“Somos Azuis, Pretos e Brancos”: o Tricolor em busca de suas cores

“Somos Azuis, Pretos e Brancos”: o Tricolor em busca de suas cores

O presente texto é produção de Matheus Donay da Costa, que na época de publicação do texto estava no quarto semestre do curso de História da UFSM. Trata-se de uma revisão do livro “Somos Azuis, Pretos e Brancos”, do jornalista Leo Gerchmann. Matheus é integrante do Stadium- Grupo de Estudos de História do Esporte e das Práticas Lúdicas. Os resultados parciais deste trabalho foram já apresentados e o resumo publicado nos anais do XIV Encontro Estadual de História da Associação Nacional de História – Seção Rio Grande do Sul (ANPUH-RS), em julho de 2018.

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Quantas cores cabem em um clube de futebol? Na cidade da longevidade, Veranópolis (interior do RS), o clube homônimo carrega um título pouco comum no esporte: pentacolor. A seleção holandesa carimbou na história apelido que dialoga com sua cor, imponente e singular. Nos tempos de Cruyff cunhou-se o termo “Laranja Mecânica”. Na mesma década do sucesso holandês, as arquibancadas do estádio Olímpico transformavam o Grêmio num clube de 7 cores: as do arco-íris, por méritos da torcida Coligay.

Em 1903, ano da fundação, foi definido que o uniforme do Grêmio seria listrado nas cores azul e havana, com gravata branca. Por falta de oferta no comércio, o havana foi substituído pelo preto e assim se fazia o tricolor de Porto Alegre. É o que nos conta o jornalista Leo Gerchmann no seu livro Somos Azuis, Pretos e Brancos, publicação que provoca algumas inquietações em leitores curiosos.

Capa do livro “Somos Azuis, Pretos e Brancos”.

Comigo, a relação com o livro inicia-se no inverno de 2015 em Santa Maria. Lembro que fazia bastante frio e fui à feira do livro em busca da recém lançada obra da L&PM, o livro do Gerchmann. Indisponível, mandei mensagem para o autor. Em 2 dias, estava em destaque na banca da editora. Texto lido, alguns questionamentos na cabeça, novas histórias e personagens a conhecimento do público. Histórias que, conforme o autor, ficaram esquecidas ou deixadas em segundo plano por muito tempo por diversas razões.

O tempo passou, entrei no curso de História e, em contato com aquele universo cotidiano de palavras – historiografia, fonte, método, teoria – um ensinamento: ler a contrapelo. Assim voltei à obra do Leo, sabendo que não se tratava de uma produção acadêmica, ainda que fosse um livro de história (como está identificado na sua classificação). E a história, se pretendemos levá-la minimamente a sério, exige método. Logo de cara constatei: esta história pra mim começa no gelado inverno santamariense de 2015, para o Leo começa (ou se intensifica) numa noite fria de agosto de 2014, quando ocorre o episódio de racismo com o goleiro Aranha na Arena.

Não demorou muito para que o clube abrisse suas portas para o lançamento de Somos Azuis, Pretos e Brancos. Eis uma nova memória em disputa, diferente daquela difundida popularmente: o clube do povo (Internacional) versus o clube da elite branca (Grêmio). A proposta do autor é clara: acabar com a pecha atribuída ao tricolor, desfazer a injustiça. Marcos Rolim, autor do prefácio, é enfático: “A investigação histórica de Léo Gerchmann nos libertou”.

Mesmo que escrito por um jornalista e a obra seja reivindicada como livro-reportagem, chamo a atenção para um aspecto fundamental. Aqui, faço uso de um trecho do livro “Pesquisa Histórica e História do Esporte”, elaborado por diversos pesquisadores da área. “A questão é simples e óbvia, mas deve ser relembrada, inclusive porque é clara a característica multiprofissional do campo de investigação (no qual atuam “historiadores de formação”, mas também oriundos de outras áreas): qualquer que seja a opção teórica/metodológica adotada, a história do esporte é sempre história. São os debates da disciplina-mãe (bem como das ciências humanas e sociais como um todo) que devem nortear a atuação do pesquisador, independentemente da sua área original de formação.”

Com base na leitura de Somos Azuis, Pretos e Brancos, tentei pinçar as fontes utilizadas, afinal, é impossível revisitar o passado sem acessá-las. Nas primeiras páginas, as fontes são indicadas como documentos abertos de forma irrestrita pelo Grêmio (no livro aparecem ainda algumas colunas de jornais e fotografias), além do auxílio do Memorial Hermínio Bittencourt e do Museu do Grêmio, ambos pertencentes à instituição, além de alguns entrevistados. Todavia, o grande problema de Somos Azuis, Pretos e Brancos reside aqui, nas fontes.

Fontes orais

Num mundo tomado pelas fake news, quem preza pela qualidade de uma informação/afirmação demanda que ela seja corroborada de alguma forma. Assim, toda e qualquer conclusão há de ser amparada em fontes concretas, estilhaços do passado que nos oferecem caminhos para buscar acessar o que já aconteceu. Em Somos Azuis, Pretos e Brancos, constantemente são expostos relatos orais de entrevistados. Frente a esta situação, me questiono: o que Gerchmann faz em seu livro é história oral?

Na historiografia, a pertinência dessa metodologia é constantemente debatida. Afinal, é a história relatada por um indivíduo, com suas crenças, suas emoções, sua subjetividade. História oral não é um fim em si mesma, e sim um meio de conhecimento (Alberti, 2007). Quando se estuda um tema através da oralidade, é preciso estudar os diversos discursos produzidos pelos entrevistados, ou seja, as variadas narrativas tornam-se objeto de análise.

