Não faz falcatrua com o tio

Fui vítima de um sequestro relâmpago em 2002. Não foi nada divertido. Eu estava chegando na residência de minha mãe quando vi um jovem vestido como qualquer pessoa de classe média aproximar-se da porta de meu carro. Veio numa velocidade inequívoca, deixando bem à mostra uma arma que apontava para algum lugar abaixo de minha cabeça, ou seja, a porta, pois eu estava sentado no carro, esperando que a porta automática abrisse. Fazendo o que sempre vira nos filmes, saí do carro com as mãos para o alto, em total silêncio. Ele me mandou sentar no banco de trás, onde logo recebi a companhia do mais agitado do grupo. Os bancos da frente foram ocupados pelo rapaz da arma e sua namorada. Eram 19h30, mais ou menos.

Mantive o silêncio que insiste em me acompanhar nas situações críticas e apenas notava vagamente que o motorista desejava dirigir rapidamente, mas que era inexperiente, muito inexperiente. Não parecia drogado, apenas dirigia mal. Já meu companheiro de banco parecia bastante alterado. De forma descontrolada, gritava palavrões e batia em minha cabeça com o cano do revólver que recebera do motorista. Ele apontava a arma para um local acima de meu ouvido direito — bem onde eu suponho que esteja meu cérebro — e batia ali com força. Eu não consigo refazer perfeitamente este período em minha memória. Acho que meu estado era mais de perplexidade e menos de medo, mas talvez isso seja uma fantasia posterior: meu estado devia ser de medo paralisante e só. Afinal de contas, eu nunca peguei um revólver e imagino que este seja uma coisa para ser manuseada com certo cuidado, como se maneja algo prestes a explodir. Não deve ser um instrumento para bater na cabeça de alguém, ainda mais com o cano apontado. Tratava de ficar o mais quieto possível ouvindo um monte de ofensas, quando o motorista mandou o sujeito parar de babaquice e ver se eu tinha dinheiro. Em resposta, o sujeito abriu minha pasta e logo achou a carteira. Tinha R$ 30,00. O cara ficou puto.

Antes que ele voltasse a se divertir com minha cabeça, resolvi falar:

— No bolso de trás da calça, tem R$ 1.700,00.

O casal no banco da frente comemorou, dizendo que o tiozinho era legal. Meu colega começou a dar risadinhas enquanto demonstrava enorme dificuldade para pegar o dinheiro, apesar de eu ter virado quase 90º a fim de que ele pegasse. Então, ele mandou que eu entregasse o dinheiro para ele. Não pensem que ando sempre com R$ 1.700,00. O que ocorrera é que eu achei que tinha dinheiro demais no caixa da firma e resolvi levar comigo. Era uma atitude rotineira para evitar, digamos, faxineiras mais curiosas. Disse para eles que não tinha dinheiro em caixa automática, que pegara tudo. O cara do meu lado duvidou aos berros, perguntando se eu tinha certeza absoluta daquilo. Confirmei e confirmei e confirmei. A menina do banco do acompanhante disse que era melhor assim pois

— fico muito “tensionada” nesses caixa automático.

Empreendemos um longo passeio aparentemente sem objetivo nenhum. O motorista dizia que o rádio do carro era uma bosta, que nem valia a pena roubar. Partiram para as avaliações: meu relógio era legal, o celular era outra bosta, a pasta era das caras e eles levariam, etc. E assim chegaram a conclusão que o saldo do sequestro seria R$ 1.730,00, minha pasta e o relógio. Apesar disso, ligaram o rádio na Atlântida, da RBS. A conversa era pouca e o motorista nos levou à periferia de Canoas, voltou a Porto Alegre, andou por umas vilas, etc. O que procuravam? Era algum plano para mim? Em certo momento, vi que o rapaz ia dobrar numa rua onde eu tinha visto rapidamente as luzes de um carro da Brigada Militar. Dei um grito:

— Não entra aí, tem um carro da Brigada!

Pode parecer paradoxal, mas achei que poderia haver algum gênero de tiroteio ou confronto e que eu seria um detalhe insignificante para ambos os lados. Além do mais, minha pequena experiência manda evitar autoridades como criminosos, brigadianos, juízes de direito e de futebol. Mais paradoxal ainda, sempre me entendi bem com policiais, os quais sempre foram razoáveis. Mas tergiverso. Minha atitude foi saudada pelos inquilinos (ou novos donos) de meu carro como um grande passo em minha vida como celerado.

