Segredos, de Domenico Starnone

Segredos, de Domenico Starnone

Após os excelentes pequenos romances Laços e Assombrações, Domenico Starnone retorna com mais um, Segredos. Os três livros — todos publicados no Brasil pela Todavia — formam uma esplêndida trilogia sobre as complexas tramas dos relacionamentos amorosos e familiares.

Pietro vive um amor tempestuoso com a bela e brilhante Teresa, uma mulher exuberante em todos os sentidos. Ele fora um professor muito admirado por ela na escola. Meses depois de sair da escola, ela procura Pietro e o seduz facilmente. É uma mulher incontrolável, 12 anos mais jovem que o professor. Eles brigam muito e, após uma destas discussões, surge uma ideia: diga-me algo que você nunca disse a ninguém — ela sugere –, diga-me a coisa de que mais se envergonha e farei o mesmo. Deste modo, permaneceremos unidos para sempre.

(Diga-se de passagem que Starnone foi professor de escola por mais de 30 anos).

Unidos? Eles terminarão o relacionamento logo em seguida… Então, quando Pietro conhece Nadia, ele instantaneamente se apaixona por sua timidez e relutância, por sua suavidade, depois de tanta agitação. Só que alguns dias antes do casamento, Teresa reaparece. Ela não quer nada com ele, mas, com ela, ressurge a sombra do que eles confessaram um ao outro.

— Lembre que, se você vacilar com essa pobre moça bonita, eu sei de coisas que podem te destruir –, disse ela, alegremente.
— Eu também sei coisas lindas de você. Por isso, olhe lá, ande na linha. Fique esperta.

Unidos sim. A vivacidade e as atitudes fortes de Teresa marcam Pietro. Eles seguem caminhos diferentes na vida: ela inicia uma fulgurante carreira nos Estados Unidos e Pietro, mais discretamente, começa a se destacar como um crítico do sistema educacional italiano. Mesmo casado com Nadia, Pietro mantém por décadas trocas de cartas com Teresa. De  certo modo, sua autoestima e reconhecimento de sucesso dependem do aval dela. Ele pensa temer pelos segredos trocados, mas isso é passado e ele depende dela apenas porque depende.

Que problema, um amigo me disse uma vez, se apaixonar por uma mulher que, em todos os aspectos, é mais viva do que nós.

Os anos passam e a jovem família se consolida, cresce e Nadia agora é mãe de Emma, ​​Sergio e Ernesto, os três filhos de Pietro. Segredos começa com estas palavras:

O amor, dizer o quê?, fala-se tanto dele, mas não acho que eu tenha usado a palavra com frequência, aliás, minha impressão é que nunca recorri a ela, apesar de ter amado, claro que amei, amei até perder a cabeça e os sentimentos. De fato, o amor tal como o conheci, é uma lava de vida bruta que queima a vida fina, uma erupção que anula a compreensão e a piedade, a razão e as razões, a geografia e a história, a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza, a exceção e a regra.

Domenico Starnone nos coloca diante de dois tipos muito diferentes de relacionamentos. Na vida há amores e amores, relacionamentos e relacionamentos: cada um tem muito que não pode ser reproduzido nos outros. Os amores vão se alterando, transformam-se às vezes em monstros mas, de uma forma ou de outra, não desaparecem. Aqueles que amamos um dia continuam sendo os guardiões de algumas ansiedades, incertezas, hesitações e de fatos que poucos conhecem. Eu sempre disse que ex, qualquer ex, é cargo de confiança…

Segredos mostra as qualidades indiscutíveis ​​de Starnone, um escritor direto, observador crítico e agudo dos traços humanos. Seus personagens são muito imperfeitos, não parecem sinceros e consideram-se medíocres. Starnone guarda para eles um olhar desapegado, além da leveza das boas narrativas. Ele nos fala de pessoas que parecem inadequadas para si mesmas, mostrando o quão frágeis são as bases em que se baseiam suas (nossas) identidades.

Domenico Starnone (1943)

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O Milton Ribeiro que não é Ministro sugere

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Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe

Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe

Um Diário do Ano da Peste é uma leitura óbvia — uma releitura, no meu caso — neste período de pandemia, pois é um livro que nos dá uma perspectiva peculiar, uma visão do passado sobre nossa crise atual. Mas não é apenas isso: ele também tem sido por séculos fonte de admiração, com suas histórias “de uma Londres estranhamente alterada”, onde, durante 18 meses em 1665 e 1666, a cidade perdeu 100.000 pessoas — quase um quarto da sua população. García Márquez e Anthony Burgess eram grandes admiradores da obra que narra jornalisticamente, em um texto sem divisões por capítulos, uma distopia semelhante a que estamos vivendo hoje.

A primeira coisa que devemos dizer sobre Um Diário do Ano da Peste é que não é, estritamente falando, um registro in loco. O livro foi publicado em 1722, mais de 50 anos após os eventos que descreve. Quando a praga assolava Londres, Defoe tinha cerca de cinco anos. Mas o autor afirma que o livro é um relato contemporâneo genuíno — a página de rosto afirma que o livro consiste de “Observações e recordações dos acontecimentos mais extraordinários, sejam públicos ou privados, ocorridos em Londres durante a última grande epidemia em 1665. Escrito por um CIDADÃO que permaneceu o tempo todo em Londres. Nunca publicado antes” e credita o livro a HF, entendido como seu tio Henry Foe.

Mas voltemos a 1722 e pensemos que os escritores costumavam dar ares de realidade a tudo. Por exemplo, Defoe também afirmou que Robinson Crusoe foi escrito por um homem que realmente viveu em uma ilha deserta por 28 anos, e que seu livro sobre o célebre ladra Moll Flanders foi escrito “a partir de seus próprios memorandos”. Ele até coloca essa afirmação no enorme título, que vale a pena reler na íntegra: As aventuras e desventuras da famosa Moll Flanders, que nasceu na prisão de Newgate e que, ao longo de uma vida de contínuas peripécias, que durou três vintenas de anos, sem considerarmos sua infância, foi por doze anos prostituta, por doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), foi deportada por oito anos para a Virgínia e, enfim, enriqueceu, viveu honestamente e morreu como penitente. Escrito com base em suas próprias memórias.

Digo isso reconhecendo a extraordinária qualidade e o enorme significado literário e histórico de Um Diário do Ano da Peste. É possível, claro, que tenha sido baseado nos diários do tio de Defoe. É certo que o próprio Defoe pesquisou longa e detalhadamente sobre o assunto e que usou seu enorme talento ​​para dar vida a ele. O livro está cheio de descrições vívidas da maneira como a praga se deslocou pelos diferentes bairros de Londres, as precauções tomadas para combatê-la e o progresso assustador das carroças carregadas de cadáveres acompanhadas por gritos de “tragam seus mortos”. Também há percepções notáveis ​​sobre o comportamento humano sob a sombra de uma pandemia, sem mencionar os casos de mau comportamento e loucura, como o demonstrado por um cidadão chamado Solomon Eagle, que desfilou pelas ruas denunciando os pecados dos cidade, às vezes completamente nu. Os relatos de médicos, de charlatães vendedores de “remédios milagrosos”, de padres e padeiros são sensacionais.

O próprio Defoe também é um assunto intrigante. Além de escrever mais de 300 livros e folhetos sob quase 200 pseudônimos diferentes, ele viajou amplamente, administrou uma fábrica de azulejos e tijolos e encontrou tempo para participar da desastrosa rebelião de Monmouth que tentava derrubar James II. Foi rico e perdeu tudo várias vezes… Possuiu navios e uma propriedade rural, acabando várias vezes na prisão de devedores… Também foi preso por fingir argumentar, em sua sátira de 1702 The Shortest Way with Dissenters, que a melhor maneira de lidar com rebeldes religiosos era bani-los do país e matar seus pregadores. Houve gente que não entendeu a piada e a Câmara dos Comuns queimou o livro e mandou o autor para a prisão de Newgate por calúnia, enquanto seus amigos aproveitavam a oportunidade para divulgar mais seus panfletos.

Tudo isso ocorreu antes de ele realmente começar a escrever livros. Seu romance mais famoso, Robinson Crusoe, foi publicado em 1719 e Um Diário do Ano da Peste seguiu-o em 1722. Em seus últimos anos, ele também escreveu um grande livro de viagens sobre a Grã-Bretanha , o mencionado Moll Flanders e mais de uma dúzia de outros romances. Na época de sua morte, em 1731, ele estava novamente escondendo-se dos credores.

.oOo.

Ao reler um Um Diário do Ano da Peste, os primeiros ecos de 2020 vêm na primeira página 1. O narrador nos diz que ele e seus vizinhos ouviram que a praga “voltara da Holanda”. Somos informados de que o governo recebeu avisos, mas não achou algo digno de preocupação. E os navios daquele país continuaram chegando.

Os paralelos para com nossa despreocupada reação inicial a um problema distante — a pandemia iniciou na China — são tão impressionantes que parece quase ridículo apontá-los. Depois, vire a página e leia o primeiro relatório das “contas semanais” mostrando o aumento de mortes em cada paróquia de Londres. Tais estatísticas são obsessivamente observadas pelo nosso narrador ao longo de seu relato. Os registros fornecem comentários sombrios sobre o terror da doença, assim como os números de mortes que agora recebemos todos os dias há semanas.