Vamos aos casos de Somos Azuis, Pretos e Brancos. No segundo capítulo, Gerchmann expõe uma situação em que o Internacional não aceitava analfabetos. A fonte? “Relatos de pessoas que viveram os primórdios do clube”, segundo ele. Mas quem são essas pessoas? Quando isso foi sabido? Curiosamente, esse tipo de produção de história nos remete muito ao que Gerchmann critica em seu texto: histórias transmitidas sem responsabilidade, que perpetuam atribuições que a princípio não condizem com a instituição. Aliás, a denúncia é interessante. Uma investigação contundente poderia trazer informações inéditas acerca de uma eventual exclusão por parte do Internacional.

Em outro momento, Léo recorre a Tarciso (atacante negro do Grêmio dos anos 70 e 80). Para corroborar a tese, diz Tarciso: “Nunca sofri preconceito no Grêmio. Fui muito bem acolhido e vivi grandes alegrias. Sou muito grato ao torcedor gremista e ao povo do Rio Grande do Sul.”  Contudo, vale pontuar que Tarciso é o segundo maior artilheiro da história do clube. A acolhida e o trato com um jogador de glórias dentro das quatro linhas podem transcender (ou amenizar) muitas barreiras raciais, não?

Somos Azuis, Pretos e Brancos é recheado dessas conclusões amparadas por uma metodologia pouco crítica, que arbitrariamente escolhe o que considerar e o que relevar. Utilizar as palavras de um jogador negro para descartar a discriminação no clube é no mínimo duvidoso. O mesmo ocorre com a transcrição de falas de Alcindo, o maior goleador do Grêmio. Segundo ele, sempre achou estranho quando diziam que o clube era segregacionista. “Xingamentos racistas? Oriundos apenas da torcida do Internacional.

Analisando todas essas passagens do seu livro, é notório que há um esforço em fazer história através da metodologia oral. Ao passo que há este esforço, há também muitas idas na contramão de uma história oral coesa. Primeiramente, por afirmações não corroboradas por outros tipos de fontes. Em segundo lugar, por considerar a narrativa dos seus entrevistados (o restrito nicho de dois ex-atletas negros do Grêmio) provas irredutíveis. Não há crítica ou investigação histórica, como recomenda-se. A compreensão também fica menos nítida por não saber que tipo de perguntas Gerchmann fez às suas fontes e como conduziu as entrevistas.

Fontes documentais

Trabalhando com documentos, Leo Gerchmann dedica um capítulo inteiro para o primeiro estatuto do clube, uma consolidação das primeiras atas. Segundo ele, um documento de vanguarda que seria aceito por qualquer entidade progressista do nosso século. Aqui, me chama a atenção as interpretações extraídas dos artigos do estatuto. Dos deveres dos sócios, o artigo 6 exige bom comportamento no recinto da sede e fora dela. Léo celebra tal exigência no comentário que a segue. Mas afinal, o que seria um bom comportamento no ano de 1911, pouco mais de 20 anos após a proclamação da República, em uma Porto Alegre em constante crescimento urbano e industrial?

Ainda no estatuto, Gerchmann não poupa exclamações para salientar um trecho que exige o respeito às nacionalidades, crenças e opiniões de seus consócios. Me pergunto de novo, quais são as crenças e as opiniões dos consócios do Grêmio em 1911?  Para validar a ideia de que este artigo do estatuto sugere um clube democrático (como é feito no livro), seria indispensável saber quais são as crenças.

O autor ainda endossa um trecho que fala em “vedar a entrada no recinto do Grêmio às pessoas que achar inconvenientes” traçando um paralelo com a atualidade, onde o Grêmio e outros clubes têm tentado fazer com as torcidas organizadas. Mas afinal, deveriam as torcidas organizadas serem vedadas e tratadas como inconvenientes? Uma posição pouco comum entre aqueles que defendem um futebol popular.

Fontes fotográficas

Imagem em destaque da capa do livro “Somos Azuis, Pretos e Brancos”.

Outro recurso que é muito utilizado no livro são as fotografias, principalmente no capítulo “Os negros além de Adão”. Ainda que seja muito sugestiva, uma foto não contém em si uma verdade absoluta. São inúmeras as variáveis: luz, sombra, estado de conservação, revelação do filme, principalmente fotografias em preto e branco.

No livro são apresentadas fotos de jogadores identificados como negros e mulatos pelo autor, com propósito de desmentir a história de que Tesourinha, apenas em 1952, teria sido o primeiro jogador negro do Grêmio. Buscando por outras fontes que dessem alguma pista, encontrei a biografia de Tesourinha publicada por Sergio Endler em 1985. Ele afirma: “Na verdade o Grêmio já utilizara em sua equipe jogadores considerados “baianos”. Isto é, homens com algum traço biológico negro, mas com predominância branca na sua aparência física.”

Todavia, Endler não trata o tema com a devida precisão, o que exigiria uma  investigação mais profunda. No mais, jornais da época (que não são abordados no livro) acusam a estreia de Tesourinha como um marco histórico, o fim de um preconceito de 50 anos vigente no clube. Aliás, cabe aqui uma ressalva acerca do uso de jornais: eles também não são detentores da verdade, produzem discurso com base em diferentes variáveis, como a ideologia dos proprietários, interesses econômicos, políticos, entre outros. Pra mim, a questão dos primeiros jogadores negros do Grêmio permanece ao menos aberta à discussão. Requer uma análise mais apurada, que cruze outras bibliografias e fontes históricas.

