Depende. Vamos falar de 1582? Naquele ano, o calendário gregoriano foi introduzido em alguns lugares da Europa, não em todos. A Itália, a Espanha, Portugal e a Polônia, os mais católicos, aceitaram a mudança ditada pela igreja, o resto não. Só depois é que todos os outros países aderiram. O 21 de março de 1685 da Alemanha não era o mesmo 21 de março de 1685 na Itália, Espanha etc. Havia 10 dias de diferença. O dia em que Bach nasceu foi “chamado” de 21 de março na Alemanha, onde eles ainda estavam usando o calendário juliano. Mas Bach nasceu num 31 de março, considerando o calendário que todos usam hoje, o gregoriano. O que vale? Ora, segundo os historiadores, vale o que está escrito lá na igreja onde Johann Sebastian Bach foi registrado. Vale o 21 de março.
Da mesma forma, é muitas vezes dito que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, 23 de abril de 1616, como uma diferença de menos de 24h. Não é verdade. As mortes foram separadas por 10 dias. A de Shakespeare ocorreu em 23 de abril de 1616 (juliano), que equivalente hoje a 3 de maio (gregoriano). A de Cervantes aconteceu no dia 23 gregoriano. Mas os historiadores dizem que o que vale é o que está escrito, então ambos morreram em 23 de abril, mas com uma diferença de dez dias porque se a Espanha já usava o calendário gregoriano, a Inglaterra ainda usava o juliano. Então, eles não morreram ao mesmo tempo… Vá entender!
O que é certo é que podemos comemorar dois aniversários de Bach, nosso maior ídolo. E sempre com (muita) cerveja, que Bach amava e produzia em quantidades industriais em sua própria casa. Mas esta já outra história.
Eles estão casados há 65 anos. Ele é o compositor e pianista György Kurtág, uma das figuras mais importantes da música erudita nos últimos 100 anos. Entre várias outras atividades, ele passou boa parte de sua vida apresentando-se ao lado de sua esposa Márta Kinsker, outra excelente pianista. O vídeo abaixo — de som apenas aceitável — foi gravado antes de um concerto ao vivo do casal, realizado em Budapeste. Ele revela enorme uma compreensão musical e muito mais.
As transcrições de Bach foram escritas pelo próprio Kurtáge. Trata-se do plácido Prelúdio Coral Das alte Jahr vergangen ist BWV 614, do alegre Dueto BWV 804 e da belíssima Sonatina da Cantata Actus Tragicus BWV 106.
György nasceu na Romênia em 1926, mudou-se para a Hungria em 1946, casando-se com Márta Kinsker em 1947. E o vídeo abaixo mostra o que acontece quando você vive e toca Bach junto com alguém durante 70 anos :
Tenho ouvido tantas Cantatas que resolvi roubartilhar isso aqui. A fonte está neste link. Texto de Rebello Alvarenga.
“Bach não tinha intenção de compor obras de arte musicais”
Para qualquer amante da música clássica, as Cantatas de Bach são uma espécie de testamento religioso. Objetos de adoração, as Cantatas são, entre os músicos, focos de infindáveis discussões acerca da maneira mais correta de se interpretar a “intenção artística de Bach”, no propósito de chegar a um entendimento perfeito da voz deste “verdadeiro deus da música”. Quanto ao público, os mais ardentes fiéis da música bachiana correm atrás das melhores interpretações de suas Cantatas e Paixões na esperança de também alcançar a “verdade artística” de sua música. É inegável que a performance de uma Paixão Segundo São Matheus é encarada pelos amantes de Bach como a oportunidade de contemplar, pessoalmente, um “milagre acontecendo diante dos olhos”. Como verdadeiros fiéis, postam-se em silêncio contemplativo, absorvendo ao máximo tudo o que o texto musical bachiano oferece em “todo seu esplendor”. No entanto, a realidade acerca da percepção e atenção com a música sacra pelos contemporâneos de Bach é muito distante do que nossa apreciação contemporânea idealiza.
É preciso antes de tudo saber que Bach viveu em uma época no qual o conceito de obra de arte musical ainda não regulava nem as práticas musicais e nem a apreciação do público. Como aponta a filósofa Lydia Goehr, J. S. Bach jamais teve a intenção de compor uma obra de arte (Goehr, 2007, XLII). A música ainda não possuía o discurso sacralizador que consagra o objeto artístico como uma criação única, advinda da vontade de uma espécie de semideus criador, o artista. O ser cuja vida é dedicada à sua fé artística e apartada das demandas comuns da vida como um criador cuja obra é a expressão de uma verdade superior é um discurso romântico e ainda não estava presente na mentalidade dos contemporâneos de Bach (Goehr, 2007, p.208). Antes do século XIX, a música era subordinada a uma função específica cujos propósitos ultrapassavam o campo musical e as Cantatas de Bach não são exceção. O próprio comportamento do público numa sala de concertos no século XVIII era completamente diverso do nossos hábitos contemporâneos. Conversas, perambulações pela plateia, pessoas entrando e saindo eram comuns nos concertos naquele século.
Nada, no entanto, nos autoriza simplesmente transportar o comportamento do público de concerto ao comportamento de um fiel num serviço religioso. Isto seria de uma generalização grotesca. O que é curioso, porém, é que outros fatores nos levam a desvendar um cenário que possui muitos paralelos com o comportamento público nas salas de concerto do século XVIII. A nossa compreensão acerca das condições de recepção dos fiéis na época das composições das Cantatas de Bach evoluíram muito com estudos recentes, como os dedicados à compreensão da recepção da música sacra durante a primeira metade do século XVIII em Leipzig, realizado pela musicóloga Tanya Kevorkian, e às transições e transformações da sociedade centro europeia, escrito por Carol K. Baron. Tais estudos nos trazem um painel no mínimo muito curioso.
Leipzig e os frequentadores dos serviços religiosos nos tempos de Bach
Antes de adentrarmos nas questões específicas acerca da receptividade das Cantatas de Bach, é preciso entender um pouco acerca de Leipzig e o intenso turbilhão social que a cidade passava no período. Quando Bach chega em Leipzig no ano de 1723, após perder espaço como músico do príncipe Leopold von Anhalt-Köthen, a cidade era o mais importante centro comercial da Europa central (Kevorkian, 2004, p. 61). A sua população aumentou mais de 50 porcento entre os anos de 1700 a 1750, indo de 21.000 para 60.000 (Baron, 2006, p. 3). O livro de endereços de Leipzig registrava, em 1715, 29 casas de comércio de seda, 13 atacadistas de algodão, três de comércio de vinho e nove casas de câmbio (Rueb, 2001, p.162). Mercadores enriqueceram, erguendo novas casas, colecionando arte e construindo parques públicos. Fora isso, Leipzig era o principal centro de comércio de livros de toda a Europa central, possuindo, em 1700, 18 casas de publicação e livrarias (Baron, 2006, p.5). Além disso, Leipzig possuía uma grande liberdade no que concerne à impressão e distribuição de livros. Durante o período abordado, a venda de livros cuja temática era laica cresceu enormemente e o público alvo passou do especialista ao leigo (Cleve, 2006, p.89).
A vida religiosa também sofria o impacto deste cenário agitado. A religião manteve um papel importante na vida cotidiana da cidade. Quatro novas igrejas foram construídas entre 1698 e 1715 (Kervokian, 2004, p. 65). O público dos serviços religiosos era notável. Apenas nas Igrejas de Saint Thomas e Saint Nicholas, os assentos comportavam em torno de 2.500 pessoas cada. A maioria dos frequentadores vinham de famílias burguesas que possuíam propriedades. A principal divisão social era entre as elites locais (mercadores, conselheiros municipais e suas famílias) e artesãos (padeiros, ferreiros, celeiros e suas famílias). Os tipos de assento e sua localização dentro da igreja obedeciam às respectivas divisões de classe bem como a separação entre mulheres e homens (Kevorkian, 2006, p.175).
As Cantatas de Bach, o comportamento e a atenção do público
O serviço religioso era dividido em três partes. Durante a primeira hora, cantos, hinos, leituras de escrituras e uma Cantata eram executados. A segunda parte consistia no sermão, que também possuía a duração de uma hora. A comunhão era preparada, acompanhada de hinos religiosos ou uma Cantata, levando à parte final que consistia de anúncios, orações e benção final (Kevorkian, 2006, p. 175).
A maioria do público chegava durante a primeira hora do serviço, muitas vezes durante a performance de uma cantata. O objetivo de muitos era chegar no início do sermão e sair no final deste, pois este era considerado a parte mais importante de todo o serviço. Segundo Tanya Kevorkian, mesmo Bach chegava muitas vezes atrasado, ainda durante a primeira parte (Kevorkian, 2006, p. 177). Esta parte do serviço cumpria várias funções sociais. Muitas vezes o atraso de membros da elite estava ligado à sua entrada durante o serviço, chamando a atenção para si.
O comportamento do público era variado e surpreendente. Muitas vezes as pessoas ficavam se observando e trocavam cumprimentos com vizinhos e conhecidos que haviam acabado de chegar. Muitas igrejas enfrentavam problemas com relação aos fiéis. Muitos não obedeciam aos sinais de levantar e sentar, e muitos não erguiam as mãos e nem oravam no momento adequado. Estudantes da universidade costumavam cortejar mulheres visitando seus assentos. Muitos jogavam objetos na direção das moças na intenção de chamar as suas atenções, outros jovens faziam barulho no fundo da igreja.
Aqui é importante trazer um parênteses sublinhando o comportamento dos estudantes universitários de Leipzig. A música tomava grande parte do tempo dos estudantes fora das salas de aula. Eles estavam entre os mais talentosos e virtuosos músicos da cidade e eram os principais músicos de orquestra da cidade, trabalhando tanto na casa de ópera quanto nos serviços religiosos de Leipzig, executando muitas das cantatas de Bach. Suas reputações, no entanto, não eram das melhores. Muitas vezes eram associados à distúrbios públicos e confusões com senhorios. Muitos publicavam “literatura escandalosa” e tocavam “música decadente” nas ruas. Era, no entanto, nessas figuras polêmicas que a cidade tinha que depositar sua confiança. Muitos desses músicos estudantes eram, inclusive, auxiliares do Kantor da igreja (Kevorkian, 2004, p. 71).
Muitas coisas podiam, no entanto, também tirar os fiéis da atenção adequada da música e dos textos religiosos. O apelo visual era um deles. A decoração das Igrejas, as vestimentas coloridas, os objetos religiosos reluzentes costumavam tirar a atenção de muitos fiéis. Até a ornamentação do órgão era um motivo para a distração.
A questão do barulho no interior das igrejas, no entanto, nos chama mais a atenção. Como a Cantata era apresentada antes e depois do sermão, muitas pessoas estavam entrando e saindo e conversas paralelas ocorriam. Como aponta Kevorkian, a potência vocal e instrumental da música sacra do período era relativamente pequena. Certamente o barulho de fundo tirava muito da atenção e da capacidade de apreciação da música executada. Para muitas pessoas localizadas longe dos cantores e instrumentos, a música era praticamente inaudível (Kevorkian, 2006, p. 181). Deve-se deixar claro, no entanto, que obviamente, haviam aqueles cuja atenção para o serviço religioso e a música representavam o objetivo final de suas idas à igreja.
Surpreendentemente, a receptividade das Cantatas de Bach pode nos ensinar muito acerca das práticas musicais do período. Ligada a fatores alheios à própria música, a apreciação da música sacra no período dependia de inúmeros fatores externos. É na sala de concerto do século XIX, e não antes disso, que as obras sacras de Bach encontrarão o público atento e devoto da arte musical.
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Referências
BARON C. “Transitions, transformations, reversals: Rethinking Bach’s world, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)
CLEVE, J. “Family Venues and Dysfunctional families: home life in the Moral Weeklies and Commedies of Bach’s Leipzig”, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)
GOEHR, L. The immaginary museum of musical Works. An essay in the philosophy of music. New York: Oxford university press, 2007
KEVORKIAN, T. “The reception of the cantata during Leipzig church services 100-1750”, em Bach’s changing worlds: voices in community”, ed. Baron, C. (Sufolk: University of Rochester Press, 2006)
RUEB, F. 48 variações sobre Bach. São Paulo: Companhia das Letras, 2001
Ele não pertencia ao Departamento de Preocupações e frequentemente licenciava-se do de Sustento. Em nossa casa e em todos os lugares onde ia, suas funções estavam mais ligadas ao Ministério do Lazer, Jogos e Cultura, sem esquecer as Relações Públicas. Não posso imaginar coisa melhor para uma criança do que um pai sempre presente, brincalhão e meio irresponsável. Desde muito pequeno tive contato com os dois lados do Dr. Milton Cardoso Ribeiro — o pai adorável e o apostador do turfe. Meu pai e minha mãe eram dentistas numa época em que os bons profissionais desta área faturavam o que todos nós deveríamos faturar sempre. Só que meu pai direcionava grande parte de seus ganhos para o Jockey Club. Minha mãe ficava maluca com isto, mas para mim, que não conhecia outra família, era algo tão normal que suas reclamações eram como a música incidental sob a qual vivíamos tranquilamente. E esta trilha não poderia ser mesmo muito tonitruante, pois meu pai era alguém tão doce que era difícil brigar com ele.
Ele nasceu há 89 anos, em 17 de fevereiro de 1927 e morreu em 11 de dezembro de 1993, um sábado, aos 66 anos. No dia anterior, dera-me um encontrão por trás no super-mercado — outra tradição nossa — e comentáramos sobre um monte de coisas. Estava muito bem, porém, no dia seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Sinto enormemente sua falta. Ele certamente ficaria encantado com esta novidade tecnológica onde que você me lê e que o faria saber de tudo rapidamente. Sua Internet eram os muitos jornais dos quais não se separava e o chatíssimo rádio de pilha que usava sempre para ouvir notícias e a meteorologia. Algumas vezes suas manias tornavam-se incontroláveis, como naquele caso ocorrido em pleno casamento de minha irmã: durante a festa, organizada num dos hotéis mais chiques de Porto Alegre, um amigo da Iracema chegou-se para dizer-lhe que um convidado — certamente desinteressado na festa — estava escondido no recinto da privada, ouvindo os páreos num radinho de pilha. Minha irmã voltou-se rindo para o amigo e disse-lhe: “Deve ser meu pai!”.
Não lembro de grandes brigas ou discussões com ele. Lembro é das disputas. Seu perfil de apostador adequava-se perfeitamente a elas. Eu e ele tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligávamos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, supertreinado em descobrir tudo o que de clássico toca no rádio. Hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente, para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”.
Quando eu tinha menos de 13 anos, nos dedicávamos — sempre antes de dormir — à atividade de imaginar histórias para a música que estivéssemos ouvindo. Lembro dos numerosos tuaregues que acompanhavam o Bolero de Ravel… Dos prelúdios líquidos e cheios de peixes de Chopin… Dos concertos atléticos de Bach… das histórias de terror que acompanhavam o Concerto Nº 1 para piano e orquestra de Brahms… É desnecessário dizer que meu pai amava a música. Qualquer música. Colocava Mozart e Noel no mesmo patamar e misturava na mesma noite eruditos e populares. Como pianista amador, chegou a compor e a dedicar a valsa Férias de Julho a mim e minha irmã.
Acho que meus pais se amavam. Lembro de gestos de carinho num e noutro sentido. Minha mãe refere-se a ele como um homem que só tinha um só defeito (o já citado) e, quando ele morreu, disse-me com um olhar perdido que estava arrependida por ter recebido muito mais amor do que dera.
Boa parte das boas lembranças da infância e da juventude estão associadas a meu pai. Ele era um piadista, um cara engraçado e bem humorado que participava de tudo e era moderno o suficiente para não estabelecer distâncias. Sempre me senti seu par, um igual. Assistimos a centenas de jogos do Inter juntos e, no dia que fomos Campeões Brasileiros pela primeira vez, em 75, quando Figueroa fez o gol da vitória, ele, em vez de vibrar, sentou-se na arquibancada com as mãos na cabeça. Eu não estava presente, ficara estudando para o Vestibular. Ele me contou que se sentiu meio tonto e que não precisava de tanta emoção: “Há pouco tempo, eu não gostava mais de futebol e nem ia mais aos estádios. Tu me fizeste voltar e agora toda essa coisa”.
Ele conheceu meu primeiro filho, Bernardo. As fotos comprovam — ele não saía de perto do menino que tinha quase três anos quando o avô morreu. E como desejava uma neta! E ela veio somente um ano após sua morte. Conhecendo os dois, sei que se adorariam e não desgrudariam. Até hoje conto para ela histórias de seu avô. Céus, como sinto falta dele.
Texto revisado hoje, com fotos “novas”, etc. Quem me influenciou a republicá-lo foi a Elena, que disse que, se comemoramos as datas de nascimento e morte de grandes autores do passado, por que não comemoramos a data de nascimento de alguém próximo e querido que já foi?
No dia 16 de dezembro, estive no palco do StudioClio falando sobre Ludwig van Beethoven. Houve um momento em que André Carrara tocou a Patética. Fiquei olhando de frente para um público ouvinte de música pela primeira vez na minha vida. Puro cinema. Todos voltados para mim, mas atentos ao pianista (foto ao final), que é excelente. Quando a música tinha ritmo, as pessoas balançavam a cabeça, mexiam os pés, participando silenciosamente da função. Abandonados a si mesmos, pensando que não eram observados, quase todos se movimentavam. No belo adágio, alguns fecharam os olhos, enquanto outros fizeram caras embevecidas, cada um de seu jeito. Lindo. Aquele mal-humorado do Beethoven deve ter gostado. Agradeço ao Francisco Marshall pelo convite.
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Alguns compositores parecem ter nascido prontos, outros não. No primeiro grupo, por exemplo, estão Bach e Brahms, quem sabe Haydn. Bach parece ter nascido com voz própria e definitiva e as diferenças entre suas obras mais parecem resultantes de suas funções nos diversos empregos que ocupou do que de uma evolução de estilo. Na época de Bach não havia a noção da construção de uma obra pessoal para a posteridade. Brahms já tinha esta noção, mas ele também se inclui facilmente no grupo dos “nascidos prontos”. Ouvindo-se os primeiros opus de Brahms, o grande compositor já é facilmente reconhecível. Haydn é um caso semelhante. É complicado reconhecer obras suas como “da juventude” ou “da maturidade”. Apenas suas últimas sinfonias são diferentes. Os tempos do emprego estável com os Esterházy tinham acabado e elas foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo. A sombra do contrato que pairava sobre sua cabeça acrescentou tensão e aquela possibilidade de fracasso que lhe faltara antes.
Ter nascido e morrido com a mesma cara — ou, melhor dizendo, com o mesmo estilo – não representa mérito ou demérito. Muitos dos grandes compositores evoluíram profunda e espetacularmente. Mozart e Beethoven, por exemplo, foram criadores que alteraram muito suas linguagens ao longo dos anos. Mozart menos, certamente por ter vivido pouco. Beethoven alterou-se de tal forma que sua evolução acabou por ser a própria transição da música do período clássico para o romantismo. Isto deu-se certamente por uma necessidade interna, mas fatores externos também os influenciaram.
Por alguma razão, o gráfico abaixo ignora Bach, mas no restante ele nos serve.
Haydn, Mozart e Beethoven são considerados os maiores compositores do período clássico. Haydn viveu 77 anos, Mozart, 35, Beethoven, 57.
Não gosto muito das classificações por escolas, mas, grosso modo, pode-se dizer que o barroco começa em 1600 (data da invenção da ópera) e acaba em 1750, quando Bach morre. O período clássico vai daí até aproximadamente 1810 (quando inicia o segundo período da obra beethoveniana). Já o Romântico inicia no segundo período de Beethoven e vai até 1900, trocado pelo século XX.
Enquanto isso, Beethoven, que nasceu depois dos dois, começa criando obras muito semelhantes às de Mozart, mas evolui de tal modo que funda o romantismo musical. O ponto de partida do Romantismo é normalmente considerado a composição da Sinfonia Nº 3, Eroica. Talvez Mozart o tivesse acompanhado nesta aventura de transformação, mas sua morte interrompeu a jornada.
Ouçamos um trecho da Sonata Nº 1, Op. 2 de Beethoven. Notem como parece Mozart.
Beethoven foi fundamental na transição do clássico para o romântico. Notem que tal transição não se deveu a uma arbitrariedade histórica como a virada de um século nem à morte de um compositor, mas a uma alteração de estilo, ao desenvolvimento da linguagem de um criador. Claro que a posição cronológica favoreceu-o sobremaneira, mas o compositor contribuiu. Ele era um campo fertilíssimo.
Ludwig van Beethoven nasceu há 250 anos, em 17 de dezembro de 1770, na cidade de Bonn, atual Alemanha. Seu sobrenome, porém, era de origem holandesa. Consta que é derivado da aldeia de Bettenhoven (que quer dizer “horta de beterrabas”), no interior da Holanda. Apesar do sobrenome holandês, o avô paterno de Beethoven era originário de Antuérpia, na atual Bélgica. Ele era músico e emigrou para Bonn, local de nascimento de nosso biografado.
A vida de Ludwig van Beethoven (1770-1827) mostrou-se tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxal. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. O escritor Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse este tom de piedade.
Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha a perfeita noção de que estava criando um conjunto espetacular de obras musicais. Sabia-se imortal. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além, é claro, de prejudicar de forma definitiva sua carreira de grande pianista. Mas não era um obstáculo no plano da criação.
O problema começou a manifestar-se aos 26 anos de idade e aos 46 o compositor estava praticamente surdo. Por exemplo, ao final da primeira apresentação pública da 9ª Sinfonia, Beethoven permaneceu absorto na leitura da partitura e não percebeu que estava sendo ovacionado até que um amigo, tocando em seu braço, voltou sua atenção para o que acontecia na sala, onde a plateia o aplaudia em pé. Ou seja, aos 54 anos, época da composição da Nona, ele era totalmente surdo.
Com isso, não estou dizendo que ele não tenha sofrido com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto pensar em suicídio. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Mas deixou a intenção apenas escrita em cartas. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa. Porém, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.
Beethoven não era fácil. Em seus anos de aluno, ele utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava de volta: “Quem as proibiu?”. Em 1792, quando Haydn visitou Bonn, foi apresentado a ele. Beethoven tinha 21 anos e mostrou algumas de suas obras a Haydn. Este, impressionado, propôs que o jovem se transferisse para Viena a fim de que pudesse ser seu aluno. No mesmo ano, Beethoven instalou-se em Viena, mas recebia aulas de forma irregular, pois Haydn estava no auge de sua carreira e tinha de sair frequentemente da cidade.
Beethoven logo ficou descontente devido a pouca dedicação de Haydn para com ele. Sabe-se que Haydn ensinou-lhe muito, apesar de considerá-lo um chato. Chamava-o de Sua Majestade. Assim, em 1794, Beethoven aproveitou-se de uma viagem de Haydn a Londres e procurou um novo mestre. A relação entre ele e o novo professor também não foi muito tranquila. Tanto que Albrechtsberger, depois de dispensado, proferiu uma daquelas frases que fazem a alegria dos biógrafos. Ele disse: “Não percam tempo com ele. Ele nada aprendeu e nada fará de bom”. Bem, assim é que se faz para entrar na história pela porta dos fundos…
Hoje, 250 anos depois, não temos a intenção de contar os casos em que fica comprovado que Beethoven era um brigão — procuremos ver sua postura por um lado mais indulgente: a de um sujeito orgulhoso, consciente do próprio valor e, em relação ao pobre Albrechtsberger, claramente superior.
Há um fato muito curioso na formação de Beethoven. Desde cedo ele teve uma noção muito clara daquilo que lhe faltava: faltava-lhe conhecer literatura. E ele, com entusiasmo, atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons de seu país.
Ele queria ainda mais poesia do que isso…
As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e também traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, já são claros os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes – os temas curtos e afirmativos, os súbitos silêncios, o uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era muito pessoal.
Um exemplo famoso de tema curto é o tema inicial da 5ª Sinfonia. Notem os gestos incríveis do maestro Masato Usuki. Agora, se algum de vocês puder me explicar como a orquestra entra junto depois do maestro mexer os braços daquele jeito… (Sim, sabemos, há um spalla para salvar tudo).
É tradicionalmente aceito dividir a vida artística de Beethoven em três fases. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Uma fase quase mozartiana. Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, dois anos depois, em 1803, surge um grande fruto desse “caminho”: a Sinfonia Nº 3, Eroica. Ela abre um verdadeiro ciclo épico. A Sinfonia era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava Napoleão e os ideais da Revolução Francesa. Porém, quando o corso autoproclamou-se Imperador da França em maio de 1804, Beethoven retirou a dedicatória de forma bastante característica… Foi até a mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão com tanta força que ficou um buraco no papel. É que ele apagara a referência ao novo Imperador com uma faca… E que música havia naquelas folhas!
O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano.
Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador, a Fantasia para piano, orquestra e coro. Eram músicas intensas, triunfantes, românticas, às vezes belicosas. Importante explicar o título Imperador do Concerto Nº 5 para piano e orquestra. O compositor jamais quis este apelido para o Concerto. Quem deu este nome foi o editor responsável pela publicação da partitura na Inglaterra. Este acreditou ser aquele um Concerto tão grandioso como nenhum outro e o chamou assim. O próprio Beethoven não gostou do apelido, mas isso de nada adiantou.
A época da morte de Haydn, em 1809, ainda dentro da primeira fase beethoveniana, foram anos de grande fertilidade criativa. As obras-primas brotavam de sua pena. Vieram também o Concerto para Piano nº 4, Op. 58; os Três Quartetos de Cordas, intitulados Razumovsky, em 1806; o Concerto para Violino, Op. 61 e a Sonata Patética.
Enquanto isso, a vida amorosa de Beethoven ia de mal a pior. Dono de uma personalidade apaixonada, sofria decepções em série. Um dos mais famosos casos foi o com Bettina Brentano, que fez uma extensa descrição do mestre em suas cartas. Resumidamente, ela o descreveu como “pequeno, moreno, marcado pela varicela, o que se chama de feio”. Porém, “tinha uma fronte nobremente modelada, parecendo ter trinta anos” – tinha quarenta – e vestia “andrajos com ar magnífico e imponente”.
Bettina apresentou-o a Goethe. Não deu nada certo. Em julho de 1812, Beethoven recebeu o convite para um encontro com o maior escritor de língua alemã. O encontro deu-se em Teplitz. Há algum tempo os dois se estudavam à distância: Goethe tinha grande admiração pela 5ª Sinfonia, “simplesmente espantosa e grandiosa” e Beethoven era interessado em literatura em geral e no mestre em especial. Em 1811, por exemplo, Beethoven tinha mandado para Goethe um exemplar da música que fizera para Egmont. Era esperado um encontro dos Titãs.
Porém, a possibilidade de uma amizade acabou muito rápido. O caso é conhecido como “O incidente de Teplitz” e ocorreu na época da composição da 7ª Sinfonia.
Os dois caminhavam de braço quando viram o Imperador do recém-fundado Império Austríaco, os duques e toda a corte caminhando em direção oposta. Bettina conta que Beethoven disse para Goethe ignorá-los, ele queria que os aristocratas abrissem caminho para eles. Goethe, discordou silenciosamente, deu um passo para o lado e tirou o chapéu para cumprimentar a família real, enquanto Beethoven passava decididamente no meio da corte, sem nem tirar o chapéu. Quando Goethe alcançou Beethoven, este lhe disse: “Eu esperei por você porque respeito seu trabalho, mas você demonstrou um apreço exagerado por estas pessoas”.
Em carta para a sua esposa, o escritor disse sobre Ludwig: “Seu talento me surpreendeu; no entanto, ele tem uma personalidade absolutamente incontrolável. Não está equivocado ao pensar no mundo como um local horrível, mas nada faz para torná-lo mais agradável para si e para os outros”. Enquanto isso, Beethoven escrevia para seu editor dizendo que “Goethe se encanta mais com a atmosfera da corte do que em ser um grande poeta”. Os dois nunca mais se encontraram. Anos depois, Beethoven mandou uma carta para Goethe. Não houve resposta.