— Porra, o tiozinho aprende rápido!
— Cacete, como é que ele viu?

Como já estava me tornando um ídolo, já conseguia pensar claramente que eles estavam procurando um lugar para me matar ou para utilizar meu inexpugnável ânus para seu prazer, algo assim. Como ninguém me impedia de falar, empreendi o mais patético dos discursos: tinha dois filhos pequenos (verdade), era separado (verdade), cuidava de uma mãe doente (verdade), era filho único (mentira…), trabalhava para todos eles (mentira) e que haveria muito sofrimento se alguma coisa me acontecesse (não sei); enfim, apelei. Então, subimos um morro de Porto Alegre que atende pelo delicado nome de Maria Degolada. O rapaz foi parando num local que, se não era um descampado, também não era desabitado. Então, a menina do banco da frente falou com veemência para o motorista:

— Não faz falcatrua com o tio! Ele é legal!

O cara olhou para ela e disse:

— Calma, …inha.

Me mandaram sair do carro. Saí lentamente, como se estivesse entre amigos, mas na verdade pensando que, se corresse, poderia levar um tiro (sabem aquele instinto que manda a gente NÃO correr de cachorros?, pois é, foi o que pensei indistintamente). Dei alguns passos e me chamaram. Quase me caguei. Era o motorista. O rapaz, com um sorriso, dizia para eu levar minha carteira vazia de dinheiro e meu celular de merda. Devia ter pedido dinheiro para o ônibus, talvez ele me desse. Me explicou que dava trabalho fazer os documentos que estavam na carteira e que tinha tirado a bateria do celular para eu ter não telefonar para meus amigos brigadianos. Peguei as coisas e caminhei devagar. Nunca mais os vi.

Depois de algumas quadras, notei que estava fedendo. Era o pior cheiro que já tinha sentido em mim. Era uma coisa animalesca, chegava a arder no nariz. Horrível. Caminhei, acho, por três horas. A sede era imensa. Quando cheguei à casa da minha mãe, ela dormia. Melhor assim. Devo ter ficado meia hora esperando a banheira encher, coisa que nunca fizera antes. Mergulhei na água pensando em meu azar e sorte, e no significado de “falcatrua” para aqueles caras. (Ouvi depois essa palavra ser usada no sentido de sacanagem).

No dia seguinte, às 8h em ponto, avisei o seguro sobre o carro e eles me mandaram fazer uma ocorrência. Fui trabalhar, não estava com nenhuma pressa de ir à polícia. Raciocinava confusamente que o problema era meu e que não tinha necessidade de ficar falando naquilo. Por volta das 10h30, um funcionário da seguradora me ligou, dizendo que meu carro estava na Rua Botafogo, estacionado em local proibido, com as janelas abertas. Meu rádio devia ser uma bosta mesmo, o resto também. Nunca fiz a ocorrência e nem liguei de volta para o seguro. Ninguém, além de meus filhos, soube da história. Naquela época, era doloroso demais contá-la.

Qual é a melhor cara do PSDB? A de Yeda, Aécio ou Serra?

Tudo começou quando Aécio e Serra foram os derrotados no Mineirazo de quarta-feira. Aécio deu um sorriso overtudo, sabendo que estava sendo mostrado pela Globo para todo o país no dia que um time de Minas seria campeão de Libertadores. Serra ergueu a cabecinha de tartaruga e procurou a câmera, só a encontrando quando observou para onde olhava Aécio, dono da imprensa mineira. Foi um prenúncio do que a dupla verón a seguir. Uma duplinha pé-frio, sem dúvida.

Mas a cara mais acabada — nos dois sentidos — do PSDB veio à tona na manhã seguinte em Porto Alegre. Houve uma inteligente manifestação em frente à casa da desgovernadora. Digo inteligente porque todos sabemos que a ogra gosta de um barraco, gosta de responder do modo mais grosseiro, gosta de demonstrar sua vulgaridade, parece gostar de confundir informalidade com baixo nível. As amigas Yeda Crusius e Lya Luft, aliás, estão cada vez mais parecidas: uma na área financeira, outra na literária, as duas na auto-ajuda.