Jornal do Dia, em 15/02/1952, trata como bombástica a especulação do jogador “colored” Tesourinha.

O historiador (ou qualquer um que se sujeite a construir uma história) está fadado à arbitrariedade. Escolhe qual fonte vai trabalhar, qual vai deixar de fora, como vai produzir o texto. Seria inocente pensar o contrário. Acontece que em Somos Azuis, Pretos e Brancos a arbitrariedade soa gritante, demonstra-se escancarada a cada parágrafo, revelada em contextos mal explicados ou sequer mencionados. No capítulo chamado “Prejuízos do Marketing”, Gerchmann discorre sobre um período de crise no Grêmio, onde se cunhou a “cruel e indevida caracterização de elitismo”.

Os anos 40, de fato, não foram fáceis para o clube. O rival Internacional empilhava campeonatos gaúchos com o time que ficou conhecido por Rolo Compressor e que contava com jogadores negros no elenco. A abertura do Grêmio era quase que uma necessidade para interromper a hegemonia colorada. Para o autor, este episódio de crise foi meramente socioeconômico, longe de qualquer questão racial. Um período em que, para se reerguer, o clube foi atrás da sua “essência”.

Mas afinal, o que seria “voltar à essência”? Este período turbulento só é retomado posteriormente por Gerchmann no capítulo “Preconceito? Algo a ser combatido por todos”, um espaço onde procura (com muita resistência) reconhecer notórios episódios racistas na instituição.

Nos anos 40, se destaca uma figura no clube chamada Aurelio Py, antigo presidente do Grêmio e conselheiro à época. O livro reproduz na íntegra o discurso de posse de Py, chamado “O credo do bom gremista”, que em algum momento diz: “Creio no Grêmio porque, trabalhando pelo aprimoramento da raça, colabora na formação de uma raça eugênica para o nosso futuro.” Gerchmann faz uma citação interessante aqui, explicando a eugenia através de Francis Galton, que seria “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente.” 

O que chama a atenção é a conclusão tomada pelo autor, que a partir desta definição conclui que a eugenia citada por Aurelio Py seria a recuperação da alma gremista vitoriosa, e não uma referência à raça no sentido biológico. Como escrevi anteriormente, tal capítulo propõe-se a reconhecer erros, ainda que seja extremamente resistente. Isso porque todo e qualquer evento citado precede ou antecede da palavra “ato isolado” ou “episódio menor”.

Imagem da webserie no canal oficial do Grêmio no Youtube. Título é o mesmo do livro de Leo Gerchmann e conta a trajetória de diversos jogadores negros no clube.

Problemático tanto no uso de fontes como nas interpretações, vejo a narrativa do livro como outro ponto a ser debatido. São constantes os malabarismos retóricos para desvincular o Grêmio de qualquer origem elitista e segregacionista e acabar com a imagem de “bom moço” do Internacional. A escrita fala por si só, com palavras escolhidas minuciosamente, principalmente quando Gerchmann discorre sobre os primórdios do Grêmio e sua relação com a família Mostardeiro (que vendeu terrenos para o clube e foi sócia da instituição).

Fica notório em passagens como “Mostardeiro e Dona Laura eram um casal de origem humilde que fez fortuna com muito trabalho e tino empreendedor”. Conta também que Dona Laura promovia festas para trabalhadores, muitos deles ex-escravos e que lá se liam poesias socialistas. Fatos alheios à história do Grêmio mas que transmitem uma ideia, ainda que inconsciente, de aproximação popular do clube no seu início. Quanto à atribuição do Internacional à uma origem elitista, faço questão de reproduzir as palavras de Gerchmann:

“Antes de entrar no segundo motivo para a adoção do nome Internacional pelo rival do Grêmio, quero contar um pouco mais sobre esse Internacional de São Paulo. Vejam bem como o mundo dá voltas. Em 1933, em dificuldades financeiras (como o nosso Internacional também viveu por aqui em razão da crise de 1929, o Internacional paulista, cujo uniforme era igual ao do Milan ou do Atlético Paranaense (listras vermelhas e pretas na vertical), fundiu-se ao Antarctica Futebol Clube. Juntos, originaram o Clube Atlético Paulista, que, por sua vez, em 1937, uniu-se ao Estudantes. Daí, saiu o Estudantes-Paulista, que, em 1938, foi incorporado ao São Paulo FC. Sim, o São Paulo Futebol Clube! O Internacional de São Paulo, um dos inspiradores do nome que acabou sendo adotado pelo homônimo de Porto Alegre, é uma das vertentes do São Paulo, o clube paulista tido como mais elitizado, como sede no luxuoso bairro Morumbi, na capital paulista. Que coisa!”

A ideia é simples mas trabalhosa: busca associar, através do Inter de São Paulo (clube onde jogavam os irmãos Poppe, fundadores do Inter de Porto Alegre) e suas diversas uniões e fundições, uma ligação entre luxo, elitismo e o Internacional. Um malabarismo trabalhoso.

História x Memória

Clube se apropriou do título da obra em suas publicações oficias.

Enfim, poderia discorrer tantas outras linhas sobre as diversas passagens contidas em Somos Azuis, Pretos e Brancos. Porém, detenho-me aqui à uma conclusão: tal livro deve ser encarado como um produtor de memória, não de história.

Reproduzo aqui outro trecho do livro “Pesquisa Histórica e História do Esporte” (2013), que melhor elucida essa diferença: “Nesse ponto diferenciam-se os trabalhos do que Marieta de Morais Ferreira (2002) definiu como “historiadores” e “produtores de memória” (history makers). O segundo grupo seria composto por autores que produzem trabalhos sem se ater aos cuidados metodológicos; esses acabam por considerar suas fontes como se fosse um retrato fiel do que ocorreu no passado. Ao utilizarem relatos orais, reproduzem discursos de memória como história, apresentando assim um ponto de vista particular do ocorrido como um estudo crítico do passado.”

Memória e História não são sinônimos, mesmo que conversem entre si. A História precisa, enquanto ciência, ser crítica, suportada por metodologias. Ser carrasca com as fontes, ir à exaustão com perguntas aos documentos. A memória, esta sim, permite a subjetividade, a parcialidade, a reformulação do passado condicionado pelo presente. Se aproxima-se do tipo de conteúdo apresentado por Gerchmann: uma obra importante, sim, que traz à luz uma discussão de extrema relevância, mas que soa oportuna, visto o contexto de sua publicação. O tema é caro e tanto Grêmio quanto Internacional precisam de suas histórias passadas a limpo, para além das fontes institucionais. Precisam da história, não da memória. Memória os milhões de aficionados produzem diária e incansavelmente.

Se no inverno de 2015 quase fui convencido pelo texto do Gerchmann, três anos depois, Somos Azuis, Pretos e Brancos me causa inquietação. Ainda há muita coisa a ser investigada. Há muita conduta a ser revista nos dias atuais para que não voltamos às crises dos anos 40. Que continuemos a tentar descobrir nossas cores, sobretudo, com rigor.


Referências Bibliográficas:

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3ª Ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2007

ENDLER, Sergio. Tesourinha.1ª Ed. Porto Alegre: Editora Tchê!, 1984.

GERCHMANN, Leo. Somos Azuis, Pretos e Brancos. 1ª Ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015

MELO, V. A. et al. Pesquisa Histórica e História do Esporte. 1ª Ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013

 

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Um Outro Futebol, de Roberto Jardim

Um Outro Futebol, de Roberto Jardim

A importância do futebol no Brasil não se reflete em nossa literatura. Há alguns grandes livros, mas o volume de publicações é infinitamente menor do que o espaço que o futebol ocupa na vida, na cabeça e nas conversas dos brasileiros, para não falar nos vastos espaços concedidos ao esporte nos veículos de comunicação. Então, quando é lançado um livro que faz uma minuciosa intersecção entre o esporte e a vida aqui fora — refiro-me à política, ao racismo, às ditaduras, à homofobia e ao futebol feminino, coisas que a imprensa, digamos, “não gosta muito de falar” — temos que saudá-lo.

A obra de Roberto Jardim cumpre brilhantemente o que promete. É realmente um outro futebol, uma outra abordagem. Temos 204 páginas de pequenos textos abordando fatos em sua imensa maioria desconhecidos do público futebolista. Eu mesmo, um viciado em futebol, ignorava a esmagadora maioria do que é (bem) narrado no livro. Há jogadores e técnicos que foram verdadeiros heróis e há tristes vítimas.

O que fica claro é que a intersecção que citei é bem maior do que se imagina. E todos os que pensam que o futebol não se mistura com política — que é o que diz fazer a Fifa, um dois vilões do livro –, minha nossa, não há nada que os defenda. O futebol é uma grande repositório de metáforas e conhecimento e, como tal, vive não apenas dentro das quatro linhas ou dos estádios.

Times de refugiados, times e jogadores insultados, mulheres proibidas de jogar futebol, lutas pela democracia em diversos países, farsas, homofobia, está tudo no livro de Jardim. Há muitos casos que deveriam ser conhecidos. Se tivéssemos mais futebol em nossa ficção, vários deveriam servir de inspiração a autores, tais suas forças. Por exemplo, o caso do jogador inglês Justin Fashanu — que li na fila para votar — me tocou profundamente pela absoluta falta de saída para um jogador que sai do armário. O bombardeio que ele sofreu foi implacável e deu no que deu. Outro exemplo, você sabia que o futebol feminino foi proibido no Brasil por Getúlio Vargas em 1941 e só permitido em 1979? Sim, o preconceito gerou 38 anos de proibição.

Confessadamente inspirado em Futebol ao Sol e à Sombra, de Eduardo Galeano, Um Outro Futebol é um grande livro que recebeu texto introdutório de Xico Sá e orelha de Sérgio Rodrigues.

Recomendo!

Obs.: o livro terá lançamento no próximo sábado (15 de outubro), às 16h30, na Bamboletras, com a presença de Luís Augusto Fischer, Leo Oliveira e de vocês!

Roberto Jardim

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Confinada, de Leandro Assis e Triscila Oliveira

Confinada, de Leandro Assis e Triscila Oliveira

Confinada é um grande livro de quadrinhos. Fran é uma influencer com milhões de seguidores que dispensa duas de suas três empregadas no início da pandemia, ficando apenas com Ju. Ou seja, do trio de servidoras, uma fica. Também conhecida como “musa gratiluz”, Fran quer parar de pagar as que foram dispensadas durante o período de confinamento… Mas vamos sem spoilers. Enquanto isso, em suas lives, instagrams, etc., ela diz estar aproveitando o confinamento para fazer “um balanço”, para “crescer” e para “tornar-se melhor”. E para vender um monte de produtos para seus seguidores, claro.

Ela anuncia, por exemplo, um “pack” com duas máscaras a 147 reais, sendo que, na aquisição, uma cesta básica irá para uma “família favelada”: “Você faz caridade, não morre e fica estilosa”, comemora. Na camufla, ela até organiza festas. Fran e seus amigos têm aquele comportamento usual de boa parte da dita elite que, pelo fato de ter dinheiro, se sente superior. Riem do que consideram piadas, embora sejam ofensas. Debocham dos mais pobres, dizem que os negros são inferiores, zombam de seus hábitos e mesmo suas características físicas, como a “cabeça chata” dos nordestinos e, obviamente, a cor. Recusam-se a cumprir regras, como mostrar a identidade na guarita que controla a entrada num condomínio, pois esta é solicitada por uma pessoa de origem humilde. É o velho e conhecido preconceito de classe misturado com racismo. Para eles, os negros só podem estar em espaços ou ambientes frequentados por brancos se estiverem a serviço. Obedientemente.

Com belos desenhos e um texto afiado e duramente atual, Confinada deixa clara a hipocrisia e o racismo da elite brasileira. Mais: as desigualdades sociais são plenamente justificadas por Fran e sua irmã em tristes (e hilariantes) “telefonemas explícitos”. Sim, é o papinho bolsonarista. Para nós não é nenhuma novidade, mas a arte potente de Assis e Oliveira deixa tudo mais cruel, divertido, e ridículo. A influencer Fran é mais daquele mesmo que temos engolido diariamente. Ela até se arrepende de ter votado no Bozo! Diz que anulou o voto no segundo turno!

Ao final, fica clara a certeza de que muitas Frans estão entre nós. Bem, se não estivessem, teríamos menos casos de racismo e um governo mais decente.

Leandro Assis e Triscila Oliveira

 

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Dia Nacional da Consciência Negra: os cartões-postais dos linchamentos da Ku Klux Klan

Dia Nacional da Consciência Negra: os cartões-postais dos linchamentos da Ku Klux Klan

Retirado daqui.
Tradução livre deste blogueiro

A humanidade pode ser pior do que você imagina, muito pior.

Terrorismo é definido como “o uso de violência e intimidação na busca de objetivos políticos”. A mídia ocidental gosta de pintar terroristas com rostos morenos, mas uma das mais horríveis campanhas de terror aconteceu no século passado em solo norte-americano — os estimados 3.436 linchamentos de homens e mulheres negros americanos entre 1882 e 1950, com o objetivo de controlar e intimidar a população negra pouco antes libertada. Não muitas coisas são mais perturbadoras do que ser confrontado com a evidência visual do lado sombrio da humanidade, especialmente quando são evidências de um ódio generalizado e da violência de um ser humano para com o outro. Este ódio veio do medo e foi impulsionado pela religião e pela crença de que os assassinatos são atos de moralidade. Esta violência visava intimidar e suprimir quaisquer aspirações que uma comunidade possa ter por igualdade e um futuro melhor.

Quando me deparei com a coleção de cartões-postais norte-americanos de James Allen e John Littlefield, publicada em um livro intitulado Without Sanctuary: Lynching Photography in America, notei quão importante é conhecer essas imagens, hoje mais do que nunca. Esses cartões-postais foram feitos para comemorar eventos que fizeram muitos brancos norte-americanos se sentirem orgulhosos — de sua raça, de sua superioridade, de sua civilização e de sua inteligência. Eles tiraram fotos de suas realizações nojentas e covardes para serem conhecidas e lembradas. Nas costas, eles escreveram para amigos e familiares numa empolgação de sociopatas. Esses cartões-postais capturam turbas testemunhando com alegria o assassinato de rapazes e moças, cujo crime mais grave foi a cor da pele. Os cadáveres pendurados e carbonizados nesses cartões-postais viviam em um mundo que contava os dias até seu assassinato, a partir do momento em que colocavam ar em seus pulmões infantis. Essa história é poderosa, de revirar o estômago e de importância essencial. E o mais impressionante sobre essas fotos é que elas não apagam os perpetradores como muitas histórias e memoriais fazem hoje, preferindo focar em quem foi vitimado em vez de naqueles que orgulhosamente — e com o apoio do governo — torturaram, estupraram e assassinaram pessoas. Os assassinos nessas fotos estão orgulhosos, são homens adultos olhando para a câmera com a convicção sorridente de que o adolescente que eles acabaram de matar, um contra cem, merecia seu ódio, medo e frustração. Nenhum grande júri era necessário; a lei estava nas mãos dos assassinos. 

A história não é linear. A história está acontecendo ao nosso redor, o tempo todo. Essas fotos são contexto, são realidade, são fotos do terrorismo norte-americano. Esteja ciente de que essas fotos são repugnantes e muito reais.

O linchamento de Elias Clayton (19 anos), de Elmer Jackson (19) e de Isaac McGhie (20), em 15 de junho de 1920, Duluth, Minnesota.

Por James Allen

Eu tenho um brique, sou um catador, um colecionador. É minha vida e minha vocação. Eu procuro itens que algumas pessoas não querem ou não precisam mais e os vendo para outros que precisam. As crianças são catadoras naturais. Eu fui uma delas. Eu brincava com isso desde quando colecionava abelhas em potes.

Meu pai trazia para casa sacos de lona estufados com nomes de bancos, sacos de moedas de cobre ou meio dólar e nós, crianças, sentávamos em volta dos montes de moedas como se estivéssemos em volta de uma fogueira e gritávamos sons de bingo quando encontramos alguma moeda especial.

As mães não aconselham seus filhos a serem catadores. Nenhum adulto deseja ser chamado disso. No Sul dos EUA, é um termo pejorativo. É coisa de gente muito humilde e ignorante, talvez ladra. Tenho tentado trazer dignidade a meu trabalho, viajando incontáveis ​​estradas em meu estado natal, adquirindo coisas que creio serem úteis e reveladoras — móveis feitos à mão, potes feitos por escravos, colchas remendadas e bengalas esculpidas. Muitas pessoas que me vendem estão sobrecarregadas de bens, ou prontas para irem para o lar dos idosos ansiando pela morte. Alguns são vendedores são relutantes, outros ansiosos. Alguns são amáveis, gentis e acolhedores, outros são mesquinhos, amargos e meio enlouquecidos pela vida e pelo isolamento. Nos EUA tudo está à venda, até uma vergonha nacional. Um dia, deparei-me com um cartão-postal de um linchamento. Os cartões-postais pareciam triviais para mim, eram produtos de segunda mão. Ironicamente, a busca por essas imagens me trouxe um grande senso de propósito e satisfação pessoal.

O linchamento de Thomas Shipp e Abram Smith. Este foi um grande encontro de linchadores acontecido no dia 7 de agosto de 1930, em Marion, Indiana. Inscrito a lápis na moldura: “Bo aponta para seu niga.” Fora da moldura está escrito: “Klan 4º Joplin, Mo. 33.” Achatadas entre o vidro e o papel há cabelos da vítima. ”
Este é o cadáver carbonizado de Jesse Washington suspenso em um poste. O verso diz “Este é o churrasco que fizemos ontem à noite, minha foto está à esquerda com uma cruz sobre seu filho Joe.” 16 de maio de 1916, Robinson, Texas.

O estudo dessas fotos gerou em mim um enorme medo dos brancos, medo da maioria, dos jovens, da religião, dos aceitos. Talvez certo cuidado a respeito dessas coisas já estivesse em mim, mas certamente não tão ativamente como após a primeira visão de um frágil cartão-postal de Leo Frank morto em um carvalho. Não foi o cadáver que me impressionou, foram os rostos delgados como cães de uma matilha, circulando atrás da morte. Centenas de mercados de pulgas depois, um comerciante me puxou de lado e em tom conspiratório me ofereceu um segundo cartão, este de Laura Nelson, presa como uma pipa de papel em um fio elétrico. A visão de Laura criou uma camada de pesar sobre todos os meus medos.

Acredito que os fotógrafos destes cartões foram mais do que espectadores dos linchamentos. A arte fotográfica desempenhou um papel tão significativo no ritual quanto a tortura. A luxúria impulsionou sua reprodução e distribuição comercial, facilitando a repetição infinita da angústia. Mesmo mortas, as vítimas não tinham abrigo.

O linchamento de JL Compton e Joseph Wilson, vigilantes. Ocorreu no dia 30 de abril de 1870, em Helena, Montana. A inscrição impressa no canto superior direito diz: “Hangman’s Tree, Helena Montana”. O verso deste cartão afirma: “Mais de vinte homens foram enforcados nesta árvore durante os primeiros dias.”
O corpo espancado de um homem afro-americano, apoiado em uma cadeira de balanço, roupas respingadas de sangue, tinta branca e escura aplicada no rosto e na cabeça. Na parede, há a sombra de um homem usando uma vara para apoiar a cabeça da vítima. Postal de 1900.

Essas fotos provocam em mim um forte sentimento de negação e um desejo de congelar minhas emoções. Com o tempo, percebo que meu medo do outro é medo de mim mesmo. Então, esses retratos, arrancados de outros álbuns de família, tornam-se os retratos da minha própria família e de mim mesmo. E os rostos dos vivos e os rostos dos mortos se repetem em mim e na minha vida diária. Já vi John Richards em uma estrada remota do condado, balançando-se em passadas de cavalinho de pau, cabeça baixa, olhos no chão. Já encontrei Laura Nelson em uma mulher pequena e robusta que atendeu minha batida na porta de uma varanda dos fundos. Em seus olhos profundos, observei uma multidão silenciosa desfilar em uma ponte de aço brilhante, olhando para baixo. E na Christmas Lane, a apenas alguns quarteirões de nossa casa, Leo, um menino pequeno, com a fralda da camisa para fora e o boné descentrado, vai para as orações do sábado.

A silhueta do cadáver do afro-americano Allen Brooks pendurado no arco em Elk, cercado por espectadores. O linchamento aconteceu em 3 de março de 1910 na cidade de Dallas, Texas. Inscrição impressa na borda, “LYNCHING SCENE, DALLAS, MARCH 3, 1910”. Inscrição a lápis na borda: “Tudo bem e gostaria de receber um postal seu, Bill’. O verso do cartão diz “Bem, John – este é um registro de um grande dia que tivemos em Dallas … Um negro foi enforcado por agressão a uma menina de três anos. Eu vi a agressão.”
Os cadáveres de cinco homens afro-americanos, Nease Gillepsie, John Gillepsie, “Jack” Dillingham, Henry Lee e George Irwin com espectadores.6 de agosto de 1906. Salisbury, Carolina do Norte.
Cartão postal do linchamento de Will James, Cairo, Illinois 1909
Bennie Simmons, ainda vivo, embebido em óleo de carvão antes de ser incendiado. 13 de junho de 1913. Anadarko, Oklahoma.
O linchamento de Leo Frank. 17 de agosto de 1915, Marietta, Geórgia. Sobreposta à imagem: “o fim de Leo Frank, enforcado por uma turba em Marietta. Agosto 17. 1915. ”

Imagens do linchamento de Frank Embree, Fayette, Missouri 1899

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Uma aula sobre racismo no Brasil. Com vocês, Roger Machado.

Uma aula sobre racismo no Brasil. Com vocês, Roger Machado.

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No Uber, com um haitiano

No Uber, com um haitiano

Ontem, peguei um Uber com um haitiano. Logo notei que o sotaque me era estranho e ele me disse que sua língua preferencial era o francês.

— E o crioulo?

— O crioulo é a língua das ruas. O francês é a língua da escola, dos livros e dos documentos. Eu falava crioulo na rua, mas tudo o que escrevia e lia lá era em francês.

— São línguas parecidas?

— Sim. Bon jour, bon soir, quase tudo igual, mas o criolo tem algumas palavras diferentes, nossas.

— O francês é oficial?

— Sim. Somos um dos 2 países da América com língua oficial francesa. O outro é o Canadá.

Perguntei como ele aprendera o português.

— Em Manaus, com um professor angolano. Três meses de aula. Bom professor, mas com aquele sotaque e a fala rápida dos portugueses. Tinha que suar para acompanhar.

— E o clima em Manaus, é parecido com o do Haiti?

— Não. O Haiti tem o melhor clima do mundo. É seco e agradável. É dos poucos motivos de orgulho. O sol do Haiti é vitamina, o de Manaus é doença.

— Sim, minha mulher viveu 7 anos lá e concordaria. E como vieste parar em Porto Alegre?

— Meu filho conseguiu emprego aqui. Me ajudou a alugar este carro e estou dirigindo há 4 semanas, sem conhecer quase nada da cidade.

— E tu sente o racismo?

— Claro que sim. Brasileiro não é fácil. Me olham estranho. É difícil alguém sentar do meu lado como o senhor. E reclamam que eu não sei o caminho. Não sei mesmo. Ainda bem que tem o banco de trás, né?

E abriu enorme sorriso.

.oOo.

(Boa sorte no Brasil, M., vais precisar. Detalhe: M. tem 4,66 na avaliação. Não sei se é merecido).

Foto de Porto Príncipe | Foto: Projeto 101 países

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Brancos e pretos nos EUA dos anos 60: o dia em que Muhammad Ali ficou sem cachorro quente

Brancos e pretos nos EUA dos anos 60: o dia em que Muhammad Ali ficou sem cachorro quente

Ali foi fantástico nesta entrevista. Vejam abaixo:

muhammadali

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Tempos de negação

Tempos de negação

É uma saraivada de negações. A menina Patrícia erra novamente ao negar sua atitude. Acho que ela deveria ter dito que boa parte da sociedade GAÚCHA tem sentimentos racistas interiorizados e que, sob frustração ou descontrole, eles afloram. E que ela não deveria ser punida como exemplo. Mas, é claro, seria bonito demais, verdadeiro demais, complexo demais. O que ela fez? Falou dois minutos, usando 15 segundos para pedir desculpas ao Aranha e afirmar que não é racista. Nos 1min45 restantes, pediu desculpas, desculpas, desculpas à torcida do Grêmio, que é o que lhe interessa… Foi tola, melhor se tivesse silenciado. Erra espetacularmente o Koff ao negar o racismo referindo-se às pessoas “de cor”. E erra o Jurídico do Grêmio ao pedir efeito suspensivo. Temo que o Grêmio obtenha o benefício e aí sim teremos uma instituição estigmatizada. Vamos negar e negar. São tempos de maciça negação daquilo que somos.

patricia m

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A arte de relativizar o racismo

A arte de relativizar o racismo
Só cinco
Só cinco, meia dúzia no máximo

Do ponto de vista ético, creio ser muito feia a reação de alguns setores à punição sofrida pelo Grêmio na tarde de ontem. Esta teria sido exagerada e a moça já teria sofrido o bastante. Porém, examinando-se as punições, vê-se que não foram nada demais. O Grêmio foi excluído da Copa do Brasil — punição inócua, pois o time já tinha perdido por 2 x 0 em casa e cairia provavelmente fora –, foi multado em R$ 54 mil — menos de 10% do salário do técnico Felipão — e os envolvidos nos xingamentos proibidos de entrar em estádios por 720 dias. Árbitro e auxiliares foram punidos e suspensos por 45 e 30 dias por não relatarem o ocorrido. Pagarão também uma multinha de manos de R$ 1000. Ou seja, foi uma punição de nada. A moça vai prestar depoimento hoje à polícia, pois racismo é crime. Ou não? Talvez transforme-se em vítima amanhã na imprensa…

Me aboba a reação de Fábio Koff e de alguns envolvidos. Pobre Grêmio, coitadinho do time reincidente específico neste gênero de denúncias. No fundo, estão começando a relativizar o racismo, a compreendê-lo e aceitá-lo. Ontem, ouvi no rádio uma longa arenga na qual um jornalista explicava que foram cinco torcedores proferindo ofensas num universo de 32 mil. Céus, como gritavam, não? Os microfones da ESPN teriam captado os gritos racistas de cinco malucos que faziam uh, uh, uh? Não, gente, menos. Concordo que não era o estádio inteiro, mas era um bom punhado de torcedores da organizada Geral. Faziam barulho pacas, tinham sede no clube e apoio dos dirigentes.

Outros dizem que, pô, é só futebol, é só diversão. Só que o futebol é uma representação de nossa sociedade. O futebol é um palco onde nos vemos e um microcosmo a ser melhorado de modo a atingir a sociedade. Melhorar nosso espelho faz com que mudemos. Já disse que ninguém mais atira objetos em campo em função das punições. Neste caso, a multidão aprendeu a se autorregular. O povo foi educado pela repetição das punições, havendo agora concordância de que não é legal atirar bombas, paus, pilhas e pedras em jogadores e árbitros.