Nesta época iniciava a segunda fase da produção de Beethoven. Ela já era reconhecido como o maior compositor de sua época. Então começou a fazer algumas bobagens. Entre 1813 e 17, passa por uma crise criativa. Talvez a progressiva surdez — ele começara a se comunicar com as pessoas por gestos ou por escrito –, ou a perda das esperanças matrimoniais, ou os problemas na tentativa de ganhar a custódia do sobrinho, fizeram com que ele sofresse uma crise criativa. Mas seguiu compondo: escreveu a pior das músicas em A Vitória de Wellington. “É uma estupidez”, admitiu, mas o público saudou o triunfalismo da obra. Era o músico nacional e tudo o que fizesse era adorado. A vaidade jogou-o em outras empreitadas mal sucedidas. Eram cantatas como Cristo no Monte das Oliveiras e a desconhecida Missa em Dó Maior, além de ciclos de canções que consistiam em músicas de circunstância que alcançavam o aplauso, mas que não permaneceram.
Agora, a tal A Vitória de Wellington. Vejam se isso parece Beethoven… Depois da introdução, parece que nasce um mau Handel romântico…
A sorte foi ele ter conhecido a Condessa Maria Erdödy, que preferia música de verdade. Foi esta grande e inspiradora amiga quem conseguiu retirá-lo da letargia e ele recomeçou, em 1818, a compor lentamente o que seriam, na minha opinião, suas maiores obras. À Condessa foram dedicadas as duas esplêndidas Sonatas para Violoncelo e Piano Op. 102.
A postura de ambos os amigos era de romantismo total. Uma das cartas da Condessa dirigidas a ele: “Nós, seres limitados de espírito ilimitado, nascemos para o sofrimento e para a alegria. Sendo que os mais destacados, como você, apropriam-se da alegria através do sofrimento”. Enquanto isso, um fato paralelo preocupava demais o compositor: a conquista de Viena por parte de Rossini. Desta época de recuperação criativa, temos o maravilhoso Trio Arquiduque, que marca o final da segunda fase beethoveniana.
E então começou a terceira fase, a mais vanguardista delas. Como dissemos, a partir de 1818, o compositor, aparentemente recuperado, passou a compor mais lentamente, mas com vigor renovado. Apesar do vanguardismo e das pessoas da época considerarem aquilo incompreensível, há obras muito populares nesta fase – não esqueçam que tal fase contém a ultra e justamente popular Sinfonia Nº 9 – , mas há também aquelas que, de tão perfeitas, serviram de base de apoio para um alto número de compositores que vieram depois. A irrepetível sequência de músicas perfeitas e revolucionárias começou com a Sonata para Piano, Op. 106, Hammerklavier. Beethoven teve que prestar explicações a seus contemporâneos, que não a entenderam, o que gerou mais um rosário de deliciosas respostas mal humoradas. “Não pensei no pianista quando a escrevi”. “Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Não escrevo para vocês, escrevo para o futuro”.
As sonatas seguintes, de Op. 109, 110 e 111, são inacreditáveis, considerando-se a época em que foram compostas. Porém, ouvindo-as hoje, são apenas belíssimas, assim como as Variações sobre um tema de Diabelli, onde uma valsa muito simples é desenvolvida e transformada até atingir alturas prodigiosas. A Sonata Op. 111 gerou um dos mais belos momentos da literatura de todos os tempos: a aula do Prof. Kretzschmar em Doutor Fausto, de Thomas Mann. E, até a morte de Beethoven, haveria mais obras para as quais os melômanos revirariam os olhos ao falarem delas — os últimos quartetos, por exemplo. Em meio à doenças e reclamações contra Rossini e à italianização do mundo, tais composições vieram uma a uma à tona e serviram como pedra fundamental para a música do futuro. Quando soube que os últimos quartetos tinham sido pessimamente acolhidos, repetiu, mais uma vez com razão: “Não são para vós, mas para as gerações futuras”.
Pois o futuro lhe abriria as portas como fez para poucos. No início do século XX, o escritor Romain Rolland acreditava ser o último beethoveniano. Não poderia estar mais errado. Bartók, Xenakis, Varèse, Shostakovich e Schnittke foram decisivamente influenciados. Além disso, Beethoven tornou-se o mais popular dos compositores eruditos, o elo perfeito para aqueles que raramente ouvem a música erudita pudessem adentrar em um novo mundo. Ludwig van tinha a admiração, por exemplo, de Alex DeLarge, personagem de A Laranja Mecânica; é utilizado por alunos de piano nas facilidades do primeiro movimento da Sonata ao Luar; também tem a admiração das pessoas que invadem praças ou salas de concerto para ouvirem o final da Nona Sinfonia. E conta com o assombro dos entendidos.
Como dissemos, no famoso capítulo VIII do Doutor Fausto, de Thomas Mann, o imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Porque Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111”. A ideia da aula descrita por Mann nasceu quando um descuidado pianista contemporâneo de Beethoven perguntou sobre o motivo da inexistência do mesmo. A resposta do compositor foi típica: “Não tive tempo de escrever um!”. Mann explorou habilmente a história.
Pois o incrível – e Mann aparentemente não sabia disso — é que os musicólogos descobriram que havia um terceiro movimento para esta sonata. Em alguns manuscritos originais, há anotações: segundo movimento – Arietta; terceiro movimento – Presto. O Kretzschmar de Mann diz que a Arietta (o segundo movimento) seria um adeus. Trata-se de um tema com variações que dá ao ouvinte uma sensação muito íntima. Nas três primeiras variações, o tema – que segundo Kretzschmar seria um dim-da-da que poderia ser balbuciado distraidamente por um bebê — vai sendo cada vez mais movimentado: as notas vão se multiplicando e o ritmo começa a ser quebrado e animado até culminar na famosa terceira variação, muito comparada a um boogie-woogie, 100 anos antes disso existir.
Claro que a invenção dessa despedida foi uma das muitas liberdades poéticas tomadas pelo entusiasmado professor de Mann. Está bem, foi a última sonata para piano de Beethoven, porém após o Op. 111 ainda vieram outras obras importantes para piano, como as Variações Diabelli (Op.120) e as Bagatelas (Op.126), além, é claro, de todos os últimos quartetos. Ou seja, quando Beethoven escreveu o Op. 111, era um compositor em plena atividade e com vários projetos diferentes a desenvolver.
De 1816 até 1827, ano da sua morte, conseguiu compor cerca de 44 obras musicais. Ao morrer, a 26 de Março de 1827, estava trabalhando numa nova sinfonia, assim como projetava escrever um Réquiem. Ao contrário de Mozart, que foi enterrado anonimamente em uma vala comum, 20.000 cidadãos vienenses — Viena tinha 300.000 habitantes — foram ao funeral de Beethoven.
E, com efeito, o interesse pela obra de Beethoven mudou Viena. O historiador Paul Johnson diz que “Existia uma nova fé e Beethoven era o seu profeta. Não foi por acidente que, aproximadamente na mesma época, as novas casas de espetáculo recebiam fachadas parecidas com as dos templos, exaltando o novo status moral e cultural da sinfonia e da música de câmara.”
Em 1824, surge Sinfonia nº 9, Op.125, para muitos a sua obra-prima. Pela primeira vez na história da música, é inserida a voz humana num movimento de uma sinfonia. Os solistas e o coral exaltam de forma dionisíaca a fraternidade universal, começando pela aliança entre duas artes irmãs: a poesia e a música. O texto é uma adaptação do poema de Schiller, “Ode à Alegria”, feita pelo próprio Beethoven. E, bem, todos conhecem esta grande música que precede os quartetos finais.
Agora, uma referência moderna à Nona e a Beethoven, uma das tantas presentes no filme A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. Há muitas mais, basta lembrar do Nostalgia de Tarkóvsky e muitos outros filmes modernos que usam a Nona.
Os anos finais de Beethoven foram dedicados quase que exclusivamente à composição de Quartetos de Cordas. Foi nesse meio que ele produziu algumas de suas mais profundas e visionárias obras: os Op. 127, 130, 131, 132, 135 e a Grande Fuga, Op. 133, todos encomendados pelo príncipe Galitzin, que pagou 50 ducados por cada um. Pagou mesmo? Beethoven recebeu o pagamento apenas do primeiro quarteto. Embora o príncipe russo jamais tivesse negado a dívida, os quartetos restantes só foram pagos aos herdeiros de Beethoven em 1852, 25 anos após a morte do compositor.
Na opinião de Beethoven, o quarteto — que fora inventado por Haydn — era a manifestação mais alta da arte musical. E o compositor utilizou-o como veículo de expressão de todo um projeto de renovação de sua música.
A obra sinfônica de Beethoven é bem mais acessível ao público, mais do que a pianística e muito mais do que os quartetos. Pode-se dizer que os quartetos de Beethoven da primeira e segunda fases fossem sinfonias reduzidas para poucos instrumentos, mas, ouvindo os da última fase, a ideia de orquestração não passa por nossa cabeça. Aqui, ele se desliga estilisticamente da sinfonia, dando lugar a um intimismo raramente alcançado e apenas possível camaristicamente.
O Quarteto Op. 132 é absolutamente pessoal, como pode ser demonstrado pelas anotações na partitura. Beethoven passara um inverno sem complicações de saúde, mas a primavera trouxera-lhe moléstias pulmonares – ele cuspia sangue –, digestivas e intestinais que o debilitaram muito, ao ponto de deixá-lo de cama por vários dias. Durante esta doença, Beethoven trabalhava no Op. 132. Sua situação foi comentada musicalmente. Na partitura, há anotações como “ação de graças de um convalescente”, “sentindo novas forças” ou “Tu (referindo-se a deus) me devolveste a vontade de viver”. Trata-se de um caso único na história da música — um compositor expor problemas tão terrenos uma cpomposoção. Normalmente, quando se fala na dor que uma música representa, em geral nos referimos a dores da alma, dificilmente a sofrimentos corporais.
Dores e recuperação: de 21`30 até 24`30.
E finaliza com uma valsa fantástica, de pura alegria: 39`01
Essa é a natureza do conflito captado pelo Op. 132.
O Op. 130 foi o último a ser escrito e também tem história curiosa. Para encerrar grandiosamente a encomenda do príncipe Galitzin, Beethoven escreveu uma Grande Fuga. Depois, ele aceitou a sugestão de seu editor de separar esta fuga do Quarteto Op. 130, tornando-a uma peça independente. Os motivos teriam sido comerciais, eles lucrariam mais dividindo o quarteto em dois. Ainda mais que o russo não pagava…
Um adjetivo acaba associado à Große Fuge Op. 133 (1826): ela seria “assustadora”. Tento explicar. Uma fuga é uma forma musical que exige grande conhecimento técnico de composição. Então imagine quando ela é escrita de maneira inesperadamente violenta e dissonante como aqui – provavelmente a obra mais moderna de Beethoven. Sua estrutura geral parece condensar, além da forma de uma fuga a quatro vozes, a estrutura de uma sinfonia em quatro movimentos – pois há quatro episódios: os internos lembram um andamento lento e um scherzo, os externos seriam a introdução e o finale.
Ouçamos o começo da Grande Fuga, quando, após a introdução, vem o susto da exposição, com notas caindo para todos os lados, os instrumentos entrando um por um onde parece não haver espaço para mais nada e um tema totalmente anguloso e dissonante.
0`45 em diante (por uns 3 minutos)
Então, a última fase de Beethoven foi finalizada por um gênero de música que nunca fora ouvida antes. As composições desta fase foram criadas sem a preocupação em respeitar regras.
Tanto que o último movimento do Quarteto Op. 135 demonstra claramente a noção que Beethoven tinha de estar em terreno jamais palmilhado. O nome que um dos movimentos recebe mais parece uma brincadeira: “A difícil decisão: Deve ser assim? Deve ser assim!”.
13) Op. 135 – 0`36 em diante por uns dois minutos
Beethoven morreu em 1827 de motivos ainda controversos. Uns falam em cirrose, porém, modernamente, análises de seus cabelos têm levado a conclusões de que o compositor teria sido acidentalmente levado à morte por envenenamento devido a doses excessivas de chumbo, a base dos tratamentos administrados por seu médico.
Considerado um poeta-músico, Beethoven foi o primeiro romântico apaixonado pelo lirismo dramático e pela liberdade de expressão. Se foi condicionado por algo, foi pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais humanitários. Inaugurou a tradição do compositor livre, que escreve música para si, nem sempre vinculada ao desejo de um mecenas ou do público. Hoje em dia, muitos críticos o consideram como o maior compositor do século XIX, a quem se deve a inauguração do período Romântico, e todos o distinguem como um dos poucos homens que merecem a adjetivação de “gênio”.
E agora digam que ele não escrevia para o futuro!
Fontes consultadas:
— História da Música Ocidental, de Jean e Brigitte Massin.
— O blog Euterpe, texto de Leonardo T. Oliveira
— Beethoven e o Sentido da Transformação, de José Viegas Muniz Neto
— Beethoven, de Barry Cooper
— Biografia de Beethoven
Alguns compositores parecem ter nascido prontos, outros não. No primeiro grupo, por exemplo, estão Bach e Brahms, quem sabe Haydn. O primeiro parece ter nascido com voz própria e definitiva e as diferenças entre suas obras mais parecem resultantes de suas funções nos diversos empregos que ocupou do que de uma evolução de estilo ou expressão própria. Na época de Bach não havia a noção da construção de uma obra pessoal para a posteridade. Brahms já tinha esta noção, mas ele se inclui facilmente no grupo dos “nascidos prontos”. Ouvindo-se os primeiros opus de Brahms, o grande compositor já é reconhecido facilmente. Haydn é um caso semelhante. É complicado reconhecer obras suas como “da juventude” ou “da maturidade”. Porém, suas últimas sinfonias já são um pouco diferentes. Elas foram compostas em Londres para ganhar dinheiro vivo e a sombra do contrato que pairava sobre sua cabeça acrescentou aquela possibilidade de fracasso que tanto lhe faltara antes, quando era apenas um brilhante e feliz empregado da rica família Esterhazy. E as londrinas são suas melhores sinfonias.