Ao meio-dia de ontem, liguei o rádio para ouvir se alguém noticiaria as manchetes do Olé argentino, quando vi que havia coisa muito mais divertida. Fui direto ao Weissheimer, ao Feil e à Nova Corja a fim de rir. Se até os caras do esporte da RBS falavam com voz de riso, o trio citado devia ter material. Eles não me decepcionaram. As fotos são boas demais. A pitbull resolveu expor seus netos que, coitados, decerto nem queriam mais ir à aula; afinal, entre a perspectiva de assistir a uma pancadaria entre a Brigada Militar e um buliçoso grupo de professores, sentados na sacada da casa que a vovó roubou — talvez comendo pinhão, pipoca e ananás –, e ir à aula, o que você escolheria? Olha a cara de tristeza dos meninos. Não é de dar dó?

A cara de louca da Yeda é sensacional e a da filha Tarsila — cujo nome é uma homenagem ao Ministro da Justiça — idem. Ora, no dia em que hordas de Wierzchowskistas poloneses invadirem meu jardim, vocês acham que vou chamar meus filhos para me ajudarem no enfrentamento? Nunca! Vou é mandar a Juno e a Vicentina, minhas duas terríveis cachorras, uma doce pastor alemão e a uma meiga SRD (vira-lata) se alimentarem dos manifestantes pro-Sem Acento! Achei de última categoria expor dessa maneira os herdeiros da vovó, tão rica. A Tarsila deve ser barraqueira mesmo, mas os netos sempre poderão nascer diferentes, pois estão mais afastados de Yeda e Carlos. Podem até ficar rebeldes como a Luciana. A propósito, Carlos Crusius, ex-primeiro damo, anda em shows e concertos dando o ar de sua barba. Sempre escolhe uma posição estratégica para que todos vejam que não está nem será preso. Sempre ouço pessoas rosnarem quando o veem, mas o resultado é análogo ao que fariam a Juno e a Vicentina.

Nossa governadora, hoje, voltou a ser defendida por ZH. Segundo o pasquim, ela reagiu ao cerco, seus limites foram testados, o Centro dos Professores do Rio Grande do Sul inspirou-se — ui, que perigo — no MST. E tudo isso só porque a desgovernadora quer acabar com o plano de carreira dos professores?

E enquanto a governadora lançava aterradores olhares de inteligência para os manifestantes como na foto ao lado, o ex-marido Carlos Crusius discursava na Associação de Dirigentes “Cristãos” de Empresas (ADCE) sobre o tema “A construção de um Estado moderno e justo”. Esses empresários de Deus escolhem bem a quem ouvir, não? Quem fará parte deste moderno grupelho carola?

A gente sofre, sofre até demais, mas há sobre o que rir. Yeda, apareça mais. Tu és o máximo, és a cara acabada e acabada do PSDB. Já disse que não quero teu impeachment — já pensaram na RBS apoiando o vice num governo de salvação da moralidade? –, quero tudo aquilo que a maioria BURRA dos gaúchos pediu. Dê-nos.

Quinteto Villa-Lobos de graça em Porto Alegre

O Quinteto Villa-Lobos traz de volta seu amor, desata macumbaria, doenças mandadas e da carne. Traz seu emprego de volta — assim como o desejo –, cura doenças e faz com que ela chame seu nome mesmo que esteja junto de outro homem. Faz tudo ao contrário e vice-versa se você for mulher.

Não perca, imbecil!

Anúncio copiado de PQP Bach.

Meu time tem um cão como sócio

Excepcionalmente, não teremos O Monólogo Amoroso nesta sexta-feira. Voltaremos na próxima semana.

Nada de gatos. O sócio Nº 115435.00 do Sport Clube Internacional é o golden retriever Bjorn Borg Handler. Sua dona fez a associação pela Internet e, na hora de preencher o RG e o CPF do cão, telefonou para o clube. Disse que seu filho pequeno ainda não tinha tais documentos e solicitou a inscrição sem os códigos. Após a concordância da atendente, Bjorn Borg tornou-se um dos 78 mil sócios do clube. Sua mensalidade está rigorosamente em dia.

Quando a fotografia do novo sócio chegou ao Setor de Atendimento do Sócio Colorado, houve certa perturbação. Questionaram a dona — que não quis ser identificada, mas que EU CONHEÇO — sobre a loira identidade do novo integrante do quadro social e obtiveram a confirmação: um cachorro estava entre eles. Foram consultar o estatuto. Para pasmo geral, descobriram que o novo sócio teria direito a voto e, futuramente, até a candidatar-se ao Conselho e à Presidência. Em novo contato com a proprietária de Borg, disseram-lhe que o clube fora criado na presunção de angariar simpatias entre os membros da espécie homo sapiens (ou talvez homo ludens), nunca entre representantes dos canis lupus familiaris. A dona indignou-se:

– Não admito isso! O Borg é colorado fanático, usa roupinhas autografadas pelo Fernandão e comemora os gols do Inter com latidos. Tem até um filho que se chama Muricy – garantiu.

O Inter voltou à carga: confirmou que, em razão de normas de segurança da Brigada Militar, animais não poderiam de modo algum entrar no estádio em dias de jogos; então, Borg deixaria inapelavelmente de ser sócio. Isso até a intervenção do responsável pelo marketing, Jorge Avancini. Inspirado por Borg, ele anunciou o lançamento de uma linha de produtos para animais de estimação.

Mais: até o Carnaval, o clube lançará a carteirinha para mascotes, com foto e número de matrícula especial. Custará R$ 50 e dispensará mensalidade. Mais ainda: lançará ainda linha de produtos para cães – mercado que no país movimenta mais de R$ 6 bilhões anuais.

Não foi anunciada nenhuma promoção para gatos, mas desde já proponho-me a atirá-los da arquibancada superior na torcida adversária.

Obs.: A você, cético leitor que duvida da autenticidade da notícia, sugiro clicar aqui.

A propósito do post abaixo, minha irmã pergunta ao Ministério Público:

— E o caminhão do Brasinha, onde se enquadra? Passa diariamente em frente ao hospital onde atendo meus pacientes, tocando a todo volume o hino do Grêmio, certamente superando o nível permitido de decibéis. Interrompo o trabalho por causa do barulho. Ele circula pela cidade à revelia da lei e o dono ainda é vereador pelo PTB…

(Eu não disse para vocês que ela era adorável?)

Dêem mais ocupações a estes homens, por favor

Eles ganham bem, fazem um trabalho muito útil contra a violência nos estádios, mas desejam também a fama. São como blogueiros, querem se expressar, certo? Só que em vez de aguardar os visitantes, eles atacam.

Ontem, os juízes Marcelo Mairon Rodrigues e Felipe Keunecke de Oliveira, do Juizado Especial Criminal que funciona nos estádios em dias de jogos, requisitaram à Polícia Civil investigações sobre a origem do avião que passou sobre o Estádio Olímpico portando uma faixa com os dizeres “Inter, o único campeão de tudo”. Fato gravíssimo…

Segundo eles, o Artigo 39, parágrafo 1, do Estatuto do Torcedor reza que “o torcedor que promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores ficará impedido de comparecer às proximidades, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de três meses a um ano, de acordo com a gravidade da conduta, sem prejuízo das demais sanções cabíveis”.

O avião seria “incitação à violência”… O fato ocorreu aos 40 minutos do segundo tempo do jogo Grêmio 2 x 0 Atlético-MG.

Ora, isso já aconteceu tantas vezes em Porto Alegre… Já foram tantos os aviões gremistas e colorados… Já tivemos tantos episódios que o tal avião faz parte da história da cidade. Todo mundo ri dele, é tradicional. Quem sabe os doutores querem também proibir quaisquer brincadeiras, as buzinas, os cantos das torcidas — muitos deles agressivos –, as piadas que nos chegam pela Internet, etc. A partir de agora, a partir da importância que as sumidades deram ao tradicional aviãozinho portoalegrense é que podemos ter violência nas próximas aparições. Sugiro aos juízes proibirem o uso das camisetas dos clubes na ruas, pois é claro que a aparição de um gremista pode transtornar um colorado ou vice-versa.

Acho muito mais convidativa à violência a faixa da torcida do Grêmio “Jamais nos matarão”. Isso é uma clara convocação ao confronto e à luta. Mas não dá mídia atacar uma e apenas uma faixa da Geral…

O futebol é algo tão hipertrofiado em nossa sociedade que ele mesmo regula suas manifestações públicas mais tresloucadas. Por exemplo, o folclórico ex-presidente Luiz Carlos Silveira Martins, o Cacalo, espécie de Eurico Miranda dos pampas, declarou num conhecido programa de rádio de Porto Alegre que milhares de torcedores do Inter fugiram de meia dúzia de gremistas durante o último Grenal… No dia seguinte, os protestos foram tantos que o irresponsável ex-dirigente foi obrigado a pedir desculpas.

