Olá! Mais um mês chega ao final – já estamos em abril, é inacreditável – e com isso temos a lista dos livros mais vendidos da Bamboletras em março!
1 – Faróis do Rio Grande do Sul, de Cláudio Tarta.
2 – A Vida Disfarçada de Contos, de Sandro Farias.
3 – Violeta, de Isabel Allende.
4 – Dicionário de Porto-Alegrês, de Luís Augusto Fischer.
5 – Os Supridores, de José Falero.
6 – O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório.
7 – Tudo é Rio, de Carla Madeira
8 – Mas em que Mundo tu Vive, de José Falero.
9 – Banzeiro Òkotó, de Eliane Brum.
10 – Marrom e Amarelo, de Paulo Scott.
1. Imaginar o Amanhã, de Abrão Slavutzky e Edson Luiz André de Souza (Diadorim)
2. Lula: Biografia – Volume 1, de Fernando Morais (Companhia das Letras)
3. Aquarela Brasileira (Volume 1), de Juarez Fonseca (Diadorim)
4. Mas em que mundo tu vive?, de José Falero (Todavia)
5. Anos de Chumbo e outros contos, de Chico Buarque (Companhia das Letras)
6. Santa Sede: Outros Presentes (Volume 12), de Rubem Penz, Org. (Santa Sede Editorial)
7. Os Supridores, de José Falero (Todavia)
8. Drogas para Adultos, de Carl Hart (Zahar)
9. Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo, de Eliane Brum (Companhia das Letras)
10. Um Preço Muito Alto, de Carl Hart (Zahar)
Vem conferir estas obras (e muito mais!) aqui na Bamboletras!
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Nossas sugestões sempre trazem bons livros, mas raramente foram tão variadas. Um romance gaúcho que tende ao fantástico, um documento incontornável sobre a devastação amazônica e mais contos de Coetzee. Pô, tudo heterogêneo, tendo por ligação a alta qualidade!
Boa semana com boas leituras!
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Eliane Brum mescla relato pessoal e investigação jornalística para escrever um livro de denúncia e em defesa da Amazônia, lugar que adotou como casa e de cuja luta pela sobrevivência participa ativamente. Escritora, jornalista e documentarista, Eliane Brum faz um mergulho profundo nas múltiplas realidades da maior floresta tropical do planeta. Com quase 35 anos de experiência como repórter, há mais de vinte ela percorre diferentes Amazônias. Em 2017, adotou a floresta como casa ao se mudar de São Paulo para Altamira, epicentro de destruição e uma das mais violentas cidades do Brasil desde que a hidrelétrica de Belo Monte foi implantada. A partir de rigorosa pesquisa, Brum denuncia a escalada de devastação que leva a floresta aceleradamente a um ponto de não retorno. E vai mais além ao refletir sobre o impacto das ações da minoria dominante que levaram o mundo ao colapso climático e à sexta extinção em massa de espécies. Neste percurso às vezes fascinante, às vezes aterrador, a autora cruza com vários seres da floresta e mostra como raça, classe e gênero estão implicados no destino da Amazônia e do planeta.
Sete contos sobre o desejo. Ou sobre como lidamos com o desejo dentro dos limites da nossa cultura. Nesta surpreendente incursão pela forma breve, o prêmio Nobel J. M. Coetzee nos apresenta um conjunto de narrativas de brilho perturbador. Num dos textos, uma mulher se sente diariamente ameaçada por um cão. Em outro, uma escritora só encontra conforto ao cuidar de gatos abandonados. O título Contos morais poderia remeter a um diálogo com uma convenção da fábula clássica: o uso de bichos em histórias que enfatizam aspectos virtuosos da conduta humana. Como se trata de J. M. Coetzee, no entanto, nada é previsível. Para quem conhece a obra deste autor, a um só tempo fácil e difícil, moderna e pós-moderna, não é surpresa que a ideia de moralidade seja subvertida por uma ironia constante, feita de contradições presentes inclusive no estilo da escrita. Assim, se a linguagem é transparente e direta, a complexidade das ideias que expressa gera um curto-circuito nas certezas de quem lê. Os contos aqui não oferecem nenhuma lição. Das contradições entre natureza e cultura, Coetzee faz uma obra sobre todos nós.
Neste romance de Gerbase, Hugo, um jovem cineasta do interior do Rio Grande do Sul, há pouco premiado em importante festival na França, vem a Porto Alegre para apresentar o projeto de seu novo longa-metragem num encontro internacional de produtores. O evento acontece num prédio que, cem anos atrás, foi o hotel mais luxuoso da cidade. Desde sua chegada, Hugo é envolvido por uma atmosfera surreal e conhece personagens tão solícitos quanto estranhos: uma recepcionista que parece ter saído de um filme de espionagem dos anos 1960, um produtor cinematográfico, que muda de aparência de acordo com o restaurante que frequenta, e sua bela e misteriosa secretária. Por três dias, Hugo tenta seguir a programação do encontro, mas uma série de eventos bizarros, acompanhados de sonhos perturbadores, levam-no a questionar o que pretende filmar no futuro e que destino dar à própria vida.
“A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada”
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço.
Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?
Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.
Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.
O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.
Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçdo porque um dia ela acaba.”
Ah, as listas de fim de ano… Como suportá-las? E como não lê-las, nem que seja para se irritar com a ausência do filme querido ou com a presença daquilo que se detestou visceralmente? Como resultado de ampla discussão no ambiente Sul21, chegamos a dez livros, mas, devido aos muitos e exaltados apartes, não obtivemos chegar ao mesmo número de filmes. Resultado: são dez livros e onze filmes. Os filmes foram comparados e colocados em ordem de preferência. É a cultura pública e comum de nosso tempo. Já os livros não foram lidos por todos, o que tornou a discussão menos drástica.