Ter nascido e morrido com a mesma cara — ou, melhor dizendo, com o mesmo estilo –não é um mérito nem demérito. Muitos dos grandes compositores evoluíram profunda e espetacularmente. Mozart e Beethoven, por exemplo, foram criadores que alteraram muito sua linguagem durante seus períodos criativos. Mozart viveu muito pouco, talvez por isso não tenha alterado tanto sua linguagem. Beethoven alterou tanto que acabou por ser a principal marca da transição da música do período clássico para o romantismo. Isto deu-se certamente por uma necessidade interna, mas fatores externos também os influenciaram.
Por alguma razão, o gráfico abaixo ignora Bach, mas no restante ele nos serve.
Haydn, Mozart e Beethoven são considerados os maiores compositores do período clássico. Haydn viveu 77 anos, Mozart, 35, Beethoven, 57.
Não gosto muito de classificações por escolas, mas, grosso modo, pode-se dizer que o barroco começa em 1600 (data da invenção da ópera) e acaba em 1750, quando Bach morre. O período clássico vai daí até aproximadamente 1810 (quando inicia o segundo período da obra beethoveniana). Já o Romântico inicia no segundo período de Beethoven e vai até 1900, trocado pelo século XX.
Considerando-se tais datas, Mozart, até por ter vivido tão pouco, viveu no período clássico e produziu realmente música clássica. O igualmente clássico Haydn, com seus 77 anos, nasceu lá no período do barroco tardio e invadiu o período romântico, sem dobrar-se a ele.
Enquanto isso, Beethoven, que nasceu depois dos dois, começa criando obras muito semelhantes às de Mozart, mas evolui de tal modo que funda o romantismo musical com a composição de sua Sinfonia Nº 3, Eroica. Talvez Mozart o tivesse acompanhado nesta aventura de transformação, mas sua morte interrompeu a jornada.
Parece Mozart, não?
Beethoven foi fundamental para a fixação da transição do clássico para o romântico. Notem que tal transição não se deveu a uma arbitrariedade histórica como a virada de um século nem à morte de um compositor, mas a uma alteração de estilo, ao desenvolvimento da linguagem de um compositor: Beethoven. Claro que a posição cronológica favoreceu-o sobremaneira, mas o compositor contribuía. Ele era um campo fertilíssimo e não falo exatamente de uma plantação de beterrabas.
Ludwig van Beethoven nasceu há 245 anos, em 16 de dezembro de 1770, na cidade de Bonn, atual Alemanha. Seu sobrenome, porém, era de origem holandesa. Consta que é derivado da aldeia de Bettenhoven (que quer dizer horta de beterrabas), no interior da Holanda. Apesar do sobrenome holandês, o avô paterno de Beethoven era originário de Antuérpia, na atual Bélgica. O avô emigrou para Bonn, cidade onde exerceu a função de diretor de música da corte de Colônia. Seus pais tiveram sete filhos, dos quais apenas três chegaram à vida adulta.
(continua com os professores e primeiras obras de Beethoven)
Começaram as audições para o cargo de kantor na Igreja de St Thomas, em Leipzig, onde, inclusive, estão os restos mortais de Bach. São quatro finalistas de um grupo inicial de 41 candidatos.
Os candidatos são Markus Teutschbein, 44 anos, que atualmente rege em Basileia, Suíça; Clemens Flämig, 39, que dirige o coro da cidade na cidade de Halle, perto de Leipzig; Markus Johannes Langer, 44 anos, regente na cidade alemã de Rostock e Matthias Jung, 51, que manda na Dresden Choir Boys.
Cada um tem uma semana para convencer a banca sobre suas qualidades.
“É uma imensa pressão”, admitiu Stefan Altner, membro do comitê decisório. “Se nós não encontrarmos o candidato certo entre os finalistas, começaremos tudo de novo.”
Não é como contratar um técnico de futebol qualquer.
Talvez, para nosso tempo, seja difícil entender o homem que foi Johann Sebastian Bach. Ele nasceu há 330 anos, em 21 de março de 1685 (*), no que hoje é a Alemanha, numa família de músicos. Era um tempo em que era comum os filhos adotarem a profissão dos pais. Na região da Saxônia, o nome Bach era de tal forma relacionado à música que alguém com tal sobrenome só poderia ser músico e provavelmente trabalhava em alguma igreja. Seguindo a árvore genealógica da família Bach, dos 33 Bach homens, 27 foram músicos. Só que o talento explodiu espetacularmente no menino Johann Sebastian. É claro que ele, além de exercer outras funções, também trabalhou como Kapellmeister — termo que designa o diretor musical de uma igreja.
Durante um longo período de sua vida, escreveu uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música e ainda ensaiar. Isso fez com que ele nos deixasse uma imensa obra vocal. Também escreveu muito para um instrumento fora de moda, o órgão. E, se em Weimar as obrigações de Bach estavam prioritariamente vinculadas ao serviço religioso e como organista na corte cristã, na corte calvinista de Köthen, Bach pode dedicar-se à música secular, criando um dos mais imponentes e impressionantes conjuntos de obras solo para teclado, violoncelo, flauta e violino da história da música ocidental. Deixou-nos mais de 1000 obras de todos os gêneros, à exceção da ópera.
Obs. sobre o vídeo acima: na época, era proibido que as mulheres cantassem em igrejas.
Como dissemos, ele era um homem de outra época. Bach, por exemplo, não se preocupava em construir uma obra. Aliás, em seu tempo não existia a noção de “obra” de compositores. A música era consumida e esquecida. Como seus contemporâneos, Bach compunha sem a preocupação de colecionar-se, tanto assim que uma parte de sua produção foi perdida. O que se sabe de forma consistente a respeito de Bach é uma série de curiosidades: suas brigas com os empregadores, sua prisão, seus muitos alunos, os dois casamentos, os 20 filhos, a produção própria de cerveja e algumas poucas anotações pessoais.
Uma única anotação é muito célebre e pessoal. Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach, em seu luto, escreveu no alto de uma partitura um pedido: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim. Se a criatividade fazia parte da “alegria” que tinha receio de perder, isso nunca aconteceu.
Emil Cioran escreveu que A música de Bach é o único argumento que prova que a criação do universo não pode ser vista como um grande erro e que Sem Bach, Deus seria apenas um mero coadjuvante. Os ateus gostam de contestar a religiosidade de Bach tendo por base as muitíssimo pragmáticas trocas de documentos entre Bach e os religiosos, mas nada sustenta tal tese. Talvez o que os perturbe sejam as constantes afirmações de melômanos ateus de que, durante a execução de algumas obras sacras de Bach, principalmente a Missa em Si menor, dizem acreditar em Deus por duas horas.
Pois Bach tem disso: pode-se passar horas analisando uma passagem simples, a duas vozes, procurando entender a razão pela qual o compositor obteve aquela sonoridade fantástica. É incompreensível e passamos a pensar que Cioran não exagerou. Simplesmente não se entende porque algo tão simples é tão profundo. Parecem notas normais, que qualquer um poderia ter escrito, mas elas não soam assim. Porém, muitas vezes é algo complicadíssimo, mas também funciona da mesmo forma. Com Mahler, sabe-se que algo vai soar grande, enxerga-se tudo, mesmo na passagem mais complexa. Enquanto que em Bach… O primeiro compasso da Paixão Segundo São Mateus já é capaz de arrebatar. Ali já se encontra toda a profundidade que esta obra vai carregar durante três horas. Ouve-se o baixo, e pronto, lá está uma inversão da melodia principal. Ouve-se a linha do coral, e também é uma consequência desta. Toda a obra é erguida sobre pilares limpos, claros, simples. E, no entanto, ninguém conseguiu ombrear-se a tal domínio artístico.
16 (pequenas) coisas que (talvez) você não saiba sobre Bach
1. A prisão
Johann Sebastian Bach esteve quase um mês na prisão — entre 6 de novembro a 2 de dezembro de 1717 — durante seu período em Weimar. O crime era o de traição a seu patrão. Fora-lhe recusado o cargo de Kapellmeister na cidade, e ele solicitou permissão para partir e tentar a sorte em outro lugar. Queria o posto de maestro em Köthen. Bach insistiu e insistiu para ser demitido. Acabou preso. De acordo com o relatório do tribunal, o motivo da prisão foi o de “forçar a sua demissão”. Era, decididamente, outra época.
2. A infeliz operação de catarata
O grande doutor John Taylor (1703-1772) operou duas vezes a catarata de Bach em 1750. Fez o mesmo com Handel em 1753. Fracassou com ambos. Pior, matou Bach, enfraquecido após as cirurgias, e deixou Handel inteiramente cego.
3. O medo na concorrência
Durante uma viagem a Dresden em 1717, houve uma brincadeira entre aristocratas. Foi organizada uma competição para decidir quem tinha mais habilidades para a improvisação: se Johann Sebastian Bach ou Louis Marchand, famoso cravista e organista francês. Na véspera da grande “luta”, ao entrar num salão, Marchand deu de cara com Bach ensaiando. Foi o suficiente. Marchand deixou um recado onde alegava uma doença súbita e fugiu de madrugada.
4. O trabalho não era fácil
Ser Kappellmeister não era simples. Regente do coro da igreja, da orquestra, compositor, ensaios e mais ensaios, além de professor de música e catecismo. Em relatório de 1706, quando tinha 21 anos, Bach dizia mais: que as crianças “já não temem seus professores, elas até mesmo lutam em suas presenças, carregam espadas e pedras não somente pela rua, mas também na sala de aula.”
5. Bach teve 20 filhos
Aos 22 anos de idade, casou-se com uma prima, Maria Barbara Bach. Deste casamento, ele teve 7 filhos, dos quais sobreviveram quatro: Catharina Dorotheia, Johann Gottfried Bernhard e os compositores Wilhelm Friedmann e Carl Philipp Emanuel. Maria Barbara morreu em maio de 1720. Depois de algum tempo, ele conheceu a soprano Ana Magdalena Wilcken e casou-se pela segunda vez em 1721. Teve 13 filhos com ela, dos quais 7 faleceram ainda bebês. Sua casa, ainda acrescida de diversos alunos residentes, era lotada. Como ele arranjava tempo para compor?
6. O desamor de Leipzig
Se Bach é apelidado hoje de O Kantor de Leipzig, não podemos dizer que a cidade lhe desse uma contrapartida afetuosa. Seus chefes eram rápidos para lembrá-lo de sua “incompetência”. Em 1727, um assessor escreveu que Bach não compusera nada durante todo o ano. Hoje, sabemos que ele, como sempre, trabalhou louca e produtivamente naquele ano. Em 1730, ele foi repreendido e advertido pelo mesmo motivo. Quando de sua morte, um jornal da cidade publicou uma notinha onde dizia que “um homem de 67 anos (ele tinha 65), o Sr. Johann Sebastian Bach, maestro e Kantor na Escola St. Thomas”, morrera. Nada mais.
7. Ausente das aulas
O maestro John Eliot Gardiner enfatiza a violência do ambiente em que o compositor passou a infância. Eram comuns as rivalidades entre gangues, as brigas entre estudantes e as maldades sádicas. O menino Johann Sebastian esteve ausente por 258 dias em seus três primeiros anos de escola. O motivo mais comum para tais ausências era a violência. Isso em um sistema escolar que ensinava preceitos religiosos por 70% do tempo.
8. O amor pelo café
O gosto de Johann Sebastian Bach pelo café vem de sua participação na instituição de Gottlieb Zimmermann, o Café Zimmermann, onde o compositor apresentava-se regularmente durante a década de 1730. O café era uma novidade recente e sucesso absoluto naquele início de século XVIII. Na época, era encarado como uma moda passageira e um luxo. O compositor dedicou uma Cantata profana ao produto (o BWV 211, a Cantata do Café) que conta a história de uma moça casadoura que diz preferir a bebida a mais de mil beijos e afirma que só aceitará casar com um marido que lhe dê café. No inventário de Bach, há menção a coisas raras como dois potes de café (um grande e um pequeno) e um açucareiro.
https://youtu.be/YC5KpmK6oOs
9. Ele bebia. E como
Se o conselho da cidade de Leipzig tratava-o com dureza, deve-se notar que Bach gozou de relativa liberdade na cidade luterana. Ele produzia sua própria cerveja e pagava mais imposto sobre a produção desta do que gastava com habitação. As notas examinadas por seus biógrafos indicam que a família Bach consumia toneladas de cerveja. Um relatório de gastos com impostos do compositor em 1725 (tinha 40 anos) dá conta de um consumo espetacular, mesmo considerando a enorme família e alunos.
10. Escreveu música para curar a insônia
Uma de suas obras mais importantes, as Variações Goldberg, foi composta para um ex-embaixador russo na corte eleitoral da Saxônia, o conde Hermann Karl von Keyserling. O conde passava noites e noites sem dormir. Quando o desespero batia mais forte, ele chamava um de seus empregados, o jovem cravista Johann Gottlieb Goldberg, para lhe dar um recital particular. Certa vez, o conde mencionou, na presença de Bach, que gostaria de ter algumas obras de caráter suave para Goldberg executar. Elas deveriam ou consolá-lo em suas noites sem dormir ou encaminhá-lo para a cama. Bach imaginou que a melhor maneira de atender a esse desejo seria por meio de variações. Assim nasceram as Goldberg.
11. Tudo sobrava, sobretudo talento
A perfeição daquilo que criava — e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu — era pura necessidade individual de fazer as coisas bem feitas. Como era pouco compreendido, brincava sozinho criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma Cantata corresponde ao capítulo e versículo da Bíblia daquilo que está sendo cantado. Em seus temas aparecem palavras — pois a notação alemã é feita através de letras — e suas fugas envolvem complexidades que só podiam ser apreendidas por especialistas. O próprio nome B-A-C-H (Si Bemol, Lá, Dó, Si) é utilizado muitas vezes, sempre com significado. Então Bach era não apenas um fantástico melodista capaz amolecer as pernas do ouvinte, como um sólido teórico capaz de brincar com seu conhecimento. Em poucas palavras, pode-se dizer que ele sobrava… Sua obra, mesmo com a perda de mais de 100 Cantatas e de outras obras por seu filho mais velho, o preferido de Bach, Wilhelm Friedemann, corresponde a 153 CDs da mais perfeita música. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou mais de 6 dias ininterruptos de música.
