(Escrito há dois anos. Discretamente atualizado.)
A entrevistadora, que presumo recém chegada à menopausa, entra em minha casa a fim de me entrevistar para o Programa Hoje é Meu Dia. O programa apresenta aniversariantes e hoje é o caso. Eu tinha preenchido uma ficha candidatando-me ao programa. Improvisa-se um palquinho em minha casa. Ficamos sentados em frente a meus livros. Desculpo-me pela bagunça, mas o câmera diz para deixar assim, pois o cenário tem personalidade. Sentamos lado a lado, eu e a apresentadora.
P (à guisa de introdução) – Nosso entrevistado de hoje, Milton Ribeiro, está completando 53 anos. É um dia feliz! Ele está muito bem para sua idade. Se excetuarmos o Viagra ou o Cialis, meus caros espectadores, Milton não usa medicamentos de uso contínuo, o que demonstra que ele é mais um prodígio de boa saúde física encontrado por nosso prestigiado programa. Saúde física e mental, conforme vocês poderão comprovar pelo bom humor de nosso entrevistado.
P – Como você mantém esta atitude positiva perante a vida?
R – Bem, como a vida não tem mesmo sentido, logo percebi que poderia optar por várias posturas, todas equivalentes. Poderia me desesperar a cada vicissitude, ou rir delas; escolhi rir. Poderia roubar e matar, mas como prefiro ser bem aceito, escolhi ser bom. Acho que poderia ser bem mais imbecil, porém gosto de cultura e de me informar e aí está um sério problema. É difícil ser pra cima e informado ao mesmo tempo, mas tenho tentado.
P – Entendo. Mas o Sr. deve tentar mais. Confiamos no Sr.!!! Ho, ho, ho!
R – Estou na luta.
P – O Sr. nunca ficou deprimido, certo?
R – Olha, houve episódios em que quis me matar, principalmente durante minha separação, mas digamos que o grande bobo que há em mim emergiu novamente após uns meses e voltei a ficar assim.
P – Nada grave, portanto.
R – Sem dúvida, nada grave. Foram apenas seis meses em que me deprimi. Minha atitude positiva perante a vida fez com que eu me livrasse de todo o insuportável estresse dando de presente todo o pouco que construíra e hoje estou aqui, em perfeita forma.
P – Você então possui uma disposição natural para a felicidade?
R – Sem dúvida. Eu nasci daltônico, estrábico, tenho pés chatos, minha voz é horrível, sou meio cambota, estou engordando e perdendo cabelo, mas só pensei nisso agora. Prova de que sou feliz e mais: de que a felicidade é proteger-se de si mesmo. É o que faço. Sempre.
P – E então? O Sr. é a prova de que as pessoas não devem desistir de seus sonhos?
R – Hum… Sem dúvida.
P – E quais são seus sonhos hoje?
R – Comprar um Karmann-Ghia, ler livros que não me encham o saco, fugir de ver TV, esquecer os jornais da grande imprensa e a música ambiente, reentrar em forma, ouvir música…
P – Vejam, meus amigos, são coisas simples! A felicidade ESTÁ nas coisas simples.
R – Sim, parecem simples, mas tem muito mais…
P – Desculpe interromper. Acho que nossos telespectadores querem saber como você chegou aos 53 anos sem tomar medicação alguma.
R – Eu ia vivendo numa boa até que fui ao cardiologista. Fui porque quis, imotivadamente. Nunca tive nada. Mas descobri que meu colesterol estava batendo nos 300.
P – Ho, ho, ho. Que coisa!
R – Pois é. Aí comecei a tomar um Lípitor antes de dormir e a coisa caiu para 100.
P – Sensacional!
R – Sim, eu sempre obedeci os médicos direitinho.
P – E então, tudo resolvido!
R – Claro, como eu sou alguém naturalmente feliz, ignorava que podia ser perigoso transformar o próprio sangue em água.
P – E então?
R – Hoje tomo meio comprimido e a coisa vai bem.
P – Viram? Tudo se resolve com bom senso, ho, ho, ho. E o peso?
R – Eu adquiri 10 quilos nos últimos trinta anos.
P – Só?
R – Sim, se seguir assim, viverei o suficiente para experimentar a obesidade mórbida.
P – Ho, ho, ho. Não é maravilhoso? E você não acha que poderia manter o peso atual?
R – Não.
P – Mas por quê?
R – Olha, eu tomei Sibutramina de 15 mg por dia e tinha a mesma fome incontrolável. Desisti. Quando chega ao final da tarde, penso tanto em chocolate que até esqueço de desejar a morte súbita de algumas pessoas.
P – Nada de maus sentimentos, nada de maus sentimentos! Diria até que sua chocolatria, ho, ho, ho, é muito boa para afastar maus sentimentos.
R – Sim. A chocolatria me salva deles e passo a sonhar apenas com Alpinos e que tais.
P – Ho, ho, ho. Você tem muitos amigos?
R – Sim, esta é uma parte boa da minha vida.
P – Maravilha, uma vida social intensa. E a vida sexual?
R – Olha, quando a coisa começou a falhar fui a um médico que garantiu que meu único problema era mental.
P – Um problema mental! Que bom que não era grave!
R – Ele me disse que se eu me preocupasse muito com os problemas, geraria um aumento de adrenalina no sangue e que esta adrenalina faria com que uma válvula não funcionasse bem.
P – Apenas um problema hidráulico!
R – Sim, claro. Se não vedar bem, o sangue sai. É como uma Hydra estragada.
P – Hidra, como assim?
R – Hydra, uma válvula que se usa em privadas.
P – Ho, ho, ho. Perfeito.
R – Aí, ele me perguntou se minha vida era exageradamente problemática, pois o estresse causa a produção em excesso de adrenalina.
R – E você?
P – Eu respondi que na época estava com um advogado, buscando a obter a guarda de minha filha.
P – Ho, ho, ho. E então?
R – Ele se apavorou. Pois do jeito que minha situação se encontrava, teria dificuldades de fazer uma boa vedação. O sangue iria embora e o pau…
P – Ho, ho, ho. Estamos entrevistando Milton Ribeiro e são 19h43 minutos em Porto Alegre.
R – …
P – E… Bem, isso significa que se você não tiver grandes preocupações, a válvula funciona e sua vida sexual também?
R – Sem dúvida! Pois não tenho problemas físicos, só os mentais causados pela adrenalina.
P – Então pode ser solucionado!
R – Claro. Foi por isso que fiz o seguinte raciocínio: como não sou rico e, portanto, meus problemas não são de fácil solução, deveria considerar seriamente a necessidade de tornar-me uma besta quadrada, um bobo alegre.
P – E conseguiu?
R – Venho tentando.
P – E será que é mesmo necessário tornar-se um bobo alegre…? Ho, ho, ho.
R – Não, mas é uma questão de prevenção. E, dentro de minha estratégia, tenho que seguir esta trilha, entende? Sou obrigado.
P – Maravilhoso!
R – Mas há desvios que atrapalham.
P – Quais?
R – Eu ligo a TV de manhã e sinto aquela adrenalina voltando. Ou dão péssimas notícias ou é vulgar pra caralho.
P – Pra car… ho, ho, ho! A TV pode ser boa, Sr. Milton, pode ser sim!
R – Sim, porém há sempre mais. Por exemplo, vou ler um bom livro, mas este me dá SEMPRE uma visão por demais realista, ouço uma bela música mas ela é SEMPRE meio trágica.
P – Ora, o mundo não é bom para os intelectuais. Por isso, os cientistas inventaram o Viagra. Só para vocês, conforme o Sr. demonstra.
R – Você está ficando irritada e isto não é bom… Lembre-se que não devo me estressar. É mesmo um remédio para intelectuais?
P – Deve ser!
R – É que desconheço pessoas felizes. Não apenas intelectuais. Todos são infelizes, mesmo que racionalizem. Todos morrerão.
P – Vocês são muito desagradáveis.
R – Como?
P – Desagradáveis. Os intelectuais gostam de ficar tristes e de dizer! Fazem dramas.
R – E você é feliz?
P – O entrevistado é você. Não interessa o que eu penso. Nem se penso.
R – Você pensa. Só que mal. Pensa que as pessoas possam ser felizes e satisfeitas quando ninguém é assim. A gente é bom ou ruim, interessante ou desinteressante, branco ou preto, engraçado ou sisudo, sociável ou não, mas é sempre insatisfeito.
P – Você não serve para nosso programa.
Fala para o câmera:
P – Ele não irá ao ar no “Hoje é meu Dia”. Procuraremos outra pessoa. Ou um ator contratado, talvez.
R – OK, não posso me estressar.
P – Passe bem. Vocês não têm nada a acrescentar!
R – Vocês?
P – Vocês, os metidos, os idiotas. Imagina falar mal da TV! Na TV! Passe bem!
Ela levanta e faz um sinal ao câmera. Ele faz tsc, tsc, tsc, e diz escolhem cada abobado, acho que não leram a ficha… A entrevistadora manda o câmera apressar-se.
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