Aliás, na lista de livros, tivemos a colaboração de Lu Vilella, da Bamboletras, que não apenas fez sua lista como repassou a lista dos livros mais vendidos de sua livraria, talvez a de público “mais literário” de Porto Alegre. E, nos filmes, algo de estranho: contrariamente aos últimos anos e em contrariedade à legenda da foto abaixo, temos onze filmes consistentemente bons.
Além de Lu Vilella, colaboraram os jornalistas Iuri Müller e Débora Fogliatto, além do historiador Éder Silveira e diversos sites de editoras, dos quais utilizamos textos.
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Os onze melhores filmes de 2013:
~ 1 ~
Tabu
Tabu é grande cinema. E esta afirmativa vem carregada de significados. Pois são as imagens da segunda parte do filme, “O Paraíso Perdido” — trecho com som, mas sem diálogos –, que dão sentido a esta elogiadíssima obra do português Miguel Gomes. Aliás, a seção “O Paraíso Perdido” é uma arrebatadora reconstrução da memória de tempos idos. Tabu foi filmado em glorioso preto e branco e conta uma história de amor. Dele emana um charme passadista, mas sem ranço, devido a uma estrutura narrativa lotada de artifícios inteligentes e de bom gosto. Tudo em Tabu trabalha para a poesia e para a história. Um filme imperdível.
~ 2 ~
Holy Motors
Leos Carax filma pouco, infelizmente. Seus Sangue Ruim (1986) e Os Amantes de Pont-Neuf (1991) são filmes de referência para os cinéfilos. Holy Motors (2012) não é uma obra destinada àqueles que desejam uma história linear e convencional. O Sr. Oscar — vivido por Denis Lavant, ator onipresente nos filmes de Carax — tem um estranho trabalho. Anda de limusine por Paris, recebendo ordens para atuar em diversos papéis que lhe são passados por uma estranha organização. E percorre a cidade cumprindo uma série de compromissos sem nexo entre si, onde humor e drama não estão ausentes. Há uma cena de dança, outra em esgotos e cemitérios, há outra em o Sr. Oscar morre de forma tocante (e subitamente acorda para o próximo compromisso), outra é um crime e assim vamos visitando diversos gêneros cinematográficos que deságuam numa intrigante cena final, onde várias limusines comentam que o mundo não quer mais emoção, no que parece uma crítica ao cinema atual. Quem é sua plateia? Onde estão as câmeras? Qual sua verdadeira identidade?
~ 3 ~
A Bela que Dorme
A Bela que Dorme, o último filme de Marco Bellocchio, tem como eixo narrativo a história real de Eluana Englaro, italiana que passou vinte anos vivendo de maneira artificial e gerou enorme debate sobre a eutanásia no país. Assim, diversos personagens e situações convergem para o drama de Eluana – como o senador que se vê em crise com a política e se posiciona de forma contrária ao seu partido sobre a questão, a filha religiosa do político que se apaixona por um manifestante, e a suicida que busca as janelas de um hospital italiano para pôr fim à vida. Em A Bela que Dorme, estão contidos os temas pendentes da Itália de hoje e o direito à salvação – da ou pela morte – dos seus taciturnos personagens. (Por Iuri Müller.)
~ 4 ~
O Cavalo de Turim
O que Béla Tarr propõe é uma experiência sensorial e semântica inteiramente distinta do que é possível em qualquer outro gênero artístico. O jogo que o diretor estabelece com o tempo apenas é possível no cinema, talvez no teatro. O Cavalo de Turim mostra seis dias de dois personagens — pai e filha — que vivem numa casa de pedra na zona rural da Hungria entre a aridez, o vento e o frio constantes. Falta tudo, tudo é monotonia e tudo é vida, dor e trabalho. (Coincidência, não?) Eles só têm batatas para comer, têm também um poço minguante, um destilado que deve ser parecido com a vodka, creio, e um cavalo velho e doente. Seus dias são iguais, com poucas variações, sempre no aguardo de condições melhores. Talvez a melhor descrição de O Cavalo de Turim seja a de um filme de cenas quase iguais — mas sempre filmadas de forma diferente — sobre a pesada rotina de vidas sacrificadas. Tarr vai curiosamente acumulando tempo sobre tempo e sua insistência acaba por mostrar a força e o cansaço, equilibrando-se entre a tão somente sobrevivência e a provável aniquilação, numa compassiva melancolia da resistência. Duro, mas imperdível.
~ 5 ~
O Som ao Redor
Filmaço. A narrativa é um mosaico de histórias de moradores de uma rua de classe média do Recife. Nela, reside o empresário que expandiu seus negócios na base da especulação imobiliária — e que antes era um senhor de engenho — , o filho temeroso da violência urbana, os dois netos — um que trabalha alugando os apartamentos da família e outro um estudante que arromba carros –, outra família gerida por uma mãe estressada que não suporta os latidos de um cão de guarda. Ou seja, pessoas rotineiras, comuns. Então, o que faz de O Som ao Redor um filme tão significativo e bom? Ora, os excelentes diálogos, as boas atuações e a ousadia e inventividade do diretor Kleber Mendonça, que fez uma inteligente abordagem de alguns temas como o preconceito de classe, a especulação imobiliária, a violência, o racismo estilo Brasil, o consumismo. O Som ao Redor não é um filme experimental, ao contrário, ele abre portas para o diálogo com o público, ao estabelecer um corpo-a-corpo com seu tempo histórico. Filmaço.
