Memória, de Carlos Drummond de Andrade

Memória, de Carlos Drummond de Andrade

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

CARLOS+DRUMMOND+DE+ANDRADE

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De Sophia de Mello Breyner Andresen:

De Sophia de Mello Breyner Andresen:

Mundo nomeado ou A descobertas das ilhas

Iam de cabo em cabo nomeando
Baías promontórios enseadas:
Encostas e praias surgiam
Como sendo chamadas

E as coisas mergulhadas no sem-nome
Da sua própria ausência regressadas
Uma por uma ao seu nome respondiam
Como sendo criadas

Ilha-Grande

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Ai de ti, Copacabana, de Rubem Braga

Comecei a reler Ai de ti, Copacabana só para entrar no espírito do autor e escrever um artigo sobre seus 100 anos de nascimento no último sábado. Ia ler cinco ou seis crônicas, mas não consegui parar e fui até o fim. É um de meus livros preferidos de Braga. Delicadíssimo, inspiradíssimo, Ai de ti, Copacabana foi lançado em 1962 e traz 60 crônicas, escritas entre abril de 1955 e fevereiro de 1960. Na época, Braga já tinha expandido seus domínios, criando uma forma de crônica que por um lado roçava a poesia e por outro namorava o conto. Na matéria para o Sul21, cujo link coloquei acima, copio duas crônicas absolutamente notáveis de Ai de ti. Assim como Machado é o grande modelo e referência na ficção brasileira, Rubem Braga ocupa a principal posição na crônica. É uma voz compassiva, lírica, inteligente, sensível e tarada — sim, nosso RB era um mulherengo de escol. E olha que não é pouca coisa, pois seus “concorrentes” são bem mais fortes que os de Machado: Nelson Rodrigues, Stanislaw Ponte Preta, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Millôr Fernandes, Luís Fernando Verissimo… Sim, eu simplesmente adoro Rubem Braga.

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Poema da buceta cabeluda, de Bráulio Tavares

Poema da buceta cabeluda, de Bráulio Tavares

A buceta da minha amada
tem pêlos barrocos,
lúdicos, profanos.
É faminta
como o polígono-das-secas
e cheia de ritmos
como o recôncavo-baiano.

A buceta da minha amada
é cabeluda
como um tapete persa.
É um buraco-negro
bem no meio do púbis
do Universo.

A buceta da minha amada
é cabeluda,
misteriosa, sonâmbula.
É bela como uma letra grega:
é o alfa-e-ômega dos meus segredos,
é um delta ardente sob os meus dedos
e na minha língua
é lambda.

A buceta da minha amada
é um tesouro
é o Tosão de Ouro
é um tesão.
É cabeluda, e cabe, linda,
em minha mão.

A buceta da minha amada
me aperta dentro, de um tal jeito
que quase me morde;
e só não é mais cabeluda
do que as coisas que ela geme
quando a gente fode.

Tela de Georgia O`Keeffe
Tela de Georgia O`Keeffe

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Noite paradoxal: Mi Querida e Poemúsica

Isabel Schipani e seu bom chá de Tchékhov

Às 18h, fomos lá para a Casa de Cultura Mario Quintana, mais exatamente para o Teatro Carlos Carvalho. Uma peça simples, um palco com uma mesa de chá e uma cadeira de balanço para um monólogo de 45 minutos da atriz uruguaia Isabel Schipani. Mi Querida é baseado no conto de Tchékhov conhecido entre nós como Queridinha ou O Coração de Olenka. É uma personagem que mimetiza seus amores, adotando suas opiniões e defendendo suas atividades, justificando-os. Dentro de uma espécie de conto circular sobre a perplexidade feminina de quem era chamada sempre de Minha Querida! e que nunca deixa de transitar entre a desolação e a felicidade, a personagem principal trata também a plateia com amor. Enquanto desfiava o belíssimo texto  de Griselda Gambarro / Anton Tchékhov, Olga servia chá e doces para a plateia. Eu, sentado na primeira fila, tomei chá — excelente — e comi uma bolachinha — idem — servidos por Olga. O texto passado ao teatro não deixa o original russo escapar. Toda a notável sofisticação e falsa despretensão de um conto que comenta com lirismo a condição feminina permanece intacta. Pena que pouca gente estava lá, cometendo uma enorme injustiça para com a arte. Ah, a peça ainda estará em cartaz hoje (19) e amanhã (20) às 18h. É mancada das grandes perder.

Poemúsica: exibição constrangedora de anacronismo sessentista

Meio apavorados com a chuva, aguardamos pelo Poemúsica, espetáculo inclassificável que reunia a poesia de Augusto de Campos para ser ouvista, seu filho músico e compositor Cid Campos e Adriana Calcanhotto. A coisa inicia com uma palestra de Augusto sobre poesia concreta nos anos 50 e 60. Nossa estupefação vem do fato de aquilo ter sido o melhor da noite. Logo depois, Cid Campos canta, acompanhando com pertinência o tempo medonho lá fora. Cantor pior é difícil. Calcanhotto entra no palco lá pela metade e comporta-se de forma reverente a Augusto de Campos, cantando pouco, permitindo até que Cid voltasse a soltar sua voz mesmo com ela no palco.

Meus sete leitores sabem o quanto gosto da vanguarda. Estou sempre disposto a rir de quem não ama Joyce, Carroll e Melville, só para citar três gênios utilizados por Campos. Mas o espetáculo de Campos foi 90 minutos de terror. Vendo Augusto de Campos atolado com os dois pés na vanguarda dos anos 60, notamos como esta envelheceu muito mais do que o poeta, ainda firme e em boa forma aos 81 anos. Fazendo referências a autores canônicos como Joyce, Carroll, Melville e Dickinson, mas deixando de lado toda a transcendência dos mesmos, reduzindo-os ao quase nada da descrição que Campos faz, por exemplo, de Moby Dick, a coisa toda é irritante. Sobre retalhos radicalmente desligados das obras originais, Cid compõe melodias prosaicas, de uma simplicidade que seria comovente se estivéssemos num sarau de uma velha viúva aposentada, esquecida mais ainda apaixonada pela grande literatura. Já Adriana deve gostar de poesia concreta e de modo algum a critico por isso. Também gosto. Só que sua presença acessória, cantando e imitando sons de baleia num cello — referência ao cachalote de Melville — fez-me lembrar de Cathy Berberian cantando Ticket to Ride e no valor do violoncelo, que — tão novo e bonito — estaria melhor na mão de um estudante do instrumento. Ora, já que havia tantos vídeos e sons gravados em Poemúsica, por que não foram mostrados sons reais de baleias? Tenho um amigo que tem um CD com mais de uma hora de baleias cantantes, posso repassar!

Abaixo, a Cathy Berberian a qual me refiro. Vejam com atenção a partir de 1min10.

Com disse no título, foi uma noite paradoxal. Na primeira parte, Tchékhov é homenageado de forma compreensiva (no sentido de compreensão). Na segunda, as homenagens são em forma de grife. Os Campos pai e filho pegam algumas grifes para si e Calcanhotto trata de por no seu currículo uma colaboração com o velho. Uma dica? Vão no Tchékhov, como já disse.

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Uma lista dos melhores filmes de 2011

Juliette Binoche em Cópia Fiel | Foto: Divulgação

Adaptado do Sul21.

Uma lista é uma lista é uma lista, talvez dissesse Gertrude Stein. Elas pipocam por todo lado nos finais de ano e não vou me furtar a publicar a minha nesta virada de ano. Afinal, para alguns é quase impossível não lê-las, nem que seja para discordar ou para lembrar daquele filme que viu ou que deixou de ver e vai pegar numa locadora de vídeos. O mesmo vale para os livros.

Os 10 Melhores Filmes de 2011:

Aqui houve certa facilidade. Não foi nada difícil deixar de fora A Árvore de Vida, de Terrence Malick; Um pouco mais complicado foi alijar Cisne Negro dos dez mais, mas o grande problema foi a retirada de Medianeras da lista para deixar entrar Vincere, uma concessão da casa.

1. Submarino, de Thomas Vinterberg: o melhor filme do ano com alguma distância. Grande história de dois irmãos abusados e negligenciados pela mãe alcoólatra. Destaque absoluto para a dupla de atores que fazem os irmãos adultos. Imperdível.

2. Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami: o público de Porto Alegre deixou este jogo de espelhos oito meses em cartaz. Tinha razão.
3. Melancolia, de Lars von Trier: um incompreensível ataque secular acompanhou este Grande Filme Doente (definição aqui) de von Trier. Filme menor em sua obra, mas suficiente. Ficou fora de Cannes, o que é cômico, mas levou o European Film Award.
4. Diário de uma Busca, de Flávia Castro: documentário político e íntimo no qual a diretora conta a trajetória de seu pai, marcada pela militância política, pelo exílio e por um assassinato sem investigação policial.
5. Um Lugar Qualquer, de Sofia Coppola: um ator famoso, rico e vazio tem sua vida preenchida pela filha. Esqueça, não há clichês aqui. A vida vazia é descrita com rigor…
6. Um Conto Chinês, de Sebastián Borensztein: o público de Porto Alegre está deixando este filme sete meses em cartaz. Tem  razão.
7. Em um Mundo Melhor, de Susanne Bier: tantos temas entrelaçados que torna complicado caracterizar o filme numa frase. Vamos a uma palavra: arrebatador.
8. Poesia, de Lee Chang-dong: a velha Mija matricula-se num curso de poesia, algo totalmente inatigível para ela, que vê o Alzheimer desconetá-la do mundo.
9. Os Nomes do Amor, de Michel Leclerc: irresistível comédia política francesa. Uma tremenda gozação com os arquétipos de gente de esquerda como…. nós (?).
10. Vincere, de Marco Bellocchio: um grande filme, um grande tema meio perdido no tom grandiloquente escolhido por Bellocchio.

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Charles Kiefer, o incendiário tranquilo

Charles Kiefer diz que gostaria de ser um homem calmo como foi seu avô. Porém, após conhecê-lo, fica difícil imaginar alguém mais mais tranquilo que o escritor. Kiefer recebeu o Sul21 em seu gabinete na PUCRS e a impressão que tivemos é a de que poderíamos ter conversado muito mais do que a uma hora e quarenta minutos que está resumida a seguir.

Nascido em Três de Maio, no noroeste do Rio Grande do Sul, Kiefer tem 30 livros publicados, foi oito vezes finalista do Prêmio Jabuti – ganhou três -, dá aulas na universidade, comanda oficinas literárias, fundou uma associação de incentivo à leitura e guarda na gaveta mais de um livro quase pronto para publicação. Toda essa atividade parece natural ao sorridente professor.

Suas notas biográficas apontam que nasceu em 1958 e que estreou na ficção em 1982, com Caminhando na chuva, novela que já está na 20ª edição e vendeu 100 mil exemplares. Sairá uma nova edição em 2012, comemorativa aos 30 anos de lançamento do livro, pela editora Leya. Porém, logo abaixo saberemos que Caminhando é seu quarto livro e que os anteriores são comprados e queimados pelo próprio autor.

“A literatura não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Há algumas décadas atrás, o escritor era considerado o reflexo ou uma espécie de reserva moral da sociedade, uma figura importante, ouvida sobre vários assuntos de sua época. Hoje ele foi deslocado deste papel. Qual é, atualmente, o papel do escritor na sociedade?

Charles Kiefer – Boa pergunta, hoje dei uma aula sobre isso. Discutimos sobre o realismo e a função social do escritor. Mas eu começaria a responder falando sobre um livro que eu adoro, chamado Era uma Vez a Literatura, de José Hildebrando Dacanal, no qual ele diz que numa sociedade iletrada, onde a base social são analfabetos ou semiletrados, o escritor vira gigante, pois ele domina um código oculto. Então, numa sociedade de baixo nível cultural, a literatura toma um papel fundamental, assim como nas sociedades recém-formadas. Quando tu não tens um conceito de nação, a literatura é quem faz o papel de construtora da identidade nacional. No Conesul, se não existisse o romance de Ricardo Güiraldes, Don Segundo Sombra, essa imagem do gaúcho que temos hoje não existiria. A literatura está por trás disso. Ela é quem trouxe a imagem que chamamos, na teoria, de mitopoética, que acaba reproduzida pela população.

Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio.

Sul21 – Isso numa sociedade rebaixada.

Charles Kiefer – Sim, daí vem um negócio chamado democracia… Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio. Por exemplo, aqui na PUCRS, 40% dos meus alunos vêm do Prouni, são bolsistas e alunos maravilhosos, pois sabem que aquela é a única chance deles, e a agarram com tudo. Enfim, o que está acontecendo é que nós estamos entrando para o que antigamente a gente chamava de concerto das nações. Antes a gente tocava um bumbo lá no fundo e de forma desafinada, agora somos primeiro violino, dando tom para o resto da orquestra. A literatura ainda tem um espaço num contexto destes? Não. E sim, ao mesmo tempo. Ela não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas. Ela conserva e reproduz beleza artística, assim como o cinema, o teatro, a música, a pintura. Aquela coisa do “doutô” da literatura, que é letrado e superior, acabou, não há mais distinção. Agora nós temos um papel de ator coadjuvante. E a outra coisa que aconteceu foi a internet. O conhecimento, que antes era um feudo, está distribuído, o poder está distribuído. Com a internet cada vez mais barata, tu escreves o teu texto, tu fazes o teu jornal. Essa disseminação da informação, essa democratização, tem consequências ainda desconhecidas, muito interessantes, como as que houve nos países do norte da África e na Espanha.

“Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Vários ensaístas reclamam que nas últimas décadas houve uma decadência geral na qualidade artística, tu concordas?

Charles Kiefer – Isso é uma baita bobagem. Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos. Quando a gente tiver distanciamento crítico a gente vai ver a qualidade de muitas coisas. Talvez estejamos vivendo uma nova Renascença. Leio textos fantásticos até em sala de aula.

Sul21 – E os grandes temas estão mantidos?

Charles Kiefer – Amor, dinheiro, poder, guerra e paz?

Sul21 – Eu diria morte, também, e deus.

Charles Kiefer – Sim, sim, mas eu gosto de colocar as coisas em duplas dialéticas, amor e ódio, vida e morte, guerra e paz, fé e ciência. Acho que os grandes temas estão presentes desde o início do tempos, senão não interessa. Apenas mudou a abordagem.

Sul21 – E é curioso como a literatura dialoga com o restante das artes. Se tu melhoras o nível da leitura, melhoras todo o resto em termos culturais, a música, o cinema, o debate político, a visão de mundo…

Charles Kiefer –– … até o cabelo, a roupa, a arte muda totalmente uma pessoa.

Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno.

Sul21 — Voltando à questão dos grandes temas, a literatura busca novos temas, ou ela usa mesmos do passado?

Charles Kiefer – Eu escrevi um livro todo sobre isso, A Poética do Conto: de Poe a Borges – um passeio pelo gênero. O último cara na civilização ocidental que acrescentou coisas novas ao imaginário popular foi Edgar Allan Poe. Isso em 1840, 1849… naquela década. Olha só o que o Poe inventou literariamente: ele inventou o romance policial, o alienígena, as viagens espaciais, inventou também o romance psicológico, dedutivo. A única coisa que ele não inventou é toda essa comunicação de internet. Ele quase chegou a criar isso, num conto dele, de um jogador de xadrez automático.

Sul21 – O Autômato Jogador de Xadrez.

Charles Kiefer – Exato! Ali já é um computador. Ele poderia ter ido adiante e inventando algum sistema eletrônico que resolvia o negócio. Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno. Entretanto ele não é um grande escritor, as histórias dele são mecânicas, os personagens são maníacos, muito neuróticos, o amor é pouco natural, não há nele seres humanos verdadeiros, há obsessões, ele abriu o caminho para Stephen King, Lovecraft.

“Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 Como funciona o projeto Associação Jovem Leitor?

Charles Kiefer – Nós temos muitos escritores, está faltando é leitores. A AJL é uma entidade civil, pública. Eu e os meus alunos fazemos projetos de leitura, criamos bibliotecas e doamos livros para crianças e jovens das comunidades menos aquinhoadas. Temos vários tipos de projetos para atender várias necessidades. Aproveitei o momento em que era patrono da Feira do Livro para dar maior visibilidade ao projeto.

Sul21 – Como foi montado?

Charles Kiefer – Eu fui para os Estados Unidos há anos atrás e vi as tais Gideon Bibles, umas bibliazinhas pequenas onde estava escrito take it, coloquei no bolso e pensei “que coisa legal”. E dentro estava escrito que aquilo era resultado da decisão de alguns ricos empresários cristãos que distribuíam bíblias de graça. E pensei “por que não fazer isso com literatura?”. Eu estava sempre com essa ideia de ficar um dia rico, e quando estava hospitalizado – passei dezessete dias sem nada para fazer -, fiquei pensando, lendo, e constatei que grande parte do PIB do Estado passava pela minha sala de aula nos ensinos particulares. Há gente riquíssima estudando e pensei “por que não reunir todo esse pessoal para fazer algo? Vamos fazer uma associação”. E então mandei um e-mail para os meus alunos e a coisa explodiu. Agora temos CGC, eu fui o primeiro presidente, agora é o Ayala Aguiar. Trabalhamos em parceria com a Câmara Riograndense do Livro. Há muita gente que conseguiu vencer e ganhar dinheiro na vida sem grande instrução. Há muitos alunos de mais idade e bom poder aquisitivo em oficinas minhas, eles notam que estão atrás do resto dos alunos e me pedem indicações de livros, de coisas para preencherem estas lacunas e vencer o atraso. Eles conseguem e sabem o quanto é importante o complemento cultural.

Sul21 – Teu primeiro livro foi escrito aos 17 anos. Soube que tu desejas jogar fora todos os exemplares, queimar se possível…

Charles Kiefer – Verdade, eu compro nas livrarias e queimo. E é pior, porque são três livros, na verdade: O Lírio do Vale, Vozes Negras e Os Caminhantes Malditos. Me arrependo de tê-los publicado. Mas é lógico que não posso tirar o primeiro degrau da escada. Eu era jovem, imaturo, o peso da emoção naqueles livros era infinitamente maior que o da razão. Com essa idade você é só sentimento. E, enfim, depois veio Caminhando na Chuva, que é o primeiro livro do escritor, enquanto os outros são livros do adolescente. Ele é na verdade meu quarto livro, mas a própria editora colocou-o como o primeiro.

Sul21 – Caminhando na Chuva é um grande livro.

Charles Kiefer – Com 53 anos eu posso olhar para trás e achar interessante, mas na época eu nem percebia. (risos) Quando eu tinha 22 anos, morava ali na Avenida Pará, em Porto Alegre, em cima de um açougue, num lugar horrível, e daí eu pensei que minha adolescência estava acabando e que nunca mais teria aqueles sentimentos e emoções. Eu estava vendo novas coisas surgindo em mim, sabia que estava mudando; foi então que decidi, é agora ou nunca, ou registro isto ou nunca mais vou ter a oportunidade. Sentei e escrevi o livro em 17 dias. Quando eu comecei a escrever, queria fazer um memorial de adolescente, sob o ponto de vista de alguém que está saindo dessa fase mas ainda está nela. Por isso tem aquele ar de autenticidade, eu consegui o equilíbrio. O Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein, “depois tu só escreveste porcaria”. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar, apesar de ter feito coisas meio loucas como O Escorpião da Sexta-feira.

“Vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Onde tu colocas a questão da razão e da emoção no excelente Quem Faz Gemer a Terra?

Charles Kiefer – Ah, esse livro foi muito repensado, eu passei uns seis meses pensando “de que ângulo vou partir para contar essa história?”. Eu vi aquela briga do Olívio (Dutra, na época prefeito de Porto Alegre) enfrentando baionetas, eu vi tudo ao vivo, e quando cheguei em casa a imprensa já estava transformando todos em marginais, era tudo uma mexicanada zapatista e eu me enfureci, um furor santo, e decidi escrever o livro. O fato de eu ser de Três de Maio também me feriu, pois vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental. Então, quando eu fiz o recorte, vi que tinha o problema do foco narrativo e pensei muito. Até que chegou o momento em que concluí que tinha que contar do ponto de vista do colono. E eu precisava expressar isso numa linguagem ou do colono ou minha, mas escolhi um meio termo, pois ele está preso, o fato aconteceu cinco anos antes e ele recebeu muitas visitas, até de jornalistas, e contou tanto a história, tantas vezes, que o discurso já está polido. Foi o modelo estrutural ideológico que desenvolvi para conseguir equilibrar a visão do personagem com a minha sem errar muito.

Foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. Já eram ladrões de terras e viraram monstros assassinos.

Sul21 – Lembro dos jornais no dia seguinte. A morte de um brigadiano foi tratada como “massacre”. Era um caso difícil, havia um corpo e os jornais apareciam cheios de argumentos para não dar nenhuma dimensão humana ao sofrimento dos colonos. Parecia que o mundo burguês ia acabar pelas mãos do MST.

Charles Kiefer – O acontecimento foi grave, claro. Mas foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. A imprensa já os tinha transformado em ladrões de terra. Viraram monstros assassinos. Indignado com isso, escrevi o livro. Até hoje essa pecha segue associada ao MST. O fato é que eles enfrentam o setor mais conservador da sociedade, então parece adequado qualificá-los como sua antítese, o que não é verdade. O livro é um relato muito autêntico.

Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra.

Sul21 – E o colono veio morar na Avenida Pará… Tu eras um menino pobre de Três de Maio que ouvia Bach, Mozart e Beethoven.

Charles Kiefer – Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra. É complicado… Eu era pobre, estudava numa escola de crianças ricas, pois minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos para mim. Eu não tinha dinheiro para comprar sequer comida no recreio, levava um pãozinho de milho com melado que abria para comer. Era a piada da escola. Eu tinha que ir comer bem afastado num campo de futebol para ficar em paz.

“Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz ‘Não vai lá porque ele está lendo'” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Bullying?

Charles Kiefer – Eu acho que sim, eles implicavam com um blusão de lã que eu tinha, eles pegavam no meu pé, eu coloco isso no Caminhando na Chuva. Era um blusão que eu tinha ganhado da minha mãe e usava ano após ano, era o que ela tinha conseguido me dar, enfim. Mas nada disso me influenciou muito, o que realmente tem peso são meus avós, meu avô paterno era um grande leitor e ainda era músico. Lembro de quando era criança, eu sentado no colo do meu avô, ele contando as histórias do Charles De Coster, como As Aventuras de Till Eulenspiegel. Esse autor ninguém conhecia aqui no Brasil. Meu avô era violinista também, chegou a tocar numa orquestra em Cachoeira do Sul, ele e um irmão dele. Eles casaram com duas mulheres irmãs e foram viver no mesmo terreno, mas as mulheres brigaram, e um dia o irmão do meu avô, de madrugada, bateu com o facão na porta gritando “vem pra fora se tu é homem”. Meu avô, que era muito calmo – era o homem que eu gostaria de ser e não sou – , me contou que, se pegasse o facão e saísse, seria um morto ou um assassino. Então ele não saiu, mas fez as trouxas dele para ir embora para sempre com a mulher. Naquela madrugada, estava saindo um comboio de carroções, como no faroeste, de pessoas indo para a serra. Ele já tinha sido convidado para ir mas não aceitou, daí mudou de ideia e colocou a mulher, os dois filhos, e foi embora, durante dezoito dias no meio do mato até chegar em Três de Maio. Havia três localidades, uma perto da outra – Consolata, Vista Alegre e Caravaggio –, formadas de minifúndios. Mas, enfim, a influência mitopoética que mais me influenciou foi quando eu descobri, numa análise em divã, a imagem do meu bisavô. Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz “Não vai lá porque ele está lendo”. Aquilo era um misto de sentimentos, de ciúmes do livro, da magia daquele negócio. Ele tinha aquela caixinha mágica, eu ficava esperando que dobrasse aquele monte de papéis, fechasse a caixa, para então ficar livre para ir lá no colo dele. E ele contava, abria a caixinha e mostrava o que estava dentro. Eu lembro disto, do louco desejo de conhecer aquilo, por isso já estava lendo aos três anos. Ele gostava muito do que se chama Bildungsroman.

Pois esse meu bisavô era um assassino. Ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e virou Losekann. Quando chegou aqui viveu a vida do outro.

Sul21 – O romance de formação de origem alemã.

Charles Kiefer – Sim, ele lia bons livros e é uma figura mítica para mim, ele era de uma leva de alemães que foram para a Rússia, e se deram muito mal por lá, ficaram miseráveis e tiveram que migrar. E bem, há um crime na minha família, que foi o que originou meu primeiro romance que vou ter de reescrever logo. Pois esse meu bisavô era um assassino. Numa viagem de navio, uma mulher que tinha um jovem marido se apaixonou por outro homem, ele. E ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e meu bisavô, que era qualquer coisa, virou Losekann, quando chegou aqui, viveu a vida do outro. Claro, não havia foto nos documentos, ninguém o conhecia, não deve ter sido difícil mudar de identidade.

Sul21 – Que história fantástica.

Charles Kiefer – Eu precisava escrever um romance sobre isso, né? Não podia ignorar. A minha bisavó, quando estava para morrer, livrou-se da angústia chamando toda a família ao pé da cama, e contou para seus filhos que o pai deles era um assassino. Ela até falou o nome real dele mas ninguém anotou, ninguém teve coragem. Eu até procurei, mas ninguém lembrava.

“As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Uma família alemã de sangue quente essa… Mas eu li no teu blog um texto reclamando que teus livros passaram para a Record e tu achaste que ia aumentar muito as vendas, mas não foi o que ocorreu.

Charles Kiefer – É, é uma coisa meio lamurienta mesmo. O ponto principal é o fato de que quem vendia x exemplares por ano, hoje vende muito menos, e isso é para todos. Com a internet, o pessoal lê menos livros, mas veja como são as coisas: eu publiquei aquele ensaio Para ser escritor e em menos de 40 dias o livro esgotou a primeira edição. Já está na 2ª ou 3ª e circula em oito países. Mas ele não é ficção. Há uma estatística da Associação Mundial do Livro que revela que a ficção está caindo 20% ao ano nas últimas duas décadas. Para isso acho que há uma explicação psicanalítica, psicológica. Hoje em dia, as novas mídias já nos suprem completamente a necessidade de ficção. Na internet você vê filmes em poucos cliques, dentre tantas outras coisas. Há milhares de textos, interesses, estímulos. Por que você vai então ler? Além disso, há problemas de distribuição. As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti. Elas tem uma curva de equilíbrio que tem de ser atingida em tantos dias, e se isso não acontece você fica meio de lado. Elas também não ajudam a tua performance pois não fazem reposição. E bem, aumentou geometricamente o número de autores no mercado, e eu até contribuí com isso através de minhas oficinas. Somando-se a isso o problema de distribuição e a internet, a venda vai lá embaixo. Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros. Eu já até fiz uma coisa louca com a Editora Leya. Eu não cobro direito autoral adiantado. Nunca sei se vou morrer ou não, não quero ficar com conta para pagar. Então, depois de três meses eles me apresentam a primeira prestação de contas. É um dinheiro efetivo que entra. Pela Record, eu recebi já por 3 mil exemplares de uma edição e estou em dívida, pois eu só vendi 6 exemplares no último trimestre. O livro, que é de contos, está em débito com eles, vou demorar uns 50 anos para pagar. Meu novo livro está pronto, Dia de Matar Porco, mas eu preciso revisar, fechar bem ele, e falei para minha editora fazer um contrato para daqui dois anos e sem adiantamento.

Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros.

Sul21 – Me diz como foi tua experiência como secretário municipal de Cultura e secretário adjunto?

Charles Kiefer – Não quero falar disso… o que passou passou.

Sul21 – Foi tão ruim?

Charles Kiefer – Foi bem ruim, mas… Aconteceu uma coisa maravilhosa, que foi minha filha Sofia. Acabei me envolvendo de fato com a Marta nessa época porque a política nos ajudou, a gente estava sempre se encontrando. Casamos e tivemos a Sofia. Foi o que de melhor me trouxe a política…. o resto é resto and the rest is silence (risos).

Sul21 – Tu tens três Prêmios Jabutis, né?

Charles Kiefer – Sim, e fui oito vezes finalista. Perdi até para o Chico Buarque…

Sul21 -Tu perdeste para Budapeste ou para Estorvo?

Charles Kiefer – Foi um estorvo na minha vida. (risos) Olha, talvez tu me perguntes sobre o caso Edney x Chico…

“Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – É óbvio.

Charles Kiefer – Ser jurado de prêmio é muito complicado. Eu dou um prêmio, o Prêmio Sofia de Literatura, dou 3 mil reais para o primeiro lugar, e mais 3 mil reais para o primeiro lugar dos alunos. Eu contrato especialistas em literatura para dar um dos prêmios, e os próprios colegas dão o outro. Esse ano aconteceu algo incrível: os especialistas deram seus prêmios e os alunos deram exatamente a mesma coisa, só que na ordem inversa… Isso mostra que cada pessoa lê um livro diferente.

Sul21 – Com quais livros tu ganhaste o Jabuti?

Charles Kiefer –Com o O Pêndulo do Relógio, Um outro Olhar e Antologia Pessoal.

Daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso.

Sul21 –Bem, vamos falar das tuas oficinas, há alunos épicos que estão há 18, 19 anos contigo.

Charles Kiefer –Engraçado né? Isso começou quando eu estava em Iowa, nos Estados Unidos, convidado pelo governo americano para o International Writing Program. Lá, além de frequentar algumas aulas na universidade, a gente fez um grupo de escritores latino-americanos e alguns asiáticos e europeus. Nos reuníamos nas quintas à noite, no salão de festas de nosso prédio, para apresentar textos uns aos outros. A gente contratava uma moça alemã para nos traduzir, o  Marcelo Carneiro da Cunha também traduziu vários contos meus também. Mas olha… eu gastei cerca de 51 mil dólares lá, um dinheiro nada meu, o governo americano pagava todo o transporte e estadia. Quando a gente quisesse viajar era só ligar para Washington – talvez por isso estejam tão mal hoje… E eu ainda trouxe dos EUA um dinheiro suficiente para comprar um apartamentinho ali na Santo Antônio onde eu coloco minhas quinquilharias, é meu escritório. Mas enfim, daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso. Foi na Casa de Cultura Mário Quintana. Daí, no dia que cheguei para a primeira aula, a Simone Schmidt, que era chefe do departamento de literatura da Biblioteca Lucília Minssen, me disse que teríamos que cancelar: tinha apenas três inscritos. Eles não poderiam me pagar o cachê. Então eu decidi fazer de graça para respeitar o trio. Se Mozart fez concerto para apenas um em Paris, por que o Charles Kiefer não daria aula para três? Hoje eu tenho sete turmas particulares, dou aula aqui de noite (na PUCRS), de manhã na Palavraria, e tenho 1400 pessoas em lista de espera. Tem gente há oito anos esperando uma vaga. Eu desmanchei os dois grupos de sábado pois vou dar aula aqui também, e ali estava o Reginaldo Pujol Filho, que participava há 17 anos.

Sul21 – Eu sou um cético em relação às oficinas…

Charles Kiefer – Como o Dacanal…

Sul21 – Ele tem um livro contra as oficinas. Quais seriam os teus argumentos a favor então?

Charles Kiefer – Uma vez, um professor que me entrevistava fez uma pergunta mais ou menos assim. Daí eu brinquei com ele e disse que todo o ovo nasce para ser galo ou galinha, mas se o ovo não for galado não vai ser nada além de um ovo. Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura. Bem, eu estou participando da equipe que está montando o Curso de Mestrado e Doutorado de Escrita Criativa. Pela primeira vez na América Latina haverá um curso assim, com cadeiras específicas, de estudo de cinema, teatro, literatura, poesia. Olha, é um curso integral, fascinante.

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Ferreira Gullar, uma triste figura no Roda Viva

Ferreira Gullar, uma triste figura no Roda Viva

Ferreira Gullar foi o entrevistado de ontem no Roda Viva. O programa, agora capitaneado por Marília Gabriela, é parecido com o Manhattan Connection, ou seja, parece uma sucursal televisiva da Veja. Gullar, aos 80, é ainda uma figura sedutora, fluente, de ar jovial, com a qual é complicado não estabelecer imediatamente empatia.

Além disso, também não sou indiferente a sua poesia. Como tenho 53 anos, pude comprar a primeira edição do Poema Sujo e também a primeira versão do Toda Poesia, onde havia por inteiro toda sua obra poética de antes dos anos 80. Li aquilo com devoção. Gullar era um de meus deuses por suas qualidades de poeta e não pretendo atacar o que considero inatacável. Após Barulhos (1988?, 87?), começou a decadência. O homem ficou cada vez mais crítico de arte e menos poeta.

É óbvio que tenho vontade de ligar seu direitismo tardio à decadência da poesia. Acho que há ligações mesmo, pois quem se une à direita mais truculenta (Augusto Nunes e amigos), dificilmente terá uma produção que faça sombra ao ex-Gullar, atual José Ribamar Ferreira, simplesmente. Porém, também sei que há Pound e Céline com seus Mussolini e Hitler e que Augusto Nunes não poderia comparar-se a estes, pois está abaixo em realizações — não consegue nem obter votos para o Serra, imaginem.

Então, minha afirmativa de ontem no twitter de que “Ferreira Gullar preservou pouca coisa daquilo que o levou a ser Ferreira Gullar” é baseada não apenas numa posição política, mas numa sensilidade de leitor. Principalmente depois de Muitas vozes, mas já clara em O Formigueiro (acho que é este o nome do livro do início dos anos 90), o poeta já tinha abandonado o barco para dar lugar a um bom crítico de arte.

Então, fiquei realmente deprimido ao ouvir a multidão de lugares comuns do programa de ontem. Fui dormir cedo para esquecer.

P.S. — Ah, eu sempre brincava com meus amigos dizendo que eu cantara em casa O Trenzinho do Caipira de Villa-Lobos com a letra de Gullar antes do Edu Lobo gravar a música. E era verdade! A letra está no Poema Sujo com uma ordem mais ou menos assim: leia os versos a seguir cantando sobre a melodia do Trenzinho Caipira das Bachianas Brasileiras Nº 2. Este é um de meus orgulhos mais bobos da juventude…

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Também amor, penso

Elogio (da inteireza)

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

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Papéis Reencontrados

O dia 24 era um domingo e, no dia seguinte, 25 de setembro de 2006, minha filha completaria doze anos. No mesmo dia 25, o mundo musical comemoraria os cem anos de nascimento de Dmitri Shostakovich. Lá pelas tantas, naquele domingo em acontecimentos, resolvi olhar os e-mails. Havia um do escritor Fernando Monteiro.

Era um poema, uma litania que Fernando escrevera e dedicara a mim — seu geograficamente longínquo amigo — e a Bárbara. Fiquei honradíssimo com a dedicatória, li o poema para minha companheira de dedicatória e aquela Litania nos cem anos de Shostakovich acabou publicada em alguns jornais. Lembro que planejei fazer referências a estas publicações, mas nunca as fiz.

Hoje, ao procurar uns papéis, encontrei a Litania grampeada a outros dois papéis: um da imagem de uma página de 23 de fevereiro de 2007 do caderno “Anexo – Idéias” do jornal A Notícia de Joinville, onde a Litania tinha sido publicada, e outro, um e-mail de Fernando, explicando-me que as alusões “venezianas” do poema — detritos, crianças, gradis, febre, scirocco –, eram uma homenagem a Mahler que, para ele, é o que Shostakovich é para mim.

Fernando, digo-te que meu coração musicalmente promíscuo também coloca Mahler antes do amado Shostakovich…

No final, antes de escrever este post, examinei demorada e amorosamente a primeira folha, a da litania sozinha, onde há a linda e enorme letra infantil de minha filha. Bem sobre o B.R., ela escreveu Bárbara Ribeiro.

Litania nos cem anos de Shostakovich

Fernando Monteiro

Para M.R. e B.R.

O torso de beleza afastando-se
Como se afasta um afogado
Das margens da praia
Também recuada para trás
De onde o Mediterrâneo
Vinha beijar os pés das sílfides,
Debaixo do sol silencioso.

Abandonados pelas crianças,
Os brinquedos da marina
Zunem de calor no metal
Aquecido como as águas.

O planeta está mais quente
E mais enlouquecido
Entre os pios nublados
Do pássaro escondido
Em árvores molhadas
Da chuva ácida que se filtra
De um céu de tempestade.

Aviões caíram nesta manhã,
Levando passageiros
Para o fundo de uma laguna
E o nenhum lugar da selva
Remota que irá retomar
Seu espaço sobre azulejos
Encardidos e embalagens
Não-degradáveis
Num mundo que prefere o desastre.

Tudo o prenuncia, de certa forma,
E nada está perdoado
Nem foi esquecido
Com todas as coisas que já foram
E com aquelas que ainda serão
Ou que apenas dormem na tarde
À espera dos anos sem emoção.

Os humanos repousam
No sono da sombra de toldos
Estalando na Veneza insalubre
Deste lado do Atlântico
De exímios nadadores
que não viram as crianças
Se afogando.

Sim, eu prefiro estar
Por apanhar um resfriado
Antes da peste
No limite da cerca-viva
De mato e detritos do lixo
Avançando até o antigo gradil
De gladíolos brancos.

É minha a opção de não manter
A saúde, fumar e perder esperança
Na vigilância sem objeto,
Exposto ao vento da tarde,
Ao siroco da mente
Igualmente desistindo
Das perguntas a ninguém
Muito depois de Pã
Anunciado como morto
Antes da morte dos mares.

Então, não importa molhar
Os sapatos da espuma de solfejos
Rumorejando as queixas do Adriático
Como outrora o mar dos gregos
Deixava leve gosto de salgado
Entre os artelhos limpos
De náiades banhando-se
Nos oceanos mitológicos
Que hoje são de plástico
Cor de chumbo.

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Mario Benedetti (1920-2009)

A Meg me avisa que um dos escritores que mais amo morreu ontem em Montevidéo aos 88 anos. Claro que foi uma vida longa, prolífica e deveríamos ficar felizes com uma existência assim, só que Mario Benedetti, mesmo em seus livros mais políticos, tinha uma voz tão próxima do leitor, tornava-se tão íntimo de nós, que é impossível não se sentir triste por ele, pela literatura, pelo Uruguai e por nós, que vamos ficar privados de sua companhia. Gosto muitíssimo dele e agora improvisarei qualquer coisa em sua memória.

Rodolfo Nin Novoa, presidente em exercício do Uruguai, María Simon, ministra da Cultura, e Ricardo Ehrlich, prefeito de Montevidéu estão preparando seu velório no Palácio Legislativo e seu sepultamento no Panteão Nacional.

A Agência EFE publicou a seguinte nota, de Juan Antonio Sanz:

Montevidéu, 17 mai (EFE).- O escritor uruguaio Mario Benedetti deixa atrás de si uma rica obra, na qual os mais de 80 romances, ensaios, contos e poemas escritos mostram o compromisso social e a coerência de alguém que acreditou “na vida e no amor, na ética e em todas essas coisas tão fora de moda”.

“Ele sempre disse que se sentia mais poeta que outra coisa”, afirmou a biógrafa do escritor, Hortensia Campanella, quando apresentou, há alguns meses, o livro “Mario Benedetti. Un mito discretísimo”.

Na obra, ela traça a trajetória de um dos mitos da literatura hispano-americana do século XX e talvez a consciência poética de todo um continente.

Essa poesia se transformou no único pilar para enfrentar seus últimos anos, após a morte da esposa, Luz López, em 2006, sua companheira há mais de seis décadas e a melhor crítica do poeta.

Benedetti teve “uma vida que foi perseguindo a utopia e que, por isso mesmo, encontrou na poesia sua melhor expressão, ou pelo menos, a mais querida, a mais autêntica”, explicou Campanella.

Joan Manuel Serrat, Daniel Viglietti, Pedro Guerra, Rosa León, Juan Diego ou Nacha Guevara são só alguns dos cantores que deram voz aos versos de Benedetti.

A poesia, dizia Benedetti, é “um sótão de almas”, uma “claraboia para a utopia” e “uma drenagem da vida/ que ensina a não temer a morte”.

Foi também o martelo que lhe permitiu forjar uma carreira literária ligada às profissões mais diversas: empregado de uma oficina, taquígrafo, caixa, vendedor, contador, funcionário público, tradutor e jornalista, antes de se dedicar ao que mais gostava.

“Quando tenho uma preocupação, uma dor ou um amor, tenho a sorte de poder transformar em poesia”, afirmava.

Títulos como a primeira obra do autor, “La víspera indeleble”, os “Poemas de la oficina”, “Rincón de Haikus”, os grandiosos três “Inventarios” ou as “Canciones del que no canta” foram coroados no ano passado com seu último poemário, “Testigo de uno mismo”.

Este livro era “um pouco o resumo de uma carreira poética extraordinária”, com todos os grandes temas da poesia universal transbordando pelas páginas, como disse a romancista Sylvia Lago.

Além disso, nesta obra já se pressentia o final dos dias do escritor, pois ele dizia claramente que se sentia só sem sua amada Luz e com um mundo reduzido: “Chega a noite e estou só/ me aturo a duras penas/ o bom amor a morte o levou/ e não sei para quem seguir vivendo”.

A poesia também deixou muito espaço para a prosa na obra de Benedetti e, assim, seu principal romance, “La tregua”, é uma das luzes da literatura do continente, com mais de 140 edições em 20 idiomas desde que foi publicado, em 1960.

O poeta também dedicou tempo aos contos, nos quais “cada palavra tem valor por si só” e, sobretudo, “têm a ver com os sentimentos”, como explicou em 1998.

O conto “é o gênero mais gratificante, tanto para o autor quanto para o leitor”, pois, “desde tempo imemorável, as pessoas gostam de que lhes contem coisas, e alguns gostam de contá-las”, dizia o autor de “Geografía”, “La vecina orilla” e “Montevideanos”.

Tanto a prosa como a poesia de Benedetti foram reconhecidas amplamente, e isso é atestado por prêmios Ibero-americano José Martí (2001) e Internacional Menéndez Pelayo (2005).

Em sua última aparição pública, em dezembro de 2007, Benedetti recebeu a Ordem Francisco Miranda, dada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, na Universidade da República do Uruguai, aclamado pelas centenas de estudantes que reconheciam no poeta um ícone nacional.

Chávez reconheceu o autor de “Gracias por el fuego” como um ícone da esquerda latino-americana, pelo compromisso social que refletiu em sua vida, com o exílio durante a ditadura uruguaia na Argentina, em Cuba e na Espanha, e, sobretudo, em sua obra.

“A consciência é a única religião”, chegou a dizer este crítico da “grande hipocrisia que rege toda a vida política” e da globalização, à qual chamou de “ditadura indiscriminada, que cada vez conduz mais ao suicídio da humanidade”.

Em declarações à Agência Efe em junho de 2002, Benedetti explicava que, apesar de “os poetas não terem capacidade de influir nos Governos”, “atingem o cidadão comum, e, às vezes, servem para esclarecer uma dúvida, para dar uma tímida resposta a uma pergunta de alguém”.

Há alguns meses escrevi uma resenha a respeito de seu grande ensaio sobre a mediocridade, o romance A Trégua.

E, em meu blog anterior, publiquei duas resenhas curtas:

Eu já deveria ter lido Gracias por el fuego há muitos anos. Afinal, tudo o que do uruguaio Mario Benedetti me caiu nas mãos foi apreciadíssimo. Durante a Feira do Livro de Porto Alegre, descobri que havia uma edição em pocket da L&PM e finalmente o adquiri. É um livro político que trata do tema da frustração e do conformismo ou impotência frente à realidade, mas também é um romance psicológico que trata da baixa auto-estima. A obra foi censurada durante as ditaduras no Uruguai, na Argentina e na Espanha e diria que nunca estes governos foram tão exatos ao identificar algo que os explicasse e ameaçasse. A relação de Ramón Budiño com seu pai é a analogia perfeita dos métodos utilizados pelos regimes ditatoriais e uma aula sobre corrupção. Nada mais atual. Sem palavras de ordem, sem discursos datados e fora de hora, o livro tem boa trama e convence por seus personagens bem construídos e por sua humanidade. E traz, como sobremesa, uma figura de mulher absolutamente irresistível: Dolly, ou Dolores, para os íntimos. É uma pena que não tenhamos no Brasil uma obra sobre os tais “anos de chumbo” que chegue aos pés de Gracias por el fuego.

A Borra do Café, do uruguaio Mario Benedetti (Record) é um livro fácil de ler, daqueles de levar na mão de um lugar a outro. A princípio, parece ser um livro de crônicas, mas estas começam a completar-se e a ter continuidade formando um curioso romance feito de mosaicos. É notavelmente bem escrito e — por que não? — montado. Destaque para as descrições das primeiras experiências sexuais do personagem principal e para o ambiente da Montevidéo dos anos 30 e 40.

Termino este obituário com outro, escrito por Benedetti. O refinado escritor era capaz de momentos de ódio, como quando festejou a morte de Ronald Reagan. Leiam:

A Ronald Reagan, a la muerte de un canalla

OBITUARIO CON HURRAS, de Mario Benedetti

Vamos a festejarlo
vengan todos
los inocentes
los damnificadoslos que gritan de noche
los que sueñan de dia
los que sufren el cuerpo
los que alojan fantasmas
los que pisan descalzos
los que blasfeman y arden
los pobres congelados
los que quieren a alguien
los que nunca se olvidan
vamos a festejarlo
vengan todos
el crápula se ha muerto
se acabó el alma negra
el ládron
el cochino
se acabó para siempre
hurra
que vengan todos
vamos a festejarlo
a no decir
la muerte
siempre lo borra todo
todo lo purifica
cualquier día
la muerte
no borra nada
quedan
siempre las cicatrices
hurra
murió el cretino
vamos a festejarlo
a no llorar de vicio
que lloren sus iguales
y se traguen sus lágrimas
se acabó el monstruo prócer
se acabó para siempre
vamos a festejarlo
a no ponermos tibios
a no creer que éste
es un muerto cualquiera
vamos a festerjarlo
a no volvermos flojos
a no olvidar que éste
es un muerto de mierda

Em português:

OBITUÁRIO COM HURRAS, de Mario Benedetti

Vamos lá, vamos festejá-lo
estão todos convidados
os inocentes
as vítimas lesadas
os que gritam de noite
os que sonham de dia
os que sofrem no corpo
os que alojam fantasmas
os que pisam descalços
os que blasfemam e ardem
os pobres congelados
os que amam alguém
os que nunca se esquecem
vamos festejá-lo
estão todos convidados
o crápula morreu
acabou-se a alma negra
o ladrão
o porco
acabou-se para sempre
viva
estão todos convidados
vamos festejá-lo
para não dizer
que a morte
apaga sempre tudo
tudo purifica
num dia qualquer
a morte
não apaga nada
ficam
sempre as cicatrizes
viva
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não chorar como de hábito
que chorem os que são como ele
e que engulam suas lágrimas
foi-se embora o monstro magnata
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
sem ficar mornos
sem acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
sem ficar frouxos
sem esquecer que este
é um morto de merda

Um morto de merda é tudo o que Mario Benedetti não é. Em 2006, Benedetti perdeu sua esposa, que se chamava Luz e com a qual era casado desde 1946. Nunca se recuperou. Luz o acompanhou no longo exílio pela Argentina, Peru, Cuba e Espanha. Benedetti afirmava que a literatura era “um sótão de almas”, uma “clarabóia para a utopia” e “uma drenagem da vida que ensina a não temer a morte”.

Atualização das 7h20: aqui, um excelente texto sobre Benedetti. E aqui, imagens — quase todas recentes — do velhinho.

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