Então, descobrimos que esses registros podem não ser confiáveis. Os números das autoridades são sempre baixos. Que coincidência, há subnotificação! “Os números da peste apontavam 17, mas os enterros em St. Giles eram 53″.

Os paralelos continuam. O narrador observa que as medidas necessárias para conter o surto foram tomadas tarde demais. Em outras passagens, há descrições assustadoras do vazio das ruas, “pois quando as pessoas chegavam às ruas, elas as viam vazias, as casas e lojas fechadas, com uns poucos andando no meio da rua, um bem afastado do outro”. Não temos o hábito de pintar cruzes vermelhas nas portas das casas onde há infectados ou de colocar guardas do lado de fora para que as pessoas que contraíram a doença não possam escapar. Também não impusemos o período de isolamento de 40 dias, o que dá nome à “quarentena”. Mas hoje qualquer leitor reconhecerá o medo e a piedade com que o narrador fala das pessoas que têm a doença e podem transmiti-la, especialmente daquelas que o fazem sem querer:

Quero falar daqueles que receberam o contágio e o tiveram realmente em seu sangue, mas que não mostraram as conseqüências disso em seus semblantes: ou melhor, nem eles próprios eram sensíveis, pois muitos não são por vários dias. Sem saber, expiravam a morte sobre todos os lugares e sobre todos os que se aproximassem deles, Suas próprias roupas retinham a infecção e suas mãos infectavam as coisas que tocavam.

Uns expiravam e outros aspiravam a morte, outra coincidência! Não é de surpreender que todo mundo, na Londres de Defoe, esteja nervoso. Mas hoje sabemos que o contágio não vinha das pessoas: a culpa era de ratos e pulgas. Há poucas menções aos ratos cujas pulgas transmitiam a peste bubônica — mas há preocupações sobre animais domésticos. Defoe observa que um número prodigioso desses animais foi morto. Foram mortos 40 mil cães e 200 mil gatos…

Defoe também nos fala dos ricos que fogem para o interior e levam a morte — na verdade alguns ratos — com eles, observando como os pobres estiveram muito mais expostos à doença. Mais uma coincidência… Ele descreve como charlatões vendem curas falsas e de como pobres “até se envenenavam de antemão por medo do veneno da infecção”.

As correspondências são tão claras que parece estranho lembrar que Defoe estava descrevendo eventos de 355 anos atrás — e que Um Diário do Ano da Peste, publicado em 1722, nem sequer seja uma descrição em primeira mão. Mas nisso, pelo menos, há esperança. Ele escreve no final:

Terrível peste esteve em Londres
no ano de sessenta e cinco
cem mil almas levou consigo
mesmo assim, estou vivo!

Espero que eu e você possamos dizer o mesmo no final da atual pandemia.

RECOMENDO MUITO!

Daniel Defoe (1660-1731)

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Perigo de extinção: livreiros em pé de guerra

Perigo de extinção: livreiros em pé de guerra

Um relatório divulgado há alguns dias pela Câmara Argentina do Livro (CAL) traz números alarmantes: nos últimos cinco anos, as quedas acumuladas na produção da indústria editorial são imensas. Para as livrarias, a pandemia foi um fenômeno devastador: hoje elas vendem entre 20 e 25% do que faturavam antes. Dado esse panorama, as livrarias de Buenos Aires podem desaparecer? Os envolvidos respondem.

De Natalia Viñes
Publicado originalmente em Perfil.com
Tradução apressada de Milton Ribeiro

As livrarias estão passando pela maior crise de sua história. É difícil calcular seu futuro quando o presente se afunda em uma distopia impossível de se imaginar há três meses. A realidade que os afeta desde o confinamento muda abruptamente a cada semana, e eles vêm enfrentando um profundo problema durante os primeiros meses do governo do Cambiemos.

As livrarias continuarão a existir após o crescimento das vendas de livros na Internet durante o isolamento? O que acontecerá em Buenos Aires, a capital mundial das livrarias, quando a pandemia acabar? Alguns dias atrás, especialistas do setor previram um possível fechamento maciço de livrarias. Consultados por este jornal, os livreiros contam sobre sua situação atual, seu estado de alerta e incerteza e as possíveis consequências.

A Argentina é o país com o maior hábito de leitura da região e Buenos Aires é a cidade com o maior número de bibliotecas por habitante no mundo: 8 mil habitantes para cada uma. Há um total de 350 livrarias que representam 63% das livrarias de todo o país, de acordo com o último relatório estatístico (2018) da Câmara de Publicações da Argentina (CAP). No mesmo relatório, observou-se que o setor editorial mantinha uma estrutura tradicional que ainda tinha um longo caminho a percorrer em direção a novas tecnologias.

Essa situação está sendo refletida durante a pandemia, com diferentes consequências nas vendas das livrarias. Algumas já incorporaram sistemas de vendas on-line que funcionavam bem desde antes do isolamento. A situação atual acelerou processos que, em muitos casos, nem foram planejados. A maioria das livrarias se interessou pelas vendas on-line pela primeira vez, com resultados ainda bastante ruins; os editores adicionaram urgentemente carrinhos de compras em suas páginas da web; e sites de vendas de livros virtuais, como o Mercado Libre ou o Busca Libre, aumentaram exponencialmente suas vendas, enquanto novas plataformas semelhantes apareceram da noite para o dia, como as Sakura Libros, Colorín Colorado e Mandolina Libros, entre muitos outros.

O fim das livrarias de Buenos Aires?

No início do isolamento, as livrarias foram fechadas por um mês, com uma perda de ganhos de 100%. Em seguida, a venda por entrega foi autorizada e, a partir de 12 de maio, o governo de Buenos Aires autorizou a reabertura. Mesmo assim, as livrarias que não estavam preparadas para venda on-line calculam suas perdas entre 60 e 80% em suas vendas e concordam que precisam de ajuda especial para o setor.

Pablo Braun, proprietário da livraria Eterna Cadencia e de uma cadeia de quatro bibliotecas da Station Book, que fica nos shoppings, diz: “Por um lado, estávamos muito bem preparados na Eterna com vendas on-line e que quase supriam o que estava sendo vendido antes. Mas, por outro lado, há quatro shopping centers fechados. Há quase quarenta pessoas trabalhando. Felizmente, existe o auxílio estatal para salários, que funciona para nós, mas não sei quantos meses mais eles podem fazê-lo. Essa é uma catástrofe total e absoluta, vendendo cinco livros por dia”. No mesmo sentido, Sandro Barrella, da Librería Norte, percebe que, quando as vendas on-line começaram, eles conseguiram faturar entre 40 e 50% do que estavam vendendo normalmente. Com a abertura da livraria física, eles começaram a vender 40% a mais do que vendiam apenas on-line. “A livraria tinha uma estrutura em torno do site que estava em funcionamento há muitos anos e que permitiu nos instalássemos rapidamente. Então é uma corrida do dia a dia, porque o livro vem de uma crise de quatro anos muito difícil.”

Por outro lado, José Rosa, da Librería de las Luces e delegado da Câmara de Livreiros, até agora registra uma queda de 80% nas vendas. “As pessoas não vêm ao centro se não houver movimento normal. Se a quarentena continuar, terei que pensar no fechamento”, diz o proprietário da livraria histórica fundada em 1965.” Só agora estamos começando a vender on-line. Mas isso representa dez por cento. É como abrir um novo negócio, que é suicídio hoje em dia. Precisamos de ajuda especial para o setor, porque as livrarias são um negócio com rentabilidade muito baixa”.

Gabriel Waldhuter, da Livraria Waldhuter, diz que “as vendas por entrega representam 15% da venda total de uma livraria; muitos deles, principalmente os pequenos, não possuem site e recorrem ao Mercado Libre, que, entre impostos, comissões e custos de envio, representa um desconto de 20%. Uma pequena livraria obtém 35 a 40% de desconto na editora.

Portanto, nessa pequena venda que fazemos, a lucratividade é nula. Com a reabertura da livraria, se antes cerca de cem pessoas entravam, agora entram dez. A venda de abril de 2020, em comparação a abril de 2019, foi 80% menor. Imagino que a perda anual será de 60 a 70%, dependendo, é claro, de como evoluirá a pandemia. As despesas fixas são mantidas e a receita não para de cair. Tudo sugere que as livrarias serão fechadas. A preocupação é muito grande. A cadeia de pagamentos está completamente quebrada. O setor de publicação e livreiro está sangrando.”

Enrique Avogadro: “Devemos defender livrarias independentes”

Ecequiel Leder Kremer, diretor da Librería Hernández e colaborador e participante da Câmara de Bibliotecas da Fundação el Libro e da Câmara Argentina del Libro (CAL), afirma que “as perdas são importantes. No momento, estamos tendo uma queda de 60%. Embora os 40% que recebemos sejam essenciais porque nos permitem cumprir nossas obrigações, pagar salários com a ajuda do ATP (Programa de Assistência a Trabalho e Produção) e pagar a nossos fornecedores, isso apresenta um cenário que não é bom. Os auxílios estatais são muito importantes e o comportamento das pessoas está definindo o que a situação lhes permite fazer do ponto de vista econômico e de saúde.