12. O entendido em acústica
Bach era constantemente chamado a outras cidades para analisar a qualidade de órgãos e dar conselhos sobre a acústica de igrejas e salas. Arranjou alguns inimigos em suas viagens ao considerar alguns locais verdadeiras tragédias sem solução. Mas também tinha a fama de fazer acertos milagrosos.
13. A gênese de A Oferenda Musical
Frederico II da Prússia (Frederico, o Grande) quis conhecer Bach e convidou-o para um sarau em seu palácio. Durante a reunião, Bach foi desafiado a improvisar sobre um tema escrito por Frederico — mas que provavelmente era de autoria de um dos muitos compositores da corte. O tema era dificílimo, um evidente desafio, porém Bach improvisou uma fuga a três vozes sobre o mesmo. Diante da admiração dos ouvintes, Frederico, um notório sádico, propôs uma fuga a seis vozes. Agastado, Bach respondeu-lhe que era impossível fazê-lo assim de improviso. Ficou furioso com a derrota, porém, duas semanas depois, enviou a Frederico uma partitura com a fuga a três vozes, outra a seis, acompanhadas de diversos cânones e de uma sonata-trio, totalizando treze movimentos cuja ordem correta, se há, é até hoje um desafio para os musicólogos. Ou seja, enviou-lhe a chamada A Oferenda Musical (Das Musikalische Opfer), uma das mais importantes composições de todos os tempos. Frederico não deu a menor importância, o jogo já tinha sido jogado. E não mandou nenhuma nota de agradecimento ao “Velho Bach”.
https://youtu.be/Uyu-btfnOhc
14. Os Concertos de Brandemburgo quase viraram papel de embrulho
Na verdade não precisariam das outras quase 1100 composições para colocar Bach como um dos maiores compositores de todos os tempos. Bastariam os Concertos de Brandenburgo. São seis esplêndidos concertos para diversos instrumentos que… Bem, conta a lenda que suas partituras estavam sendo guardadas para serem utilizadas em uma casa comercial como papel de embrulho. Esta história é tão inacreditável que nos damos o direito de duvidar dela…
15. O cinema gosta muito
Bach flutua em ondas na modas cinematográficas. Já houve o tempo em que se ouvia a Tocata e Fuga em Ré Menor, ou a Chaconne para violino solo ou a ária Erbarme dich em vários filmes. No ano passado, Lars von Trier fez uma enorme homenagem ao BVW 639 Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ em Ninfomaníaca — a música é explicada em detalhes pelo personegam Seligman. Pawlikowski fez o mesmo em Ida, vencedor do Oscar de 2015 de melhor filme estrangeiro. Andreï Tarkovski já tinha feito o mesmo no clássico Solaris.
16. Bach está no seu celular… E nos aviões
Ele estava tão a frente do seu tempo que grande parte dos toques dos celulares foram compostos por ele…
Bem, e quando dois músicos resolvem brincar em um voo, qual é o ponto em comum que eles encontram?
Tinha um celista no meu voo. Francisco Vila, um violoncelista, e Maximilian, um comissário de bordo beatboxer, brincam com a Bourrée do Prelúdio Nº 3 para Violoncelo Solo de Bach.
.oOo.
(*) Afinal, Bach nasceu em 21 ou 31 de março de 1685? Vamos falar de 1582? Naquele ano, o calendário gregoriano foi introduzido em alguns lugares da Europa, não em todos. A Itália, a Espanha, Portugal e a Polônia, os mais católicos, aceitaram a mudança ditada pela igreja, o resto não. Só depois é que todos os outros países aderiram. O 21 de março de 1685 da Alemanha não era o mesmo 21 de março de 1685 na Itália, Espanha etc. Havia 10 dias de diferença. O dia em que Bach nasceu foi “chamado” de 21 de março na Alemanha, onde eles ainda estavam usando o calendário juliano. É o que vale! Mas Bach nasceu num 31 de março, considerando o calendário que todos usam hoje, o gregoriano. Da mesma forma, é muitas vezes dito que Shakespeare e Cervantes morreram exatamente no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Não é verdade. As mortes foram separadas por 10 dias. A de Shakespeare ocorreu em 23 de abril de 1616 (juliano) e equivalente a 3 de maio de 1616 (gregoriano). O que é certo é que podemos comemorar dois aniversários de nosso maior ídolo. E sempre com a cerveja que Bach tanto gostava e produzia em quantidades industriais em sua própria casa.
A Oferenda Musical é uma coleção de cânones, fugas e de uma sonata de Johann Sebastian Bach, baseada num tema musical escrito por Frederico II da Prússia (Frederico, o Grande) e a ele dedicada. A obra tem sua origem num encontro entre Bach e Frederico no dia 7 de maio de 1747. O encontro, que se deu na residência do rei em Potsdam, foi consequência do fato do filho de Bach, Carl Philipp Emanuem Bach, estar ali trabalhando como músico da corte. Frederico queria mostrar a J.S. Bach uma novidade: o pianoforte (piano), talvez o primeiro que Bach tenha visto. Bach, que era bem conhecido por seu talento na arte da improvisação, recebeu um tema, o Thema Regium, para improvisar uma fuga. Era uma sacanagem, o tema era complicadíssimo, quase inviável. Mas Bach não somente improvisou como mandou uma obra inteira para o Rei, toda ela de variações sobre o Thema Regium: A Oferenda Musical.
Bach não era de recuar diante de dificuldades. Ao contrário, costumava propor a si mesmo problemas e mais problemas. Abaixo, uma demonstração gráfica da complexidade da coisa. O exemplo abaixo é dos enigmáticos “Cânones Caranguejos“. O manuscrito retrata uma única sequência musical que é para ser tocada de frente para trás e de trás para frente. Um cânon caranguejo, também conhecido pela forma latina do nome: “Canon Cancrizans“, é um arranjo de duas linhas musicais que são complementares de frente para trás, semelhante a um palíndromo.
Também é conhecido como um cânone “Quaerendo Invenietis“, combinando retrocesso com inversão, ou seja, a música é virada de cabeça para baixo para ser tocada.
Ah, vocês pensam que toda aquela obra saiu de uma cabeça comum?
Na semana passada, tivemos o dia 21 de março de 2015, data no qual o mundo comemorava os 330 anos de Johann Sebastian Bach. E a Ospa, sempre ligada, fez o que se esperava, dedicando seu concerto à obras do Mestre de Eisenach, queridão pai de 20 filhos e de de uma obra interminável em número e tamanho.
Mas, Milton, não foi nada disso que acont… Cala a boca! Tudo começou quando adentraram o palco os 11 músicos que interpretariam o Concerto de Brandemburgo Nº 3, peça de abertura da noite. A concepção era antigo-moderna: 10 instrumentos de cordas mais o cravo de Fernando Cordella. Sobrava espaço no palco com esta formação rarefeita. Foi algo deste gênero:
Mas, pô, Milton, tu tá louco… Calado! Pois bem, foi um lindo e sensível começo de uma noite gloriosa, dedicada ao compositor preferido deste que vos escreve e do presidente da Ospa, Dr. Ivo Nesralla — segundo confidência feita há três anos no Instituto de Cardiologia. Depois, Cordella mandou bala no solo do Concerto Nº 5 de Brandemburgo, para cravo e orquestra.
Não, sete leitores, o pogrom, opa, o programa era outr… Depois, tivemos uma seleção de árias de Cantatas de Bach. Elisa Machado foi a primeira cantora convidada. O soprano cantou a famosa ária Bist du bei mir BWV 508, encantando o público do teatro. (Na verdade, ao que tudo indica, esta ária avulsa é de Gottfried Heinrich Stölzel, um aluno de Bach cuja ária foi copiada para Caderno de Notas de Anna Magdalena Bach, mas a tradição diz que é de Bach). O belo acompanhamento veio através do Quinteto de Metais da orquestra. Afinal, o maestro Sotelo é especialista em sopros. A coisa foi mais ou menos assim:
Milton, tu estás delirando. O concerto de ontem foi uma m… Continuando a noite, depois tivemos a mezzo-soprano Angela Diehl cantando a ária Erbarme dich, da Paixão Segundo São Mateus, acompanhada do maestro convidado, que empunhou o violino. (Bem, chega de exemplos, quem não conhece as árias que as procure no Youtube!).
Mas, caralho, Miton, para com is… Ora, para tu, eu é que escrevo, e dá trabalho. E estou fazendo a correção de um grave equívoco. Juremir Vieira foi o convidado seguinte. Ele esmerilhou na ária Der Ewigkeit saphirnes Haus, da Cantata Trauerode BWV 198. Logo após, Ricardo Barpp mostrou o esplendor de sua careca fechando a parte dedicada à música vocal de Bach. Ele elevou o público alguns centímetros do chão ao interpretar a ária inicial da Cantata Ich habe genug, BWV 82. Amigos, que noite!
Espere por mim, no final, eu vou dizer a verdad… Conforme a tradição da Ospa, a segunda parte dos concertos são de solo de batuta. Então, o de ontem foi finalizado com algumas fugas de A Arte da Fuga arranjadas para orquestra — versão de Karl Münchinger
— e com a Suíte Orquestral Nº 3. Um programa de enorme, de sonho, uma noite perfeita!
Deixa eu falar… Não ainda! Como bis, tivemos a Ária da Suíte Nº 3, ouvida entre suspiros do público. Agora sim, podes falar.
Na verdade, digo a vocês que foi um concerto bem diferente e pobre. Gente, a OSPA deu um concerto no dia dos 330 anos de nascimento de Bach e o programa foi de obras de Milhaud, Beethoven, Villani-Côrtes e Schubert! Há coerência. Afinal, no dia dos 50 anos de morte de Villa-Lobos, em 2009, a orquestra programou um Festival Mendelssohn.
Bem, o Milhaud foi excelente com um show do percussionista Douglas Gutjahr. Beethoven.. Putz, a Egmont pela 247ª vez? O Villani-Côrtes foi aceitável e o Schubert foi fraco, com direito a erro do maestro que entrou e desistiu, fazendo a orquestra parar sem entender nada. A quem estava sentado onde eu estava, num camarote bem em cima dos músicos, só restou rir. O melhor do concerto foram os solos de Klaus Volkmann e a cara de alívio de Emerson Kretschmer quando tudo acabou. Aliás, a cara dos músicos… Os violinos chegaram a fazer uma breve reunião no palco após o concerto, certamente para comemorar a rapidez com que reagiram à mancada do regente Dario Sotelo. Tudo o que o Milton descreveu seria totalmente possível e lindo, só que a criatividade e a ousadia andam tomando um pau que nem lhes conto.
A noite era perigosa. Era necessário todo o cuidado. Concertos em igrejas deixam nossas bundas quadradas e as costas doendo. Sei por experiência própria que a Igreja do Colégio Anchieta tem cadeiras especialistas nestes quesitos. Acho que elas foram compradas do DOPS nos anos 80. O sofrimento foi amenizado pela presença amiga do Gustavo Melo Czekster, que pegava fogo — suando com um condenado — no banco atrás de mim. Ele tinha dois desconfortos; eu, inexplicavelmente, não sentia calor. Pingando, ele me disse que estas crônicas que escrevo sobre a Ospa são a continuação natural dos concertos e que ele as lia sempre. Como veem, um cara de bons hábitos. Mas, minha nossa, sei que nem todos gostam disso aqui! Ele completou dizendo que apreciava as descrições do ambiente e eu pensei: como não fazer isso se aquele ventilador ali à esquerda mia como um gatinho faminto?
A última vez que tinha visto o Réquiem de Fauré fora na Saint-Martin-in-the-Fields em fevereiro de 2013. Saudades daquela viagem com a Bárbara. Mas não pensem que a versão ospiana da peça estava pior. Talvez estivesse até melhor que a versão londrina. O Coro Sinfônico da Ospa e o trabalho do pequeno efetivo orquestral utilizado garantiu uma bela viagem pelo peculiar universo de Fauré. Seu Réquiem não é nada desesperado e indica o caminho de um descanso eterno no paraíso. O Coro foi magnífico em toda a peça, mas especialmente na abertura do último movimento In Paradisum, quando anjos nos levam para lá pela mão. Não é um Réquiem para ser gritado e tal concepção da obra foi respeitada. O soprano Elisa Machado esteve um degrau acima de seu partner Daniel Germano. Elisa foi perfeita, demonstrando compreensão do estilo do Réquiem. Discreta, a orquestra esteve impecável.
No intervalo, a situação era a que segue: ainda embalados pelo Réquiem e em pé, tentando fazer nossas bundas retornarem a seus formatos originais. Tudo era alívio. Então, o paraíso foi invadido, mas não por trombadinhas fazendo um arrastão na praça de alimentação de um shopping, mas por algo muito mais primitivo e agressivo.
O maestro Manfredo Schmiedt, tão mansinho e compreensivo na primeira parte do concerto, começou a mexer os braços chamando os pterodáctilos para invadirem o paraíso. A tal Fantasia Sinfônica A Tempestade, Op. 18,de Tchaikovsky, era inédita em Porto Alegre. Deveria ter permanecido assim para sempre. Trata-se de bombásticos temas russos batendo firme nos personagens da última peça de Shakespeare. Pobre Próspero, pobre Miranda, coitado de Ferdinand, só o deformado Calibã pode ter gostado. Fiquei pensando que a tempestade que trouxera Alonso e Antônio para a ilha de Próspero talvez estivesse na música, mas não, nunca, a magia de Próspero e nem, jamais, nunca, haveria espaço para a gloriosa frase dita pelo pai de Miranda: Nós somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos; com nossa curta vida cercada pelo sono. Ou, em tradução mais completa e competente que a minha: Esses atores eram todos espíritos e dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável. Um dia, tal e qual a base ilusória desta visão, as altas torres envoltas em nuvens, os palácios, os templos solenes, e todo este imenso globo hão de sumir-se no ar como se deu com esse tênue espetáculo. Somos feitos da mesma substância dos sonhos e, entre um sono e outro, decorre a nossa curta existência.