~ 6 ~
Amor
Justamente elogiado e premiadíssimo — a fim de dar chance a outras produções, Michael Haneke pediu para ficar de fora de algumas disputas após vencer Cannes e o Globo de Ouro — , Amor é um retrato realista e digno da velhice. É a história de Anne (Emmanuelle Riva, 85 anos, a mais velha indicada ao Oscar de melhor atriz) e Georges (Jean-Louis Trintignant, 82), dois professores de música aposentados que vivem tranquilamente em Paris. O casal faz compras, vai a concertos, cozinham, tomam café da manhã e convivem após décadas de amizade, cumplicidade e amor. É quando Anne tem um AVC, ficando com um lado do corpo paralisado e precisará de auxílio. O filme é extraordinário. Michael Haneke é um dos raros diretores contemporâneos que têm acumulado filmes relevantes, nada esquecíveis. Código Desconhecido, Caché, Violência Gratuita, A Professora de Piano e A Fita Branca são claras comprovações de que este austríaco veio para marcar deixar sua marca no cinema do início deste século.
~ 7 ~
A Caça
Thomas Vinterberg é um grande cineasta. Talvez sua produção seja superior — qualitativamente — a de seu conterrâneo e ex-companheiro de Dogma 95 Lars von Trier. Penso até que Vinterberg seja o que von Trier pretende ser. O diretor tem duas obras-primas em seu currículo: Festa de Família (1998) e Submarino (2010). Neste A Caça, Lucas (Mads Mikkelsen) trabalha em uma creche. Boa praça e amigo de todos, ele tenta reconstruir a vida após um divórcio complicado, no qual perdeu a guarda do filho. Tudo corre bem até que, um dia, a pequena Klara (Annika Wedderkopp), de apenas cinco anos, diz à diretora da creche que Lucas lhe mostrou suas partes íntimas. Klara na verdade não tem noção do que está dizendo, apenas quer se vingar por se sentir rejeitada em uma paixão infantil que nutre por Lucas. A acusação logo faz com que ele seja afastado do trabalho e, mesmo sem que haja algum tipo de comprovação, seja perseguido pelos habitantes da cidade em que vive.
~ 8 ~
Um Toque de Pecado
Um filme extraordinário. Quatro histórias que dialogam entre si, todas elas tiradas da crônica policial, retratando a violência e a mudança de valores na China. Há a cena do funcionário que tenta denunciar a corrupção em sua vila — o resultado é que toma uma surra espetacular e acaba decidindo pegar em armas. Há a cena da moça que, confundida com uma prostituta, recusa os avanços de um “cliente” e é por ele esbofeteada com um maço de cédulas de dinheiro. Pois bem, o capitalismo toma conta do país e o simbolismo de confundir e esbofetear alguém com dinheiro é claro. Aqui, Jia Zhang-Ke faz seu filme mais universal, abordando a criminalidade de um país emergente, misturando gêneros — o policial, a ação taiwanesa, o filme de samurai — para construir uma crônica polifônica da China atual, que é, na verdade, um faroeste.
(Só encontramos o trailer do filme com legendas em inglês. Pedimos desculpas).
~ 9 ~
Azul é a Cor mais Quente
Primeiro filme baseado em quadrinhos a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, Azul é a cor mais quente narra a história de amadurecimento, amor e sofrimento da jovem Adèle (chamada Clementine no livro). No início da trama, ela é uma adolescente insegura que encontra uma menina de cabelos azuis e, ao se aproximar dela, entra em conflito com sua própria ideia de sexualidade, com sua família e colegas. O relacionamento de Adèle e Emma, intenso e conturbado, é interpretado de forma realista e sensível pelas atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, que também foram reconhecidas com o prêmio de Cannes. As cenas de sexo explícito entre as duas garotas causaram polêmica e geraram críticas da autora da história original ao diretor Abdellatif Kechiche, chegando a classificá-las como pornográficas e a dizer que foram claramente pensadas do ponto de vista de um homem heterossexual. Apesar das pesadas críticas, o coração da HQ de Julie Maroh está no filme: o retrato de uma garota apaixonada lidando com a sua sexualidade, suas angústias e a intolerância da sociedade. (Por Débora Fogliatto).
~ 10 ~
Tatuagem
Com Irandhir Santos em dia ainda mais brilhante do que em “A Febre do Rato” e “O Som ao Redor”, Tatuagem tem na desenvoltura dos seus atores o motivo para os maiores elogios. Ambientado em Recife, o filme de Hilton Lacerda narra a história de amor entre o líder do grupo de teatro “Chão de Estrelas” e um jovem soldado do Exército brasileiro – durante a ditadura militar. A nudez onipresente, a forma com que a dramaturgia toma conta do enredo e as cores do insólito relacionamento (entre cálido, inocente e impossível) fazem com que o encantamento permaneça firme durante os 110 minutos. (Por Iuri Müller).
~ 11 ~
Depois de Maio
Em 1971, nos arredores de Paris, Gilles é um jovem estudante imerso na atmosfera criativa e política da época. Como os seus colegas, ele está dividido entre o investimento radical na luta política e a realização de desejos pessoais. Entre descobertas amorosas e artísticas, sua busca o leva à Itália e ao Reino Unido, onde ele deverá tomar decisões essenciais ao resto de sua vida. Antes de ser o painel de uma geração, Depois de Maio é um filme sobre escolhas. Na primeira cena, um professor diz que entre céu e inferno existe a vida. Na cena seguinte, Gilles já está panfleteando na frente da escola, lembrando que a manifestação foi proibida pela polícia. A manifestação e uma batalha campal acontecem. Os policiais batem a valer. Para onde ir? Belo filme de Olivier Assayas.
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E os dez livros, em ordem alfabética:
Antologia da literatura fantástica,
de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvana Ocampo
Numa noite de 1937, ao conversar sobre ficções fantásticas, três amigos – Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo – resolveram criar uma antologia com seus autores preferidos. Três anos depois, foi lançada a Antologia da literatura fantástica, consolidada em sua edição definitiva 25 anos depois, obtendo enorme sucesso não só de estima como de público. Do filósofo Martin Buber ao explorador Richard Burton, passando pela tradição dos contos orientais, além de Cortázar, Kafka, Cocteau, Joyce, Wells e Rabelais, são 75 histórias – não só contos, como fragmentos de romance e peças de teatro – que nos apresentam uma literatura marcada pelo imaginário e por um modo diferente de representar a realidade. (Do site da Cosac Naify).
Assim na terra,
de Luiz Sérgio Metz
A longa viagem de Luiz Sérgio Metz pelo sul – viagem talvez de toda vida, mas certamente de um romance – foi publicada ainda em 1995, poucos meses antes da morte do escritor. Editado outra vez em 2013, pela Cosac Naify, Assim na terra pode agora ir além dos elogios da crítica especializada, algo que de alguma maneira já havia conseguido na época do lançamento, para então alcançar os leitores que o romance não teve na década em que foi pensado e escrito. Em Assim na terra, desfilam ideias e escritores, aparecem modernos tratores e seres perdidos no caminho, surgem as transformações que impactam no ambiente rural e no homem. Romance distinto de quase todos os outros, Assim na terra reaparece para os leitores quase vinte anos depois – com a impressão de que ali estão palavras novas, frases que ainda não haviam sido lidas. (Por Iuri Müller).
Barba ensopada de sangue,
de Daniel Galera
Neste quarto romance de Daniel Galera, um professor de educação física busca refúgio em Garopaba, um pequeno balneário de Santa Catarina, após a morte do pai. O protagonista (cujo nome não conhecemos) se afasta da relação conturbada com os outros membros da família e mergulha em um isolamento geográfico e psicológico. Ao mesmo tempo, ele empreende a busca pela verdade no caso da morte do avô, o misterioso Gaudério, que teria sido assassinado décadas antes na mesma Garopaba, na época apenas uma vila de pescadores. Sempre acompanhado por Beta, cadela do falecido pai, o professor esquadrinha as lacunas do pouco que lhe é revelado, a contragosto, pelos moradores mais antigos da cidade. Portador de uma condição neurológica congênita que o obriga a interagir com as outras pessoas de modo peculiar, o professor estabelece relações com alguns moradores: uma garçonete e seu filho pequeno, os alunos da natação, um budista histriônico, a secretária de uma agência turística de passeios. Aos poucos, ele vai reunindo as peças que talvez lhe permitam entender melhor a própria história. (Do site da Companhia das Letras).
Barreira,
de Amilcar Bettega
Fátima mostra Istambul através da janela, como que alcançando a cidade com a mão. Aponta o Haliç, os bairros de Fener e Balat, identificáveis apenas através das luzes. Quem observa do outro lado da câmera é Ibrahim, pai de Fátima, que está em Porto Alegre. Ele logo viajará a Turquia, mas Fátima não estará no aeroporto e tampouco na pensão onde costumava se hospedar. Barreira, primeiro romance do escritor gaúcho Amilcar Bettega, começa com o desespero de Ibrahim, mas se esparrama pelas ruas de Istambul, chega a Paris e não para de encontrar situações mal resolvidas. “Eu queria um livro intencionalmente construído a partir de e entre buracos e pontos obscuros, de maneira que ao final fosse impossível ter-se uma versão incontestável daquilo que o romance contava”, disse o autor sobre o livro que integra a coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras. (Por Iuri Müller).
Divórcio,
de Ricardo Lísias
O ponto de partida de Divórcio é bastante simples: com cerca de quatro meses de casamento, Ricardo Lísias encontra o diário de sua esposa. Ao abri-lo, lê uma passagem e fica estarrecido. A mulher com quem acabara de se casar, uma jornalista da área de cultura e critica de cinema, se revelava nas páginas de seu diário uma fria arrivista, que via Ricardo com desprezo. Afinal, apesar de ser um escritor promissor, ele passava os seus dias lendo e escrevendo e não possuía grandes ambições materiais. A partir dessa descoberta, acompanhamos pari passu a luta do autor para se recuperar e voltar a escrever e a desconstrução que ele opera do lugar de onde a sua ex-esposa saiu, a redação dos grandes jornais e revistas do país, a partir de um retrato duro de seus atores, os jornalistas. (Por Éder Silveira)
Essa coisa brilhante que é a chuva,
de Cíntia Moskovich
Depois de lançar Por que sou gorda, mamãe?, um dos mais apreciados romances brasileiros em 2006, Cíntia Moscovich apresenta ao público Essa coisa brilhante que é a chuva, volume que reúne contos inéditos escritos ao longo de seis anos e que teve o patrocínio de Petrobras Cultural e do Ministério da Cultura. Com muita originalidade e impressionante sensibilidade, Cíntia Moscovich aborda temas corriqueiros e inevitáveis: o ciúme do filho pela mãe, a adoção de um cachorro abandonado, um jovem casal às voltas com uma reforma na casa. Valendo-se de muito humor — e da tragédia sempre correspondente —, a autora conseguiu uma reunião de contos tão coesos, e tão divertidos, que mais parecem uma só narrativa, tornando a leitura uma experiência única. (Do site da editora Record).
Poética,
de Ana Cristina César
Ana Cristina Cesar deixou em sua breve passagem pela literatura brasileira do século XX uma marca indelével. Tornou-se um dos mais importantes representantes da poesia marginal que florescia na década de 1970, justamente pela singularidade que a distanciava das “leis do grupo”. Criou uma dicção muito própria, que conjugava a prosa e a poesia, o pop e a alta literatura, o íntimo e o universal, o masculino e o feminino – pois a mulher moderna e liberta, capaz de falar abertamente de seu corpo e de sua sexualidade, derramava-se numa delicadeza que podia conflitar, na visão dos desavisados, com o feminismo enérgico, característico da época. Entre fragmentos de diário, cartas fictícias, cadernos de viagem, sumários arrojados, textos em prosa e poemas líricos, Ana Cristina fascinava e seduzia seus interlocutores, num permanente jogo de velar e desvelar. Cenas de abril,Correspondência completa, Luvas de pelica, A teus pés, Inéditos e dispersos, Antigos e soltos: livros fora de catálogo há décadas estão agora novamente disponíveis ao público leitor, enriquecidos por uma seção de poemas inéditos, um posfácio de Viviana Bosi e um farto apêndice. A curadoria editorial e a apresentação couberam ao também poeta, grande amigo e depositário, por muitos anos, dos escritos da carioca, Armando Freitas Filho. Dos volumes independentes do começo da carreira aos livros póstumos, a obra da musa da poesia marginal – reunida pela primeira vez em volume único – ainda se abre, passados trinta anos de sua morte, a leituras sem fim. (Do site da Companhia das Letras).
Toda poesia,
de Paulo Leminski
Paulo Leminski foi corajoso o bastante para se equilibrar entre duas enormes onstruções que rivalizavam na década de 1970, quando publicava seus primeiros versos: a poesia concreta, de feição mais erudita e superinformada, e a lírica que florescia entre os jovens de vinte e poucos anos da chamada “geração mimeógrafo”. Ao conciliar a rigidez da construção formal e o mais genuíno coloquialismo, o autor praticou ao longo de sua vida um jogo de gato e rato com leitores e críticos. Se por um lado tinha pleno conhecimento do que se produzira de melhor na poesia – do Ocidente e do Oriente -, por outro parecia comprazer-se em mostrar um “à vontade” que não raro beirava o improviso, dando um nó na cabeça dos mais conservadores. Pura artimanha de um poeta consciente e dotado das melhores ferramentas para escrever versos. Entre sua estreia na poesia, em 1976, e sua morte, em 1989, a poucos meses de completar 45 anos, Leminski iria ocupar uma zona fronteiriça única na poesia contemporânea brasileira, pela qual transitariam, de forma legítima ou como contrabando, o erudito e o pop, o ultraconcentrado e a matéria mais prosaica. Não à toa, um dos títulos mais felizes de sua bibliografia é Caprichos & relaxos: uma fórmula e um programa poético encapsulados com maestria. (Do site da Companhia das Letras).
Todos nós adorávamos caibóis,
de Carol Bensimon
Cora e Julia não se falam há alguns anos. A intensa relação do tempo da faculdade acabou de uma maneira estranha, com a partida repentina de Julia para Montreal. Cora, pouco depois, matricula-se em um curso de moda em Paris. Em uma noite de inverno do hemisfério norte, as duas retomam contato e decidem se reencontrar em sua terra natal, o extremo sul do Brasil, para enfim realizarem uma viagem de carro há muito planejada. Nas colônias italianas da serra, na paisagem desolada do pampa, em uma cidade-fantasma no coração do Rio Grande do Sul, o convívio das duas garotas vai se enredando a seu passado em comum e seus conflitos particulares: enquanto Cora precisa lidar com o fato de que seu pai, casado com uma mulher muito mais jovem, vai ter um segundo filho, Julia anda às voltas com um ex-namorado americano e um trauma de infância. Todos nós adorávamos caubóis é uma road novel de um tipo peculiar; as personagens vagam como forasteiras na própria terra onde nasceram, tentando compreender sua identidade. Narrada pela bela e deslocada Cora, essa viagem ganha contornos de sarcasmo, pós-feminismo e drama. É uma jornada que acontece para frente e para trás, entre lembranças dos anos 1990, fragmentos da vida em Paris e a promessa de liberdade que as vastas paisagens do sul do país trazem. Um western cuja heroína usa botas Doc Martens. (Do site da Companhia das Letras).
Vida querida,
de Alice Munro
Os contos de Vida querida são ricos como romances – com personagens, tramas e vozes desenvolvidas em toda sua potencialidade -, mas, precisos como pede a tradição do gênero, prescindem de qualquer elemento que não seja essencial. O leitor, conduzido por narradores capazes de segurar a tensão do começo ao fim, se entrega a percursos surpreendentes, anunciados com sutileza e maestria em pistas esparsas. É o caso do conto que abre o livro, “Que chegue ao Japão”: Greta se despede do marido e parte com a filha numa viagem de trem que acaba se tornando uma aventura conflituosa pelos caminhos do desejo feminino; em “Dolly”, um casal de idosos decidido a acabar com a própria vida num gesto de cumplicidade e harmonia recebe uma visita inesperada do passado que irá abalar profundamente seus planos. Como nas demais coleções de contos da autora, mestre da forma breve, nos vemos diante de personagens que caminham nas beiradas da existência, arrancadas do cotidiano por golpes incisivos do destino e da loucura. Mas este Vida querida tem um diferencial que o coloca num nível novo; coroando uma carreira brilhante, a última parte do livro traz as quatro únicas narrativas autobiográficas já publicadas por Munro, que emprega toda a sua habilidade literária para refletir sobre o ato de narrar, a ficção e os temas que regem sua obra: memória, trauma, morte. Vida: vida. (Do site da Companhia das Letras).
(Claro que concordo com cada palavra do artigo de Eliane Brum abaixo. Porém, se há uma coisa da qual enchi o saco é de apreciar cada filme de Lars von Trier — com exceção de Manderlay e restrições aqui e ali — e ser atacado por isso. Então, gente, tudo o que von Trier faz é uma completa bobagem. É um autor sem voz ou criatividade que surfa na própria crise autoral. Trata-se apenas de um bom marqueteiro (o que ele também é). Ele quer ser Tarkovski, Bergman, Dreyer, só que é um engodo. A chateação é tanta que estou fazendo de conta que não vi Ninfomaníaca — Volume 1. Mas, saibam, vi e estou louco pela continuação.
É óbvio que A Grande Beleza é o melhor filme deste início de ano, mas Ninfo não é nada, mas nada insatisfatório.
Ah, reclamações para o e-mail de Eliane Brum, ao final do post. Tô fora, já disse).
Em Ninfomaníaca – parte 1, o polêmico diretor dinamarquês Lars Von Trier faz um filme delicado e de extrema beleza sobre o mistério da sexualidade feminina. E entedia parte da plateia. Por quê?
Por Eliane Brum
(Se você não assistiu à Ninfomaníaca e prefere não conhecer detalhes do filme antes de vê-lo, pare por aqui.)
“Preencha todos os meus buracos” é a penúltima frase do final de Ninfomaníaca, o mais recente filme de Lars Von Trier. Do final da primeira parte, já que a segunda está prevista para estrear nos cinemas brasileiros somente em março. A versão completa, sem cortes, com cinco horas de duração, será exibida neste mês no Festival de Berlim. Joe, a protagonista, pela primeira vez faz sexo com amor. Quando ela iniciava sua busca (pelo quê?), começando uma ininterrupta série de relações sexuais com homens variados e aparentemente aleatórios – no trem, no escritório dela, no deles, no hospital onde seu pai morre, em qualquer lugar, até na cama –, sua melhor amiga havia lhe sussurrado: “O amor é o ingrediente secreto do sexo”. Joe não acredita na frase, ela despreza o amor. Joe e suas amigas fazem uma guerrilha contra o amor, é proibido transar com o mesmo homem mais de uma vez. Mas, em algum ponto de sua busca incansável, ela ama. E, ao fazer sexo com o homem que ama, Joe pede: “Preencha todos os meus buracos”.
Lembrem-se. Esta é a penúltima frase. Ela é seguida de outra, mas essa só alcançaremos mais adiante.
Ninfomaníaca é um filme delicado, de extrema beleza, sobre a sexualidade feminina. O que Joe busca, ao se deixar penetrar por tantos pênis diferentes? Mais do que se deixar dominar, ela acredita dominá-los. Os pênis de todas as cores, formatos e tamanhos são objetos que fazem o que ela quer quando se enfiam dentro dela. Fazem o que ela quer inclusive quando ela permite que façam o que querem. Indiferente, ela os manipula, os engole e os cospe. Por quase duas horas de filme a vemos se mover com o membro de tantos dentro de si, mover-se mecanicamente.
Joe se deixa penetrar para provar que não pode ser penetrada
No marketing esperto que antecipou Ninfomaníaca, os atores apareciam em cartazes com os rostos contorcidos pelo orgasmo. Era uma esperteza, mas também uma ironia. Quem vai ao cinema para se estimular com cenas excitantes, em geral decepciona-se e entedia-se. Ninfomaníaca não é nem pornográfico nem erótico, o sexo feminino está como aquilo que não pode ser apreendido nem decifrado. Ao identificar-se como “ninfomaníaca”, Joe não diz nada sobre si. Dizer que ela é obcecada por sexo é continuar não dizendo nada.
Vivida na juventude pela bela atriz Stacy Martin, com seu corpo esguio, seios pequenos e perfeitos, Joe seduz como uma Lolita. Mas, para provocar tesão naqueles que a espreitam da poltrona do cinema, ela precisaria fingir que está se divertindo. Mais do que isso. Joe precisaria fingir que está completa, que aquele pênis a satisfaz inteiramente e que nada lhe falta. Mas no filme, onde a vida se dá para além do marketing, ela é aquela que tem um pinto enfiado na vagina, nove, dez vezes por dia, mas não está lá. Isso talvez seja bem desestabilizador para quem está na plateia, ao ser obrigado a lembrar que, com mais frequência do que admite, seu parceiro/parceira não está lá. E às vezes somos nós que não estamos lá.
Joe, linda e jovem, parece reeditar a cada relação sexual a impossibilidade do encontro. Ela se deixa penetrar para provar que não pode ser penetrada. Cada pênis a encontra vazia. A seu comando preenche a sua vagina. Mas, se a toca concretamente, no mais fundo de seu corpo, ao mesmo tempo não a toca. O pênis escorrega para fora de cada um de seus buracos sem deixar marca de sua passagem. E Joe segue, em abissal solidão, uma mulher não marcada.
Razão e cultura aparecem como tentativas de enquadrar a sexualidade, dar-lhe limites, controlar o incontrolável.
Dia após dia, por anos. Dezenas, centenas de vezes, ela repete esse ritual iniciado quando era uma menina de colégio. Ao alcançar a puberdade, a virgindade perturba Joe. Ela precisa se livrar dessa porta fechada que dá acesso ao seu lado de dentro. Um hímen é também um aviso de uma barreira que pode ser transposta. E, ao ser transposta, lançá-la no incontrolável do encontro com o outro. Ao mesmo tempo que Joe não acredita nesta possibilidade, ela também a teme. Teme tanto que precisa se livrar logo dessa ameaça. E então provar que sua inviolabilidade não depende de um hímen.
Aparece diante do garoto mais velho e popular, um que tem uma moto, com suas meias soquetes e roupa de colegial. Jerome, precisamos lembrar esse nome. Pede-lhe que tire sua virgindade. O garoto é o primeiro a provar a veracidade da crença de Joe: para além da barreira do hímen, há apenas buracos, buracos que jamais poderão ser preenchidos. Não apenas a vagina, mas também a boca e o ânus. Ele a trata como uma portadora de buracos nos quais ele pode meter seu pênis. Oito estocadas – ela registra o número. Três na vagina, cinco no ânus. E está tudo terminado. Só que nem começou.
Em seguida, Jerome (Shia LaBeouf) volta para a moto, e Joe sai cambaleando, tão sozinha como sempre e agora também machucada. Ela pediu, ele fez o que ela pediu.Ofereceu-se a ele como um buraco que ainda tinha uma incômoda barreira, ele a tratou como a portadora de um buraco e eliminou a incômoda barreira. Uma negociação honesta, nem por isso menos terrível, já que nenhum encontro é possível nesses termos. Mas Joe o odeia por isso, odeia o garoto da moto porque ele foi o primeiro a obedecê-la. Ainda assim, deve restar uma dúvida dentro de Joe, porque ela precisa renovar a certeza de não ser tocada dia após dia, com todos os homens que puder. Uma dúvida ou, quem sabe, uma esperança.
Lars Von Trier é mais uma vez brilhante ao construir a narrativa de Joe enxertando razão e cultura nas cenas de sexo. Joe fazendo sexo oral, Joe sentada sobre um pênis após outro, Joe fingindo o maior de todos os orgasmos. Uma obra de Bach, uma história de Edgar Alan Poe, a fórmula de Fibonacci nas oito estocadas que supostamente lhe tiram a virgindade. Números para contabilizar o desempenho de Joe. Razão e cultura como o que também são: tentativas de normatizar o inormatizável da sexualidade feminina, o incontrolável que escapa. Ao longo de toda a primeira parte do filme, razão e cultura aparecem como contrapontos às pulsões, a sexual e a de morte. Como uma tentativa de enquadrar a sexualidade, explicá-la e dar-lhe limites. Mente e corpo, a falsa dicotomia que a modernidade ocidental acolheu com tanto prejuízo para todos nós.
Esse embate alcança seu ápice quando Joe testemunha o morrer do pai, em uma das cenas mais belas do filme. Ela amava o pai, um médico, um homem da razão. Na primeira conversa entre os dois, na cama do hospital, o pai está sereno. Ele já testemunhou muitos morrerem, ele sabe o que acontece com a fisiologia do corpo, ele sabe quais são as etapas até a sua morte, ele sabe de que drogas seus colegas dispõem e quais usarão. Ele sabe. Está preparado, está no controle. O pai de Joe (Christian Slater) recita Epicuro: “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte. E, quando existe a morte, não existimos mais”.
Lembro de ter lido algumas das reportagens literárias da série A vida que ninguém vê na Zero Hora. Gostava daquilo. Eram casos de pessoas anônimas, cujas vidas eram descritas numa linguagem derramada, intensa, que funcionava, iluminava o jornal. Acho que as histórias eram publicadas semanalmente. Comprei o livro da reunião delas numa feirinha do Mercado Público e li 50 páginas de enfiada no mesmo dia. E, juntas, tudo funcionou bem pior. O esquema geral ficou aparente demais, a linguagem tornou-se pesada, a adjetivação passou a incomodar. Como gosto de mim e, consequentemente, de sentir prazer em ler, fechei o livro e voltei a ele 15 dias depois, lendo uma história a cada dois dias. Melhorou muito.
Sei bem o motivo da primeira rejeição, mas isto faria com que eu desse uma imensa volta que passaria pela minha experiência e preferências como leitor — que absurdamente já ultrapassa os 40 anos de consumo diário de livros… — a teóricos como Pound, Bakhtin e James Wood. Seria longo e chato fazer o périplo, mas vou dar uma tangenciada, vou evitar a abordagem literário-ontológica e partir para o sociológico. Em outras palavras, vou enganar vocês ignorando toda uma faceta do livro, restituindo o caráter boêmio e irresponsável deste blog…
Outro problema da coleção de histórias é a escolha de seus personagens. Com poucas exceções — só o carregador de malas e o colecionador? — , temos uma galeria de desvalidos, de pessoas realmente paupérrimas ou deficientes, como se um solteirão sozinho num apartamento de classe média ou a estudante do interior que se esforça como Sísifo em vestibulares não fossem anônimos. O fato de serem de classe média não os deixa visíveis e talvez eles estejam desesperados ou indiferentes ou compulsivos ou infelizes ou eufóricos em outros âmbitos. Sabemos que uma lente de aumento sobre qualquer ser humano torna-o distinto, único. Ou seja, o sujeito não precisa estar numa situação-limite para ser interessante e estar na vida que ninguém vê.
A escolha quase exclusiva pelos enjeitados coloca-nos numa situação de culpa em relação a eles, certo; mas também coloca-os numa vitrine na qual a classe média pode observá-los como num zoológico. Parece haver uma separação, uma fronteira nos olhos da autora. Não gostei da opção e acho que a galeria deveria ser mais equilibrada em função da proposta. Afinal, o título do livro não é A pobreza que ninguém vê.
Para finalizar: costumo ler as colunas de Brum. Se as da Vida que ninguém vê já eram boas, as atuais são muito melhores. Gostaria de ler seu livro de ficção Uma Duas. Isso me faz recordar que estou de aniversário domingo!
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P.S.– O que dá ler duas vezes Ulysses em três meses… Hoje, eu escrevi naturalmente: Mesmo os pianistas mais geniais têm seus momentos de absoluta bocabertice. Já a interpretação, a concepção, reafirmam Hewitt como a maior pianobachiana viva. Putz, tô me sentindo como aqueles gaúchos que passam uma semana no Rio e voltam chiando. A propósito, esqueci de comentar aqui uma das passagens mais cômicas que já li: os fatos imediatamente posteriores ao encontro entre Bloom e Gerty MacDowell, sobre cheiros e coisas que grudam. Hilariante!
Passei pela Saraiva da Rua da Praia e subi a Ladeira. Passei também pela Ladeira Livros, Nova Roma, Beco dos Livros e Estação Cultura. Cinco livrarias. Perguntei sobre cinco livros relativamente novos. As respostas:
1. Uma duas, de Eliane Brum (livro de 2011): não tinha.
2. Um livro por dia, de Jeremy Mercer (2007): não tinha.
3. Hitch-22, de Christopher Hitchens (2011): não tinha.
4. Cartas a um jovem contestador, de Christopher Hitchens (2006): não tinha.
5. Graciliano : Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos (2011): não tinha.
6. Ribamar, de José Castello (2010): não tinha.
7. Anna Kariênina, de Leon Tolstói (2005), edição da Cosac & Naify: não tinha.
Claro que se fosse caminhasse 18 quadras até a Palavraria ou 8 até a Bamboletras, encontraria todos ou quase. Mas como ficam os mortais que não têm livrarias próximas de qualidade média? Conclusão: melhor esquecer e comprar na internet mesmo.
(À tardinha, pretendo passar na Saraiva de um grande shopping para fazer o mesmo teste. É caminho de casa. Informo depois o resultado).
A parábola do taxista e a intolerância. Reflexão a partir de uma conversa no trânsito de São Paulo. A expansão da fé evangélica está mudando “o homem cordial”?
O diálogo aconteceu entre uma jornalista e um taxista na última sexta-feira. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa Lobos, em São Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o jornal, como ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela nunca faz. Falaram do trânsito (inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa e às vésperas de um feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom. Depois, outro taxista emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar” emprestado ao colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de jaula”. Continuaram, e ela comentou que trabalharia no feriado. Ele perguntou o que ela fazia. “Sou jornalista”, ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o meu português. Estudei, mas escrevo tudo errado”. Ele era jovem, menos de 30 anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada…”, ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu quero agora é ler a Bíblia”. Foi neste ponto que o diálogo conquistou o direito a seguir com travessões.
– Você é evangélico? – ela perguntou.
– Sou! – ele respondeu, animado.
– De que igreja?
– Tenho ido na Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve.
– Da Novidade de Vida eu nunca tinha ouvido falar, mas já li matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a Novidade de Vida?
– Tou gostando muito. A Bola de Neve também é bem legal. De vez em quando eu vou lá.
– Legal.
– De que religião você é?
– Eu não tenho religião. Sou ateia.
– Deus me livre! Vai lá na Bola de Neve.
– Não, eu não sou religiosa. Sou ateia.
– Deus me livre!
– Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.
– (riso nervoso).
– Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?
– Por que as boas ações não salvam.
– Não?
– Só Jesus salva. Se você não aceitar Jesus, não será salva.
– Mas eu não quero ser salva.
– Deus me livre!
– Eu não acredito em salvação. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.
– Acho que você é espírita.
– Não, já disse a você. Sou ateia.
– É que Jesus não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.
– Olha, sinceramente, acho difícil que Jesus vá me pegar. Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico. Não era Jesus que pregava a tolerância?
– É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto…
O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas ele fora doutrinado para acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás. Como resolver esse impasse? (Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes. Mas, como não dá para ler pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um embate interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava sobre o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.)
Chegaram ao destino depois de mais algumas conversas corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida e desejou a ele um bom fim de semana e uma boa noite. Ele retribuiu. E então, não conseguiu conter-se:
– Veja se aparece lá na igreja! – gritou, quando ela abria a porta.
– Veja se vira ateu! – ela retribuiu, bem humorada, antes de fechá-la.
Ainda deu tempo de ouvir uma risada nervosa.
A parábola do taxista me faz pensar em como a vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico – ou cada vez mais neopentecostal, já que é esta a característica das igrejas evangélicas que mais crescem. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem condena ninguém ao inferno. Outra razão importante é que o catolicismo está disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o mundo que influencia inclusive os ateus. Ser ateu num país de maioria católica nunca ameaçou a convivência entre os vizinhos. Ou entre taxistas e passageiros.
Já com os evangélicos neopentecostais, caso das inúmeras igrejas que se multiplicam com nomes cada vez mais imaginativos pelas esquinas das grandes e das pequenas cidades, pelos sertões e pela floresta amazônica, o caso é diferente. E não faço aqui nenhum juízo de valor sobre a fé católica ou a dos neopentecostais. Cada um tem o direito de professar a fé que quiser – assim como a sua não fé. Meu interesse é tentar compreender como essa porção cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o mundo e o modo de se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser brasileiro.
Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais – e não falo aqui nenhuma novidade – são constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível, como o taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo brilho de suas ofertas. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel”, ao gerir a igreja como um modelo de negócio, obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado cada vez mais agressiva e também a buscar fatias ainda inexploradas. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé, com as vantagens e as desvantagens que isso implica.
É também por essa razão que a Igreja Católica, que em períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos de santos e passes para o céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela vulgaridade das relações capitalistas numa fé de mercado. Dilema que procura resolver de uma maneira bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe garantido poder e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua versão de mercado, encarnada pelos carismáticos. Como uma espécie de vanguarda, que contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem comprometer a integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star como Marcelo Rossi e movimentos como a Canção Nova têm sido estratégicos para reduzir a sangria de fiéis para as neopentecostais. Não fosse esse tipo de abordagem mais agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de evangélicos no país.
Tudo indica que a parábola do taxista se tornará cada vez mais frequente nas ruas do Brasil – em novas e ferozes versões. Afinal, não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó.
Tenho muitos amigos ateus. E eles me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil. Por enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me livre!”. Mas percebem que o cerco se aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um punhado de dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no sinal fechado ou na padaria da esquina. Acuados, têm preferido declarar-se “agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e pensar que é alguma igreja nova.
Já conhecia a “Bola de Neve” (ou “Bola de Neve Church, para os íntimos”, como diz o seu site), mas nunca tinha ouvido falar da “Novidade de Vida”. Busquei o site da igreja na internet. Na página de abertura, me deparei com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala sobre as famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar demônios de estimação”. Entre as muitas frases exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me livre!, um ateu talvez tenha vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta.
Ainda que o crescimento evangélico no Brasil venha sendo investigado tanto pela academia como pelo jornalismo, é pouco para a profundidade das mudanças que tem trazido à vida cotidiana do país. As transformações no modo de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa parecer à primeira vista. Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no sentido estrito conferido por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido atribuído pelo senso comum.
Me arriscaria a dizer que a liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser curioso que, no século XXI, ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário. Mas, depois que Sarah Sheeva, uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear mulheres virgens – ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes encantados, na “Igreja Celular Internacional”, nada mais me surpreende.
Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele.