De posse da bela tradução direto do russo do Crime e Castigo da todavia — feita pelo grande Rubens Figueiredo –, eu lhe explicava como eram as traduções antigas de seus livros. Elas nos chegavam todas de segunda mão, a partir de traduções francesas. Parece que não havia ninguém que conhecesse russo no Brasil. Enquanto isso, ele, um eslavófilo furioso, 100% anti-francês, me olhava com aquela cara de quem tá louco pra pegar uma machadinha.
Dois briosos funcionários da Bamboletras vão a uma distribuidora. Estão dentro de um carro do Uber. Um comenta com o outro:
— A cliente X me pediu o livro “Casamento Blindado”.
— Mas como? Ela é uma boa leitora!
— É. Mas uma amiga dela pediu.
— Imagina o que deve ser este livro. Largam uma bomba atômica e só sobram as baratas e o casamento.
— Sim. Diz na capa que é “à prova de divórcio”.
Os dois riem.
— E sabe? Esgotou na distribuidora Y. Vou perguntar nessa.
— Só falta ter virado raridade. Casamento blindado… O meu não era. Meu ex mandou um amigo buscar suas coisas na semana passada. Cagão.
— Ah, claro, tu é cética, não lê a bibliografia correta. Não blindou porcaria nenhuma.
Então o motorista do Uber se atravessa na conversa:
— Ouvi a conversa de vocês e… Vocês sabem que eu tenho um exemplar de “Casamento Blindado” no porta-luvas?
— Mesmo????
— Sim, só que tem o meu nome na primeira página. Pedro.
— Ah, pena, Pedro, então não podemos comprar. E está funcionando? Tá blindado?
— Olha, mais ou menos…
(E não é que tinha o livro na distribuidora onde eles estavam indo?)
Hoje, 12 de março, faz um ano de uma de minhas maiores loucuras, a de me tornar livreiro aos 60 anos. Se era um sonho antigo, também era um daqueles que todo mundo tem em devaneios irrealizáveis. Às vezes pensava em me tornar um velhinho de óculos vivendo em meio aos livros… E ia fazer outra coisa. Neste último ano, várias pessoas me cumprimentaram pela coragem. Não me acho corajoso. Apenas corri atrás quando soube que a Lu queria repassar a livraria a quem a mantivesse. E larguei a atividade de jornalista sem olhar para trás. A Elena ri, diz que eu garanti uma terapia ocupacional vitalícia, o ideal para quem nunca pensou em se aposentar. Ela está certa. Mas olha, jamais pensei que desse tanto trabalho. É claro que há uma maioria esmagadora de bonitos momentos atrás do balcão, mas há também um intenso trabalho de retaguarda que aprendi do zero.
Auden escreveu que “Quando o processo histórico se interrompe, quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar”. Talvez por não haver tédio nem horror, apenas necessidade e liberdade, virei livreiro e não dono de bar, sei lá.
A Livraria Bamboletras é um ícone de Porto Alegre. A Livraria Bamboletras é um ícone de Porto Alegre criado com extremo cuidado e carinho pela Lu Vilella. Digo-lhes claramente que virei um livreiro por herança. Tentei preservar o estilo ao máximo, mas inevitavelmente uma nova cara deve ter aparecido.
Sim, nosso acervo é escolhido criteriosamente e não apenas recebido; sim, ficamos felizes quando um cliente retorna e diz que nossa última sugestão foi fantástica e que o livro era ótimo (conhecemos o que vendemos); sim, há muita tensão em razão do mercado instável; sim, as distribuidoras querem nos enfiar best sellers; sim, vocês pedem e a gente vai atrás e muitas vezes dá certo (a gente se orgulha), outras vezes não (contrariedade); sim, estamos com todas as contas em dia mas não pensem que sobra muita coisa (a gente realmente quer ver vocês nos visitando mais, sabe?); sim, coloquei a herança da minha mãe na compra da livraria; sim, ainda estamos pagando a citada ex-dona que deixou a Bamboletras assim tão linda (fazemos isso direitinho); sim, fizemos e fazemos parcerias com escritores, instituições, artistas e bares; sim, vamos atrás dos melhores lançamentos às vezes enchendo o saco de meio mundo (às vezes, receber uma reposição ou livros para um evento mais parece um thriller); sim, visitamos as distribuidoras para escolher as obras uma a uma e… Não, não pretendemos ser menos exigentes.
A Bamboletras não sou eu, é uma equipe. Tem a Bárbara, a Cacá, a Eliane, o Gustavo, a Zair. E durante o ano ainda tivemos a Ana, a Josi e a Vitória. É uma baita equipe e falo da qualidade. Agradeço a todos.
Só não pensem que é fácil. Aliás, qual é o trabalho sério que é fácil? Porém é também divertido, estou muito feliz.
Ah, dia 24 de abril faremos 24 anos sempre independentes e agora, devido à circunstâncias que não vamos citar para não emporcalhar este texto pobre mas limpinho, também resistentes.
Particularmente, agradeço à Elena, à Bárbara, ao Bernardo e à Iracema pelo apoio neste ano e nos que virão.
E também a todos os que nos visitam e que apreciam nosso trabalho.
Raramente um livro é tão prazeroso para mim quanto foi este. Fui amigo do Dr. Herbert Caro. Durante anos, aos sábados pela manhã, eu e um pequeno grupo de jovens íamos até o porão da King`s Discos, na Galeria Chaves, onde se vendiam discos de música erudita, menos para comprar discos e mais para ouvi-lo falar. As palestras eram sobre quase qualquer coisa, pois ele parecia dominar todos os assuntos relativos à música, literatura e artes plásticas. E havia os dias mais maravilhosos, onde um tema principal não se estabelecia e podíamos falar de Bach, Vermeer, Beethoven, Bosch, Mozart, Canetti, Thomas Mann, Hördelin e da literatura brasileira, tudo misturado. Não eram bem palestras, eram conversas, mas que conversas!
O Dr. Caro tinha algo de muito peculiar. Ele se expressava bem, tinha muito humor e, mesmo sabendo infinitamente mais do que nós, deixava-se interromper a cada momento. Ou seja, ele nos ouvia. Uma vez, brinquei que encontrara um problema em sua tradução de A Montanha Mágica. Ele se voltou para mim com simplicidade e disse que depois eu deveria lhe mostrar onde estava o equívoco. Todos riram, mas ele não. Ele achara natural que eu o corrigisse.
Ganhei este volume de presente de uma amiga da Bamboletras que sabia de minha relação com o Dr. Caro. É uma verdadeira relíquia e estou muito agradecido. Afinal, todos sabem que o Dr. Caro escrevia ainda melhor do que falava, vide suas inigualáveis traduções e notáveis crônicas. E ele tinha um uso peculiar do idioma, talvez apenas explicado pelo fato de conhecer as raízes dos vocábulos.
Bem, vamos contextualizar. O tradutor, crítico musical e erudito Herbert Caro foi um dos grandes alemães que aqui aportaram fugindo da perseguição aos judeus na Alemanha. Chegou em 1935. Antes de viajar, teve aulas de português — sim, ainda na Alemanha, aprendeu suas três mil primeiras palavras na língua de Camões e nossa gramática. Veio para Porto Alegre e, entre outros trabalhos, foi balconista de uma extinta livraria da Rua da Praia, a Americana. Na verdade, além de balconista, era gerente da seção de livros importados da livraria. Lá permaneceu por 5 anos. Enquanto trabalhava, publicava suas crônicas de livreiro no Correio do Povo. A coluna chamava-se Balcão de Livraria. Ele deixou a Americana antes de 1960.
Em razão da alta qualidade dos textos, as crônicas eram reproduzidas por jornais do centro do país. Caro costumava antes mostrá-las a Erico Verissimo, que as revisava, mas a voz é de Caro. (Conheço-a bem por ter lido durante anos, semanalmente, suas críticas sobre música erudita, também publicadas no Correio).
O livro Balcão de Livraria é de 1960 e traz 17 crônicas selecionadas. Os textos são deliciosos, o humor está sempre presente e é refinadíssimo. A forma como Caro dominava o português é algo absurdamente perfeito. Os temas tratam desde de pedidos errados ou amalucados de clientes, como propostas educacionais para promoção da leitura no Brasil dos anos 50-60, reclamações de que não há no Brasil publicações para livreiros e editores que tragam os lançamentos mensais de uma forma organizada e reflexões gerais sobre o ofício e a vida brasileira.
Garanto-lhes, o livro é de qualidade espantosa.
Leia um trecho do que ele diz sobre vender livros na época do Natal:
“Cabe ao livreiro envidar esforços para impedir os erros. Ele, que tem a obrigação de saber alguma coisa sobre o conteúdo de cada uma das obras expostas, pode servir de casamenteiro entre o presente e o destinatário. Como na maioria das vezes desconhecerá o segundo, deverá indagar do tipo de pessoa que este representa, dos assuntos que lhe interessam e, melhor ainda, dos livros que nos últimos tempos tenha lido com agrado. Embora na época do Natal haja muito movimento, sempre sobrará o tempo necessário para fazer algumas perguntas rápidas neste sentido. No começo, alguns fregueses estranham o pequeno interrogatório ao qual os submete o livreiro, mas depois de pouco tempo notam que desta forma se facilita a escolha. Em última análise ficam bem impressionados e retornam à livraria”.
Trabalhar com livros já é um ato político nesse país, seja você autor, editor, tradutor, revisor, da equipe da editora, livreiro. Seja você leitor. Como tal, a Livraria Bamboletras não poderia deixar de pedir para votarmos domingo pensando em diálogo e liberdade, jamais em censura e cerceamento.
Afinal, somos a livraria de todos os gêneros. E esta é uma frase de sério duplo sentido.
Arnaldo Campos, livreiro, infelizmente já falecido, um exemplo de profissional e pessoa, me contou essa história há muito há tempo:
Primeiro dia da Feira do Livro, a sineta já bateu as barracas correm contra o tempo para se organizar. Chega um senhor de aproximadamente 80 anos, fica olhando as pilhas, estende a mão e pega o Ulisses de James Joyce. Se afasta um pouco e começa a ler em frente da barraca, por aproximadamente uma hora.
No dia seguinte a situação se repete, o senhor chega no horário de abertura, pega o livro, se afasta e começa a ler em pé por uma hora.
No terceiro dia a coisa de repete, porém dessa vez o livreiro resolve intervir, oferece um banco para ele ficar mais confortável, o senhor agradece, vai embora e nunca mais retorna.
Não se sabe se o senhor ficou ofendido ou constrangido.
Eu:
Me aconteceu na Livraria Bamboletras há uma década. Todo dia, antes do cinema, eu pegava o Esculpir o Tempo, do Tarkovsky. Um dia comecei a procurar, procurar e nada. Então, a Lu Vilella me disse: “Vendi, mas vou repor”. Fiquei constrangidíssimo. Na vez seguinte, comprei o livro, claro.
Lu Vilella:
Tolinho. Podia ter terminado a leitura… Na livraria, claro.
Acho um saco a Feira do Livro. Por ser aberta e no início de novembro, costuma estar quentíssima. É uma festa de editores com dinheiro público. A falta de variedade de ofertas é incrível — chega a ser nauseante –, pois os editores preocupam-se com seus lançamentos, encalhes e olhe lá. As livrarias só se ralam, à exceção, talvez, dos sebos. Mil vezes o ambiente das pequenas e acolhedoras livrarias como a Bamboletras, Palavraria e os sebos. O sebo Ladeira Livros estará lá, na barraca de posição quase sexual 68.
Maravilha uma cidade onde todos os museus são de graça, né? Quando fomos conhecer a Wallace Collection esperávamos a cobrança de um ingresso; afinal, não estávamos num dos grandes museus da cidade, mas ali também era tudo free, como diria o Raul Seixas.
A Wallace Collection é um pequeno museu fundado a partir da coleção particular de Sir Richard Wallace, que foi legada ao estado por sua viúva em 1897. O museu foi aberto ao público em 1900 em Manchester Square. Na coleção, estão pinturas que vêm desde o século XVI. Há vários Rembrandt e obras de outros mestres holandeses, franceses, espanhóis e ingleses, como Frans Hals com seu O Cavaleiro Risonho, vários Watteau, Van Dyck, Velázquez e o auto-retrato do citado Rembrandt. Faz parte da exposição mobiliário e objetos de arte, tais como relógios e esculturas. O ambiente é tão bom dentro da Hertford House que eu aceitaria trabalhar lá como guarda.
Quando saímos de lá, estávamos apaixonados pela Coleção de Sir Richard e fomos até a London Library, sugestão de um de meus sete leitores. Deu tudo errado, as visitas eram são só às segundas-feiras às 18h e eu deveria ter aceitado o oferecimento de meu leitor como cicerone, porque minha visita solo foi um fracasso. Por que será que ele sugeriu uma segunda-feira? OK, idiotice minha não me informar melhor.
Então fomos para a National Gallery. Sim, concordo,aquilo lá é um patrimônio da humanidade, é algo quase imbatível em termos de arte do século XIX para trás. Na Europa, talvez só perca para o Louvre e o Prado em termos de quantidade e para o Musée d’Orsay em qualidade. Mas a rápida passagem da Wallace Collection para a National foi fatal para a segunda. Foi como se tivéssemos saído da Bamboletras para a Feira do Livro, isto é, de uma seleção de primeira linha para uma oferta indiscriminada e que ficou exagerada. Quando entramos lá, queríamos o filé e fomos passando meio reto pela pesada coleção de arte religiosa da National. Mas fazer o quê? Vínhamos de um local onde o feijão já fora escolhido e não estávamos mais a fim de trabalhar.
Claro que o que estou dizendo é uma brutal injustiça para com o acervo do National, com seus Van Gogh, Manet, Monet, Velásquez, Botticelli, Metsu, Seurat, Signac e até Da Vinci… Mas o momento psicológico não era para o excesso e a procura com a separação do joio. Sim, ficamos 3 dedicadas horas na National Gallery, mas nosso coração estava em Manchester Square.
Na Gallery é proibido tirar fotos, na Wallace, não. As fotos são péssimas, o principal é a memória da visita: