O Herói do Nosso Tempo, de Mikhail Liérmontov

O Herói do Nosso Tempo, de Mikhail Liérmontov

Ah, a literatura russa do século XIX… Quando jovem, eu achava que ela era um fenômeno que se limitava a indivíduos como Dostoiévski, Púchkin, Gógol, Tolstói, Tchékhov, Turguêniev — e já eram muitos para um país semifeudal, pobre e lotado de analfabetos e escravos! — mas depois fui adiante com Oblómov e este O herói do nosso tempo (Martins Fontes, 221 páginas). E, olha, que livros, que literatura!

(Bem, os argentinos também têm uma penca de escritores fantásticos vá saber por quê).

Liérmontov foi um dezembrista. Ocorrida na Rússia em 1825, a Revolta Dezembrista desejava a supressão do regime servil, o fim do feudalismo, a implantação de uma democracia representativa na Rússia czarista, programas de incentivo às artes e às ciências e aproximação do país à Europa. O czar Nicolai I respondeu às reivindicações com repressão implacável, censura, tortura e o fim das atividades científicas. E, desta forma bolsonarista, venceu, sufocando a revolta. Tal tragédia foi respondida por um clima de indiferença a todo o sentido de dever, justiça e verdade, além de um desdém cínico pelo pensamento e pela dignidade do homem. É claro que isto foi impulsionado pela novidade do romantismo, que estava em seu início.

Por que iniciei minha resenha assim? Ora, porque tudo isso está incrustrado no personagem principal do livro, Pietchórin. O Herói do Nosso Tempo é não somente o retrato desse herói entediado, mas também desse tempo em que as dissidências foram esmagadas e só resta o imobilismo geral ou a exibição cínica do desinteresse. É claro que os czaristas achavam o livro desprezível.

A obra-prima de Mikhail Liérmontov é um dos mais influentes e importantes romances russos. Ele é composto por cinco seções, todas girando em torno de Pietchórin. Ele é um dos personagens mais ambíguos da literatura mundial: mente, engana e manipula os outros para obter o que deseja – e quando consegue já não sabe mais se quer aquilo.

O Herói do Nosso Tempo não é o habitual calhamaço russo. Tem pouco mais de 200 páginas e vem com um pequeno elenco de personagens. Como disse, o livro é dividido em cinco partes, sempre com o mesmo personagem principal, o citado Pietchórin. Com ele, Liérmontov talvez tenha criado o primeiro anti-herói da literatura. Num primeiro momento, Liérmontov faz com que o cínico e sem raízes Pietchórin aproxime-se de nós por meio das reminiscências de um veterano capitão que servia no Cáucaso. Em seguida, o conhecemos rápida e diretamente e, finalmente, por meio de seus próprios diários, que acabam abruptamente, como se o autor tivesse simplesmente largado a caneta.

Ou levado um tiro. A vida de Liérmontov não ficou muito distante da de seu personagem: afinal, o autor também serviu como oficial no Cáucaso, entrou em encrencas românticas e perdeu a vida em um duelo. Aliás, provavelmente, este duelo tenha sido provocado por ordem de Nicolau I. No momento do tiro, Liérmontov ergueu a arma e atirou para o alto, porém, seu “desafeto” cumpriu a ordem do czar e o autor morreu aos 27 anos com um tiro à queima-roupa, tendo deixado este estranho e belo romance e uma importante obra poética que todo russo conhece.

Pietchórin é certamente uma versão endurecida de Liérmontov. Era alguém que poderia manipular os corações das mulheres aparentemente à vontade, ou que poderia alegremente ir a um duelo fraudulento. “E daí? Se eu morrer, morrerei! A perda para o mundo não será grande. Sim, já estou bastante entediado comigo mesmo. Sou como um homem que está bocejando em um baile”.

Pietchórin é uma grande criação. Ele é por demais atraente e envolvente. Pode ter características lamentáveis ​​e é uma ameaça a si mesmo e àqueles ao seu redor. É desagradável muitas vezes. “Talvez alguns leitores queiram saber minha opinião sobre o caráter de Pietchórin. Minha resposta é o título deste livro. ‘É, eis uma ironia ferina!’, — dirão. Não sei”. Essas duas últimas palavras resumem lindamente a ambiguidade do livro. O próprio prefácio de Liérmontov diz que o livro é “um retrato composto das falhas de toda a nossa geração em seu desenvolvimento completo” e também usa a palavra “desagradável” para descrever Pietchórin.

O Herói do Nosso Tempo é narrado em primeira pessoa por três personagens diferentes, sendo que o último é o próprio Pietchórin escrevendo um diário. Tudo é digno de interesse, e gostei muito da sensação estética de ver o que vai se revelando para compor o personagem à medida que os capítulos vão passando. O livro é de arrebatador. Não preciso nem dizer que, como os russos de sua época, Liérmontov foi um mestre.

Mikhail Liérmontov (1814-1841)

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Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Reli o super clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, a obra que marcou uma mudança radical na produção de Machado de Assis. Na época, Machado tinha 41 anos — a história foi publicada em folhetim em 1880, tomando a forma de livro no ano seguinte — e ele era considerado um excelente escritor do romantismo. Pois então veio Brás Cubas veio para mudar e dar um salto de qualidade não somente dentro de sua obra como no panorama da literatura brasileira. Memórias Póstumas é o livro que faz a transição do romantismo para o realismo, incutindo audácia e graça, refinamento e pessimismo, sensualidade e humor (às vezes negro) em nossa literatura. Os críticos torceram o nariz e depois se curvaram ao novo estilo livre de Machado, fã confesso de Laurence Sterne.

Anos depois, ao escrever o prefácio de Helena, romance de sua fase romântica (1876), Machado comenta rapidamente sua revolução:

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferente páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. E claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.

Brás Cubas é narrado por um defunto e dedicado ao primeiro verme que roeu as frias carnes de seu cadáver e é a celebração do nada que foi a vida do personagem principal. Brás Cubas é um rentista canalha, uma daquelas pessoas que nasceram podendo fazer exatamente nada, para apenas ficar administrando a herança recebida do pai e tentando vagamente uma carreira na política. Boa-vida, ele representa maravilhosamente nossa elite endinheirada, fútil e amante de privilégios. Sua vida é basicamente a narração de seus amores, por onde vazam suas características pessoais.

Primeiro vem Marcela, uma bela cortesã que trata de obter ganho financeiro de Brás Cubas, fato que só cessa com a intervenção de papai, que o manda estudar em Coimbra, de onde ele volta formado em Direito. De seu curso, ele mesmo diz que colheu “de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação”. O resto foram festas. Quando volta, seu pai quer vê-lo casado e deputado… E aparece Eugênia, a flor da moita, uma coxa que se enamora dele, mas que não se deixa humilhar com a certa rejeição. Depois vem Vírgília, o grande amor de sua vida. Num episódio que demonstra que Virgília não é flor que se cheire, ela se casa com Lobo Neves. Depois, Brás e ela tornam-se amantes por longos anos. Vírgília toma as páginas do livro, porém ainda há Eulália, a flor do pântano.

Por onde passa, Brás não somente conta de forma sedutora sua vida medíocre, como faz observações bastante cínicas sobre a vida e a política nacionais. Um dos personagens muitas vezes admirados por Brás é seu cunhado Cotrim, uma figura abjeta que trafica escravos e ganha muito com isso. Ao mesmo tempo, Cotrim seria “ferozmente honrado”, um “filantropo dotado de sentimentos pios”, mas com um detalhe: mandava “com frequência escravos para o calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”.

O texto é maravilhoso. Dividido em 160 capítulos curtos e ziguezagueantes, muitos deles meros exercícios de prosa, o livro é que há de sedutor e grudento. Machado não julga, não dá lições, apenas mostra e deixa seu crápula tagarelar, argumentando à vontade seus motivos e contando os acontecimentos. É uma leitura toda de viés, com o autor não deixando clara sua opinião certamente desfavorável sobre o “herói” do romance. Ao final, quando Brás diz “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, respondemos no mesmo estilo dele: sorte nossa. Só que não adiantou muito, pois ainda estamos lotados de  de Brás Cubas — e de todo gênero de privilegiados — em nosso amado Brasil.

Claro, trata-se de um clássico que merece o lugar-comum: Memórias Póstumas de Brás Cubas é incontornável!

O grande Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

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Segredos, de Domenico Starnone

Segredos, de Domenico Starnone

Após os excelentes pequenos romances Laços e Assombrações, Domenico Starnone retorna com mais um, Segredos. Os três livros — todos publicados no Brasil pela Todavia — formam uma esplêndida trilogia sobre as complexas tramas dos relacionamentos amorosos e familiares.

Pietro vive um amor tempestuoso com a bela e brilhante Teresa, uma mulher exuberante em todos os sentidos. Ele fora um professor muito admirado por ela na escola. Meses depois de sair da escola, ela procura Pietro e o seduz facilmente. É uma mulher incontrolável, 12 anos mais jovem que o professor. Eles brigam muito e, após uma destas discussões, surge uma ideia: diga-me algo que você nunca disse a ninguém — ela sugere –, diga-me a coisa de que mais se envergonha e farei o mesmo. Deste modo, permaneceremos unidos para sempre.

(Diga-se de passagem que Starnone foi professor de escola por mais de 30 anos).

Unidos? Eles terminarão o relacionamento logo em seguida… Então, quando Pietro conhece Nadia, ele instantaneamente se apaixona por sua timidez e relutância, por sua suavidade, depois de tanta agitação. Só que alguns dias antes do casamento, Teresa reaparece. Ela não quer nada com ele, mas, com ela, ressurge a sombra do que eles confessaram um ao outro.