O mesmo ocorreu quando desta faixa racista colocada há muitos anos…

… e retirada rapidamente pelos tricolores.

Não quero dizer que não haja violência entre torcedores e nem que a lei não esteja melhorando a situação. Por exemplo, sou favorável à Lei Seca nos estádios, implantada há poucos meses. Depois dela, vi menos brigas e ninguém mais dependurou-se na minha camiseta do Figueroa berrando com aquele hálito maravilhoso bem em frente a meu nariz que eu era possuidor da coisa mais preciosa do mundo. Poderiam também proibir os cigarros. Já o fizeram no Uruguai. Não incitam nada, só são muito chatos.

Mas o nosso aviãozinho de cada conquista… Que bobagem.

P.S.- Meus exemplos foram inteiramente colorados. Sei, porém, que as torcidas são formadas por pessoas da mesma sociedade e agem igual. Há violência de ambos os lados. Apenas, por preferência clubística, lembro mais as do Grêmio…

Uma perspectiva curiosa da Feira do Livro de Porto Alegre

Nossa querida Feira do Livro – que já passou dos 50 anos – é uma grande reunião de livreiros e instituições em uma praça aberta no centro de Porto Alegre. Vende-se livros, ministram-se palestras, há uma área para a literatura infantil (com livrarias especializadas e teatro), há oficinas de literatura, há as empresas de comunicação que transferem seus estúdios para lá e há o coração da cidade, que segue pulsando não apenas de acordo com a pressa e a violência, mas também pela literatura. Nossa Feira é incomum sob vários aspectos: é gratuita, é realizada em praça aberta, é visitada por milhões de pessoas – não é exagero – e é quase impossível caminhar entre as barracas nos finais de tarde e de semana. Os amigos estão todos lá, conheço gente que vai todos os dias da Feira à Praça da Alfândega, no centro da cidade. Ela começa sempre na última sexta-feira de outubro e acaba por volta do dia 15 de novembro. Este ano vai de 31/10 a 16/11.

Há coisas ruins nela: nos últimos anos, as barracas da Feira tornaram-se uma imensa livraria convencional. Não há diversidade, todos oferecem as mesmices mais vendidas, deixando as novidades escondidas. A Feira que vende livros novos é uma megastore meio nauseante. Vou dar um exemplo: no ano passado, procurei o premiado Nove Noites de Bernardo Carvalho, publicado pela Companhia das Letras. Livro novo, né? Perguntei em mais de 20 barracas e nada. Enchi o saco. Ou seja, todos vendem as mesmas coisas e acabei na Internet. Já Paulo Coelho e nossos best-sellers gaúchos estão em todo lugar. É monótono. Talvez as únicas exceções sejam a Livraria Bamboletras e a Ventura Livros. O resto é shopping. Mas há os sebos e há os tradicionais balaios de saldos e encalhes, são eles que salvam nossa vida e garantem nossa presença na área de vendas. Há que procurar, mas vale a pena.

Nos últimos anos, passei a participar dos eventos periféricos. São carradas de seminários gratuitos com escritores. Sentamo-nos confortavelmente nos bons salões do Santander Cultural, do Clube do Comércio e do Centro Cultural CEEE Erico Verissimo a fim de ouvir os autores. Ao final, podemos fazer perguntas e debater a obra, a vida, a política, o futebol, o amor, outras obras, qualquer coisa. Dependendo do autor, claro, as pessoas saem eufóricas destes encontros. Nos últimos anos, estão sendo apresentados ciclos também gratuitos de filmes baseados em livros em salas próximas (“É tudo free!”, como diria Raul Seixas) e a parte internacional da Feira melhorou muito, com os argentinos e espanhóis entrando com livros e preços bem legais. Mas, quando coloquei lá em cima meu título sobre uma determinada perspectiva, não referia-me às possibilidades culturais e sim a outras, como explico abaixo.

O título diz respeito a um caso pessoal. Alguns meses depois de minha separação, em 2001, eu ainda estava deprimidíssimo e chegou a época da Feira do Livro. Não morava mais com meus filhos e tinha um enorme tempo livre ao qual estava desacostumado — ou acostumado a utilizá-lo apenas para me desesperar ainda mais. Os amigos estavam meio sumidos pois eu sumira. Mas também sumiram porque é normal sumir nestas circunstâncias: sabe-se que o separado contrai uma rara espécie de hanseníase contagiosa. Ele(a) causa medo, algo do gênero se-aconteceu-a-ele(a)-pode-acontecer-a-mim-e-eu-não-quero. Porém, durante a Feira consegui decidi (aleluia!) que ia voltar a aparecer para as pessoas. Afinal, era a Feira! Então ficava na frente do pavilhão de autógrafos por volta das 18h. Sim, ficava ali, como uma prostituta fazendo seu ponto. O extraordinário é que TODOS OS DIAS em que lá fui, surgiram amigos — velhos, novos ou antiqüíssimos — com os quais acabei jantando ou visitando depois. Eles sempre apareceram. Estes amigos traziam com eles outros e, quando me dei conta, estava com uma popularidade tonitruante, se comparada com a imediatamente anterior. Meu telefone voltou a tocar e pude, com mais conforto, fazer de conta que a vida estava voltando ao normal.

Certas experiências acabam por se oferecer gratuitamente aos separados, quando estes não estão inteiramente paralisados pela depressão. Não, não indico a separação como remédio para ninguém, mesmo que se queira fazer um treinamento intensivo de realidade. Ao contrário, admiro muitíssimo mais os casais que se separam por um tempo e depois voltam a seus casamentos em outros termos. É uma atitude de fé no outro e a remodelação deve ser “ecológica para a alma”.

As idas à Feira custou-me menos do que qualquer psiquiatra, menos que qualquer antidepressivo… Foi um período de recuperação e inclusão de novos amigos. Um bom período. A propósito, comprei alguns livros nos balaios, claro…

Ah, e há promessas de cervejas no bar no MARGS.

Enquanto isso, visitantes albaneses chegam a nosso estado…

Abaixo, flagrante de Manuela D`Ávila, a libélula vermelha, junto a Berfran Hoxha, consultor albanês para assuntos ideológicos, e Pável Odonov, consultor financeiro soviético e construtor de estádios de futebol. Como bons comunistas, eles observam deliciados a preparação das vitelas swiftianas que ser-lhe-iam oferecidas a seguir.

Antes, o filho de Enver Hoxha levou seu nariz para conhecer outros representantes da esquerda gaúcha e surpreendeu-se com o estado macilento e acabado de nossa Grande Líder e consultora imobiliária. (Atenção para o modelito maoísta florido).

Voltaremos com mais notícias a qualquer momento.

Feira do Livro de Porto Alegre: Charles Kiefer é o patrono

Sem dúvida, a melhor escolha. Os outros quatro da lista final eram Carlos Urbim, Jane Tutikian, José Clemente Pozenato e Juremir Machado da Silva. Num estado que se ufana de ter muitos autores, mesmo que a esmagadora maioria nunca devesse ter escrito uma linha e nem tenha a compreensão interna dos motivos que os levam a nos torturar com seus escritos, Kiefer é uma cara de trinta livros de vários gêneros, que escreve muito bem e que tem uma oficina de literatura onde se empenha-se e incentiva a formação de novos autores.

Enfim, voltamos a ter um escritor de ampla cultura como patrono. (Já tivemos outro assim? Não lembro, mas espero que sim!) Além de sua produção literária, Charles Kiefer é um sujeito que pode sair por aí falando sobre Shostakovich e Tchékhov, Raymond Carver e Guimarães Rosa, sempre com fluência, amor pelas coisas e vontade que as pessoas se juntem a ele. Uma pessoa rara e uma escolha mais ainda, pois ele — um cara de esquerda e dono de humor bastante ácido — não me parece ser dado à compra de simpatias representativas de canais competentes. Uma boa surpresa.

Um fim-de-semana e quatro filmes / Últimos filmes vistos

Uma das melhores idéias que tivemos foi a de nos associarmos ao Guion Cinemas. Pagamos uma anualidade e entramos “de graça” por um ano. Só neste final de semana, eu e minha mulher gastaríamos mais de cem reais em ingressos. Vimos quatro filmes:

A Questão Humana, de Nicolas Klotz: Apesar de escolher pessimamente seus atores, Klotz é bom diretor. Porém, A Questão Humana é um filme já visto e revisto. É mais uma abordagem européia à enorme culpa que aquele continente tem (ou teria) para com os judeus mortos na Segunda Guerra Mundial. Ora, eu tenho 51 anos e não agüento mais ver o mesmo final em off narrando um holocausto real que envergonha a humanidade, mas do qual já enchi o saco, ainda quando penso que o fato de exibir-se como vítima no Ocidente, deixa os judeus mais populares e livres para fazerem o que bem entendem com os palestinos. Não sou anti-semita, mas aposto que conseguiria financiamento fácil se fosse cineasta e quisesse fazer um filme que denunciasse, por exemplo, os nazistas que tornaram-se fazendeiros na Patagônia. Israel não quer deixar de ser vítima de modo algum. O filme até propõe pequenas variações sobre a mesmice, mas é forçado — aquele psicólogo perturbado é de matar — e não convence.

Quando estou amando, de Xavier Giannoli: Show absoluto de Gerard Depardieu no papel de um decadente cantor de bailes. É incrível que ele tenha cantado todas as canções do filme, sempre com excelente desempenho. Que ator! Galanteador, ele conhece uma jovem corretora de imóveis pela qual se apaixona. Com este enredo de comédia romântica americana, Giannoli, Depardieu e a bela Cécile De France, chegam a um resultado mais dramático e realista do que suas congêneres. Vale a pena ver o trabalho inacreditável de Depardieu, inteiramente à vontade como cantor.

Ao Entardecer, de Lajos Koltai: Um super-elenco — Claire Danes, Vanessa Redgrave, Meryl Streep, Glenn Close, Toni Collette, Natasha Richardson… — num filme que me tocou especialmente por minha experiência com minha mãe, vítima de doença semelhante a que sofre a personagem de Vanessa Redgrave, Ann Grant. É um filme antiquado, muito competente e sensível, com ação no presente (enfermidade de Redgrave) e nos anos 50 (em que Redgrave é vivida por uma irrepreensível Claire Danes). Curiosidade: a atriz Mamie Gummer, que faz o papel de Lila nos anos 50, tem Meryl Streep, sua mãe, como Lila no presente. As cenas dos delírios de Ann Grant velha são maravilhosas e absolutamente realistas. Minha mãe também fala em alguns Harris — o grande amor de Ann — e em bailes do passado. Levemente irritante a presença de Toni Collette no elenco, muito parecida de rosto e nas atitudes com Suélen (ou seria Pâmela?).

Quem disse que é fácil?, de Juan Taratuto: Um homem solteiro, certinho e obsessivo aluga imóvel para uma bonita fotógrafa que não faz a mínima idéia nem de quem seria o pai da criança que carrega na barriga. Filme agradável, que traz Carolina Pelleritti, tão bonita que poderia figurar num Porque hoje é sábado. Destaque para o surpreendente realismo das discussões do casal.

Abaixo, a lista dos últimos filmes que vi.

43 – No Such Thing – No Such Thing – 2001 – EUA – Hal Hartley – 5
42 – Quem disse que é fácil? – ¿Quién dice que es fácil? – 2007 – Argentina / Espanha – Juan Taratuto – 3
41 – Ao Entardecer – Evening – 2007 – EUA / Alemanha – Lajos Koltai – 4
40 – Quando estou amando – Quand j`étais chanteur – 2006 – França – Xavier Giannoli – 3
39 – A Questão Humana – La Question Humaine – 2007 – França – Nicolas Klotz – 1
38 – O Balão Vermelho / O Cavalo Branco – Le Balon Rouge / Crin Blanc: Le Cheval Sauvage – 1956 / 1953 – França – Albert Lamorisse – 4
37 – Meu irmão é filho único – Mio fratello è figlio único – 2007 – Itália – Daniele Luchetti – 4
36 – Amar… Não tem preço – Hors de prix – 2008 – França – Pierre Salvadori – 1
35 – Batman – O Cavaleiro das Trevas – The Dark Knight – 2008 – EUA – Christopher Nolan – 2
34 – Do Outro Lado – Auf der anderen Seite – 2006 – Alemanha / Turquia – Faith Akin – 4
33 – Antes que o diabo saiba que você está morto – Before the devil knows you´re dead – 2007 – EUA – Sydney Lumet – 4
32 – O Banheiro do Papa – El Baño del Papa – 2007 – Uruguai / Brasil / França – Enrique Fernández e César Charlone – 4
31 – O Labirinto do Fauno – El Laberinto del Fauno – 2006 – Espanha / EUA / México – Guillermo del Toro – 3
30 – Jornada da Alma – Prendimi L`Anima – 2003 – França / Itália – Roberto Faenza – 4
29 – Bella – Bella – 2006 – México / EUA – Alejandro Gomez Monteverde – 3
28 – Control – Control – 2007 – Inglaterra – Anton Corbijn – 4
27 – Longe dela – Away from her – 2006 – Canadá – Sarah Polley – 3
26 – A Outra – The Other Boleyn Girl – 2008 – Grã-Bretanha – Justin Chadwick – 2
25 – Sex and the City – Sex and the City – 2008 – EUA – Michael Patrick King – 3
24 – Bloom – Bloom – 2003 – Irlanda – Sean Walsh – 3
23 – Confiança – Trust – 1990 – EUA / Inglaterra – Hal Hartley – 4
22 – A Vida é um Milagre – Zivot je cudo – 2004 – Bósnia / França – Emir Kusturica – 5

Significado aproximado das notas:

5 – Não deixe de ver
4 – Muito bom
3 – Vale a tentativa
2 – Medí­ocre
1 – Uma bomba
0 – Além de bomba, mal intencionado.

Quando as pernas (todas) e os decotes (nem todos) desaparecem

Tom Jobim cantava as águas de março que fechariam nossos verões. Eu mentiria se as cantasse em Porto Alegre, pois março e abril foram quentes e parcos em chuvas. Foi uma seqüência de dias lindos, os tais dias lindos do mais puro azul que Drummond dizia acontecerem na segunda metade de abril.

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.

TOM JOBIM em Águas de Março – Grande autor, péssimo meteorologista.

Acontece em abril, nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins meteorológicos não se lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento. Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos. E aboliram, sem providências drásticas, o estatuto do calor.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE em Os Dias Lindos – Grande autor, razoável meteorologista

Drummond tem razão, o estatuto do calor está abolido, mas no segundo dia de maio caiu o mundo em forma de chuva. Dirão vocês que não importa, que Drummond é um dos picos da evolução humana e que a culpa deve ser do aquecimento global. OK, sou simpático a qualquer argumentação que enalteça o itabirano, porém lamento dizer que minha contestação aos dias lindos vai além. Saúdo-os ao mesmo tempo que lamento as perdas.

Hoje fui ao centro da cidade. Acostumei-me a caminhar pelas ruas quentes vendo as pernas e decotes das gaúchas. Ficava feliz com a crescente e elegante ousadia daquelas que mostram sua boa forma, suas belas formas, seus bronzeados e seus seios remodelados ou originais. Também apreciava a classe das mulheres que exibiam o que tinham de melhor, escondendo sob panos coloridos o indesejável, o inevitável, o irremediável ou o inexorável. Sou um admirador das artes femininas. Só que hoje o panorama era outro. Os decotes estavam mais fechados, as pernas haviam quase sumido e o colorido das roupas tendiam à diluição. Viram? O dia lindo e seus dezoito graus matinais derrubaram a libido do caminhante.

Mas quem viverá seu qüinquagésimo inverno nesta cidade, sabe que este é um fenômeno sazonal e logo nós, os homens, estas criaturas tão visuais para com o outro sexo, iremos nos readaptar. Ficaremos excitados apenas com um belo rosto e pelo prenúncio de um tornozelo. Conheço alguns que enlouquecerão por um mero salto alto. Pior, há os que abraçarão suas mulheres e amigas apenas para sentirem o aroma do perfume que acompanhará o ar expulso de suas peles pelo abraço. Voltaremos a adivinhar as formas sob as roupas e teremos vontade de levar em nossos carros as mulheres encolhidas nas paradas de ônibus. (Tratar-se-á da mais desinteressada e solidária gentileza.)

Drummond esquece-se de dizer que os dias lindos são o prenúncio de uma época em que o espírito vencerá a observação, em que a cogitação precederá o fato, em que os cobertores serão os companheiros mais adequados a quaisquer primícias e que serão jogados longe apenas durante os clímax. Os dias lindos nos fazem lembrar que, daqui seis meses, haverá uma primavera onde as flores, os plátanos, os guapuruvus e as mulheres reapararecerão. Deslumbrantes.

Porém, o leitor atento que há dentro de mim bate em meu ombro a fim de chamar minha atenção. Diz ele que Drummond vivia no Rio de Janeiro, que lá as pernas e decotes nunca desaparecem, que este é um fenômeno gaúcho, subtropical e que não tenho razão em reclamar do poeta. Acabo esta crônica fazendo tamborilar os dedos da mão direita sobre a mesa. Um por um, repetidamente. É o movimento característico da contrariedade do vencido.