imagem de Cortázar nos últimos meses de vida, doente, sozinho, acabando de escrever a última linha e pensando: aí está, Carol. Posso vê-lo juntando a página ao resto do manuscrito e depois o queimando lentamente.
PS: Muitos anos depois dos Autonautas, li Papeles inesperados e Clases de literatura – Berkeley, 1980. Em Papeles, como já mencionei, há “Ciao, Verona”, um conto excepcional. Apenas ele vale o preço do livro. Em Clases, destaco o capítulo sobre o que Cortázar entendia por música na literatura. Melhor eu recolher os adjetivos, pra não parecer boboca. Aí se entende por que a atmosfera e a fluência de um texto podem ser mais poderosas que o dito conteúdo, o tema explícito, a mera informação, como elas fazem parte do sentido do texto, um sentido mais profundo e misterioso. Talvez seja por elas que é tão prazeroso reler histórias que sabemos de cor. Como ouvir música, não?
Último Round
Não preciso reler os rounds anteriores para saber que falhei. Tudo o que disse talvez explique por que Cortázar é um bom escritor, ou o que pra mim faz um bom escritor, mas não explica por que eu e muitos leitores temos amor por ele, por que seus textos são dos que despertam afeto.
Pablo Neruda descreveu uma doença pavorosa que ataca as pessoas que nunca leram Cortázar. É isso. Se você não leu Leon Tolstoi, por exemplo, o que acontece? Sim, trata-se de uma grave lacuna intelectual, mas e daí? Eu guardava Guerra e paz para o caso de ser preso um dia*. Cortázar pode não ter a metade da importância de Tolstoi, mas se você não o leu a gente pensa na hora: coitado. É como nunca ter visto o mar ou provado o sabor do vinho. Exagero conscientemente. É que para quem ama Cortázar é assim, algo vital.
Quase no fim, após anos de exílio, esteve na Argentina. Como sempre sem se anunciar, praticamente clandestino. Uma tarde, numa esquina no centro de Buenos Aires, foi reconhecido por uma multidão que vinha em passeata. Na mesma hora mudaram as palavras de ordem. Em coro, a multidão gritou esta frase, intraduzível sem perder a graça:
– Bienvenido, carajo!
As pessoas, antes de continuar a passeata, compraram todos os livros que encontraram numa banca próxima. Cortázar autografou até livros de outros autores.
Me pergunto: que país, que escritor produziria essa cena? Me pergunto: ela vale ou não vale mais que um Nobel? Mas ainda houve uma melhor.
Um pouco antes de morrer, Cortázar estava em Barcelona, andando à noite pelo Bairro Gótico. Havia uma garota, americana, bonita, que tocava violão e cantava meio como Joan Baez. Um grupo de jovens estava ao redor, ouvindo. Cortázar parou, meio afastado, nas sombras. Dali a pouco, um jovem de uns vinte anos se aproximou dele com um bolo na mão e disse: “Julio, pegue um pedaço”. Ele pegou, comeu e disse: “Muito obrigado por ter vindo e me dado o bolo”. O rapaz: “Olhe, eu lhe dei tão pouco comparado com o que você me deu”. Cortázar: “Não diga isso, não diga isso”. Então se abraçaram e o rapaz foi embora.
* Como a cana demorava, acabei lendo. Mas pulei horrores. Não sei se o releria mesmo preso.
Meu filho Bernardo tem razão quando diz que eu rejuvenesci dez anos. Achei que, para acompanhá-la, não havia outro jeito senão fazer isso.
Não que eu seja tão mais velho, é que deu vontade de ser mais jovem. Só isso. Dizem que ela também ficou mais moça. Faço planos para, daqui uns dias, invadirmos a puberdade.
Ontem, tivemos teu primeiro teste bem-sucedido, Aguirre. Não morro de amores pelo 3-5-2, mas é indiscutível que a melhora não foi causada apenas pela numerologia. O problema não era que os jogadores estivessem hostis aos números 4-5-1 ou 4-2-3-1. É que ontem houve maior harmonia e sincronismo entre os setores, é que ontem o centroavante não ficou isolado. Sasha esteve próximo de Lisandro López e diria que eles foram os melhores da partida. Com a proximidade, os erros de passe diminuíram e isso é fundamental. Sabemos que o time que tem a bola corre menos do que aquele que tem que marcar porque a perde a cada momento. Dá trabalho (e lesões musculares) fazer diminuir o tamanho do campo para o adversário.
Espero que tu pares com testes como aquele com Ernando na lateral direita — com Winck no banco — e Alan Ruschel como volante — com Bertotto no banco. Por algum motivo, as improvisações não costumam dar certo no Brasil. Se o Ernando decidiu que é zagueiro, ele já vai entrar de má vontade como lateral, louco para voltar aos braços da mamãe que o gerou zagueiro. Só um cataclismo muda uma coisa dessas. Lembre-se de que só a mãe do Jorge Henrique o fez polivalente…
Acho que vamos desse jeito aí contra o Emelec. Aliás, jogamos contra o Aimoré ensaiando para a Libertadores, senão duvido que tu colocasses 3 zagueiros e dois volantes em campo. Será uma pena se Nilmar não jogar no Equador. Uma pena que Lisandro também não possa jogar. Porque precisaremos de rapidez e Vitinho tem jogado mais para si do que para a equipe.
Em outra faixa, mas ainda nos números, digo que os alemães estão de namoro com o número sete. Alemanha 7 x 1 Brasil, Bayern 7 x 0 Barcelona, Bayern 7 x 1 Roma e, ontem, Bayern 7 x 0 Shaktar Donetsk. Para nos encontrarmos com eles, só numa final de Mundial… Melhor assim.
O concerto começou muito bem. Na plateia do Theatro São Pedro, duas mulheres me pediram para que lhes tirasse uma foto. Tirei bem mais de uma. Elas estavam felizes, ornamentadas pelo velho edifício e pelos músicos que se preparavam para o concerto no palco. Ao verem o resultado, voltaram para falar comigo. Estavam encantadas. Disseram que eu lhes dera a coisa mais bonita que elas tinham. Fiquei comovido. A noite prometia.
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Mas começo por um fato de antes do concerto: a entrevista que o Diretor Artístico da Ospa concedeu recentemente à ZH. Não entendi porque Evandro Matté irá convidar apenas nomes inéditos para reger a orquestra nos próximos meses. Ele disse que deseja “oxigenar a lista dos maestros convidados e dos solistas”, evitando aqueles que tenham se apresentado com a orquestra nos últimos três anos. Tento interpretar e não consigo entender porque Lavard, Rauss, Teraoka, Volkman, Nakata, Hahm, Levin ou Vigil não possam retornar em futuro próximo. São excelentes regentes que fizeram bons trabalhos. A opção pelo novo, nestes casos, não me parece a melhor.
Pior: é um crime que gaúchos que estão se consagrando no exterior — como Lavard Skou-Larsen, que acaba de arrasar com a Royal Flemish Philharmonic, de Antuérpia, e Tobias Volkman, que fez o mesmo na semana passada com a Sinfônica de Brandemburgo — não possam ser reconvidados. É gente talentosa, nascida aqui, com parentes na cidade, que conquista o mundo, mas que não pode mostrar-se em sua cidade. (OK, sei que o Tobias é de NH ou de São Leo).
Isso é tanto mais ilógico quando se pensa que o concurso da Ospa parecia beneficiar os locais…
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O programa de ontem:
Jean Sibelius – Finlândia, op.26 Camille Saint-Saëns – Concerto para violino nº 3 em Si menor, op.61 Maurice Ravel – Pavana para uma Princesa Defunta Nikolai Rimsky-Korsakov – Capricho espanhol, op. 34
Regente: Evandro Matté
Solista: Yang Liu, violinista
Sibelius completa 150 anos de nascimento neste ano. Nada mais natural que a Ospa iniciasse sua temporada com ele. Finlândia é um poema sinfônico escrito em 1899 e revisado no ano seguinte. Foi composto como um protesto contra a crescente censura do Império Russo. Era comum, na época, trocar o nome da obra nos concertos com a finalidade de iludir a censura russa. Isso adquiriu ares de piada. Os títulos com os quais a peça foi mascarada foram muitos: um deles foi Sentimentos Felizes ao Amanhecer da Primavera Finlandesa. A peça traz melodias crescentes e agitadas, evocando a luta nacional do povo finlandês. À medida que vai chegando ao final, a melodia serena do hino da Finlândia é ouvida. O careca alcoolista foi bem representado pela Ospa, mas senti saudades da execução redonda que Nicolas Rauss criou com a mesma Ospa no Colégio Anchieta, se não me engano.
Bá, eu estava com fome. Enquanto isso, pensava que Camille Saint-Saëns fora um sujeito feliz. Foi organista, pianista, caricaturista, cientista amador, apaixonado por matemática e astronomia, comediante amador, folhetinista, crítico, viajante e arqueólogo. Também gostava de viajar. Movido por impulsos súbitos, fazia excursões repentinas às partes mais distantes do planeta. Visitou a Espanha, as Canárias, o Sri Lanka (Ceilão), a Vietnã (Cochinchina), o Egito, e esteve várias vezes na América. Deu concertos em lugares exóticos como o Rio de Janeiro e São Paulo em 1899. A morte pegou-o numa cama de hotel em Argel.
O Concerto n° 3 para Violino e Orquestra foi escrito em 1880 especialmente para o célebre Pablo de Sarasate, para quem Saint-Saëns já havia escrito seu Primeiro Concerto. O primeiro movimento me pareceu de execução tediosa. Quando terminou esta parte da música, o governador Sartori e o Secretário de Cultura Victor Hugo prorromperam em aplausos, no que foram seguidos por boa parte da plateia. Sorridente, o Secretário batia delicadamente no próprio peito, como se tivesse sido atingido no coração. Bem, deixa pra lá, o governador certamente não sabe que não se aplaude entre os movimentos. Yang Liu e o regente Matté ficaram duros, esperando o entusiasmo arrefecer.
Tenho para mim que Sartori, que fala em parcelar os salários do funcionalismo público estadual, resolver parcelar o Concerto para Violino. Se ele insistir nesta ideia de pagar aos poucos, sugiro que a Ospa toque seus concertos também de forma parcelada.
Mas o fato é que o Concerto de Saint-Saëns melhora a partir do segundo movimento. E Yang Liu deu-nos uma magnífica interpretação do movimento central e do final. Saint-Saëns tem outros concertos cujos movimentos finais são superiores ao inicial. Mereceria revisão.
O intervalo foi penoso com a fome apertando. O melhor momento foi quando a Elena saiu do palco e veio me fazer um carinho. Minha vizinha de cadeira disse: “Como a sua esposa é linda!”. Ninguém duvida.
A impressionista Pavane pour une infante defunte (Pavana para uma Princesa Defunta) foi composta em 1900, quando Ravel tinha vinte e cinco anos. Devido à origem basca, Ravel tinha uma predileção especial pela música espanhola. A pavana é uma tradicional e lenta dança espanhola, que gozou de popularidade entre os séculos XVI e XVII. A peça foi escrita em 1899 para piano, durante os estudos do compositor no Conservatório de Paris. Ele a orquestrou em 1910. Segundo ele, ela não evoca nenhum momento histórico. É apenas a dança de uma jovem princesa imaginária na corte espanhola. Também, segundo o compositor, a música não deve levar o ouvinte a pensamentos funéreos. Ravel afirmou que o motivo do título da peça era porque gostava do som da combinação das palavras “infante défunte”… É uma música levada pelos sopros e o trompista viking Alexandre Ostrovski esteve nostálgico e parisiense como devia.
O esparramado Capricho Espanhol, Op . 34, foi composto em 1887 por Nikolai Rimsky-Korsakov. Como título demonstra, é baseado em melodias espanholas. Dã. O título original russo é ainda mais claro: Capricho sobre temas espanhóis. Como Rimsky-Korsakov era oficial da marinha russa, costumava viajar um bocado — ainda mais do que Saint-Saëns. Entre 1862 e 1865, o cara revirou o mundo. Na Espanha, passou algumas semanas em Cádiz, fascinado pela cultura e pelas mulheres locais (isso é invenção minha). Assim como Sheherazade, a peça tem um importante e belo solo de violino. Aliás, o Capricho foi inicialmente concebido como uma fantasia para violino e orquestra.
Em alguns momentos do Capricho, as cordas da Ospa foram cada uma para um lado para reunir-se novamente ali na esquina. Mas nada de assustar. Há muitos solos na obra. Augusto Maurer (clarinete), Omar Aguirre (primeiro violino), Paulo Calloni (corne inglês), o viking (trompa), Artur Elias (flauta) e Wenceslau Moreyra (violoncelo) estiveram muito bem. Talvez apenas o solo de Aguirre merecesse uma cintura mais solta. Mas a alegria e luminosidade de peça de Korsakov estavam lá. Acho que Evandro Matté estava tão feliz com o bom final do concerto que se esqueceu de pedir para Artur Elias erguer-se a fim de receber seus aplausos. Estou certo?
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Adendo: sou totalmente favorável à nomeação dos concursados da Ospa. Reclamei muito do Concurso realizado no ano passado, mas, já que este foi válido, penso que as vagas devam ser preenchidas o mais rapidamente possível. Aliás, de minha perspectiva pessoal, o concurso teve momentos que se inscreveram entre os mais patéticos de minha vida, como aquele em que um membro da Associação de Funcionários da orquestra ligou para o Sul21dizendo que eu estava atacando a Ospa, a Secretaria de Cultura e, consequentemente, atrapalhando a reeleição de Tarso Genro. Muita loucura, né? Imagina se eu, com meu pequeno blog, tenho o poder de intervir numa eleição para o Governo do Estado. Ao final, o cara pedia a retirada dos posts e minha cabeça. Algo me diz que fui chamado de psolento…
Gosto e preciso de meu emprego. E não tenho estabilidade. Minha chefe ouviu tudo aquilo, me chamou e disse que tinha mais o que fazer do que ouvir aquele tipo de coisas. Eu que desse um jeito de o cara não telefonar mais. Não fiz nada, mas o cidadão não voltou a ligar. Foi uma ação maldosa e inexplicável, inspirada, pirada e repirada sei lá por quem ou o quê.
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Milton Ribeiro foi ao concerto às suas próprias expensas.