— Lembre que, se você vacilar com essa pobre moça bonita, eu sei de coisas que podem te destruir –, disse ela, alegremente.
— Eu também sei coisas lindas de você. Por isso, olhe lá, ande na linha. Fique esperta.

Unidos sim. A vivacidade e as atitudes fortes de Teresa marcam Pietro. Eles seguem caminhos diferentes na vida: ela inicia uma fulgurante carreira nos Estados Unidos e Pietro, mais discretamente, começa a se destacar como um crítico do sistema educacional italiano. Mesmo casado com Nadia, Pietro mantém por décadas trocas de cartas com Teresa. De  certo modo, sua autoestima e reconhecimento de sucesso dependem do aval dela. Ele pensa temer pelos segredos trocados, mas isso é passado e ele depende dela apenas porque depende.

Que problema, um amigo me disse uma vez, se apaixonar por uma mulher que, em todos os aspectos, é mais viva do que nós.

Os anos passam e a jovem família se consolida, cresce e Nadia agora é mãe de Emma, ​​Sergio e Ernesto, os três filhos de Pietro. Segredos começa com estas palavras:

O amor, dizer o quê?, fala-se tanto dele, mas não acho que eu tenha usado a palavra com frequência, aliás, minha impressão é que nunca recorri a ela, apesar de ter amado, claro que amei, amei até perder a cabeça e os sentimentos. De fato, o amor tal como o conheci, é uma lava de vida bruta que queima a vida fina, uma erupção que anula a compreensão e a piedade, a razão e as razões, a geografia e a história, a saúde e a doença, a riqueza e a pobreza, a exceção e a regra.

Domenico Starnone nos coloca diante de dois tipos muito diferentes de relacionamentos. Na vida há amores e amores, relacionamentos e relacionamentos: cada um tem muito que não pode ser reproduzido nos outros. Os amores vão se alterando, transformam-se às vezes em monstros mas, de uma forma ou de outra, não desaparecem. Aqueles que amamos um dia continuam sendo os guardiões de algumas ansiedades, incertezas, hesitações e de fatos que poucos conhecem. Eu sempre disse que ex, qualquer ex, é cargo de confiança…

Segredos mostra as qualidades indiscutíveis ​​de Starnone, um escritor direto, observador crítico e agudo dos traços humanos. Seus personagens são muito imperfeitos, não parecem sinceros e consideram-se medíocres. Starnone guarda para eles um olhar desapegado, além da leveza das boas narrativas. Ele nos fala de pessoas que parecem inadequadas para si mesmas, mostrando o quão frágeis são as bases em que se baseiam suas (nossas) identidades.

Domenico Starnone (1943)

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Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe

Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe

Um Diário do Ano da Peste é uma leitura óbvia — uma releitura, no meu caso — neste período de pandemia, pois é um livro que nos dá uma perspectiva peculiar, uma visão do passado sobre nossa crise atual. Mas não é apenas isso: ele também tem sido por séculos fonte de admiração, com suas histórias “de uma Londres estranhamente alterada”, onde, durante 18 meses em 1665 e 1666, a cidade perdeu 100.000 pessoas — quase um quarto da sua população. García Márquez e Anthony Burgess eram grandes admiradores da obra que narra jornalisticamente, em um texto sem divisões por capítulos, uma distopia semelhante a que estamos vivendo hoje.

A primeira coisa que devemos dizer sobre Um Diário do Ano da Peste é que não é, estritamente falando, um registro in loco. O livro foi publicado em 1722, mais de 50 anos após os eventos que descreve. Quando a praga assolava Londres, Defoe tinha cerca de cinco anos. Mas o autor afirma que o livro é um relato contemporâneo genuíno — a página de rosto afirma que o livro consiste de “Observações e recordações dos acontecimentos mais extraordinários, sejam públicos ou privados, ocorridos em Londres durante a última grande epidemia em 1665. Escrito por um CIDADÃO que permaneceu o tempo todo em Londres. Nunca publicado antes” e credita o livro a HF, entendido como seu tio Henry Foe.

Mas voltemos a 1722 e pensemos que os escritores costumavam dar ares de realidade a tudo. Por exemplo, Defoe também afirmou que Robinson Crusoe foi escrito por um homem que realmente viveu em uma ilha deserta por 28 anos, e que seu livro sobre o célebre ladra Moll Flanders foi escrito “a partir de seus próprios memorandos”. Ele até coloca essa afirmação no enorme título, que vale a pena reler na íntegra: As aventuras e desventuras da famosa Moll Flanders, que nasceu na prisão de Newgate e que, ao longo de uma vida de contínuas peripécias, que durou três vintenas de anos, sem considerarmos sua infância, foi por doze anos prostituta, por doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), foi deportada por oito anos para a Virgínia e, enfim, enriqueceu, viveu honestamente e morreu como penitente. Escrito com base em suas próprias memórias.

Digo isso reconhecendo a extraordinária qualidade e o enorme significado literário e histórico de Um Diário do Ano da Peste. É possível, claro, que tenha sido baseado nos diários do tio de Defoe. É certo que o próprio Defoe pesquisou longa e detalhadamente sobre o assunto e que usou seu enorme talento ​​para dar vida a ele. O livro está cheio de descrições vívidas da maneira como a praga se deslocou pelos diferentes bairros de Londres, as precauções tomadas para combatê-la e o progresso assustador das carroças carregadas de cadáveres acompanhadas por gritos de “tragam seus mortos”. Também há percepções notáveis ​​sobre o comportamento humano sob a sombra de uma pandemia, sem mencionar os casos de mau comportamento e loucura, como o demonstrado por um cidadão chamado Solomon Eagle, que desfilou pelas ruas denunciando os pecados dos cidade, às vezes completamente nu. Os relatos de médicos, de charlatães vendedores de “remédios milagrosos”, de padres e padeiros são sensacionais.

O próprio Defoe também é um assunto intrigante. Além de escrever mais de 300 livros e folhetos sob quase 200 pseudônimos diferentes, ele viajou amplamente, administrou uma fábrica de azulejos e tijolos e encontrou tempo para participar da desastrosa rebelião de Monmouth que tentava derrubar James II. Foi rico e perdeu tudo várias vezes… Possuiu navios e uma propriedade rural, acabando várias vezes na prisão de devedores… Também foi preso por fingir argumentar, em sua sátira de 1702 The Shortest Way with Dissenters, que a melhor maneira de lidar com rebeldes religiosos era bani-los do país e matar seus pregadores. Houve gente que não entendeu a piada e a Câmara dos Comuns queimou o livro e mandou o autor para a prisão de Newgate por calúnia, enquanto seus amigos aproveitavam a oportunidade para divulgar mais seus panfletos.

Tudo isso ocorreu antes de ele realmente começar a escrever livros. Seu romance mais famoso, Robinson Crusoe, foi publicado em 1719 e Um Diário do Ano da Peste seguiu-o em 1722. Em seus últimos anos, ele também escreveu um grande livro de viagens sobre a Grã-Bretanha , o mencionado Moll Flanders e mais de uma dúzia de outros romances. Na época de sua morte, em 1731, ele estava novamente escondendo-se dos credores.

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Ao reler um Um Diário do Ano da Peste, os primeiros ecos de 2020 vêm na primeira página 1. O narrador nos diz que ele e seus vizinhos ouviram que a praga “voltara da Holanda”. Somos informados de que o governo recebeu avisos, mas não achou algo digno de preocupação. E os navios daquele país continuaram chegando.

Os paralelos para com nossa despreocupada reação inicial a um problema distante — a pandemia iniciou na China — são tão impressionantes que parece quase ridículo apontá-los. Depois, vire a página e leia o primeiro relatório das “contas semanais” mostrando o aumento de mortes em cada paróquia de Londres. Tais estatísticas são obsessivamente observadas pelo nosso narrador ao longo de seu relato. Os registros fornecem comentários sombrios sobre o terror da doença, assim como os números de mortes que agora recebemos todos os dias há semanas.

Então, descobrimos que esses registros podem não ser confiáveis. Os números das autoridades são sempre baixos. Que coincidência, há subnotificação! “Os números da peste apontavam 17, mas os enterros em St. Giles eram 53″.

Os paralelos continuam. O narrador observa que as medidas necessárias para conter o surto foram tomadas tarde demais. Em outras passagens, há descrições assustadoras do vazio das ruas, “pois quando as pessoas chegavam às ruas, elas as viam vazias, as casas e lojas fechadas, com uns poucos andando no meio da rua, um bem afastado do outro”. Não temos o hábito de pintar cruzes vermelhas nas portas das casas onde há infectados ou de colocar guardas do lado de fora para que as pessoas que contraíram a doença não possam escapar. Também não impusemos o período de isolamento de 40 dias, o que dá nome à “quarentena”. Mas hoje qualquer leitor reconhecerá o medo e a piedade com que o narrador fala das pessoas que têm a doença e podem transmiti-la, especialmente daquelas que o fazem sem querer:

Quero falar daqueles que receberam o contágio e o tiveram realmente em seu sangue, mas que não mostraram as conseqüências disso em seus semblantes: ou melhor, nem eles próprios eram sensíveis, pois muitos não são por vários dias. Sem saber, expiravam a morte sobre todos os lugares e sobre todos os que se aproximassem deles, Suas próprias roupas retinham a infecção e suas mãos infectavam as coisas que tocavam.

Uns expiravam e outros aspiravam a morte, outra coincidência! Não é de surpreender que todo mundo, na Londres de Defoe, esteja nervoso. Mas hoje sabemos que o contágio não vinha das pessoas: a culpa era de ratos e pulgas. Há poucas menções aos ratos cujas pulgas transmitiam a peste bubônica — mas há preocupações sobre animais domésticos. Defoe observa que um número prodigioso desses animais foi morto. Foram mortos 40 mil cães e 200 mil gatos…

Defoe também nos fala dos ricos que fogem para o interior e levam a morte — na verdade alguns ratos — com eles, observando como os pobres estiveram muito mais expostos à doença. Mais uma coincidência… Ele descreve como charlatões vendem curas falsas e de como pobres “até se envenenavam de antemão por medo do veneno da infecção”.

As correspondências são tão claras que parece estranho lembrar que Defoe estava descrevendo eventos de 355 anos atrás — e que Um Diário do Ano da Peste, publicado em 1722, nem sequer seja uma descrição em primeira mão. Mas nisso, pelo menos, há esperança. Ele escreve no final:

Terrível peste esteve em Londres
no ano de sessenta e cinco
cem mil almas levou consigo
mesmo assim, estou vivo!

Espero que eu e você possamos dizer o mesmo no final da atual pandemia.

RECOMENDO MUITO!

Daniel Defoe (1660-1731)

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Anotações de um jovem médico, de Mikhail Bulgákov

Anotações de um jovem médico, de Mikhail Bulgákov

O Mestre e Margarida é um dos melhores livros que já li. Então, é natural que persiga outros livros de Bulgákov. Este Anotações de um jovem médico reúne trabalhos da juventude do escritor. Algumas das histórias foram publicadas numa revista de medicina — Bulgákov foi também médico — e falam da época em que ele foi mandado para ser o único médico numa gelada comunidade rural da Rússia.

Há um pouco do humor do escritor maduro, mas o que chama a atenção é o tremendo realismo e poder de observação presentes no texto. Além disso, o texto de Bulgákov nos envolve totalmente. Enviado para assumir um posto como clínico geral em um hospital isolado da civilização, ele é, à princípio, um médico 100% inseguro. O hospital é bem provido materialmente, mas o novo médico não sabe como utilizar boa parte do que tem… E ele lidera uma pequena equipe que conta com um enfermeiro-dentista e duas parteiras-obstetras, acostumados com a liderança de seu antecessor, um médico velho e experiente. Há momentos em que o jovem doutor volta até sua casa para dar uma olhada em seus livros de medicina… Mas ele começa a trabalhar adequadamente, a salvar vidas, sua fama se solidifica e ele passa a atender mais de 100 pacientes por dia. Está sempre exausto. Se você já exerceu um trabalho de grande responsabilidade irá sentir empatia pelo jovem. A ansiedade é muito bem descrita.

Os contos não têm uma ligação cronológica rígida e retratam os episódios mais notáveis da temporada glacial do jovem doutor. Da parte dele, há sincera preocupação pelos pacientes, que costumam ser muito desinformados, chegando um deles a receber comprimidos para tomar um por dia, mas que acaba tomando todos de uma vez porque com esse negócio de um por dia ele poderia esquecer de tomá-los.

O livro também traz o famoso relato Morfina, que narra a história do vício em morfina do Dr. Poliakov, um colega do protagonista de Anotações — que vai receber o nome de Dr. Bomgard. Poliakov substitui Bomgard no hospital isolado. Usando a morfina uma vez para amenizar uma dor física, ele percebe que esta também lhe amenizava os problemas pessoais e renovava sua capacidade de trabalho. A partir daí, já viram… O conto é muito realista e doloroso.

Morfina é também autobiográfico. Bulgákov foi viciado em morfina em sua juventude, e sua primeira esposa, Tatiana Lappa, foi de extrema importância para ajudá-lo a superar a dependência. Ela é considerada o modelo para a personagem Anna, de Morfina, do mesmo modo que a terceira esposa de Bulgákov, Elena, serviu de base para a Margarida de seu maior romance.

Mas há também o conto Eu matei, que traz a aventura de um médico forçado a servir o exército de Petliura, líder nacionalista ucraniano que colaborou com as tropas alemãs durante a Primeira Guerra Mundial, resistindo aos bolcheviques durante a Revolução de 1917.

Excelente! Recomendo!

Mikhail Bulgákov

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Franny & Zooey, de J. D. Salinger

Franny & Zooey, de J. D. Salinger

Apesar de reconhecer o que há de (muito) maniático neste livro. gostei muito de reler Franny & Zooey após algumas décadas. O romance é formado por poucas e detalhadíssimas cenas. Os dois personagens principais são os dois irmãos do título, nascidos na célebre família Glass, presente neste e em outros livros de Salinger. Há mais cinco irmãos, mas eles não são protagonistas aqui.

As cenas? Sem spoiler? Vamos lá. Na primeira, Franny começa a entrar em crise. Ela explica ao namorado Lane as razões que a levam a pensar que a religião é a única solução para seu crescente desencanto, tudo isso pontuado por crises de choro e incompreensão. Não é uma cena hilária e vamos nos acostumando com a notável profusão de detalhes que Salinger nos expõe. Depois vem a cena mais engraçada do livro. Zooey discute com mamãe Bessie sobre o fato de Franny não se alimentar, de estar estranha e sem rumo, à beira de um colapso. E finaliza com um enorme diálogo entre Franny e Zooey. As últimas páginas são realmente lindas.

Resumindo, a coisa parece bem teatral. Temos três atos descritos minuciosamente. Primeiro ato: Franny sem rumo e próxima a um colapso. Segundo: mãe pressiona Zooey a conversar com Franny após este ler carta de Buddy, um dos irmãos mais velhos. Terceiro: Zooey intervém a seu modo.

Eu já conhecia este drama de família e sua curiosa intensidade me prendeu novamente. A implacável luta intelectual de Zooey com Franny é exaustiva, dentro de um conflito familiar altamente realista. E não cansa discutir? Nossa, cansa muito! O relacionamento irônico, carinhoso, mas também intolerante de Zooey com sua mãe ajuda a fazer deste livro uma joia. Eles discutem no banheiro, com Zooey absurdamente preso na banheira que esfria, debatendo com uma mãe cansada através da cortina de chuveiro. Esta cena é um bálsamo para todas as banalidades ​​que abundam na literatura.

Talvez seja surpreendente que Franny & Zooey tenha se tornado um sucesso instantâneo. O apanhador no campo de centeio pode ser o livro mais famoso de Salinger, mas Franny & Zooey não está abaixo. Frenético e intransigente, este livro pode até irritar você, mas uma coisa é certa, ele não o deixará indiferente.

Salinger disse que este romance é um “tipo de filme caseiro em prosa”. Sim, é verdade. Só que também é um excelente trabalho de artesanato. Sabem? No início do livro, certa vivacidade fazia com eu me surpreendesse com o fato de Franny estar sendo foco de tanta atenção. E me perguntava se era possível dizer que ela sofria efetivamente. Mas à medida que as coisas progridem na segunda história, cresce a preocupação de ela estar no mesmo caminho suicida que seu irmão Seymour.

Os diálogos sinuosos revelam bastante de Franny mas também de seu irmão. Ambos têm ânsia por um runo. Quando vemos Zooey suando, sentado em silêncio por 20 minutos no quarto abandonado do irmão perdido, sabemos que ele sofre tanto quanto a pobre Franny. O livro é um retrato terno e compreensivo que certamente reflete muito de Salinger. O que torna tudo mais triste.

Franny & Zooey é uma rara e valiosa obra de arte e empatia.

E eu o recomendo.

J. D. Salinger fumando como um personagem de J. D. Salinger.

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A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha

A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha

O ótimo A vida invisível de Eurídice Gusmão é o mais brasileiro dos livros. Ou é um retrato tão fiel, mas tão fiel da condição feminina no Brasil nos anos 40 e 50, que boa parte das posturas e ações foram identificadas por mim como sendo das gerações passadas de minha família. Se a ação do livro se passa nos anos 40, eu nasci em 1957 e convivi muito com a família de Cruz Alta (RS) de minha mãe. E, meu jesus cristinho, a sociedade cruz-altense dos anos 60 era a do Rio de 20 anos antes. Havia a mulher decente, a fofoqueira, a que era obrigada a trabalhar (coitada), a puta, todas elas com algo em comum, a infelicidade.

Ou era igual em todo o mundo, tanto que o livro já foi multitraduzido, tendo versões em inglês, francês, alemão, etc.

Este livro de Martha Batalha é de 2016 e cumpriu um longo trajeto. Não obteve editora no Brasil, sendo aceito ANTES em outras línguas. Acabou na maior editora brasileira, virou filme e agora faz crescente sucesso, após a autora ter sido finalista do Jabuti por com seu segundo livro, Nunca houve um castelo.

Este livro conta a história de Eurídice, uma mulher dotada de boa dose de inteligência que poderia ter sido o que quisesse, mas que acabou como dona de casa. Tudo o que ela planejava fazer de forma independente acabava em um não do pai, da mãe ou do marido. E ela tenta tocando flauta, escrevendo um livro de receitas, iniciando uma carreira como costureira, lendo e escrevendo, tudo. A resposta de quem manda nela é sempre um não.

Ela tem uma irmã muito bonita chamada Guida, que também sofre, mas em outro âmbito.

Martha Batalha escreve com mão segura e algo ousada ao fazer com que outras histórias subitamente se atravessem na narrativa. Essas interrupções são tão longas que a gente pensa, como se lesse o Manuscrito de Saragoça, de Jan Potocki: será que ela voltará à história que estava contando antes? Mas todas estas histórias que surgem servem para mostrar a vida sofrida de outras mulheres e para dar potência à história de Eurídice.

Então, A vida invisível de Eurídice Gusmão fala sobre vidas de mulheres submetidas a um machismo sistêmico. O marido de Eurídice, por exemplo, é um bom homem que chega a um alto cargo no Banco do Brasil. só que ele acha que a mulher deve ficar em casa tratando dos filhos e das refeições, já que traz dinheiro mais do que suficiente. E, protegendo e “melhorando” a vida de sua família, ele diz não às novidades da mulher. Para a sociedade da época, parece o homem ideal, só que não… Deste modo, sendo “bom, cuidadoso e correto”, ele impõe à Eurídice uma rotina desesperadora, que destrói sua felicidade, criatividade e brilhantismo.

Restou-lhe o silêncio de uma atividade muito conhecida.

Não pensem em um livro feminista que grita, pensem em um bem delicado e muito, muito forte e convincente.

Recomendo muito!

Martha Batalha: história brasileiríssima ou, quem sabe, universal

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Como ser legal, de Nick Hornby

Como ser legal, de Nick Hornby

A médica Kate Carr divide seus dias entre o trabalho, os dois filhos pequenos, as contas a pagar e um amante sem graça, enquanto o marido cuida da casa e das crianças. O “trabalho” do marido resume-se a escrever uma coluna no jornal local do bairro de Holloway, Londres. São crônicas sobre como ele detesta tudo, principalmente as pessoas. Também escreve um livro, daqueles que jamais virão à luz. O título de sua coluna? Ora, O homem mais mal-humorado de Holloway. E ela, Katie, resolve se separar. Afinal, a relação com o marido dá-se através de sarcasmos dos quais ela é a maior vítima. OK, o sexo funciona, já o resto… Porém, após o anúncio da separação, David, o marido, decide mudar, transmutando-se num estranho gênero de boa pessoa.

A primeira parte de Como ser legal é realmente muito boa. Katie conta sua história demonstrando discreta raiva, além de boas doses de aversão ao marido e ao amante. Ela também tem perfeito senso do vaudeville onde está metida, mas com uma ponta de desespero real. Uma bela construção de Hornby.

Mas aí aparece BoasNovas, um curandeiro magricela e filósofo dotado de um discurso irritante de terapias alternativas. Ele cura David, o marido, de suas antigas dores nas costas. Mas faz mais: tira do coração de David a herança de anos de cinismo e a substitui por um amor inquestionável e abrangente à humanidade. A metamorfose, manipulada habilmente por Hornby, obriga Katie a questionar o que desejava. O novo David é tudo o que ela acreditava que queria que ele fosse: gentil, aberto, amoroso. Só que, infelizmente, ele também quer escrever livros de auto-ajuda, convence seus filhos a dar seus brinquedos a órfãos e, o pior de tudo, quer que BoasNovas more com eles. O tal BoasNovas é um baita chato que quer salva o mundo alterando as posturas pessoais da gente do bairro. A mudança tem que começar por algum lugar.

Enquanto tudo isso acontece, Katie é forçada a pensar na tolerância e sacrifício que está preparada para fazer a fim de melhorar a vida mundial ou a de seu bairro. Por exemplo, David e BoasNovas bolam um modo de incentivar toda a rua a levar um sem-teto para aqueles quartos que não são habitados de suas casas. Também fazem planos para erradicar a dívida mundial na mesa da cozinha e, em uma inversão, Katie se vê no papel de escarnecedora e cínica.

Quando as coisas começam a não funcionar, o livro cai muito. Assim, a história termina de maneira insatisfatória, oscilando entre a comédia social e os entediantes compromissos de fé e amor de David e BoasNovas. Hornby parece perder o rumo. Ou talvez as perguntas que este livro se faz sejam grandes demais para o autor e para a vida que ele descreve.

Hornby: lidando com uma canção maior do que o cantor?

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Judas, de Amós Oz

Judas, de Amós Oz

Judas é o último romance de Amós Oz (1939-2018), publicado em 2014, aos 75 anos de idade do escritor. Sem dúvida, é um belo ponto final para a grande obra de Oz. Trata-se de uma indiscutível obra prima. É um livro que nasceu clássico, mas não pense em algo acadêmico, pense em algo rebelde. Oz ousa muito em Judas. Ele reinventa a história do homem do qual se diz ter beijado e traído Jesus e questiona a criação do estado de Israel. Só isso. Sem artifícios exagerados ou grandes invenções, apenas empurrando as peças para ali adiante ou para o lado, Oz reconstrói a história do cristianismo e de seu povo. A leitura de Judas é um sereno convite para a livre reflexão. Mas sabem o que eu acho? Há duas histórias contadas paralelamente e a melhor é a outra.

A outra história, a de dentro de casa, é a do trio formado por Shmuel Asch, um jovem, reflexivo e quase desistente estudante universitário; por Guershom Wald, um velho professor inválido que é cuidado às noites por Shmuel; e por Atalia Abravanel, nora de Wald. Os três moram na mesma casa, que é de Atalia. Após desistir (temporariamente?) da universidade, Shmuel serve de interlocutor para Wald entre às 17 e às 22h, já que o velho gosta de tagarelar e tagarelar de forma inteligente e contumaz. Atalia é a nora viúva, pois seu marido, filho de Wald, morreu na guerra. É lá, em uma casa de pedra que cheira à mofo, que são discutidas algumas das grandes questões políticas e religiosas da região.

Não pensem em um livro onde as teses políticas competem com os personagens e a fabulação, pense num livro onde a situação dos personagens diz tanto sobre as teses que tudo se confunde. Alívio! Judas não tem um texto que descamba para a filosofia ou a política, tem um texto onde as situações falam tanto quanto as teses.

Shmuel, um estudante ateu de judaísmo, foi contratado por Atalia para conversar com o velho, dar-lhe alguns remédios e alimentá-lo no horário que citamos. No resto do tempo, ele pode fazer o que quiser. Então, ele dorme, passeia e pensa na tese de pós-graduação que talvez jamais escreva, pois está sem dinheiro e desanimado. Mas talvez o que mais faça é o que fizeram seus antecessores no cargo: apaixona-se pela misteriosa e bela Atalia, uma mulher amarga que não quer nada com homens — além de, eventualmente, seu instrumental.

Shmuel fala muito de Judas Iscariotes. Ele acredita que Judas, na verdade, não traiu Jesus, mas foi seu discípulo mais leal. O velho fala sobre seu sogro, um certo Shaltiel Abravanel, pai de Atalia, famoso traidor na época de sua expulsão do Executivo sionista em 1947, por se opor à criação do Estado de Israel. Abravanel acreditava que judeus e palestinos poderiam viver juntos sem fronteiras. Foi considerado também traidor. O velho e o menino conversam sobre as ideias desses dois mortos, mas acima de tudo sobre suas condições de supostos traidores. Quem decide quem é traidor e por quê? Esse é o verdadeiro tema do romance. Oz conhece bem o tema, já que também teve problemas com o nada tolerante fundamentalismo judaico.

Enquanto isso, desenvolve-se o amor sem chances do jovem Shmuel pela bela, atraente e desiludida Atalia, que tem 45 anos, o dobro da idade dele.

Judas é um romance que lida com a questão da traição. Por que Judas teria traído Jesus em troca de 30 moedas de prata? Não é verdade que Judas honrou seu mestre mais do que todos os outros discípulos e só queria provar que Jesus era todo-poderoso e poderia salvar a si mesmo da cruz? A resposta toca o cerne da relação entre judeus e cristãos e tem importância não apenas teológica, mas também política. A descrição da crucificação de Jesus da perspectiva de Judas é uma das passagens mais impressionantes do livro. Mas há mais, há o processo de introdução de Shmuel no cotidiano da casa, também lindamente descrito.

É magistral a forma como Oz consegue evocar a Jerusalém de 1959 e 1960. Na atmosfera densa e cinza, fica claro desde o início que também a história de amor que surge entre Atalia e o (ex-)estudante de Teologia está condenada ao fracasso. Nas conversas, nas perdas e nas esperanças dos três moradores da casa refletem-se todas as turbulências históricas não apenas das últimas décadas, mas dos últimos 2 mil anos.

Certo dia, um grande amigo me disse que as obras-primas literárias sempre giram sobre estes três temas — o amor, a morte e a existência (ou não) de Deus. Judas é um livro que fala de todos estes temas.

Recomendo fortemente.

Amós Oz não era antissemita, mas criticava Israel. Quem elogia sistematicamente? Os fanáticos, ora. Mas isso é outro papo.

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Uma Rua de Roma, de Patrick Modiano

Uma Rua de Roma, de Patrick Modiano

Faz quase dez anos que Guy Roland não sabe quem é. Após uma crise de amnésia, não lembra nem de seu nome, nem do que fazia, nem do que aconteceu com ele. Nos últimos tempos, ele trabalhava em um escritório auxiliando um detetive. Mas, após ver fechado o local em razão da aposentadoria do dono, sai em busca de pessoas que possam lhe ajudar a dizer quem, afinal, é (ou foi). Uma trama policial? Não, a busca da identidade.

Modiano se utiliza de algumas características da literatura e do film noir, só que os usa para contar uma história entre o charme a a filosofia. O charme: Guy está sempre entrando em ambientes noir — ruas mal-iluminadas, bares enfumaçados, apartamentos velhos e sujos. A filosofia: Guy demonstra o valor da memória, da perda e a necessidade de pertencimento do indivíduo. Durante a busca, as perguntas a si mesmo são:”Esse sou mesmo eu?”, “Teria eu essa vida?”, “Teria eu morado aqui?”, “O que essa pessoa significava para mim?”, “Por que esse nome não me desperta nada?”, “Essa música deveria me remeter a algo?”.

O livro é melancólico, cheio de belas cenas com ligações entediantes entre elas.

Em 2014, Patrick Modiano recebeu o Prêmio Nobel de literatura “pela arte da memória com a qual ele evocou os destinos humanos mais inacessíveis e descobriu o mundo da vida da ocupação”. OK.  Com a aprovação do prêmio, parecia que seria um bom momento para ele estourar, o que não aconteceu. Compreensível. É o cara é o arquétipo de certo gênero de vencedores de Nobel: o chato de grandes temas.

Voltando. O livro começa portentosamente com a frase: “Não sou nada”. Como disse, é somente depois que seu chefe se aposenta que ele é libertado do trabalho para finalmente assumir a tarefa de buscar saber quem é. Naturalmente, isso envolve uma investigação. A princípio, Guy é levado a acreditar, erroneamente, que ele pode ser um homem chamado Freddie Howard de Luz. No entanto, com o tempo, sua pesquisa o leva a acreditar que seu nome verdadeiro seja Jimmy Pedro Stern, e ele que nasceu na Grécia. Mas algumas evidências indicam que seu nome e identidade reais possam de um certo Pedro McEvoy, nascido na República Dominicana. Se ele é Stern, desapareceu em 1940. Se ele é McEvoy, ele deixou a França antes da guerra.

Em sua busca para descobrir quem é, Guy trabalha por intuição, premonição, suposição e imaginação onírica. Ele constantemente faz hipóteses sobre os motivos e o comportamento das pessoas. Os detalhes díspares que descobre servem como o fio de Ariadne que ele espera que o leve a si mesmo. Mas mesmo quando sente que está fazendo algum progresso, reconhece: “Fragmentos, fragmentos vieram à tona como resultado de minhas pesquisas … Mas então é isso que uma vida significa… É realmente minha vida que estou rastreando? Ou de outra pessoa na qual eu me infiltrei de alguma forma?”.

Finalmente, sua investigação o leva a concluir que ele e uma mulher, Denise, provavelmente foram vítimas de uma cilada enquanto atravessavam a fronteira franco-suíça no inverno, durante os últimos dias da guerra. Denise desapareceu. E ele também pode ter desaparecido. O trauma de ser enganado e deixado nas montanhas para morrer de frio pode ter sido, ele decide, o choque que produziu sua amnésia. O paradeiro de Denise permanece desconhecido, mas, graças ao trabalho de Guy, ela agora tem um nome e uma história. No final, o ex-Guy está fisicamente presente, mas apesar de seus esforços, ele continua sendo uma pessoa desaparecida, sem nome ou história verificável. Ele pode ser Jimmy Pedro Stern ou Pedro McEvoy. Ou ele pode ser nenhum dos dois. Ou pode ser que, como ele diz no começo do romance, que ele não seja nada.

Um livro entre o interessante e o chatinho.

Modiano conseguiu a proeza de ser interessante e chato ao mesmo tempo

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Frida e Trótski, de Gerárd de Cortanze

Frida e Trótski, de Gerárd de Cortanze

Gerárd de Cortanze é um biógrafo de Frida Kahlo. Quando este livro, cujo título original é Los amantes de Coyoacán, foi lançado, ele disse ter feito um enorme trabalho de pesquisa, tornando-se uma espécie de Sherlock Holmes da relação entre Frida Kahlo e Leon Trótski, rastreando todos os números e provas, comparando dados e informações. E completou dizendo que tudo o que “afirmo e escrevo é justo e verdadeiro. A imprensa da época, testemunhos, os diários íntimos, as memórias, usei tudo para contar essa história.”

Ele denomina a obra de romance, mas a parte romanceada serviu apenas para corrigir dúvidas que os documentos deixaram vagos e para preencher e ligar cenas.

Trótski chegou ao México após oito anos de exílio. Ele era perseguido tanto por Stálin como pelos fascistas. Foi ao país a convite do pintor Diego Rivera, na casa de quem se hospedou. Ao chegar com a esposa Natalia, foi recebido pela mulher de Rivera, Frida. Trotski jamais tivera contato com uma mulher assim — inteligente, saltitante, sorridente e, principalmente, livre. A paixão foi imediata. A bissexual Frida logo atacou, atraindo-o para sua cama na Casa Azul, onde vivia desde a infância. O marido de Frida, Diego Rivera, tinha vários casos, um deles com a cunhada, Cristina. Para se vingar, Frida passou a encontrar Trótski no apartamento da irmã. Por fim, separou-se de Diego.

O livro humaniza duas importantes figuras históricas que costumavam trocar bilhetinhos de amor dentro de livros. Frida, sempre corajosa. Leon, apaixonado, mas sem nenhuma intenção de abandonar a esposa. O casal também podia se disfarçar para fugir dos seguranças em cenas nada engrandecedoras. Trótski diz que com Frida viveu seu grande amor. Feliz, Frida produz muito naquele período de paixão. Achei muito divertidas as cenas com o ultra chato surrealista André Breton.

Bem contextualizado, o romance mostra não somente um caso amoroso, mas como o marxismo era visto e combatido na época. Quase todos os intelectuais eram comunistas cindidos entre os campos stalinista e trotskista.

O livro não é uma obra-prima, mas eu curti.

Frida Kahlo e o líder comunista americano Max Schachtman (à direita) recebem Leon Trótski e a mulher, Natalia Sedova, no porto de Tampico, México, em 8/1/1937.

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A Barata, de Ian McEwan

A Barata, de Ian McEwan

No final do ano passado, A Barata foi o livro da hora na Inglaterra. Ou foi o livro do desespero de McEwan com uma irreflexão coletiva, o Brexit. Claro que a pandemia deixou o livro na poeira. Ou não. Na cena mais inacreditável da novela (102 páginas), o primeiro-ministro inglês, a ex-barata Jim Sams, ouve sua análoga alemã (Angela Merkel?) perguntar:

— Por que o senhor está fazendo isso? Por que, com que objetivo está despedaçando sua nação? Por que está impondo essas exigências a seus melhores amigos e fingindo que são seus inimigos? Por quê?

E a resposta, meio constrangida, é:

— Porque sim.

A Barata começa como um inverso de A Metamorfose, começa com uma barata que se vê transformada em homem. Este é Jim Sams, barata que encarna no primeiro-ministro britânico. Depois de adaptar-se ao novo corpo, Jim leva a sério seu papel e sai-se muito bem na luta para implementar uma política econômica baseada em uma ideia ridícula, o “reversalismo”. Essa coisa faz com que o fluxo de dinheiro seja invertido. Por exemplo, o reversalismo faz com que as pessoas paguem para trabalhar e ganhem dinheiro ao consumir. Isso entusiasma as massas mais tolas. Jim sabe que é puro populismo e que é ruim para todos, mas trata de levar em frente a ideia, para felicidade do presidente dos EUA, um cara grosso que ama o Twitter.

O livro fala de populismo, linchamentos pela imprensa, anseios nativistas, amor a si mesmo e à terra e sangue, ignorância às mudanças climáticas, etc.

A ideia é boa e muito calcada na realidade, o que talvez torne o livro datado. Mas não o chamaria de panfletário em razão da alta qualidade da prosa de McEwan.

Bom mesmo é o posfácio, onde McEwan deixa claro seu horror e sobra pra todo mundo, até para o Brasil. É lá que está a chave para o entendimento da novela: está no parágrafo que começa assim: “O populismo, desconhecendo sua própria ignorância…”.

Que coincidência, né?

McEwan: preocupado com o Brexit

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Avenida Niévski e Notas de São Petersburgo de 1836, de Nikolai Gógol

Avenida Niévski e Notas de São Petersburgo de 1836, de Nikolai Gógol

Mais um bonito livro da finada CosacNaify. Este é de 2012 e seus dois pequenos volumes vinham enrolados numa imensa folha de um jornal de São Petersburgo de 1836. Era realmente uma obra de arte (veja foto ao final da resenha para entender como os dois pequenos volumes vinham acondicionados). Um dos volumes era o muito cronístico Notas de São Petersburgo de 1836 e o outro — um pouco maior e bonito — era Avenida Niévski.

Avenida Niévski conta o cotidiano desta que é a rua principal de São Petersburgo e aparentemente um dos grandes amores de Gógol. O que é retratado no conto é cotidiano da rua, com seus horários, características, casas comerciais, governamentais e praças, para depois focar-se em dois personagens.

O primeiro é o jovem pintor Piskarióv. Ele vê uma linda mulher caminhando pela avenida e a segue. Ele nota que ela incentiva sua aproximação e fica louco de amor. Mas ambos, em vez de chegarem a uma casa respeitável onde a donzela mora com os pais, vão dar num puteiro chique. Só que o encanto da moça não abandona Piskarióv. Sob o efeito do ópio, ele a imagina virtuosa e vai procurá-la. Paramos por aqui.

O segundo é o tenente Pirogóv, um oficial russo também fisgado pela beleza de uma moça, que descobre ser casada com um artesão alemão. Mesmo assim, ele — extremamente confiante e vaidoso — vai atrás. E, novamente, paramos por aqui.

A fim de nos dar a impressão de estarmos passeando pela Niévski, as páginas do volume são divididas pela metade, em duas partes. A de cima com as letras normais e a de baixo com letras de cabeça para baixo. Assim:

Então, lendo a parte de cima, a gente vai toda a rua por uma calçada, chegamos ao final, viramos o livro e voltamos pela outra calçada, se me entendem. Tudo isso acompanhado de desenhos da própria avenida. Como eu disse, este livro é um objeto de arte.

O outro volume, Notas de Petersburgo de 1836 é um retrato comparativo da vida cultural de Moscou e São Petersburgo da época, com grande foco no teatro. É bastante interessante. São cidades muito diferentes. Em gostos, nas ocupações, divertimento, posturas, vaidades…

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Adam e Evelyn, de Ingo Schulze

Adam e Evelyn, de Ingo Schulze

Um bom livro da finada CosacNaify.

Quando Adam e Evelyn inicia, estamos em 1989 em algum lugar da Alemanha Oriental. Adam é um cara de uns 30 anos que ganha a vida como alfaiate. Muito bom em seu ofício, deixa deslumbrantes mulheres comuns. É considerado por elas um artista e isso lhe traz uma satisfação tranquila. Vive satisfeito.

Sua namorada, Evelyn, tem aspirações mais vagas e acaba de demitir-se do local onde era garçonete. Eles talvez estejam apaixonados, mas Evelyn pega Adam literalmente sem calças, aceitando agradecimentos excessivos de uma cliente. Ela faz as malas e some.

A sonhada viagem de férias do casal ao paradisíaco lago Ballaton, na Hungria, cai por terra, mas eles acabam empreendendo a jornada ao país vizinho separadamente. Evelyn pega carona no Passat vermelho de um amigo da Alemanha Ocidental, enquanto Adam os segue em seu velho carro. A empreitada acaba tomando dimensões maiores quando as fronteiras da Hungria se abrem para o Ocidente e o muro de Berlim cai. Ingo Schulze cria aqui uma bonita história de amor encenada nos últimos suspiros da República Democrática Alemã e acompanha a entrada traumática deste casal em crise num mundo totalmente novo.

O que Adam empreende não é bem uma perseguição, porque ele não é nada agressivo nem insistente, apenas fica por ali pois a quer de volta e a negativa dela não é assim tão definitiva.

Na Hungria, eles estão indo para uma reconstrução bastante espetacular.

Durante a colorida viagem, ambos atraem amigos — ou admiradores. Evelyn inicia amizade com um cara chamado Michael (o dono do Passat), um sujeito esperto que Adam odeia. Michael quer Evelyn, que falsamente protesta que nada poderia estar mais longe da verdade. E há uma garota chamada Katja que faz amizade com Adam.

Ambos viajam carregados de coisas como mapas, passaportes de um país em extinção e, curiosamente, uma tartaruga. Eles se esforçam para obter os documentos para entrar na Hungria, mas esses documentos não são necessários. “Eles abriram a fronteira, algumas centenas de pessoas correram para lá e foram embora”, diz Katja. Aliás, Katja já arriscou a vida tentando atravessar o Danúbio a nado, só que aqui estamos quase no terreno da comédia romântica, então não há nada trágico na tentativa. A verdade é que ninguém sabe qual fronteira é melhor atravessar ou para onde ir. Só Adam quer voltar, os outros aspiram a doce vida ocidental.

Enquanto isso, Adam e Evelyn entram em intermináveis ​​sessões de discussão. Quem é mais infiel? Mais sério? Mais divertido? Mais atrativo? Eles ficam em pousadas e com amigos aqui e ali. Lá pelo meio do livro notamos que eles realmente não querem ir para casa, nem têm mais certeza de onde fica sua verdadeira casa.

Adam voltará a ter uma carreira satisfatória? De que serve um alfaiate no Ocidente?

A história é ótima, com muitos diálogos. Porém, por detrás do ritmo alegre se encontram vidas sem rumo. É clara a intenção de Schulze de nos mostrar que Adam e Evelyn são como Adão e Eva de um novo mundo. Ele até encontra uma Bíblia num quarto de hotel e lê para ela a cena da maçã, da serpente, de Deus, etc. Ela fica pasma de como um adulto pode acreditar naquela baboseira, mas Schulze usa e abusa da história como metáfora.

Bom e despretensioso livro.

(Dizem que a obra-prima do autor é Vidas Novas, que também foi publicado pela defunta CosacNaify).

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Três vezes ao amanhecer, de Alessandro Baricco

Três vezes ao amanhecer, de Alessandro Baricco

Eu adoro os pequenos livros de Alessandro Baricco. Três vezes ao amanhecer (Alfaguara, R$ 39,90) pode ser lido em uma sentada (ou deitada) e é entusiasmante, de deixar feliz mesmo. São três histórias que ocorrem ao amanhecer, claro. A primeira é sobre um homem solitário que conversa com uma mulher no saguão de um hotel, ela o convence a fazer certas coisas. A segunda é a respeito de um porteiro idoso que tenta persuadir uma adolescente muito louca a abandonar o namorado violento. E a terceira é a linda história de uma policial de meia-idade que decide levar um menino órfão até a casa do homem que ama e que não vê há anos.

As histórias são habilmente entrelaçadas, os diálogos são rápidos, com alternância entre os discursos direto e indireto. São descritos três fatos onde os personagens dão de cara com a possibilidade de alterar o rumo de suas vidas ao amanhecer.

Três vezes ao amanhecer era um livro imaginário, criado em outro romance de Baricco, Mr. Gwyn. Perto do final de Gwyn, há uma discussão sobre um livro intitulado Three Times at Dawn, atribuído a Akash Narayan. Como a nota inicial sugere, Three Times at Dawn é o trabalho que o escritor ficcional Jasper Gwyn achou mais difícil de abandonar…

Três vezes ao amanhecer foi escrito por Baricco aparentemente após Mr. Gwyn, mas não há maiores ligações os ou continuidade entre os dois livros. São obras independentes.

Como escrevi no início, o livro é formado por três episódios separados, mas eles são conectados por intervalos de tempo bastante longos. Cada parte centraliza-se em um encontro entre uma figura masculina e feminina. Outras figuras também aparecem, mas são incidentais. Um dos personagens está de alguma forma fugindo, às vezes sem ser encorajado, outras vezes sendo trazido à segurança.

O primeiro encontro acontece no saguão de um hotel, com uma mulher entrando ali nas primeiras horas da madrugada e encontrando apenas um homem sentado, esperando a hora de sair para uma importante reunião de negócios. Ela parece ter se divertido um pouco demais à noite e puxa conversa, encontrando uma série de desculpas para mantê-lo ali. É um episódio que tem uma conclusão muito inesperada, com o encontro adquirindo uma natureza muito diferente daquela que fomos levados a acreditar. A primeira história fica um pouco mais explicada no episódio seguinte, que ocorre muitos anos antes e que começa com outro encontro no lobby do hotel nas primeiras horas do dia.

Não são exatamente os “retratos” que se poderiam esperar que Gwyn tenha escrito… “Você teria se esforçado para descobrir a história, vendo-a”, observa Baricco enquanto um dupla de personagens caminha nas primeiras horas da manhã. Sempre inteligente e sutil, Baricco nos apresenta os detalhes certos para que as peças se encaixem, aqui e lá adiante.

Recomendo!

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Babi Yar, de Anatoly Kuznetsov

Babi Yar, de Anatoly Kuznetsov

O Massacre de Babi Yar foi um enorme fuzilamento em massa conduzido pelos nazistas, durante a ocupação de Kiev na Segunda Guerra Mundial. A parte mais sangrenta do episódio aconteceu entre 29 e 30 de setembro de 1941, quando foram fuziladas 34 mil pessoas em 36 horas. Babi Yar é uma ravina existente em Kiev.

Em 28 de setembro, um aviso foi afixado nos postes e muros de Kiev, dirigido aos judeus:

Ordena-se a todos os judeus residentes de Kiev e suas vizinhanças que compareçam na esquina das ruas Melnyk e Dokterivsky, às 8 horas da manhã de segunda-feira, 29 de setembro de 1941 portando documentos, dinheiro, roupas de baixo, etc. Aqueles que não comparecerem serão fuzilados. Aqueles que entrarem nas casas evacuadas por judeus e roubarem pertences destas casas serão fuzilados.

Os judeus levados à ravina esperavam ser embarcados em trens. A multidão e a confusão de homens, mulheres e crianças era grande o bastante para que ninguém tomasse conhecimento do que estava para acontecer. Levados para a ravina, todos passavam por um corredor de soldados em grupos de dez e fuzilados. Ao escutarem o som das metralhadoras que matava o grupo logo à frente, não tinham mais como escapar.

Babi Yar, de Anatoly Kuznetsov, é um tremendo romance e documento autobiográfico em que o autor narra suas experiências naquela Kiev. Fica claríssimo contra quem foi e quem ganhou a Guerra. No total, em Babi Yar foram mortas 200 mil pessoas, com esmagadora maioria de judeus. Kuznetsov abre sua obra-prima com o famoso poema de Evgeny Evtushenko — também chamado Babi Yar e que foi musicado por Shostakovich — e que não foi nada apreciado pelos fascistas. Nem pelos soviéticos.

Kuznetsov começou a escrever suas memórias de guerra aos 14 anos, em um caderno. Ao longo do tempo, seguiu trabalhando nele, acrescentando novos documentos e testemunhos.

O romance foi publicado com cortes — feitos pela censura soviética — pela primeira vez em 1966, na revista literária mensal Yunost. Os editores reduziram o livro em um quarto do tamanho original e introduziram material adicional politicamente mais adequado.

Em 1969, Kuznetsov partiu para o exílio — foi para o Reino Unido — e conseguiu contrabandear filmes fotográficos de 35 mm, contendo o manuscrito completo. O livro foi publicado no Ocidente em 1970 sob o pseudônimo de A. Anatoli. Naquela edição, a versão soviética editada foi colocada em fonte normal, o conteúdo cortado pelos editores em negrito e o material recém-adicionado entre parênteses. Uma loucura. No prefácio à edição da editora Posev , com sede em Nova York , Kuznetsov escreveu:

“No verão de 1969, escapei da URSS com filmes fotográficos, incluindo filmes contendo o texto completo de Babi Yar. Publico-o agora como meu primeiro livro livre de toda censura política, e estou pedindo que você considere esta edição de Babi Yar como o único texto autêntico. Ele contém o texto publicado originalmente, tudo o que foi expurgado pelos censores e o que escrevi após a publicação, incluindo o polimento estilístico final”.

O romance começa da seguinte forma:

Tudo neste livro é verdadeiro. Quando contei episódios dessa história para pessoas diferentes, todos disseram que eu tinha que escrever o livro. A palavra ‘documento’ na legenda deste romance significa que forneci apenas fatos e documentos reais sem o menor trabalho de inventar como as coisas poderiam ou deveriam ter acontecido.

Kuznetsov descreve suas próprias experiências, complementando-as com documentos e testemunhos de sobreviventes. A tragédia de Babi Yar é mostrada no contexto da ocupação alemã de Kiev desde os primeiros dias de setembro de 1941 até novembro de 1943.

É também sobre o fato curioso de que um garoto de 14 anos pudesse aparecer em qualquer lugar sem que os adultos — soldados alemães — se importassem especialmente. Por acidente, então, vi o que os outros não tinham permissão para ver. E por acidente, ele sobrevivi à ocupação e vivi para escrever sobre ela.

O capítulo “Quantas vezes eu deveria ter sido baleado” lista 20 razões pelas quais os fascistas deveriam ter atirado nele de acordo com ordens emitidas pelos ocupantes nazistas. Quando fala sobre sua própria família, o autor não se esquiva de criticar o regime soviético.

Uma das partes mais citadas do romance é a história de Dina Pronicheva, atriz do Kiev Puppet Theatre. Ela foi uma das ordenadas a marchar para o barranco. Foi baleada. Gravemente ferida, ela se fingiu de morte sobre uma pilha de cadáveres e, finalmente, conseguiu fugir. Ela foi um dos poucos sobreviventes do massacre. Mais tarde, ela contou sua história a Kuznetsov.

O livro é notavelmente bem escrito. Kuznetsov não usa grandes frases e a indignação é até controlada. As formas de sobrevivência, as formas que a fome pode ter em contraste com um inimigo bem fornido são descritas com riqueza de detalhes.

Lembrei de Bolsonaro e de Guedes neste trecho:

O romance termina com um aviso:

Deixe-me enfatizar novamente que não contei nada excepcional, mas apenas coisas comuns que faziam parte de um sistema; coisas que aconteceram ontem, historicamente falando, quando as pessoas eram exatamente como são hoje.

Só, por favor, não confundam Kuznetsov com Soljenítsin. O primeiro é muito mais escritor. E não é doido varrido.

P.S. — Li na edição portuguesa da Livros do Brasil. Há uma edição brasileira da Civilização Brasileira, publicada em 1969. Acho que ambas as edições são as censuradas pelos soviéticos.

Anatoly Kuznetsov (1929-1979)

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O Anjo do Avesso, de Marcos Vasconcelos

O Anjo do Avesso, de Marcos Vasconcelos

O anjo do avesso (120 páginas) é um bom livro de estreia do carioca Marcos Vasconcelos. O volume alterna contos e crônicas, apresentando rara coerência temática. É uma delícia de livro, daqueles para ser devorado em uma sentada (ou deitada), apesar dos temas. Minha preferência foram para os contos Chinoca, Uma dose de gim e O açougueiro. Sim, todos tratam da morte de diferentes modos. Chinoca é uma engraçadíssima história gauchesca — o autor tem alguma admiração por esta nossa unidade federativa periférica e defunta –, Uma dose trata da emigração e é efetivamente triste e bem contado, enquanto O açougueiro tem original e sanguinolenta poesia. Apenas um dos contos foi absolutamente incompreensível para mim, um desconhecedor de Harry Potter que boiou feio para depois imergir definitivamente em A morte de Lord Voldemort.

Se os três temas fundamentais da boa ficção são o amor, o silêncio de Deus e a morte, Marcos dedica-se aqui à morte. A própria epígrafe do livro já dá a letra:

Começando do fim
ao invés do começo
a Morte é um anjo
do avesso

Mas não pensem em uma atmosfera bergmaniana ou sufocante, e sim numa abordagem mais leve daquilo que seria a Indesejada das gentes.

Recomendo.

Marcos Vasconcelos em foto do Marquinhos, garçom do Tuim.

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Não contem com o fim do livro, de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière

Não contem com o fim do livro, de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière

Este é um livro inacreditavelmente agradável, coloquial, fluido, sedutor, inteligente, perfeito. Trata-se de uma série de entrevistas realizadas por Jean-Philippe de Tonnac com o escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano Umberto Eco (1932-2016) e o escritor, roteirista, diretor, ator e bibliófilo francês Jean-Claude Carrière (1931). O assunto é datado, afinal, em 2009, alguns pensavam que o livro poderia acabar, trocado pelo e-book, kindle, pdf, essas coisas. Nossa, como é bom ler duas inteligências, cultas e bem-humoradas conversando livremente, pois Tonnac apenas os provoca e eles vão adiante no melhor dos papos.

A conversa ultrapassa em muito a questão dos “e-books X livros físicos” para adentrar na própria história do livro em dezenas de deliciosas histórias e casos. Mesmo quando, na primeira parte, a dupla discute tecnologia, é muito interessante, pois eles falam da pouca durabilidade dos novos suportes.

Em suma, é um livro de surpreendente vivacidade que lida com o futuro da escrita e da leitura. Curiosamente, o destaque fica para a oralidade dos monstros Carrière e Eco. Ela é muito mais elegante do que muitos dos chamados textos “escritos”. Do papiro ao arquivo eletrônico, eles falam sobre a jornada de  5000 anos do livro. O título é um aviso e, como tal, devemos considerar esse texto como uma homenagem à cultura e ao espírito, um verdadeiro antídoto para o desencanto literário.

Os autores também falam da superioridade do livro sobre o computador, que depende da presença de eletricidade, não pode ser lida em uma banheira ou em vários outros locais. Acrescente-se que o computador também está sujeito a alterações na tecnologia que constantemente nos obrigam a atualizações, ou então a manter nossos dispositivos antigos sob pena de não poder mais ler a mídia na qual salvamos nossos dados. É o paradoxo dos supostos suportes “duráveis”, mas na realidade mais perecíveis que os impressos, uma vez que sua tecnologia não deixa de evoluir e se renovar. Bem, surpreendentemente ainda podemos ler um texto impresso há cinco séculos atrás…

É claro que esse é apenas um dos temas abordados pelos dois autores. Há longas digressões sobre a estupidez, a vaidade, a internet, a censura, a filtragem do tempo sobre as obras, a percepção do que nos é útil dentre as informações que recebemos, etc.

A parte que mais me interessou foi “Todos os livros que não lemos”. Nesta capítulo, eles abordam o tema das coleções de livros — ambos são respeitados bibliófilos e imensas bibliotecas –, da compra compulsiva, dos muitos livros que todos temos em nossas bibliotecas e que, é claro, jamais leremos.

Não posso resistir a copiar um trecho do livro:

À pessoa que entra na sua casa pela primeira vez, descobre sua imponente biblioteca e não acha nada melhor para lhe perguntar a não ser: “Você leu todos?”, conheço várias maneiras de responder. Um amigo respondia: “Mais, cavalheiro, muito mais”.

Quanto a mim, tenho duas respostas. A primeiro é: “Não. Esses livros são apenas os que devo ler semana que vem. Os que eu já li estão na universidade”. A segunda resposta é: “Não li nenhum desses livros. Senão, por que guardaria?”.

Recomento fortemente, especialmente para nós, os amantes de livros.

Ah, lembram daquela observação de Eco sobre a internet? Na verdade, ela é assim:

Podemos insistir nos progressos da cultura, que são manifestos e tocam categorias sociais que eram tradicionalmente excluídas deles. Mas ao mesmo tempo temos a desvantagem da burrice. Não é porque os camponeses de outrora se calavam que eram burros. Ser culto não significa necessariamente ser inteligente. Não. Mas hoje todas as pessoas querem se fazer ouvir e, fatalmente, em certos casos fazem ouvir apenas sua simples burrice. Então digamos que era uma burrice que antigamente não se expunha, não se dava a conhecer, ao passo que, em nossos dias, vitupera.

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Manual da Faxineira, de Lucia Berlin

Manual da Faxineira, de Lucia Berlin

Um livro extraordinário. Manual da Faxineira (Cia. das Letras, 532 páginas) compila os melhores trabalhos da contista Lucia Berlin. São 43 contos com um humor que guarda certo parentesco com o de Raymond Carver, mas com melancolia e realismo próprios. Berlin faz milagres com o cotidiano, descobrindo momentos sublimes em lavanderias, em casas do meio oeste estadunidense ou da classe alta da Bay Area de San Francisco, em emergências hospitalares, entre operadoras de telefonia e mães em dificuldades, caroneiros, drogados e alcoolistas. Mas como esta brilhante escritora foi a princípio ignorada? Como puderam?

Lucia Berlin (1936-2004) trabalhou de maneira brilhante, mas esporádica, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. Suas histórias são inspiradas por uma infância em várias cidades da Califórnia, Novo México e Texas. Teve também uma glamourosa adolescência em Santiago do Chile, três casamentos, um problema grave com alcoolismo e quatro filhos. Para piorar, Lucia era uma moça alta que sofria de escoliose e usou um colete ortopédico de aço durante seus anos jovens. Depois, sóbria e escrevendo de forma constante na década de 1990, ela assumiu o cargo de escritora visitante na Universidade do Colorado (Boulder) em 1994 e logo foi promovida a professora associada. Em 2001, com problemas de saúde, ela se mudou para o sul da Califórnia para ficar perto de seus filhos. Morreu em 2004, em Marina del Rey. Tudo isso é muito importante porque, em suas histórias, há muito de sua biografia.

Como disse, os contos de Lucia Berlin não foram muito divulgados durante sua vida. Algumas coleções publicadas por pequenas editoras entre os anos 70 e 90 ganharam um pequeno e dedicado grupo de admiradores, como Saul Bellow. As 43 histórias reunidas em Manual da Faxineira são uma poderosa reivindicação por reconhecimento.

Realmente, Berlin pareceu ter o condão de encaixar muitas vidas em seus 68 anos. Criada nos remotos campos de mineração do Alasca e do centro-oeste, ela foi uma criança solitária e abusada no Texas dos tempos da 2ª Guerra; depois uma jovem rica e privilegiada em Santiago; uma boêmia que vivia em lofts nos anos 50, em Nova York; uma recepcionista em um pronto-socorro de emergências no centro de Oakland, nos anos 70. Quando tinha 32 anos, já se casara três vezes, tinha quatro filhos e lutava, ou não, contra o alcoolismo.

Sua vida agitada fornece assunto para suas histórias. Sua alegria também. Há sempre um fundo de bom humor em seus textos. Ela é dura e papo reto, mas a brutalidade é compensada pela compaixão à fragilidade humana e pela inteligência da narrativa. E o prazer de ler acaba sendo maior que a dor. Em Até mais, o casamento com um viciado em heroína é descrito como “tempos de intensa felicidade tecnicolor e tempos sórdidos e assustadores”. A solidão está presente em histórias ambientadas em hospitais, clínicas de desintoxicação, lares e prisões, porém, apesar do território frequentemente sombrio, a escrita de Berlin é caracterizada por um enorme apetite pela vida e de amor. Em Mordidas de tigre, uma história que detalha os horrores de uma clínica de aborto no México, é o calor e a diversão perversa do relacionamento entre a narradora e sua prima glamourosa que permanece em primeiro plano.

Como teve muitos empregos, Berlin é uma cronista aguda de instituições e do mundo do trabalho muitas vezes esquecido — em particular o trabalho de baixo prestígio e baixa remuneração de enfermarias, faxineiras e auxiliares. Em Quero ver você sorrindo, um personagem é descrito como possuindo uma curiosidade compassiva por todos, e o mesmo se aplicava claramente à autora. Algumas das histórias, como Caderno de notas do setor de emergência, 1977, têm abordagem jornalística, mas há sempre um olho no poético:

Se suas bolsas já não foram furtadas, as velhinhas parecem carregar nada a não ser a dentadura de baixo, um folheto com o horário do ônibus 51 uma caderneta de endereços e telefones em que não se acha um único sobrenome.

Berlin credita sua mãe por seus poderes de observação, escrevendo em Mamãe sobre como lembrava de suas piadas e de sua maneira de olhar, nunca perdendo nada.

Lembramos de suas piadas e do seu jeito de olhar, aquele olhar que nunca deixava escapar nada. Você nos deu isso. Essa capacidade de olhar.

Não a de ouvir, porém. Você nos dava talvez uns cinco minutos para te contar alguma coisa e depois dizia “Chega”.

São histórias que capturam o mundo quase invisível ao nosso redor, revelando o banal e o pungente. Em Mijito, uma enfermeira fala sobre as crianças doentes sob seus cuidados. A maioria das crianças não pode chorar. Há apenas lágrimas rolando e este horrível rangido do mundo, como um portão enferrujado, ao fundo.

O estilo de Berlin é direto. Mijito é de verossimilhança quase insuportável. Você pode ser enganado ao pensar que está lendo cartas de uma amiga quando ela fala em frases como “Eu sei, romantizo tudo”. Mas esse estilo coloquial é traído por brutais falas e mudanças súbitas que deixam claro que essas são histórias minuciosamente elaboradas. O narrador de Mamãe passa o tempo todo conversando, finalmente convencendo sua irmã moribunda de que a mãe insensível e bêbada merecia alguma compaixão, antes de revelar na última linha: Eu… eu não tenho compaixão.

A mesma mãe e irmã (Sally) aparecem em muitas histórias, e a natureza parcialmente autobiográfica da coleção faz desta uma experiência de leitura em densas camadas. Personagens e cenários se repetem, e certos períodos são vistos através de filtros diferentes, com o elenco principal e seus relacionamentos entrando e saindo de foco.

Em Voltando para casa, a história final, Berlin observa os hábitos dos corvos de sua varanda:

…mas o que me incomoda é que eu só reparei neles por acidente. O que mais será que deixei passar? Quantas vezes na minha vida eu estive, por assim dizer, na varanda dos fundos, e não na varanda da frente? O que será que me disseram que eu não ouvi? Que amor poderia ter existido que eu não senti?

Ponto de Vista, Mijito e Incontrolável são contos inesquecíveis. Dos melhores que li até hoje. Berlin sofreu muito, mas seu poder de observação e arrebatador virtuosismo literário farão dela um clássico, se o mundo não acabar nos próximos anos.

Com informações do The Guardian.


Luiz Ruffato escreveu:

Raros são os autores que conseguem construir uma obra homogênea, em que nós, leitores, não temos que descer de altíssimos picos para percorrer vales profundos. Mais raro ainda encontrar um autor que, sendo unicamente contista, não perca a mão e ofereça, em meio a jóias, algumas bijuterias. Por isso, é surpreendente esse livro. São 43 contos – dos 76 que a Autora escreveu entre ao longo de sua curta vida – e todos eles, sem uma única exceção, são ótimos. O mais interessante é que, no caso, é impossível separar a biografia da Autora de seus textos ficcionais. Até porque eles são declaradamente autobiográficos, ou, como ela mesma afirma: “Eu exagero muito e misturo ficção com realidade, mas nunca chego de fato a mentir” (p. 410). Quase sempre a história gira em torno de uma narradora, mãe de quatro filhos, que tem sérios problemas com bebida, e uma irmã que agoniza no México, padecendo com um câncer terminal. Os nomes dos personagens podem variar, eventualmente, mas eles são sempre reconhecíveis. E isso dá um caráter peculiar ao livro, pois é como se estivéssemos desdobrando episódios de uma biografia, preenchendo lacunas de uma vida: a infância de uma menina com sérios problemas na coluna (escoliose) em regiões mineradoras dos Estados Unidos ou no Chile, acompanhado o pai, geólogo, e a mãe, alcoólatra, e a vida adulta entre a Califórnia (Oakland), Texas (El Paso) e Novo México (Albuquerque) e a Cidade do México, em estranhas aventuras imersas em álcool e culpa. Embora haja diversas histórias sobre alcoólatras e drogados, a Autora não glamuriza esse universo (como fazem certos autores que romantizam essa tragédia), e sim mostra como todos são afetados pelo vício, uns mais outros menos, mas sem qualquer moralismo – apenas exibindo vidas que, em algum momento, descarrilharam e tombaram… Interessante também é ver estampadas nestas páginas personagens pouco presentes na literatura estadunidense – os párias do capitalismo, índios miseráveis, mexicanos ignorados, negros pobres, todos empurrados para o submundo, de onde a Autora os resgata, restituindo-lhes a dignidade, e de maneira admirável. O cerne de suas reflexões poderia ser sintetizada em suas próprias palavras: “Medo, pobreza, alcoolismo e solidão são doenças terminais” (p. 119). Para tentar elucidar essa questão – “(…) é a morte que eu não entendo” (p. 327) – que o leitor deve mergulhar em cada página e deixar-se impregnar de cada palavra. O resultado, pode ter certeza, é magnífico.

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Ônibus Serraria, de Marino Boeira

Ônibus Serraria, de Marino Boeira

O título completo do livro é Tudo pode acontecer no Ônibus Serraria e na Zona Sul (Libretos, 118 páginas, R$ 30), mas como o editor deu mais destaque na capa à linha de ônibus, fiquemos com o título resumido.

Marino Boeira costuma publicar deliciosos textos no Facebook. Sou seu leitor. Ultimamente, ele está escrevendo textos mais curtos. Uma pena. Conheço-o também de outras paragens, mas o que interessa é que este informado, culto e divertido senhor de 80 anos produziu um livro que se lê rapidamente, sem cansar. Li numa tarde de sábado e já usei a palavra “delicioso” acima. Ela é perfeita.

Por favor, não pensem no tiozão do churrasco inventando historinhas sem graça. Marino é um cara aposentando — foi professor universitário, publicitário e jornalista — que fica atrás do computador fazendo a gente rir de suas histórias e fazendo-nos pensar em como seria admirável preservarmos a inteligência e ser politizado, ateu, cético, informado e radical sendo octogenário. Além do mais, ele vê todos os filmes interessantes e lê as novidades literárias. E tem um programa de rádio onde o chamam de Mestre e de alguns outros títulos complicados que esqueci. Bem… Aqui já entramos no terreno da auto-ironia.

Sim, ele é um intelectual à antiga, uma daquelas enciclopédia ambulantes que eram mais fáceis de encontrar no passado.

Mas o que é o livro Ônibus Serraria? É uma despretensiosa e inteligente coletânea de crônicas divididas em duas partes: “As histórias que acontecem no Ônibus Serraria” e “As histórias que acontecem na Zona Sul” (de Porto Alegre). Gostei mais da segunda parte, cujas crônicas tratam de traições, sexo (ou da saudade do mesmo), fantasias loucas e filosóficas, causos e da pequena política da cidade. Também a morte está presente, mas o céu de Marino… Bem, leiam.

Achei especialmente boas as crônicas Dona Lucrécia e o Sexo, Direto do CéuCabíria ou Gesolmina e Ficantes & Significantes.

Recomendo.

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P.S. — Sou citado e até ilustrado no livro de Marino… Sou eu ali, com uma camiseta onde está escrito Bamboletras em russo, obra do Santiago.

A citação
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