Onde estava o genial Próspero, Tchai?
No final do concerto, estava com desejo de música, claro. O Tchai tinha me matado. A noite acabou no Café Fon Fon, na festa de aniversário da Isolde. Bem tarde, com o bar quase vazio, acomodados naquele ambiente tranquilo, largado e risonho de fim de festa, a Elena foi sentar-se no lugar da Bethy Krieger para tocar — sim, no piano — Beatles (Here, there and everywhere e Because) e, a meu pedido, de Bach, o BWV 639, Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ, que ela toca maravilhosamente e que deixo para vocês com a Lisitsa:
No dia 27 de julho de 1890, depois de meses de intensa atividade criativa — nesta época pintava, em média, um quadro por dia –, Vincent Van Gogh (1853-1890) saiu para uma caminhada durante a qual disparou um tiro em seu próprio peito. Arrastou-se de volta à pensão onde estava instalado e morreu dois dias depois, nos braços de seu irmão Theo. Suas últimas palavras teriam sido: “La tristesse durera toujours” (em francês, “A tristeza durará para sempre”). Onze anos depois, em 1901, era inaugurada a hoje célebre exposição Van Gogh em Paris. Era uma mostra de um artista absolutamente obscuro. Nela, havia 71 quadros do pintor que vendera uma única tela em vida — A Vinha Encarnada — , por cerca de R$ 800,00, em valores de hoje.
Cem anos após sua morte, em 1990, um de seus trabalhos, O Retrato do Dr. Gachet, foi vendido por US$ 82,5 milhões. Van Gogh não é um caso único. Por exemplo, Johann Sebastian Bach era considerado apenas um bom músico e um compositor antiquado no século XVIII; Franz Kafka era tímido e problemático demais para apresentar seus trabalhos – tendo pouco publicado em vida e feito seu amigo Max Brod prometer que destruiria o restante, promessa não cumprida. Porém, talvez Van Gogh seja o caso de maior contraste entre uma vida secreta e uma unânime consagração póstuma.
Vincent Van Gogh nasceu em 1853, na localidade de Groot Zundert, no interior da Holanda. Seu pai era um pastor calvinista que deu aos filhos a mais severa das educações. Van Gogh teve dois irmãos – Theodorus, apelidado de Theo, e Cornelius — e três irmãs — Elisabeth, Anna e Willemina. Os biógrafos descrevem a casa onde cresceram como fria, úmida e escura. A infância dos irmãos não pode ser descrita como feliz.
Aos 16 anos, Vincent mudou-se para Haia a fim de trabalhar como representante comercial de livros de arte com um tio. Conheceu boa parte do país, mais Bruxelas e Londres, porém seu sonho era conhecer Paris, na época o grande centro cultural da Europa e do mundo. Em 1875, aos 22 anos, conseguiu uma transferência para a cidade. Foi feliz por lá, conheceu artistas, visitou galerias, fruiu da vida cultural da cidade – e acabou demitido por não trabalhar.
Deprimido e sem perspectivas, Van Gogh voltou à casa dos pais, onde sofreu sucessivas crises nervosas. Místico, passou a dedicar-se à religião, conseguindo uma posição como pastor, assim como o pai. E foi pregar numa mina de carvão na Bélgica. Porém, como pouco pregava, preferindo ocupar seu tempo em conversas com os mineiros miseráveis, acabou afastado da missão religiosa em 1879. Tinha 26 anos e o senso comum dizia que era um fracasso completo. Não constituíra família, não se sustentava sozinho e não parecia vocacionado a nada. Consideremos que tinha 26 anos, nenhuma obra e que teria pouco mais de dez anos de vida, internações e produção artística.
Naquele ano, seu irmão Theo já morava na cobiçada Paris, exercendo um alto cargo na galeria de arte do tio. Ele o incentivou a pintar. Passou a lhe enviar dinheiro para a compra de tintas e pincéis. Vincent dedicou-se, então, ao estudo da perspectiva e da anatomia. E pintou várias telas sombrias, nas quais retratava mineiros, camponeses, trigais e campos.
Mas então as crises recrudesceram. Seu diagnóstico apontava perturbações epiléticas, ainda que o médico, Dr. Peyron, não fosse neurologista nem psiquiatra. Elas duravam de duas a quatro semanas, período no qual Van Gogh não conseguia realizar nenhum gênero de trabalho, revelando-se propenso a atitudes violentas, resultado de alucinações e da impressão de que todos o perseguiam com a finalidade de prejudicá-lo.
Havia alta incidência de doenças mentais na família Van Gogh. Theo sofria com a depressão e faleceu de uma certa “demência paralítica”, complicação rara da sífilis. Sua irmã Willemina era esquizofrênica, tendo vivido 40 anos no mesmo asilo onde Van Gogh foi depois internado e o outro irmão, Cornelius, cometeu suicídio aos 33 anos de idade.
Van Gogh foi internado várias vezes em sanatórios. Nos intervalos, criava as obras que vemos hoje e procurava levar sua vida. Durante algum tempo, dividiu seu ateliê com Gauguin em Arles, mas também se desentendeu com ele. Gauguin e Van Gogh partilhavam de mútua admiração, mas a relação entre ambos estava longe de ser pacífica e as discussões eram frequentes. Para representar as relações abaladas entre os dois, Van Gogh pintou a A Cadeira de Van Gogh e a A Cadeira de Gauguin, ambas em dezembro de 1888. As duas estão vazias, com objetos que representam as diferenças entre os dois pintores. A cadeira de Van Gogh é sem braços, simples, com assento de palha; a de Gauguin possui assento estofado e braços.
“Vincent e eu não podemos simplesmente viver juntos em paz devido à incompatibilidade de temperamentos”, queixou-se Gauguin a Theo. Sentia-se incomodado com as variações de humor de Vincent e não era para menos. Em 23 de dezembro de 1888, após Gauguin sair para uma caminhada, Van Gogh o seguiu e o ameaçou com uma navalha. Gauguin decidiu não voltar ao atelier, pernoitando em uma pensão. A fim de demonstrar seu arrependimento, Vincent cortou um pedaço de sua orelha direita, que embrulhou em um lenço e o levou, como presente, a uma prostituta sua amiga. Depois, Vincent retornou à sua casa, indo dormir como se nada tivesse acontecido. A polícia foi avisada e o encontrou desmaiado, totalmente ensanguentado. Gauguin então enviou um telegrama para Theo e viajou imediatamente a Paris, julgando melhor não visitar Vincent no hospital.
Van Gogh passou 14 dias internado, ao final dos quais voltou à casa. Em seu retorno, pintou o Auto-Retrato com a Orelha Cortada. Porém, quatro semanas depois, apresentou novos sintomas de paranoia, imaginando que seria envenenado a qualquer momento. Os cidadãos de Arles, apreensivos, solicitaram seu internamento definitivo. Sendo assim, Van Gogh tornou-se paciente e preso no hospital de Arles. As crises repetiam-se, sempre precedidas de sonolência e seguidas por apatia.
Rejeitado pelo amigo Gauguin e pela cidade, descartados todos os seus planos artísticos, a depressão voltou a agravar-se, ele que agora tinha como único amigo seu irmão Theo. Para completar, o casamento de Theo constituiu-se em fonte de nova temor para Vincent, que temia o afastamento.
Em maio de 1890, Vincent deixou a clínica, passando a residir na periferia de Paris (em Auvers-sur-Oise), onde estaria mais próximo do irmão e consultaria o Dr. Paul Gachet. Gachet — aquele mesmo cujo retrato seria vendido por 82,5 milhões de dólares — não foi bem sucedido. Mas, em Auvers, Van Gogh produziu rapidamente cerca de oitenta pinturas, em média uma por dia.
Repentinamente, seu estado piorou e, em 27 de Julho de 1890. Van Gogh saiu da cidade para disparar o tiro contra o próprio peito. Dias depois, no sótão da galeria de arte do tio, mais de 700 originais de Van Gogh aguardavam compradores.
Vincent Van Gogh revolucionou a história da pintura. Embora tenha sido influenciado pelos pintores impressionistas, sua obra é muito pessoal e solitária. Usava cores opostas, como o azul e o amarelo, para aumentar a vibração de suas imagens. Também se utilizava de formas distorcidas e exagerava na perspectiva para aumentar a expressividade de suas composições. Outra característica era o uso de camadas espessas de tinta. Críticos de arte costumam dizer que não é a cor em si que chama a atenção, mas o movimento, a inquietude de formas e cores em conjunto, porém…
A questão do daltonismo
Embora a vasta bibliografia a respeito de Van Gogh, são raros os estudos sobre a cor em seus trabalhos. Na verdade, a questão das cores chamou a atenção não tanto dos historiadores da arte, mas de neurologistas e oftalmologistas que encontraram nelas sinais claros de discromatopsias, as dificuldades na percepção de cores de que sofrem os popularmente conhecidos como daltônicos. Assim, se alguns biógrafos tratam rapidamente da expressividade de Van Gogh — raramente referindo-se a ele como um “revolucionário da cor” — como algo característico seu, os oftalmologistas o tratam como francamente daltônico.
Hoje, cresce a corrente daqueles que afirmam que o uso original da cor não se devia a nenhuma consequência da epilepsia ou de qualquer outra doença, mas de um reles daltonismo. Van Gogh aparece habitualmente nas listas dos portadores da doença. Portanto, apenas as pessoas daltônicas – doença chamada atualmente nos EUA de color blindness ou cegueira de cores – poderiam ver seus quadros da forma como ele os imaginou.
O oftalmologista e biotecnólogo japonês Kazunori Asada desenvolveu um programa (há versões para iPhone, iPad, iPod e Android), que simula a visão dos três tipos conhecidos de daltonismo. Van Gogh sofreria do tipo mais comum de daltonismo, a protanopia, que resulta na impossibilidade de discriminar cores no segmento verde-vermelho do espectro. O professor Asada também acredita que Van Gogh sofria deste tipo de daltonismo e, abaixo, temos a aplicação de seus programas de filtragem de cores às pinturas do holandês. Assim, podemos comparar as pinturas como elas são (sempre as primeiras) e como Van Gogh as via (abaixo). Com isto, o cientista pretende mostrar às “pessoas normais” como o autor via seus quadros. Alguns autores apenas citam a forma como Van Gogh evitava o verde, o verde vivo, o vermelho, o rosa e o bege. As cores que mais usa são o amarelo e o azul, que são vistas da mesma forma por quem é ou não daltônico. Os pares de imagens, assim como as observações abaixo delas são do artigo Mirando las obras de Van Gogh con sus propios ojos.
“A Colheita”. No original, o que deveria ser um campo de trigo, é de cor laranja, e acima temos linhas verdes em que mesclam à luz solar. Para os daltônicos, a sombra no trigal dá profundidade à cena. O sol poente tem um ar mais outonal. “
Em “A Noite Estrelada” a força está no contraste da obscuridade e das estrelas. As nuvens e a paisagem são iluminadas pela luz branca da lua. “
Cada uma das pedras da calçada parece mais sólidas. O terraço da cafeteria emerge com mais profundidade na noite sem lua.
A cena do jardim adquire uma realidade fotográfica. Ganha profundidade, dá a impressão de estarmos num mirante.
Aos nossos olhos na pintura da dama com sombrinha cruzando a ponte, esta se reflete no rio de forma surrealista. No entanto, na simulação, tudo se torna mais realista. A superfície da água brilha nas pequenas ondulações. “
Auto-retrato. Dá a impressão de um homem pouco sociável. É uma figura sofrida, distante e orgulhosa.
Nota: O simulador pode ser baixado gratuitamente aqui. É possível utilizá-lo em quaisquer fotos ou imagens em “.jpg”.
(*) Nota final do autor: Sou daltônico — sofro também de protanopia — e posso garantir que percebo quase nenhuma diferença entre as imagens. Dá para dizer que são pares de cópias perfeitas. Desde pequeno, pintava noites com o céu roxo e minhas professoras me advertiam que não era bem assim. Eu ficava muito contrariado. Então, as observações a cada dupla de fotos foram resultado de tradução de artigo Prof. Asada e de discussões em casa e na redação do Sul21. Não opinei, claro. Como o faria?
No dia 22 de setembro de 1701, nascia Anna Magdalena Wilcke, futura segunda esposa de Johann Sebastian Bach. Sempre houve grande curiosidade por sua pessoa; afinal, ela foi uma mulher que saiu discretamente da sombra a que eram segregadas as mulheres de seu século. Não apenas deu treze dos vinte filhos do compositor, mas teve participação ativa em sua vida e trabalho num mundo em que a mulher deveria reinar no lar, sem desejos pessoais que visassem qualquer atuação fora da esfera doméstica. Uma esposa exemplar deveria apenas zelar para que seu marido pudesse, este sim, aparecer na vida pública. Cuidar dos filhos, limpar e ficar em casa era o destino que a “natureza” havia determinado à mulher.
Mas Anna Magdalena apareceu um pouco mais do que o normal, saindo sutilmente da esfera doméstica e criando grande curiosidade a seu respeito. Assim como Anne Hathaway — não a bela atriz de O casamento de Rachel, mas a esposa de William Shakespeare, nascida em 1555 — recebeu especulações e romances, Anna Magdalena foi tema de filmes e romances. O mais famoso é Pequena Crônica de Anna Magdalena Bach, romance inteiramente ficcional escrito em 1925 pela inglesa Esther Meynell.