Adicionado a esse panorama, há 15 dias uma notícia explodiu como uma bomba: a Editorial Planeta abriu sua própria loja on-line no Mercado Libre. Por meio das redes e sob a hashtag LasLibreríasImportan, um grande grupo de livrarias emitiu uma declaração expressando seu profundo desconforto. A partir desse momento, livreiros, escritores e leitores se juntam à hashtag todos os dias para expressar seu apoio às livrarias.

A Editorial Planeta respondeu há alguns dias , através de Santiago Satz, gerente de imprensa da empresa: “Isso não implica que mais livrarias não sejam mais pontos de venda, elas são nossa prioridade”. No entanto, isso não acalmou os livreiros que, como resultado, estão se reunindo para ver como podem se organizar contra o que consideram uma ameaça.

A Planeta pode legalmente abrir um canal direto com o Mercado Libre (e também não é a única editora que vende diretamente por essa plataforma), mas por ser um colosso, graças ao seu poder econômico, pode se posicionar para obter visibilidade muitas vezes maior que a o das livrarias que vendem e sobrevivem nesse canal no momento. Por sua vez, a lógica do Mercado Libre direciona, através de seus algoritmos, as buscas pelos produtos com maior rentabilidade. Essa confluência de forças é o que as livrarias apontam como um possível efeito devastador em suas instalações. “

A Biblioteca do Norte está em total desacordo com o que Planeta está fazendo. A ideia é manter uma postura crítica, ver quais ações podem ser tomadas em um coletivo de livrarias e também junto às editoras para ver qual proteção pode ser dada ao setor “”, afirma Sandro Barrella.

Parece para Pablo Braun que “isso pode mudar as regras do jogo e, se isso acontecer, a reconversão pode ser mais profunda. Se o Mercado Libre alterar as regras e decidir, por exemplo, vender diretamente através de editoras e não através de livrarias, como a Amazon faz nos Estados Unidos, esse canal pode ser perigoso. E para uma grande editora também. Se o Mercado Libre disser: ‘Se você não me fizer 60%, não comprarei você’. Parece-me que o melhor, apesar de muito difícil, é estar atento ao que o Mercado Libre faz ”, conclui.

A situação não é estranha aos especialistas da área. Alejandro Dujovne, pesquisador e especialista na indústria do livro, diz que “a Planeta (com essa decisão) quebra um certo pacto implícito existente” e que é essencial que haja mesas para conversas e espaços para o diálogo. “O problema é ter um setor fragmentado e uma crise que não contribui para fortalecer esses espaços de conversação. Penso que, se deixar o mercado com suas próprias regras, iremos para uma situação de maior vulnerabilidade das livrarias “.

Brincando de esconde-esconde com o leitor argentino

Por seu lado, Natalia Calcagno, socióloga especializada em economia cultural, acredita que “a prática da Planeta é prejudicial às livrarias em um momento de emergência e seria necessário reagir, nesse sentido, para protegê-las”. Mas ele diz que lhe parece que não é possível que os editores ponham em risco o canal da livraria: um intermediário não pode existir sem eles. Calcagno considera que é necessário solicitar regulamentos ao Estado e que “existem muitas leis culturais de emergência em outros países, como Alemanha, Espanha, Canadá ou França.

Propostas

Consultado dias atrás, Enrique Avogadro, Ministro da Cultura de Buenos Aires, comentou sua disposição de prestar atenção à questão: “Devemos defender livrarias independentes”. Ele mencionou que o governo de Buenos Aires permitiu a reabertura das livrarias e que estão sendo feitos progressos em reuniões com o setor para analisar quais medidas paliativas podem ser tomadas. “Estamos incentivando as livrarias a se estruturarem como associação ou grupo, pelo menos para trabalharem juntas”, afirmou.

Por seu turno, a Câmara Argentina do Livro (CAL) divulgou na terça-feira 9 um documento que relata o estado do setor da indústria do livro e propõe propostas para aplicar na pandemia e mesmo depois dela. Entre as medidas que envolvem diretamente as livrarias, eles propõem um trabalho conjunto com o Correo Argentino para reduzir os custos logísticos das vendas on-line. A ideia seria considerar uma taxa especial para livros e frete grátis em alguns casos. No momento, esses custos favorecem a concentração das cadeias de livrarias e plataformas de vendas e reduzem o percentual de faturamento das livrarias para menos de dez por cento.

O Centro Regional de Promoção de Livros da América Latina e do Caribe (Cerlalc-Unesco) publicou em maio deste ano um documento urgente para entender a situação do setor editorial ibero-americano. Ele afirma que “analistas como Bernat Ruiz, Manuel Gil ou Guillermo Schavelzon concordam que a principal medida do governo para a recuperação do setor não apenas passa pela compra de livros, mas que deve ser dada prioridade às livrarias, pois é o elo mais fraco do mercado. As livrarias precisarão de uma injeção rápida de liquidez que lhes permita evitar o fechamento, diminuir os retornos e continuar fazendo pedidos”, diz Ruiz.

Sobre o futuro das livrarias. Quando a pandemia termina, os livreiros acreditam que muitas livrarias podem fechar. Dizem que não é fácil saber como as coisas vão acontecer, mas não vêem que a livraria, a figura do livreiro e a tradição cultural que temos aqui, terminem. No entanto, eles não podem arriscar uma visão clara do que o futuro lhes reserva após essa transformação que estão começando a conhecer agora.

Pablo Braun diz que “há uma mudança no paradigma do consumo das pessoas. Parece-me que há as telentregas vieram para ficar. Este é um golpe muito forte e todos nós vamos ter que mudar. Não consigo imaginar um futuro sem livrarias. Haverá menos, haverá menos pessoas trabalharão, é muito difícil. Coisas assim podem começar com os editores que vendem direto. Há algo que não tem nada a ver com o mundo do livro, tem a ver com o fato de que todo mundo quer matar o intermediário. E isso teria consequências muito sérias, porque, se não houver intermediários, o que eles acabarão comprando?

Gabriel Waldhuter acredita que “isso está apenas começando, tenho imagens de 2001, acho que essa crise de saúde será pior. Agora, se a vacina muito desejada aparecer, voltaremos a visitar livrarias, para continuar as que possuíamos.

As livrarias não vão desaparecer

Para Ecequiel Leder Kremer, “Provavelmente existe uma prática residual de fazer compras através dos canais digitais, mas parece-me que, como muitos estão esperando para voltar ao cinema, muitos leitores estão esperando para retornar às livrarias com tudo o que isso implica: o relacionamento com a livraria, a possibilidade de percorrer a livraria, percorrer os setores temáticos, identificar editoriais. Isso não substitui a tela do computador.”

Sandro Barrella: “Não tenho escolha a não ser ser otimista, porque é isso que me permite a possibilidade de trabalhar. Então, se tudo desmorona, desmorona. Parece-me que existe um espaço além da mística para pequenas livrarias. Se não houver mais condições uniformes para competir, será muito complicado.”

O que desaparece se as bibliotecas desaparecerem?

Natalia Calcagno: “Quando você entra em uma livraria para conversar, olhar, um mundo de diversidade se abre por recomendação do livreiro. O tema da exposição é essencial para conhecer. Caso contrário, você está limitando a venda. Temos dezenas de milhares de títulos por ano produzidos na Argentina. Além disso, há o que é produzido em outros países. E também a livraria é a possibilidade de a pequena editora se aproximar do leitor ”

Alejandro Dujovne: “Há várias perguntas a serem pensadas, uma delas é qual é o valor social e qual é o valor cultural que uma livraria tem. É uma discussão que a sociedade e a política precisam adotar para ver o que fazer com isso. As livrarias são mais do que apenas um canal de marketing. Embora sua dimensão mercantil ou comercial não deva ser negligenciada, porque muitas pessoas vivem disso. Ao mesmo tempo, são, do nível de produção de valor do livro, um lugar muito importante, porque têm a ver com a experiência da leitura, com a maneira como a literatura e o livro se relacionam com a sociedade como um todo. e como os livros circulam. As livrarias agregam valor e dão visibilidade.”

O escritor Jorge Carrión, que acaba de publicar na Argentina Contra a Amazon, diz que “prevaleceu a lógica que Jeff Bezos (fundador e CEO da Amazon) inventada há mais de vinte anos: o que importa é rapidez e, portanto, é necessário eliminar os números dos intermediários (como o editor, com a editoração eletrônica, ou o livreiro, com a compra na web). Mas essa lógica, se você pensar sobre isso, é bastante absurda. Elimine a caminhada, o desejo, a história que o une com a aquisição e leitura de um livro, a descoberta, a possibilidade de um encontro ou um café. Assim como Buenos Aires protegeu seus cafés notáveis, agora deve proteger suas livrarias. Mas acima de tudo, os leitores devem fazê-lo.”

A Bamboletras numa tarde de domingo de 2019 | Foto: Milton Ribeiro

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A autoimolação de Valéri Kosolápov ao publicar Babi Yar, de Ievguêni Ievtuchenko

A autoimolação de Valéri Kosolápov ao publicar Babi Yar, de Ievguêni Ievtuchenko

Por Vadim Málev, em 10 de junho de 2020
Texto de Milton Ribeiro a partir de tradução oral de Elena Romanov

Valéri Kosolápov

Hoje é o dia dos 110 anos do nascimento de Valéri Kosolápov. Mas quem é esse Valéri Kosolápov? Por que deveria escrever sobre ele e você deveria ler? Valéri Kosolápov tornou-se um grande homem em uma noite e, se não fosse assim, talvez não conhecêssemos o poema de Yevgeny Yevtushenko (Ievguêni Ievtuchenko) Babi Yar. Kosolápov era então editor do Jornal de Literatura (Literatúrnii Jurnál), o qual publicou corajosamente o poema em 19 de setembro de 1961. Foi um feito civil real.

Afinal, o próprio Yevtushenko admitiu que esses versos eram mais fáceis de escrever do que de publicar naquela época. Tudo se deve ao fato de o jovem poeta ter conhecido o escritor Anatoly Kuznetsov, autor do romance Babi Yar, que contou verbalmente a Yevtushenko sobre a tragédia acontecida naquela assim chamada ravina (ou barranco). Por consequencia, Yevtushenko pediu a Kuznetsov que o levasse até o local e ele ficou chocado com o que viu.

“Eu sabia que não havia monumento lá, mas esperava ver algum tipo de placa in memorian ou ao menos algo que mostrasse que o local era de alguma forma respeitado. E de repente me vi num aterro sanitário comum, que era como imenso sanduíche podre. E era ali que dezenas de milhares de pessoas inocentes — principalmente crianças, idosos e mulheres — estavam enterradas. Diante de nossos olhos, no momento em que estava lá com Kuznetsov, caminhões chegaram e despejaram seu conteúdo fedorento bem no local onde essas vítimas estavam. Jogaram mais e mais pilhas de lixo sobre os corpos”, disse Yevtushenko.

Ele questionou Kuznetsov sobre porque parecia haver uma vil conspiração de silêncio sobre os fatos ocorridos em Babi Yar? Kuznetsov respondeu que 70% das pessoas que participaram dessas atrocidades foram policiais ucranianos que colaboraram com os nazistas. Os alemães lhes ofereceram o pior e mais sujo dos trabalhos, o de matar judeus inocentes.

Yevtushenko ficou estupefato. Ou, como disse, ficou tão “envergonhado” com o que viu que naquela noite compôs seu poema. De manhã, foi visitado por alguns poetas liderados por Korotich e leu alguns novos poemas para eles, incluindo Babi Yar… Claro que um dedo-duro ligou para as autoridades de Kiev e estas tentaram cancelar a leitura pública que Yevtushenko faria à noite. Mas ele não desistiu, ameaçou com escândalo e, no dia seguinte ao que fora escrito, Babi Yar foi ouvido publicamente pela primeira vez.

Yevtushenko lê seus poemas. Nos anos sessenta, os poetas podiam reunir milhares de pessoas…

Passemos a palavra a Yevtushenko: “Depois da leitura, houve um momento de silêncio que me pareceu interminável. Uma velhinha saiu da plateia mancando, apoiando-se em uma bengala, e encaminhou-se lentamente até o palco onde eu me encontrava. Ela disse que estivera em Babi Yar, que fora uma das poucas sobreviventes que conseguiu rastejar entre os cadáveres para se salvar. Ela fez uma reverência para mim e beijou minha mão. Nunca antes alguém beijara minha mão”.

Então Yevtushenko foi ao Jornal de Literatura. Seu editor era Valéri Kosolápov, que substituiu o célebre Aleksandr Tvardovsky no posto. Kosolápov era conhecido como uma pessoa muito decente e liberal, naturalmente dentro de certos limites. Tinha ficha no Partido, claro, caso contrário, nunca acabaria na cadeira de editor-chefe. Kosolápov leu Babi Yar e imediatamente disse que os versos eram muito fortes e necessários.

— O que vamos fazer com eles? — pensou Kosolápov em voz alta.

— Como assim? — Yevtushenko respondeu, fingindo que não tinha entendido — Vamos publicar!

Yevtushenko sabia muito bem que, quando alguém dizia “versos fortes”, logo depois vinha “mas, eu não posso publicar isso”. Mas Kosolápov olhou para Yevtushenko com tristeza e até com alguma ternura. Como se esta não fosse sua decisão.

— Sim.

Depois pensou mais um pouco e disse:

— Bem, você vai ter que  esperar, sente-se no corredor. Eu tenho que chamar minha esposa.

Yevtushenko ficou surpreso e o editor continuou:

— Por que devo chamar minha esposa? Porque esta deve ser uma decisão de família.

— Por que de família?

— Bem, eles vão me demitir do meu cargo quando o poema for publicado e eu tenho que consultá-la. Aguarde, por favor. Enquanto isso, já vamos mandando o poema para a tipografia.

Kosolápov sabia com certeza que seria demitido. E isso não significava simplesmente a perda de um emprego. Isso significava perda de status, perda de privilégios, de tapinhas nas costas de poderosos, de jantares, de viagens a resorts de prestígio …

Yevtushenko ficou preocupado. Sentou no corredor e esperou. A espera foi longa e insuportável. O poema se espalhou instantaneamente pela redação e pela gráfica. Operários da gráfica se aproximaram dele, deram-lhe parabéns, apertaram suas mãos. Um velho tipógrafo veio. “Ele me trouxe um pouco de vodka, um pepino salgado e um pedaço de pão”, contou o poeta. E este velho disse: — “Espere, espere, eles imprimirão, você verá.”

E então chegou a esposa de Kosolápov e se trancou com o marido em seu escritório por quase uma hora. Ela era uma mulher grande. Na Guerra, ela fora uma enfermeira que carregara muitos corpos nos ombros. Essa rocha saiu da reunião, aproximando-se de Yevtushenko: “Eu não diria que ela estava chorando, mas seus olhos estavam úmidos. Ela olhou para mim com atenção e sorriu. E disse: ‘Não se preocupe, Jenia, decidimos ser demitidos’.”

Olha, é simplesmente lindo: “Decidimos ser demitidos”. Foi quase um ato heroico. Somente uma mulher que foi para a front sob balas podia não ter medo.

Na manhã seguinte, chegou um grupo do Comitê Central, aos berros: “Quem deixou passar, quem aprovou isto?”. Mas já era tarde demais — o jornal estava à venda em todos os quiosques. E vendia muito.

“Durante a semana, recebi dez mil cartas, telegramas e radiogramas. O poema se espalhou como um raio. Foi transmitido por telefone a fim de ser publicado em locais mais distantes. Eles ligavam, liam, gravavam. Me ligaram de Kamchatka. Perguntei como tinham lido lá, porque o jornal ainda não tinha chegado. “Não chegou, mas pessoas nos leram pelo telefone, nós anotamos”, contou Yevtushenko.

Claro que as autoridades não gostaram e trataram de se vingar. Artigos aos montes foram escritos contra Yevtushenko. Kosolápov foi demitido.

Aqui está o jovem Yevtushenko, na época em que escreveu “Babi Yar”

O que salvou Yevtushenko foi a reação mundial. Em uma semana, o poema foi traduzido para 72 idiomas e publicado nas primeiras páginas de todos os principais jornais, incluindo os norte-americanos. Em pouco tempo, Yevtushenko recebeu outras 10 mil cartas agora de diferentes partes do mundo. E, é claro, não apenas judeus escreveram cartas de agradecimento, o poema fisgou muita gente. Mas houve muitas ações hostis contra o poeta. A palavra “judeu” foi riscada em seu carro e, pior, ele foi ameaçado e criticado em várias oportunidades.

“Vieram até meu edifício uns universitários enormes, do tamanho de jogadores da basquete. Eles se comprometeram a me proteger voluntariamente, embora não houvesse casos de agressão física. Mas poderia acontecer. Eles passavam a noite nas escadarias do meu prédio. Minha mãe os viu. As pessoas realmente me apoiaram ”, lembrou Yevtushenko.

— E, o milagre mais importante, Dmitri Shostakovich me telefonou. Minha esposa e eu não acreditamos, pensamos que era mais um gênero de intimidação ou que estavam aplicando um trote em nós. Mas Shostakovich apenas me perguntou se eu daria permissão para escrever música sobre meu poema.

Shostakovich e Yevtushenko na primeira apresentação da 13ª Sinfonia de Shostakovich, em cuja primeira parte foi colocada o poema “Babi Yar”

Esta história tem um belo final. Kosolápov aceitou tão dignamente sua demissão que o pessoal do Partido ficou assustado. Eles decidiram que se ele estava tão calmo era porque tinha proteção de alguém muito importante e superior… Depois de algum tempo, ele foi chamado para ser editor-chefe da revista Novy Mir. “E apenas a consciência o protegia”, resumiu Yevtushenko. “Era um Verdadeiro Homem.”

Valéri Kosolápov
A lápide de Valéri Kosolápov

RIP

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Anotações de um jovem médico, de Mikhail Bulgákov

Anotações de um jovem médico, de Mikhail Bulgákov

O Mestre e Margarida é um dos melhores livros que já li. Então, é natural que persiga outros livros de Bulgákov. Este Anotações de um jovem médico reúne trabalhos da juventude do escritor. Algumas das histórias foram publicadas numa revista de medicina — Bulgákov foi também médico — e falam da época em que ele foi mandado para ser o único médico numa gelada comunidade rural da Rússia.

Há um pouco do humor do escritor maduro, mas o que chama a atenção é o tremendo realismo e poder de observação presentes no texto. Além disso, o texto de Bulgákov nos envolve totalmente. Enviado para assumir um posto como clínico geral em um hospital isolado da civilização, ele é, à princípio, um médico 100% inseguro. O hospital é bem provido materialmente, mas o novo médico não sabe como utilizar boa parte do que tem… E ele lidera uma pequena equipe que conta com um enfermeiro-dentista e duas parteiras-obstetras, acostumados com a liderança de seu antecessor, um médico velho e experiente. Há momentos em que o jovem doutor volta até sua casa para dar uma olhada em seus livros de medicina… Mas ele começa a trabalhar adequadamente, a salvar vidas, sua fama se solidifica e ele passa a atender mais de 100 pacientes por dia. Está sempre exausto. Se você já exerceu um trabalho de grande responsabilidade irá sentir empatia pelo jovem. A ansiedade é muito bem descrita.

Os contos não têm uma ligação cronológica rígida e retratam os episódios mais notáveis da temporada glacial do jovem doutor. Da parte dele, há sincera preocupação pelos pacientes, que costumam ser muito desinformados, chegando um deles a receber comprimidos para tomar um por dia, mas que acaba tomando todos de uma vez porque com esse negócio de um por dia ele poderia esquecer de tomá-los.

O livro também traz o famoso relato Morfina, que narra a história do vício em morfina do Dr. Poliakov, um colega do protagonista de Anotações — que vai receber o nome de Dr. Bomgard. Poliakov substitui Bomgard no hospital isolado. Usando a morfina uma vez para amenizar uma dor física, ele percebe que esta também lhe amenizava os problemas pessoais e renovava sua capacidade de trabalho. A partir daí, já viram… O conto é muito realista e doloroso.

Morfina é também autobiográfico. Bulgákov foi viciado em morfina em sua juventude, e sua primeira esposa, Tatiana Lappa, foi de extrema importância para ajudá-lo a superar a dependência. Ela é considerada o modelo para a personagem Anna, de Morfina, do mesmo modo que a terceira esposa de Bulgákov, Elena, serviu de base para a Margarida de seu maior romance.

Mas há também o conto Eu matei, que traz a aventura de um médico forçado a servir o exército de Petliura, líder nacionalista ucraniano que colaborou com as tropas alemãs durante a Primeira Guerra Mundial, resistindo aos bolcheviques durante a Revolução de 1917.

Excelente! Recomendo!

Mikhail Bulgákov

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Você lê este poema e depois manda os racistas pra onde eles merecem ir

Você lê este poema e depois manda os racistas pra onde eles merecem ir

~ Casa dos Mundos Irrepetíveis ~

Se digo mãe, digo Itália; se digo avó, digo ilha,
se digo bisavô, digo Galiza; se digo trisavó, digo França
um tetravô na Grécia outro em Damasco;
um perdido na Índia cigana outra nas ruas da Palestina,
se chegar aos décimos avós sou de todos os lugares,
venho de todas as origens, concebido em todas as religiões;
venho de um pirata e seguramente de uma puta,
de um marajá e de uma cortesã, uma geisha
e um traficante de sedas; uma amazona das estepes
e um boiardo; um vizir e uma poeta,
família de assaltantes nos idos dos avós doze,
marinheiros das austrálias, perdidos nos infernos
de ser gente do mundo e no mundo parental
chego depois de várias incidências
a esta Lisboa remodelada; na Mouraria um primo
outro no Quartier, uma prima no Magrebe
outra em Moscou e mais uma no Congo
e milhares no Brasil, o meu DNA é o mundo,
as minhas células do universo
sou um homem feito de mulheres em verso.
Nas minhas veias há um refugiado profundo
Afinal onde está o meu berço?

Luís Filipe Sarmento

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O ardente manuscrito (sobre ‘O Mestre e Margarida’)

Clássico de Mikhail Bulgákov traz o diabo como única força motriz possível para renovar a literatura numa Rússia ateísta

Por Arthur Marchetto — No Jornal Rascunho

Em 1928, já sofrendo as restrições impostas pelo regime stalinista, Mikhail Bulgákov começou a escrever sobre o dia em que satã e sua comitiva chegaram em Moscou e a deixaram de cabeça para baixo. A história, concluída postumamente doze anos depois e intitulada O Mestre e Margarida, só chegou ao público 40 anos depois daquela primeira linha. O longo tempo para finalizar o livro está relacionado às dificuldades que Bulgákov enfrentou.

Além da pressão econômica e política promovida pelo Estado soviético, o escritor foi diagnosticado com neurosclerose hipertônica e perdeu quase todos os movimentos e a visão. Até sua morte, o escritor ditou ajustes e correções para sua terceira esposa, Ielena Serguêievna, que finalizou a obra. Publicado pela primeira vez na revista Moscou em duas edições, em 1966 e 1967, a edição teve cerca de 14 mil palavras censuradas.

Ao longo dos anos, os originais foram submetidos a diversos especialistas e muitas versões do livro coexistiram. Na tentativa de unificá-los, a pesquisadora Ielena Kolycheva promoveu um extenso estudo para chegar a uma versão mais próxima da vontade de Bulgákov, utilizando seus manuscritos e duas versões em circulação. Foi o estabelecimento do texto gerado na conclusão da pesquisa, publicado em 2014, que a Editora 34 utilizou como base para a tradução do livro, lançado em 2017.

O Mestre e Margarida é considerada a grande obra-prima de Bulgákov porque seu estilo, procedimentos artísticos e críticas sobre o regime soviético estão em plena forma. O próprio escritor sentia isso. Segundo o relato da viúva, quando estava morrendo o escritor disse: “Talvez isso esteja certo. O que poderia eu escrever depois de O Mestre?”.

Em suas obras, Bulgákov utilizou a sátira, o sarcasmo e a ironia como armas políticas. Escrevia contra a nova política econômica (NEP), contra o burocratismo, contra o discurso oficial e sua influência no homo sovieticus. Em seus livros, a história contemporânea e sua autobiografia aparecem como fortes elementos, mas revestidos por uma forte dose de fantasia.

Bulgákov nasceu em Kiev, atual capital da Ucrânia, onde estudou e se formou em medicina. Antes de começar a escrever, começou uma carreira médica no serviço militar na primeira guerra. Sua relação com o regime soviético sempre foi conflituosa e, na Guerra Civil, lutou ao lado dos Brancos. Em 1920, Mikhail largou o exército e começou seu trabalho como escritor na imprensa, publicando folhetins e reportagens já com seu tom sarcástico. Pouco tempo depois, arriscou-se na escrita de novelas e contos.

Na metade da década, quando já estava consolidado no círculo literário russo, começou a ter o mesmo tratamento que era destinado aos outros dissidentes, como seu amigo Evguênii Zamiátin, autor de Nós. Gradualmente deslocado para fora da cena literária numa espécie de ostracismo, passou por dificuldades econômicas e perseguição política. Em 1926, seus diários e novelas foram apreendidas, a crítica começou a execrá-lo e ele declarou que estava em uma “morte em vida”. Foi dentro desse contexto que, em 1930, escreveu uma carta para Stálin solicitando sua ida ao estrangeiro. A correspondência foi respondida por um telefonema do próprio Josef Stálin que, além de garantir que não havia nenhuma perseguição ao escritor, declarou sua admiração pela peça O dia dos Turbin e lhe garantiu um emprego no Teatro de Arte de Moscou.

No entanto, a passagem pelo teatro foi conturbada e a censura continuou. Nesse período, diversos textos do escritor foram apreendidos e devolvidos tempos depois. Com medo, Bulgákov queimou esses manuscritos. Anos depois descobriu-se que o Estado havia feito cópias de seus escritos e arquivado tudo num dossiê sobre o escritor. Dentro de O Mestre e Margarida, tal contexto e experiência de vida se tornam mais uma das diversas referências espalhadas pela narrativa, assim como seu conhecimento musical e literário, sua vida nos teatros e o cotidiano dos soviéticos.

A narrativa do romance nos guia conforme satã, representado pela figura do prof. Woland, chega em Moscou com seu séquito — a vampira Hella, um gato que fala e anda em duas patas chamado Behemoth, um ruivo pequeno e bronco com um canino de fora chamado Azazello e seu escudeiro alto e desengonçado, chamado de Koroviév ou de Fagote — e instaura o caos gradualmente.

Sua primeira aparição é no Lago do Patriota, interferindo na discussão entre um poeta, Ivan Nikoláievitch, e um editor de revista, Mikhail Berlioz. Ambos discutem o texto encomendado que, segundo o desejo do editor, deveria defender a existência de Jesus como um absurdo ao invés de caracterizá-lo como uma personagem histórica desmistificada. Woland interrompe a conversa, questionando a certeza de Berlioz sobre a inexistência de Jesus e de quaisquer forças superiores.

Essa conversa entre os três sujeitos introduz uma narrativa secundária que permeará toda a história: o julgamento de Jesus por Pôncio Pilatos — em um primeiro momento, contada por Woland em frente ao lago, mas que se revelará como o livro escrito pelo Mestre, personagem que dá nome ao romance.

Esses capítulos iniciais servem como ponto de entrada para a descrição de uma sociedade controladora e paranoica, deixam a atitude covarde de Pilatos em pé de igualdade com o cotidiano dos cidadãos nos tempos stalinistas e apresenta a ideia de um ateísmo militante presente naquele tempo na Rússia. Nesse contexto, com tantas certezas de que Deus não existe, o diabo se torna a força motriz possível para os russos.

Fáustico
O Fausto, de Goethe, e mais ainda sua adaptação operística por Gounod, aparecem como fortes inspirações para a inversão de realidade que critica a sociedade por meio do escárnio, tão presente nas obras de Bulgákov. O Mefistófeles do original é bem diferente do criado por Bulgákov. Ele não faz pactos pela alma de ninguém, não se torna servo. Sua intenção é ser servido e realizar o baile anual de primavera no submundo, tendo como pré-requisito uma anfitriã aleatória chamada Margarida.

O livro se mostra mais carnavalesco do que infernal, mesclando o bem e o mal, o humano e o divino. A epígrafe do livro, também retirada do Fausto de Goethe, insinua a mistura entre as duas faces opostas: “— Pois bem, quem és então?/ — Sou parte da Energia que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria”. É por meio desse poder “diabólico” que Bulgákov trata da arte e do amor, e de como libertá-los de suas amarras.

Sobre a arte, Bulgákov traz dois criadores incompreendidos, o poeta Ivan Nikoláievitch e o Mestre, dentro de um contexto em que a literatura era subordinada às forças oficiais, onde os escritores eram assim considerados pelo seu credenciamento no Estado e não pela qualidade do que escreviam. Como dito no próprio livro, tais “artistas” estavam mais preocupados com suas férias no campo do que com o desenvolvimento estético.

No entanto, apesar da realidade perversa, a verdadeira literatura se mostra forte e resistente, simbolizada pelo trabalho do Mestre. A frase “os manuscritos não ardem”, repetida ao longo da narrativa, dialoga com a vida de Bulgákov. Além dos manuscritos apreendidos pelo Estado que queimou posteriormente, também tentou queimar o rascunho de O Mestre e Margarida, impedido pela esposa. Dentro do romance, o Mestre também queima os manuscritos de seu livro em uma fornalha, mas as forças diabólicas de Woland o recuperam.

Por fim, no campo do amor, Margarida aparece como uma força celestial, um poder feminino necessário na criatividade masculina. Além disso, a personagem se relaciona com as mulheres do Fausto de Goethe, a terceira esposa de Bulgákov, Ielena Serguêievna, e ao amor incondicional da doutrina ortodoxa na Rússia.

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Franny & Zooey, de J. D. Salinger

Franny & Zooey, de J. D. Salinger

Apesar de reconhecer o que há de (muito) maniático neste livro. gostei muito de reler Franny & Zooey após algumas décadas. O romance é formado por poucas e detalhadíssimas cenas. Os dois personagens principais são os dois irmãos do título, nascidos na célebre família Glass, presente neste e em outros livros de Salinger. Há mais cinco irmãos, mas eles não são protagonistas aqui.

As cenas? Sem spoiler? Vamos lá. Na primeira, Franny começa a entrar em crise. Ela explica ao namorado Lane as razões que a levam a pensar que a religião é a única solução para seu crescente desencanto, tudo isso pontuado por crises de choro e incompreensão. Não é uma cena hilária e vamos nos acostumando com a notável profusão de detalhes que Salinger nos expõe. Depois vem a cena mais engraçada do livro. Zooey discute com mamãe Bessie sobre o fato de Franny não se alimentar, de estar estranha e sem rumo, à beira de um colapso. E finaliza com um enorme diálogo entre Franny e Zooey. As últimas páginas são realmente lindas.

Resumindo, a coisa parece bem teatral. Temos três atos descritos minuciosamente. Primeiro ato: Franny sem rumo e próxima a um colapso. Segundo: mãe pressiona Zooey a conversar com Franny após este ler carta de Buddy, um dos irmãos mais velhos. Terceiro: Zooey intervém a seu modo.

Eu já conhecia este drama de família e sua curiosa intensidade me prendeu novamente. A implacável luta intelectual de Zooey com Franny é exaustiva, dentro de um conflito familiar altamente realista. E não cansa discutir? Nossa, cansa muito! O relacionamento irônico, carinhoso, mas também intolerante de Zooey com sua mãe ajuda a fazer deste livro uma joia. Eles discutem no banheiro, com Zooey absurdamente preso na banheira que esfria, debatendo com uma mãe cansada através da cortina de chuveiro. Esta cena é um bálsamo para todas as banalidades ​​que abundam na literatura.

Talvez seja surpreendente que Franny & Zooey tenha se tornado um sucesso instantâneo. O apanhador no campo de centeio pode ser o livro mais famoso de Salinger, mas Franny & Zooey não está abaixo. Frenético e intransigente, este livro pode até irritar você, mas uma coisa é certa, ele não o deixará indiferente.

Salinger disse que este romance é um “tipo de filme caseiro em prosa”. Sim, é verdade. Só que também é um excelente trabalho de artesanato. Sabem? No início do livro, certa vivacidade fazia com eu me surpreendesse com o fato de Franny estar sendo foco de tanta atenção. E me perguntava se era possível dizer que ela sofria efetivamente. Mas à medida que as coisas progridem na segunda história, cresce a preocupação de ela estar no mesmo caminho suicida que seu irmão Seymour.

Os diálogos sinuosos revelam bastante de Franny mas também de seu irmão. Ambos têm ânsia por um runo. Quando vemos Zooey suando, sentado em silêncio por 20 minutos no quarto abandonado do irmão perdido, sabemos que ele sofre tanto quanto a pobre Franny. O livro é um retrato terno e compreensivo que certamente reflete muito de Salinger. O que torna tudo mais triste.

Franny & Zooey é uma rara e valiosa obra de arte e empatia.

E eu o recomendo.

J. D. Salinger fumando como um personagem de J. D. Salinger.

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Eu hoje falei em Bulgákov, mas talvez não devesse

Eu hoje falei em Bulgákov, mas talvez não devesse

Eu sou uma pessoa que raramente cai, mas hoje sofri uma queda bem perigosa. Estava no estreito canteiro central da Av. João Pessoa. Caminhava na direção contrária a de um ônibus que ia para o centro. Estava de máscara e com os óculos embaçados.

De máscara e óculos, não vejo muita coisa e achava que não precisava; afinal, faço aquele caminho todo dia. Só que tropecei numa raiz de árvore e fui direto para o chão. Tudo foi súbito. Meus óculos e fones de ouvido caíram e, quando levantei a cabeça, vi o ônibus passar do meu ladinho. Meio apavorante.

Não sofri nada, não bati com a cabeça no chão, mas estou com dores musculares nas costas por ter impedido que isto acontecesse. Levantei rapidamente, senti primeiro a reclamação da barriga pela batida no chão e depois uma maior das costas, já loucas por uma contratura.

Botei os óculos, os fones e completei a caminhada de 20 min até em casa.

Quando cheguei, é claro que a Elena logo relacionou minha queda com a de Berlioz em ‘O Mestre e Margarida’. Sim, a queda que decapitou Berlioz após Ánnuchka ter derramado o óleo. Um bonde passou e…

Minha Liênatchka avisou para eu nunca mais me gabar com Bulgákov.

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Anne Sexton

Anne Sexton

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Eu, Vassily e Georges Simenon

Eu, Vassily e Georges Simenon

Até morar com a Elena, eu desconhecia o tamanho do amor de alguém por seu gato. Sempre tive cães e os adorava, mas minha estima por eles não chegava próxima do que vejo aqui em casa.

Isto só faz crescer em minha memória uma das melhores novelas que já li: O Gato, de George Simenon. O livro narra brilhantemente o inferno doméstico de um casal de idosos que briga silenciosamente em ataques indiretos um ao outro, talvez no estilo passivo-agressivo (li o livro há 40 anos, me perdoem). Eles se detestam meticulosamente. Um dia, o gato do marido aparece morto. Ele não tem dúvidas: certamente fora envenenado pela mulher. Para se vingar, ele depena o rabo da arara — bicho de estimação da mulher — que também acaba morrendo. É o fim de qualquer possibilidade de trégua. A mulher escreve um bilhete para o marido, dizendo que, por ser católica, não pediria o divórcio, mas informa que não falaria nunca mais com ele e ordena que ele também se abstenha de lhe dirigir a palavra. Começa um jogo que iria durar para o resto de seus dias. Ele se comunica com ela arremessando bilhetes, com pontaria infalível, em seu regaço. Ela, por sua vez, responde também com bilhetes deixados sobre os móveis da casa. A coisa fica numa tensão insuportável quando ele escreve “O Gato” e ela responde “A Arara”.

Agora eu sei melhor o tamanho do ódio. Eu não amo Vassily, mas sei que o menor empurrãozinho que der nele fará com que raios dos céus se dirijam à minha cabeça. Eu amo o Vassily.

Georges Simenon (Liège, 1903 — Lausanne,1989)

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A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha

A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha

O ótimo A vida invisível de Eurídice Gusmão é o mais brasileiro dos livros. Ou é um retrato tão fiel, mas tão fiel da condição feminina no Brasil nos anos 40 e 50, que boa parte das posturas e ações foram identificadas por mim como sendo das gerações passadas de minha família. Se a ação do livro se passa nos anos 40, eu nasci em 1957 e convivi muito com a família de Cruz Alta (RS) de minha mãe. E, meu jesus cristinho, a sociedade cruz-altense dos anos 60 era a do Rio de 20 anos antes. Havia a mulher decente, a fofoqueira, a que era obrigada a trabalhar (coitada), a puta, todas elas com algo em comum, a infelicidade.

Ou era igual em todo o mundo, tanto que o livro já foi multitraduzido, tendo versões em inglês, francês, alemão, etc.

Este livro de Martha Batalha é de 2016 e cumpriu um longo trajeto. Não obteve editora no Brasil, sendo aceito ANTES em outras línguas. Acabou na maior editora brasileira, virou filme e agora faz crescente sucesso, após a autora ter sido finalista do Jabuti por com seu segundo livro, Nunca houve um castelo.

Este livro conta a história de Eurídice, uma mulher dotada de boa dose de inteligência que poderia ter sido o que quisesse, mas que acabou como dona de casa. Tudo o que ela planejava fazer de forma independente acabava em um não do pai, da mãe ou do marido. E ela tenta tocando flauta, escrevendo um livro de receitas, iniciando uma carreira como costureira, lendo e escrevendo, tudo. A resposta de quem manda nela é sempre um não.

Ela tem uma irmã muito bonita chamada Guida, que também sofre, mas em outro âmbito.

Martha Batalha escreve com mão segura e algo ousada ao fazer com que outras histórias subitamente se atravessem na narrativa. Essas interrupções são tão longas que a gente pensa, como se lesse o Manuscrito de Saragoça, de Jan Potocki: será que ela voltará à história que estava contando antes? Mas todas estas histórias que surgem servem para mostrar a vida sofrida de outras mulheres e para dar potência à história de Eurídice.

Então, A vida invisível de Eurídice Gusmão fala sobre vidas de mulheres submetidas a um machismo sistêmico. O marido de Eurídice, por exemplo, é um bom homem que chega a um alto cargo no Banco do Brasil. só que ele acha que a mulher deve ficar em casa tratando dos filhos e das refeições, já que traz dinheiro mais do que suficiente. E, protegendo e “melhorando” a vida de sua família, ele diz não às novidades da mulher. Para a sociedade da época, parece o homem ideal, só que não… Deste modo, sendo “bom, cuidadoso e correto”, ele impõe à Eurídice uma rotina desesperadora, que destrói sua felicidade, criatividade e brilhantismo.

Restou-lhe o silêncio de uma atividade muito conhecida.

Não pensem em um livro feminista que grita, pensem em um bem delicado e muito, muito forte e convincente.

Recomendo muito!

Martha Batalha: história brasileiríssima ou, quem sabe, universal

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Sérgio Sant’Anna (1941-2020)

Sérgio Sant’Anna (1941-2020)

Eu era leitor de Sérgio Andrade Sant’Anna, depois tomei-me amigo dele no Facebook — dialogamos alegre e gentilmente algumas vezes, falamos de seus livros e de como ele era fisicamente muito parecido com outro grande amigo meu — e sua morte me afeta muito. Foi-se um grande escritor, vítima do coronavírus. João Gilberto, Srta. Simpson, Simulacros, Manfredo Rangel e A Tragédia Brasileira são livros que guardo no ventrículo esquerdo, que é onde o coração bate mais forte. Dias atrás, ele escreveu sobre a grande escuridão. Ele tinha receio que ela estivesse chegando. Puxa vida, Sérgio, não precisava ter acertado, né? Homem íntegro, combateu a ditadura militar e tinha todas as ironias do mundo para nossa atual tragédia.

Foi -se e é mais uma tristeza a marcar esses dias.

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Como ser legal, de Nick Hornby

Como ser legal, de Nick Hornby

A médica Kate Carr divide seus dias entre o trabalho, os dois filhos pequenos, as contas a pagar e um amante sem graça, enquanto o marido cuida da casa e das crianças. O “trabalho” do marido resume-se a escrever uma coluna no jornal local do bairro de Holloway, Londres. São crônicas sobre como ele detesta tudo, principalmente as pessoas. Também escreve um livro, daqueles que jamais virão à luz. O título de sua coluna? Ora, O homem mais mal-humorado de Holloway. E ela, Katie, resolve se separar. Afinal, a relação com o marido dá-se através de sarcasmos dos quais ela é a maior vítima. OK, o sexo funciona, já o resto… Porém, após o anúncio da separação, David, o marido, decide mudar, transmutando-se num estranho gênero de boa pessoa.

A primeira parte de Como ser legal é realmente muito boa. Katie conta sua história demonstrando discreta raiva, além de boas doses de aversão ao marido e ao amante. Ela também tem perfeito senso do vaudeville onde está metida, mas com uma ponta de desespero real. Uma bela construção de Hornby.

Mas aí aparece BoasNovas, um curandeiro magricela e filósofo dotado de um discurso irritante de terapias alternativas. Ele cura David, o marido, de suas antigas dores nas costas. Mas faz mais: tira do coração de David a herança de anos de cinismo e a substitui por um amor inquestionável e abrangente à humanidade. A metamorfose, manipulada habilmente por Hornby, obriga Katie a questionar o que desejava. O novo David é tudo o que ela acreditava que queria que ele fosse: gentil, aberto, amoroso. Só que, infelizmente, ele também quer escrever livros de auto-ajuda, convence seus filhos a dar seus brinquedos a órfãos e, o pior de tudo, quer que BoasNovas more com eles. O tal BoasNovas é um baita chato que quer salva o mundo alterando as posturas pessoais da gente do bairro. A mudança tem que começar por algum lugar.

Enquanto tudo isso acontece, Katie é forçada a pensar na tolerância e sacrifício que está preparada para fazer a fim de melhorar a vida mundial ou a de seu bairro. Por exemplo, David e BoasNovas bolam um modo de incentivar toda a rua a levar um sem-teto para aqueles quartos que não são habitados de suas casas. Também fazem planos para erradicar a dívida mundial na mesa da cozinha e, em uma inversão, Katie se vê no papel de escarnecedora e cínica.

Quando as coisas começam a não funcionar, o livro cai muito. Assim, a história termina de maneira insatisfatória, oscilando entre a comédia social e os entediantes compromissos de fé e amor de David e BoasNovas. Hornby parece perder o rumo. Ou talvez as perguntas que este livro se faz sejam grandes demais para o autor e para a vida que ele descreve.

Hornby: lidando com uma canção maior do que o cantor?

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Judas, de Amós Oz

Judas, de Amós Oz

Judas é o último romance de Amós Oz (1939-2018), publicado em 2014, aos 75 anos de idade do escritor. Sem dúvida, é um belo ponto final para a grande obra de Oz. Trata-se de uma indiscutível obra prima. É um livro que nasceu clássico, mas não pense em algo acadêmico, pense em algo rebelde. Oz ousa muito em Judas. Ele reinventa a história do homem do qual se diz ter beijado e traído Jesus e questiona a criação do estado de Israel. Só isso. Sem artifícios exagerados ou grandes invenções, apenas empurrando as peças para ali adiante ou para o lado, Oz reconstrói a história do cristianismo e de seu povo. A leitura de Judas é um sereno convite para a livre reflexão. Mas sabem o que eu acho? Há duas histórias contadas paralelamente e a melhor é a outra.

A outra história, a de dentro de casa, é a do trio formado por Shmuel Asch, um jovem, reflexivo e quase desistente estudante universitário; por Guershom Wald, um velho professor inválido que é cuidado às noites por Shmuel; e por Atalia Abravanel, nora de Wald. Os três moram na mesma casa, que é de Atalia. Após desistir (temporariamente?) da universidade, Shmuel serve de interlocutor para Wald entre às 17 e às 22h, já que o velho gosta de tagarelar e tagarelar de forma inteligente e contumaz. Atalia é a nora viúva, pois seu marido, filho de Wald, morreu na guerra. É lá, em uma casa de pedra que cheira à mofo, que são discutidas algumas das grandes questões políticas e religiosas da região.

Não pensem em um livro onde as teses políticas competem com os personagens e a fabulação, pense num livro onde a situação dos personagens diz tanto sobre as teses que tudo se confunde. Alívio! Judas não tem um texto que descamba para a filosofia ou a política, tem um texto onde as situações falam tanto quanto as teses.

Shmuel, um estudante ateu de judaísmo, foi contratado por Atalia para conversar com o velho, dar-lhe alguns remédios e alimentá-lo no horário que citamos. No resto do tempo, ele pode fazer o que quiser. Então, ele dorme, passeia e pensa na tese de pós-graduação que talvez jamais escreva, pois está sem dinheiro e desanimado. Mas talvez o que mais faça é o que fizeram seus antecessores no cargo: apaixona-se pela misteriosa e bela Atalia, uma mulher amarga que não quer nada com homens — além de, eventualmente, seu instrumental.

Shmuel fala muito de Judas Iscariotes. Ele acredita que Judas, na verdade, não traiu Jesus, mas foi seu discípulo mais leal. O velho fala sobre seu sogro, um certo Shaltiel Abravanel, pai de Atalia, famoso traidor na época de sua expulsão do Executivo sionista em 1947, por se opor à criação do Estado de Israel. Abravanel acreditava que judeus e palestinos poderiam viver juntos sem fronteiras. Foi considerado também traidor. O velho e o menino conversam sobre as ideias desses dois mortos, mas acima de tudo sobre suas condições de supostos traidores. Quem decide quem é traidor e por quê? Esse é o verdadeiro tema do romance. Oz conhece bem o tema, já que também teve problemas com o nada tolerante fundamentalismo judaico.

Enquanto isso, desenvolve-se o amor sem chances do jovem Shmuel pela bela, atraente e desiludida Atalia, que tem 45 anos, o dobro da idade dele.

Judas é um romance que lida com a questão da traição. Por que Judas teria traído Jesus em troca de 30 moedas de prata? Não é verdade que Judas honrou seu mestre mais do que todos os outros discípulos e só queria provar que Jesus era todo-poderoso e poderia salvar a si mesmo da cruz? A resposta toca o cerne da relação entre judeus e cristãos e tem importância não apenas teológica, mas também política. A descrição da crucificação de Jesus da perspectiva de Judas é uma das passagens mais impressionantes do livro. Mas há mais, há o processo de introdução de Shmuel no cotidiano da casa, também lindamente descrito.

É magistral a forma como Oz consegue evocar a Jerusalém de 1959 e 1960. Na atmosfera densa e cinza, fica claro desde o início que também a história de amor que surge entre Atalia e o (ex-)estudante de Teologia está condenada ao fracasso. Nas conversas, nas perdas e nas esperanças dos três moradores da casa refletem-se todas as turbulências históricas não apenas das últimas décadas, mas dos últimos 2 mil anos.

Certo dia, um grande amigo me disse que as obras-primas literárias sempre giram sobre estes três temas — o amor, a morte e a existência (ou não) de Deus. Judas é um livro que fala de todos estes temas.

Recomendo fortemente.

Amós Oz não era antissemita, mas criticava Israel. Quem elogia sistematicamente? Os fanáticos, ora. Mas isso é outro papo.

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A Bamboletras no programa Rádio-leitura da Rádio da Ufrgs

A Bamboletras no programa Rádio-leitura da Rádio da Ufrgs

Texto do post original:

O Rádio-Leitura de hoje [apresentado pelo ótimo jornalista Pedro Palaoro] traz o livreiro Milton Ribeiro, da Bamboletras, uma das mais tradicionais livrarias de rua de Porto Alegre. Ele comenta sobre a reinvenção do comércio nesses tempos de pandemia e reflete sobre os ensinamentos que o período de isolamento social podem trazer.

O livreiro também dá dicas de leituras e compartilha conosco um trecho de uma das grandes escritoras portuguesas contemporâneas.

Ouça o podcast na íntegra:

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Lendo Judas, de Amós Oz

Lendo Judas, de Amós Oz

Estou num relacionamento sério com o livro Judas, de Amós Oz. Livraço. Leio Oz apenas pela segunda vez e repetidas vezes parece que estou numa atmosfera Charles Dickens. Esse cara deve amar Dickens, essa frase poderia ser de Dickens. Mas o tema do livro nada tem a ver. Oz não é sentimental. Judas não é nada semelhante a qualquer livro de Dickens. Oz conjetura, Dickens conta. Estou doido.

Resolvo guglar “Dickens Amós Oz” e descubro um monte de referências de Oz ao inglês. Um monte, principalmente a um dos livros que mais amo, Grandes Esperanças, e ao Um Conto de Duas Cidades. E alguma coisa acontece no meu coração que só quando cruzam e dialogam dois queridos gênios numa esquina qualquer.

Amós Oz em Nova York em 2016

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Rubem Fonseca (1925-2020)

Rubem Fonseca (1925-2020)

Eu li bastante da primeira metade da obra de Rubem Fonseca. Conheci-o adolescente quando houve a censura ao ótimo Feliz Ano Novo. A censura era uma boa propaganda na época.

Acho que conheço quase tudo de sua obra até Agosto ou Bufo & Spallanzani ou Vastos Pensamentos, não sei qual foi o último. Achei que sua literatura, antes sinceramente noir, estava decaindo.

Gostava de sua habilidade para inserir a maldade em seus textos. Ela estava sempre rondando.

Creio de Feliz Ano Novo, Lúcia McCartney, O Cobrador e A Grande Arte ficarão.

Era um mineiro muito carioca que recebeu seis Jabutis e era um sujeito conservador, apoiador do golpe de 64 e homofóbico, mas isso não chegava a transparecer com clareza em sua obra, que é o que interessa.

Ontem, ele morreu à beira dos 95 anos.

 

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Ann Patchett sobre a administração de uma livraria em quarentena: ‘Somos parte da nossa comunidade como nunca antes’

Ann Patchett sobre a administração de uma livraria em quarentena: ‘Somos parte da nossa comunidade como nunca antes’

A romancista revela como a loja de que ela é proprietária em Nashville está fazendo e refazendo planos para levar livros aos leitores que os querem mais do que nunca

Por Ann Patchett, no The Guardian (traduzido livremente por mim)

‘Nós fazemos nossos planos. Mudamos nossos planos. Esta é a nova ordem mundial ‘… Ann Patchett, da Parnassus Books. Foto: Heidi Ross / The Guardian

Nós fechamos a Parnassus Books, a livraria de que eu sou sócia em Nashville, no mesmo dia em que todas as lojas em torno de nós fecharam. Não sei dizer quando foi porque não tenho mais um relacionamento com minha agenda.

Todos os dias agora são oficialmente os mesmos, iguais. No dia do fechamento, eu e minha parceira de negócios, Karen, conversamos com a equipe e dissemos que, se não se sentissem confortáveis ​​em entrar, tudo bem. Continuaríamos a pagá-los pelo tempo que pudéssemos. Mas se eles se sentissem bem em trabalhar em uma livraria vazia, tentaríamos continuar enviando livros para os clientes.

Na primeira semana, realizamos entregas, o que significava que um cliente poderia ligar para a loja e nos dizer o que queria. Pegávamos as informações e depois corríamos com os livros para o estacionamento e os jogávamos na janela aberta do carro. A entrega parecia uma boa ideia, mas o problema era que havia tantas pessoas ligando que a equipe acabou se agrupando em torno das caixas registradoras, organizando os pedidos e tratando de despachá-los o mais rápido possível. Uma correria. Nós reavaliamos e decidimos que todos os livros teriam que ser enviados pelo correio, mesmo para os clientes que moravam descendo a rua.

Nós fazemos nossos planos. Mudamos nossos planos. Esta é a nova ordem mundial.

Nossa livraria é espaçosa e arrumada, com escadas para alcançar as prateleiras mais altas, um grande sofá de couro e uma alegre seção infantil com um mural colorido com um sapo contando uma história para um grupo extasiado de animais variados. A sala dos fundos é o exato oposto, é um tumulto cheio de mesas, pilhas de caixas vazias ou cheias de livros que chegaram ou a serem devolvidos, etc. Há decorações de Natal, displays giratórios abandonados. Ficamos lá juntos, forçados a ouvir as conversas telefônicas um do outro e a cheirar o perfume um do outro.

Não é o cenário do distanciamento social.

Então, na ausência dos clientes, o pessoal dos bastidores mudou-se para a ampla frente da loja, com mesas ​​distantes umas das outras a fim de criar nossos espaços privados. Nós aumentamos o volume do som nas caixas. O chão é um mar de caixas de papelão — pedidos concluídos, pedidos ainda aguardando mais um livro. Não fazemos nenhuma tentativa de arrumar nada antes de sair à noite. Não temos nem o ímpeto, nem a energia. Existem peixes maiores para fritar: os pedidos de clientes e para os fornecedores ativos.

Penso em como eu costumava falar no mundo pré-pandemia, defendendo a importância de ler e de fazer compras localmente, de apoiar as boas livrarias independentes. Hoje em dia, percebo até que ponto isso é verdade — agora entendo que somos parte de nossa comunidade como nunca antes e que nossa comunidade é o mundo. Quando um amigo meu, preso em seu minúsculo apartamento em Nova York, me disse que sonhava em poder ler o novo livro de Louise Erdrich, eu realizei o sonho dele. Não consigo resolver nada, não posso salvar ninguém, mas caramba, posso enviar para Patrick uma cópia de The Night Watchman.

Pelo menos por enquanto. Fazemos parte de uma cadeia produtiva que conta com editores para publicar os livros, distribuidores para enviá-los e as bikes e o serviço postal para pegar os pacotes e levá-los aos clientes. Até agora, esse frágil ecossistema está se mantendo, embora eu entenda que basta o tempo entre eu escrever este texto e você lê-lo para ele desmoronar. Mas, nesta época em que finalmente há tempo para ler novamente, é o que temos. Portanto, ligue para a livraria local e verifique se os livros podem ser enviados. Acontece que a comunidade de leitores e livros é a comunidade que precisávamos antes, e é a comunidade que precisamos em tempos difíceis, e é a comunidade com quem queremos estar quando tudo isso acabar.

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