Na verdade, pouco se sabe sobre Anna Magdalena Bach (1701-1760). O que se sabe é que era, provavelmente, muito talentosa, e que, certamente, era muito cativante e trabalhadora. Bach e sua família deram-lhe dois presentes musicais muito famosos. São os chamados Cadernos de Notas de Anna Magdalena Bach. O primeiro data de 1722 e contém somente composições de Johann Sebastian. O segundo é de 1725 e é uma compilação de obras de Bach e de seus filhos e alunos. Além da excelente qualidade musical dos cadernos — fartamente gravados –, o interessante é a possibilidade que nos dão de espreitar o ambiente doméstico da família Bach ou, no mínimo, a música que era ouvida na casa deles. Trata-se de uma coleção de pequenas peças como árias, minuetos, rondós, polonaises, prelúdios, gavotas, etc. Porém, no primeiro livro, também estão quase todas as Suítes Francesas, peças nada fáceis que hoje fazem parte importante do repertório bachiano.
Anna Magdalena nasceu na Saxônia, numa família de músicos. O pai era trompetista e a mãe também era filha de músico. Na época, era comum que os filhos herdassem a profissão dos pais. Não havia um sistema educacional eficiente e as crianças passavam longas horas em aulas de religião. Então, aprendiam a ganhar a vida em casa mesmo. Mas, desde jovem, Anna trabalhava como cantora e conhecia Bach. Dezessete meses depois de Maria Bárbara, primeira esposa do compositor falecer inesperadamente em 1720, este casou-se com Anna Magdalena. Era o ano de 1721: ele tinha 36 anos; Anna, 20. Bach teve vinte filhos — sete com Maria Bárbara e treze com Anna Magdalena, entre os anos de 1723 e 42.
Dos treze, sete perderam a partida para a alta mortalidade infantil da época. Dentre os sobreviventes estavam os também compositores Johann Christian Bach e Johann Christoph Friedrich Bach. Parece ter sido um casamento feliz. Além dos trabalhos de toda mulher da época, ela cantava, tocava cravo e transcrevia suas músicas. Na época em que moraram em Leipzig, a casa dos Bach tornou-se um regular local de saraus onde o casal organizava noites em que toda a família cantava e tocava com alunos do compositor e amigos.
Deviam ser saraus muito alegres. Provavelmente havia muita cerveja. Os contratos de Bach com seus empregadores previam não somente salários e condições de trabalho, como outras vitualhas fundamentais: trigo, lenha, cerveja, cevada… Pois Bach também produzia a bebida. Pode-se de dizer que, naquela época, por questões de saúde, era mais seguro beber cerveja do que água, mas as notas examinadas por seus biógrafos indicam que a família Bach consumia toneladas dela. Um relatório de gastos do compositor em 1725 (tinha 40 anos e já estava casado com Anna Magdalena) dá conta de um consumo enorme. Mas esta é outra história.
Há muitas suposições sobre o fato de Anna Magdalena ter auxiliado Bach em várias composições. Diz-se até que a maravilhosa ária que abre as Variações Goldberg seria de autoria de Anna Magdalena, mas provavelmente tudo isso é lenda, pois o caminho de Bach como maior compositor de todos os tempos já vinha sido pavimentado de forma muito consistente antes de Anna. Porém, é indiscutível que ela lhe serviu como copista – há sua caligrafia em quase todas obras do compositor depois do casamento – e de inspiração. E Bach expressou sua gratidão dedicando várias peças para teclado e de câmara a ela.
Mas é claro que tudo vai acabar mal. Infelizmente, as histórias felizes não têm muita graça e raras vezes são lembradas. Bach viveu até 1750. Morreu aos 65 anos. Anna Magdalena sobreviveu-lhe dez anos. Após a morte do marido, houve um desentendimento entre os filhos, que brigaram e se separaram. Anna Magdalena permaneceu com suas duas filhas mais jovens e uma enteada do primeiro casamento de seu marido. Mulheres sozinhas no século XVIII eram sinônimo de caridade ou ruína. Ninguém da família as auxiliou economicamente e Anna Magdalena ficou cada vez mais dependente da caridade dos auxílios do conselho da cidade.
Na época, a herança e os bem materiais eram transmitidos ao filho mais velho ou ao parente mais próximo do sexo masculino. Bach nunca foi um homem rico, mas mesmo que fosse, as mulheres nunca herdariam nada. Assim era a lei na época, criada para que as posses ficassem ligadas ao nome de uma família por várias gerações, e para que não fosse loteada.
O que se sabe do fim de Anna Magdalena, mulher de Johann Sebastian Bach, é que ela morreu em 27 de fevereiro de 1760 e foi enterrada numa cova de indigente, sem identificação, na Johanniskirche de Leipzig (Igreja de São João). E que o local foi destruído por bombardeios aliados durante a Segunda Guerra Mundial.
Antigamente, a música — mesmo a mais grandiosa — era utilizada como pano de fundo para jantares e comemorações. Para nós é difícil conceber isto, mas a música de Vivaldi, por exemplo, era ouvida sob o provavelmente alegre som de comensais alcoolizados… Excetuando-se os saraus privados, o único local onde podia-se ouvir música em silêncio era nas igrejas. O ritual de deslocar-se até uma sala de concertos a fim de ouvir e ver silenciosamente a performance de orquestras, cantores e recitalistas é relativamente recente — começou há uns 150 anos. Sob uma forma mais barulhenta, a música popular aderiu a este ritual no século XX, porém hoje seus concertos visam mais a celebração do artista do que a finalidades “expressivas” ou “interpretativas”.
Alguns radicais, como o extraordinário pianista canadense Glenn Gould (1932-1982) – cujas interpretações de Bach são até hoje difíceis de superar — trilharam o caminho inverso, chegando ao extremo de abandonar suas carreiras de concertistas por não acreditarem mais que o formato de concertos e shows fosse aceitável quando comparado às vantagens oferecidas pelos estúdios de gravação. Não obstante o abandono dos holofotes e dos aplausos — em seu caso sempre entusiásticos –, Gould seguiu pianista e continuou produzindo discos cada vez melhores; mesmo sem ter marcado um mísero concerto em seus 27 últimos anos de vida. Gould contraiu voluntariamente uma Síndrome de Bartleby dirigida apenas às apresentações.
Apesar de interessante, a postura do pianista canadense talvez hoje seja ainda mais inaceitável, tanto para ouvintes como para músicos. Diferentemente da época de Gould, falecido em 1982, hoje um disco pode ser produzido como se produziam senadores biônicos na época da ditadura militar brasileira. Um produtor ou engenheiro de som pode corrigir tudo rapidamente, melhorando drasticamente o desempenho do intérprete. Além deste “ver para crer” exigido por boa parte do público, a pirataria reduziu as margens de lucro dos artistas, que agora são obrigados e darem concertos com a finalidade de aumentar seus ganhos.
Porém, nos anos 60 e 70, a realidade era outra e Glenn Gould acreditava que a tecnologia oferecida pelos estúdios o colocava mais próximo de seu ideal artístico, que colocava a técnica pianística em segundo plano. Apesar de ser um instrumentista absolutamente preciso e hábil, a impressão mais forte que temos ao ouvi-lo não é a do virtuosismo, mas a da expressividade. Com ele, pode-se ouvir a música. Gould pensava que existia somente uma interpretação perfeita de cada obra e que esta só poderia ser obtida em estúdio com auxílio da tecnologia.
A verdade é que as gravações revolucionaram inteiramente nossa abordagem à música. Em menos de um século, passamos do sarau ao CD, fomos do amadorismo afetuoso e comovedor de nossas residências ao sampler. Vejamos como:
1877: Thomas Edison constrói e dá nome ao primeiro fonógrafo, um aparelho que registra e reproduz sons, utilizando um cilindro de parafina.
1887: Emile Berliner inventou o disco e o gramofone para tocá-lo.
1888: É lançado o shellac, disco de cera de carnaúba, carvão e areia. Tratava-se de um tipo de cera endurecida, equivalente à Laca.
1925: Aparece o primeiro toca-discos elétrico, que funcionava com discos de 78 rpm. Um movimento – cheio de chiados – de uma sonata de Beethoven poderia ocupar vários discos… Meu pai tinha o Op. 111 do compositor alemão em 8 discos ou 16 lados de discos 78 rpm!
1940: O acetato e o verniz começam a ser substituídos pela fita magnética.
1948: Surge o LP, que podia receber até 30 minutos de música (uma sinfonia de Mozart!) de cada lado. Todos os discos de 78 rotações deveriam ser jogados fora. (Este é outro assunto…)
1958: O som estereofônico torna obsoletas as gravações anteriores, feitas em mono. Chegou a vez de jogar fora tudo o que não era estéreo.
1965: A fita cassete ameaça o disco, mas não o vence.
1979: Aparecem as fitas digitais (DAT) com som semelhante ao do CD; isto é, muito mais claras do que tudo o que já havia surgido antes. O som do DAT não era nem melhor nem pior do que o do CD, era igual ou melhor. As gravações digitais começaram bem antes, só que os discos eram gravados em digital e lançados em vinil.
1983: Chega o CD, mais uma vez desvalorizando todas as outras gravações realizadas em outros meios.
Século XXI: surgem os formatos mp3, flac e, com eles, todo o tipo de pirataria — distribuição gratuita — de música. Os lucros das gravadoras diminuem dramaticamente.
Gould falava em quão recente era a supostamente eterna tradição das salas de concerto e ridicularizava vários de seus aspectos. Por que haveria de ser necessário alguém atravessar a cidade — talvez com chuva ou sem a vestimenta adequada –, para ir sentar-se, com hora marcada, em cadeiras normalmente piores do que as de nossas casas, a fim de ouvir o mesmo velho e conhecido repertório tocado com acompanhamento de sussurros e tosses? Segundo ele, a única coisa que mantinha viva a tradição dos concertos era a oligarquia do mundo dos negócios musicais, acrescida do que Glenn Gould chamava de “uma afetuosa, ainda que às vezes frustrante, característica humana: a relutância em aceitar as consequências de uma nova tecnologia.”
Gould não era uma ativista pelo fim dos concertos, não era um inimigo das celebrações dedicadas aos músicos e à música; mas provocava, cutucava o sistema estabelecido. Dizia que era insatisfatório sair de casa para ver, muitas vezes, concertos constrangedoramente inferiores àquilo que temos em nossa discoteca. Outra coisa triste seria o conservadorismo do repertório apresentado. Se fosse brasileiro, ficaria irritado com o eterno fato de que estamos “educando o público para a música erudita”. Com este argumento, por exemplo, as orquestras obtém o aval para apresentarem somente o mainstream do repertório. (Há as exceções, mas são raras…) Enquanto isto, o LP e o CD abriram um leque de opções que mudaram nosso conhecimento musical. Obras extraordinárias puderam voltar a fazer parte de nossa cultura, grande parte da música de câmara (música escrita para pequenos grupos de instrumentistas) e da música antiga, inadequadas para as grandes salas, voltaram através dos discos.
Houve também importantes alterações na maneira de tocar a música e, por conseguinte, de ouvi-la e compreendê-la. Uma vez que, no estúdio, os músicos não tinham mais de preencher os grandes espaços das salas de concerto com som, todo o processo de fazer música passou a colocar mais ênfase na clareza e beleza do fraseado. Os microfones que fizessem o resto! Os antigos instrumentos – de som mais fraco – retornaram à vida e surgiram as gravações com interpretações históricas, utilizando instrumentos de época, que respeitam a dinâmica e a forma original das obras.
Tudo isso foi trazido pelas gravações e podemos dizer que a música barroca que ouvimos atualmente — gênero que hoje é divulgado quase só em instrumentos originais — é resultado da capacidade dos estúdios. Se a substituição dos concertos não ocorreu, se a provocação-profecia de Gould não se cumpriu, as gravações tiveram outro efeito: o de recriar os pequenos espaços de concertos, os quase-saraus, onde podemos ouvir a música do passado de forma próxima a sua autenticidade e… que parecem imitar as gravações.
Observações: A maior parte dos argumentos aqui colocados livremente estão sistematizados no livro de Otto Friedrich Glenn Gould: A Life and Variations.
Schlendrian é um pai grosseiro e está preocupadíssimo porque sua filha Lieschen entregou-se à nova mania de tomar café. Todas as promessas e ameaças para desviá-la de tão detestável hábito foram infrutíferas até que, para dissuadi-la, ofereceu-lhe um marido. Lieschen aceita a idéia com entusiasmo e o pai parte apressadamente para conseguir-lhe um. Esta é a idéia principal da Cantata do Café, obra cômica de J. S. Bach, uma mini-ópera, que foi apresentada entre 1732 e 1735 na Kaffeehaus de Zimmermann, em Leipzig. A primeira Kaffeehaus da cidade foi aberta em 1694 — o café chegara à Alemanha em 1670 — e em 1735 a burguesia podia escolher entre oito privilegiadas casas.
A Kaffeekantate, BWV 211, foi encomendada a Bach por Zimmermann e é, em parte, uma ode ao produto (sim, puro merchandising) e, de outra parte, uma punhalada no movimento existente na Alemanha para impedir seu consumo pelas mulheres. Acreditava-se que o “negro veneno” pudesse causar descontrole e esterilidade ao sexo frágil, mas Bach, em troca do pagamento de Zimmermann, ignorou estes terríveis perigos. Senão, talvez não musicasse uma ária que diz: “Ah, como é doce o seu sabor. / Delicioso como milhares de beijos, / mais doce que um moscatel. / Eu preciso de café”; e nem nos brindaria com estas delicadezas…: “Paizinho, não sejas tão mau. / Se eu não beber meu café / as minhas curvas vão secar / as minhas pernas vão murchar / ninguém comigo irá casar”.
Bach aprendera muito bem, em sua vida familiar e em seu trabalho como professor, que influenciar os jovens não era assim tão fácil. Portanto, adicionou um recitativo no qual os planos de Lieschen são revelados: o homem que quiser casar com ela terá de consentir numa cláusula: o contrato matrimonial preverá que ela possa tomar café sempre que lhe apetecer.
No final, há um breve coro de três cantores, onde o café e a evolução são admitidos como coisas inevitáveis. Esta Cantata — ao lado de outras poucas obras vocais profanas — é uma evidente exceção na obra de Bach. O compositor, que possui a injusta fama de sério, aceitou o convite de Zimmermann para compor uma propaganda de seu Café e, como quase sempre fazia, produziu uma obra-prima, uma pequena comédia que funciona tanto no palco quanto nas salas de concertos. O efeito da primeira apresentação deve ter sido consideravelmente ampliado pelo fato de que às mulheres não era permitido cantar em cafés (nem em igrejas) e o papel de Lieschen foi, provavelmente, interpretado por um cantor em falsete. Bach, com o auxílio do poeta Picander, construiu dois personagens muito humanos e verossímeis: um pai resmungão e rústico e uma filha obstinada e cheia de caprichos. O compositor parece estar à vontade ao traçar a caricatura do pai com o baixo pesado, os ritmos acentuados e a prescrição con pompa, enquanto os violinos rosnam para indicar seu temperamento irascível.
Quando ele ameaça privar Lieschen de sua saia-balão de última moda, Bach indica seu tremendo diâmetro de forma escandalosa. A ária de Lieschen em louvor ao café é convencional, tão convencional que parece que o compositor quer insinuar que ela futilmente adotara tal hábito apenas para seguir a moda, o que seria um gol contra para Zimmermann. Entretanto, seu entusiasmo por um possível marido não é simulado… A alegria expressa na melodia em ritmo de dança popular é contagiosa. Para os puristas, o divino e sacro Bach chega a ser grosseiro: afinal, quando Lieschen diz que quer um amante fogoso e robusto, os violinos e as violas silenciam, como para deixar bem clara aos ouvintes a afirmativa sem rodeios. O Café Zimmermann deve ter vindo abaixo…
Há uma montanha de gravações esplêndidas desta Cantata. Uma delas está aqui. Outra, ainda mais fácil de baixar, está aqui.
Mais: há um bonito site onde encontramos uma biografia ilustrada do mestre, com um mapa clicável das cidades por onde ele passou. E deve navegar por aqui— comece por Curiosità — quem estiver interessado num site que fale sobre o café no cinema, nas artes plásticas, na música, etc. (É em italiano, mas se eu que sou burro entendi, imagine você!)
Bibliografia: leituras de textos de discos e CDs, de livros que não lembro mais e de Karl Geiringer, principalmente.
Eu não tinha muita fé na coisa. Domingo passado, no início da noite, fui ao Concerto de Aniversário de 80 anos de uma comunidade luterana ali na João Obino. Tudo porque estavam tocando um Bach que eu adoro – a Cantata BWV 137 – , mais a Glória de Vivaldi, um Telemann e uma pequena e expressiva obra coral de Mendelssohn. Também tinha um interesse extra e nada secundário que devo declinar ao longo do texto, mas, enfim, lá fui eu, apesar de estar perdendo mais um jogo do time de giovanni luigi Calvário.
A primeira surpresa é que, apesar de ter chegado quinze minutos antes do horário, a igreja estava lotada. Sentei numa cadeira extra, dessas brancas, de plástico, que parecem que podem cair a qualquer momento. A função iniciou pontualmente. A congregação – é assim que chamamos a plateia de uma igreja, os fiéis, não? – começou a cantar um hino onde reconheci a melodia-base da Cantata de Bach que viria logo a seguir, certamente uma tradicional melodia luterana. A surpresa é que a plateia cantava com entusiasmo e estranha afinação. Será que os alemães ou os luteranos já vêm com afinação e espírito bachiano pré-instalados? A verificar. Claro que eles cantam melhor que o comum dos mortais. A segunda surpresa é que a acústica da pequena igreja era boa, uma raridade em Porto Alegre.
Passados os primeiro e bons sustos, veio a Gloria, RV 589, de Vivaldi. A música é bonita, conhecidíssima e foi muito bem tocada. Mesmo com uma orquestra formada de improviso, o trabalho do regente Manfredo Schmiedt voltou a aparecer. A orquestra desempenhava bem seu papel e os cantores Elisa Machado, Rose Carvalho, Eduardo Bighelini e Ricardo Barpp mostravam suas habituais competências. Sobrava cantor.
Depois veio Jauchzet ihr Himmel, de Telemann, uma obrinha curiosa que não conhecia. E o filé estava logo ali, vindo.
E chegou. A Cantata BWV 137 Lobe den Herren, de J. S. Bach, recebeu minha admiração mais profunda desde que a conheci naquele vinil da Harmonia Mundi alemã com o Tölzer Knabenchor e a compreensiva regência de Franzjosef Maier. É daquelas pequenas joias que Bach deixou escondidas entre obras maiores. Não há nada que não seja absolutamente perfeito nela. Cioran não disse que foi Bach quem inventou Deus? Deve ter sido mesmo. O primeiro coral saiu belíssimo , mas estava me preparando para a ária para contralto, violino solo e contínuo que viria logo a seguir.
E aqui completo o motivo de minha ida ao concerto, de meu abandono do futebol e da leve indireção da qual sou refém aos finais das tardes de domingo. (Ah, o dia seguinte, a segunda-feira… Como voltar ao trabalho? De onde recomeçar e para quê? Por que não seguir desfrutando a vida e descansando como a mente e o corpo pedem de forma tão persuasiva?)
Mas tergiverso. A linda voz de contralto de Rose Carvalho foi acompanhada pelo solo de Elena Romanov. A Elena – spalla da orquestra e, para quem não sabe, minha namorada, o que me torna certamente suspeito – já tinha me dito: “Coube a mim acompanhar a Rose, que tem uma voz incrível, gosto muito”. A mim cabia apenas ouvi-las. A ária é realmente estupenda, com o solo de violino ornamentando a melodia cantada pelo contralto, que é uma variação do coral inicial e da melodia entoada pela congregação lá no início. Fechei os olhos e realmente fiquei feliz com o que ouvi. Foi maravilhoso e um ateu sabe a quem agradecer aqui na terra. Obrigado, Manfredo, Rose e Liênatchka – sim, este é o “diminutivo” de Elena em russo. Afinal, fui eu quem encheu o saco da Lienka – outro diminutivo, menos carinhoso – para que ela aceitasse o convite…
Depois veio a ária para soprano e baixo acompanhados pelos oboés de Rômulo Chimelli e Anelise Kindel e a ária para tenor com o Bighelini, os violoncelos e os comentários do Elieser Ribeiro no trompete. Tudo foi muito bonito até o coral que fecha a Cantata.
No final, o coral envolveu a congregação e cantou o Verleih uns Frieden gnädiglich, de Mendelssohn, que tem início soturno a cargo do operoso violoncelo de Fábio Chagas e do contrabaixo de Renate Kollarz até que o coral alivia o peso.
Na saída, eu esperava por Elena e via na cara das pessoas o sucesso do concerto. E tudo isso que aconteceu em Porto Alegre será repetido amanhã (sábado, 30/11) na Capela da Ulbra, em Canoas, às 20h. Vão lá! Quem for, não vai dizer que eu sou suspeito e menti, tenho certeza.
(A Elena detesta aparecer fora do ambiente musical– “Milton, tu não és nada discreto. Liênatchka, por exemplo, pra quê?” – e vai querer me matar por este merecido texto. Intimamente, desejo-me sorte nos momentos da pós-leitura dela…)
Estou pautado para escrever sobre Anna Magdalena Bach (1701-1760) para o próximo fim-de-semana. Ela foi a segunda esposa de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Quase todas as mulheres dos grandes homens do passado foram pouco mais do que nomes, meras sombras. Anna é bem mais do que uma sombra. Foi muito citada por Bach e só podia ser muito talentosa. Bach deu-lhe dois presentes musicais muito famosos. São os chamados Cadernos de Notas de Anna Magdalena Bach. O primeiro deles datava de 1722 e continha somente composições de Johann Sebastian Bach. O segundo é de 1725 e é uma compilação de obras de Bach e de seus alunos. Além da excelente qualidade musical, o interessante deste livro é a possibilidade que nos dá de espreitar a música doméstica que era ouvida na casa deles. É uma coleção de pequenas peças como árias, minuetos, rondós, polonaises, prelúdios, gavotas, etc., mas, no primeiro primeiro livro também estão quase todas as Suítes Francesas, peças nada fáceis que hoje fazem parte do repertório bachiano.
Anna nasceu na Saxônia, numa família de músicos. O pai era trompetista e a mãe também era filha de músico. Ela trabalhava como cantora e conhecia Bach há algum tempo. Maria Bárbara, a primeira esposa de Bach, faleceu inesperadamente em 1720 e, dezessete meses depois, Bach casou-se com Anna Magdalena. Estávamos em 1721: ele tinha 36 anos; Anna, 20. O amor do compositor por suas duas esposas pode ser depreendido através de suas cartas e dos vinte filhos resultantes — sete com a prima Maria Bárbara e treze com Anna Magdalena, entre os anos de 1723 e 42.
Sete ficaram na alta mortalidade infantil da época. Dentre os sobreviventes estavam os também compositores Johann Christian Bach e Johann Christoph Friedrich Bach. Parece ter sido um casamento feliz. Ela transcrevia suas músicas e, na época em que moraram em Leipzig, a casa de Bach tornou-se regular local de saraus onde o casal organizava noites em que toda a família cantava e tocava juntos com alunos do compositor e amigos.
Mas é claro que tudo vai acabar em desgraça. As histórias felizes não têm mesmo graça… Após a morte de Bach, em 1750, seus filhos brigaram e se separaram. Anna Magdalena permaneceu com suas duas filhas mais jovens e uma enteada do primeiro casamento de seu marido. Mulheres sozinhas no século XVIII eram sinônimo de caridade ou ruína. Ninguém mais da família as ajudaram economicamente. Anna Magdalena ficou cada vez mais dependente dos auxílios do conselho da cidade. Morreu quase indigente.
E céus, vou ter que tornar essa história mais interessante. Há um livro chamado Crônica de Anna Magdalena Bach, mas é ficcional.
Ontem tivemos um concerto regido por João Carlos Martins na Ospa. No passado, Martins foi um grande pianista, um excelente intérprete de Bach, mas depois uma série de acidentes e circunstâncias fizeram com que ele perdesse o movimento das mãos. Hoje, aos 72 anos, Martins atua como uma espécie de André Rieu brasileiro, regendo música ligeira e batucando lamentavelmente um piano com os três dedos que ainda lhe atendem. Vê-lo tocando é triste tanto para os olhos como para os ouvidos, é algo que busca despertar nossos sentimentos de pena, que toca muitas pessoas facilmente suscetíveis a situações do tipo ele-está-lutando-contra-a-adversidade ou e-mesmo-assim-ele-é-feliz. Não é proibido e muita gente gosta, mas, na minha opinião, a vaidade de Martins é tão grande que mesmo a exposição de suas deficiências como pianista serve a seu ego sedento de espectadores. E ele encontrou um público que ouve seus discursos e o aplaude, feliz. Não é mais arte, não é mais música erudita, é a utilização de prestígio para tocar movimentos sinfônicos ou nem isso. Ontem por exemplo, ele apresentou um retalho do Bolero de Ravel, pois talvez lhe falte resistência física ou não sinta interesse do público numa audição integral.
Antes de perder os movimentos das mãos, Martins teve uma rumorosa passagem pela Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo. O prefeito era seu amigo Paulo Maluf. Atualmente, Martins é réu em um processo onde é acusado de corrupção. Segundo o revista Veja (há links na página):
Como empreiteiro dono da Paubrasil, o pianista recolheu quase 20 milhões de dólares em caixa dois para as campanhas de Maluf. As construtoras Paubrasil e Entersa, das quais Martins era sócio, cometiam fraudes contábeis para esconder do Fisco o quanto faturavam e a maneira como empregavam seus recursos. Desta forma, ficavam livres para financiar as campanhas do político. Em 1993, ano em que Paulo Maluf assumia a prefeitura de São Paulo pela segunda vez, a Receita Federal descobriu que a Paubrasil – empresa do pianista João Carlos Martins – havia recebido doações clandestinas para as campanhas eleitorais de Maluf nos anos 1990. A proprietária de um imóvel alugado pela Paubrasil denunciou que ali funcionava uma confecção que fazia uniformes para a empresa e também material de propaganda de Maluf. Em 2009, o caso de corrupção rendeu-lhe uma condenação a dois anos e nove meses de prisão – período substituído por pena restritiva de direitos – por crime contra a ordem tributária. O maestro entrou com recurso e aguarda julgamento.
A Ospa é uma orquestra pública, financiada pelos contribuintes através de impostos, e penso que devemos considerar dois aspectos. O primeiro é o artístico. A Ospa deve servir ao que der e vier? Ontem, a exigência artística era tão rala que a orquestra entrou despreocupada, sem a menor concentração, tocando mal obrinhas populares que tiraria normalmente de letra, talvez irritada com a indulgência para consigo e para com o público. Porém, observando as caras das pessoas que assistiam o concerto, via-se um indiscutível encantamento de gente que normalmente não comparece aos concertos. Isso é educar e formar público? Certamente NÃO. Uma experiência de décadas nos diz que aquelas pessoas não irão aos concertos “sérios” e transcendentes, onde serão tocadas obras completas do modo como foram compostas. O público de ontem era formado basicamente por pessoas de mais de 40 anos que estavam com pena do pobre pianista com dificuldades. Na última oportunidade em que esteve em Porto Alegre, Martins apresentou um curta metragem com sua história artística e médica. Houve lágrimas na plateia… Era um público de Hebe Camargo, não o da música. Como se comprova nos países onde a música é mais desenvolvida, não é com concessões que se atinge a música erudita, é com o acesso fácil a ela. Neste quesito, os casos da Venezuela e da Inglaterra — eu escolho pegar como exemplos países bem diferentes — são absolutamente exemplares.
O outro aspecto é o moral. OK, o caso de Martins ainda não foi inteiramente julgado. Coube recurso e este é um direito seu. Porém um governo do PT deveria pagar um cachê — certamente dos mais altos cachês deste ano — justamente para um apoiador de Paulo Maluf acusado de corrupção? Precisa mesmo? E o estado legalmente pode pagar alguém com as acusações que pairam sobre o ex-pianista? Para fazer aquilo não seria melhor resgatar da aposentadoria o maestro Tulio Belardi e seus concertos populares onde ele até cantava tangos para a mesma plateia extasiada?
Bem, deixo para meus sete leitores estas interrogações.