Mas, se, em direção contrária, a sociedade repensa e relativiza os atos de racismo, só posso concluir que ela não os acha graves, que ela não está convencida de que são hediondos nem da dor de ser negro em nosso país. Concluindo, a sociedade quer permanecer do modo como está, agredindo a dignidade de quem é negro.

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Duas propagandas chilenas, uma genial, e minha opinião sobre Suárez

Duas propagandas chilenas, uma genial, e minha opinião sobre Suárez
Suárez foi pendurado pelos dentes
Suárez foi pendurado pelos dentes

Posso começar pelo Suárez?

Assim como qualquer jogador que cometa um ato ilícito não visto pelo árbitro, acho que Suárez mereceu a punição administrativa de nove jogos. Mas, olha, nenhum jogador é um anjinho dentro de campo, basta observar o comportamento deles antes de cada escanteio. Dedo no olho e em outros lugares, por exemplo, é coisa rotineira. O ato mais desumano de Suárez foram as ofensas racistas proferidas contra Evra. Apesar de ele ter sido punido, bem punido, isso sim é difícil de engolir. É minha opinião.

Bom, vamos à diversão, primeiro uma propaganda sensacional que está passando no Chile:

E uma muito mais tosca, mas curiosa:

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Chico Buarque fala sobre o racismo, sobre seu neto e a hipocrisia

chico buarqueChico Buarque comenta o racismo claro ou dissimulado de boa parte dos brasileiros. Ri daqueles que insistem em ignorar os séculos de miscigenação em nosso país. Em seu depoimento, Chico fala de sua revolta ao descobrir que sua filha, casada com o músico Carlinhos Brown, foi forçada a se mudar em razão das agressões que seu filho, neto de Chico, sofria dos moradores. Às vezes, quando ouço pessoas falando de sua genealogia — que sempre evitam suas linhagens não brancas, respondo que tenho pedigree. É que só se encontra portugueses em meu passado. Só que minha árvore genealógica é muito incompleta, muito curta, é dessas que logo se perdem, mesmo que eu tenha cidadania portuguesa adquirida em razão de ter avós portugueses por parte de pai. Aliás, os portugueses nunca se miscigenaram… Daqueles 128 citados por Chico — 4 avós, 8 bisavós, 16…, etc. — deve haver um monte de não brancos. Imagina se não há negros e índios dentre eles? Minha mãe era chamada de índia por seus pais… E os 128 estiveram por aí não faz muito tempo.

Com a palavra, Chico Buarque. Vale a pena ouvir.

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Machado. De mulato a negro em poucas horas

Este é foto mais escura de Machado que encontrei, nas outras, dão-lhe um flashaço

Vou dizer uma coisinha para meus sete leitores. Acho realmente que sou indiferente ao fato de alguém ser negro, branco ou mulato. Só registro em meu cérebro algo diferente se a pessoa for uma mulher muito bonita ou se for japonês ou chinês, que ainda acho exóticos. Ontem, em cima da polêmica retirada do ar da propaganda da Caixa Econômica Federal (CEF), que pode ser vista abaixo, na qual Machado de Assis é emulado por um ator branco, os ativistas dos movimentos sociais começaram a qualificar Machado de negro. Ser negro não desqualifica Machado — creio que até que tal fato seria bastante efetivo na luta em prol do lento fim do racismo em nosso país — , mas é uma mentira. As feições do escritor são de as um homem branco e a pele nem parece tão escura nas fotos. Era o filho mulato de Francisco José de Assis (brasileiro, carioca, descendente de negros alforriados, pintor e dourador) e da lavadeira Maria Leopoldina Machado de Assis (portuguesa da ilha de São Miguel, Açores). Não conheço a qualidade das fotos de 1908 e antes. Talvez houvesse flashes que deixassem tudo esbranquiçado, ainda mais que a maioria das fotos são de estúdio, posadas. Para mim é óbvio que ele tinha ascendentes africanos, mas há muito de europeu em suas feições. O rosto e o cabelo são de um caucasiano, como diria o o velho Orkut. Estou muito errado?

Dona Carolina era uma portuguesa (Porto, 1835), muito culta. Foi o grande amor de Machado.

Acho que, para variar, o politicamente correto exagera ao torná-lo agora negro, a não ser que todo afrodescendente seja considerado negro pelos corretos. Porém, a Caixa errou feio. Senti-me mal vendo a propaganda porque também era uma mentira. Se Machado não era um negão, também não era aquele branquela da propaganda. Também não foi um autor “para brancos”. Seus escritos são incondicionalmente abolicionistas, isto está explicíto em seus livros e principalmente nas ácidas ironias das crônicas. Não era um conformado. E, para piorar, o escritor parece ter sido um homem elegante e bonito, que ganhava de dez do “ator da Caixa”. o qual cumpre honradamente seu contrato, mas que talvez… Bem, resolvamos a questão perguntando a opinião de Dona Carolina!

A chamada "Panelinha", que criou a Academia Brasileira de Letras de Merval Pereira (?)

Mas, ontem, enquanto lia as engraçadas tentativas de escurecer Machado à fórceps ou de tornar negro o Bruxo de Cosme Velho, pensava cá com meus botões: se o escritor fosse como desejam os amantes do correto, teria fundado a Academia Brasileira de Letras, seria um funcionário público bem aceito, teria casado com a alva Carolina Augusta — apelidada Carola pelo mestre — sem maior escândalo? Pois o racismo era aberto, havia a escravatura, não era esta coisa envergonhada e insidiosa de hoje. Então, repito a primeira pergunta, estou muito errado?

Abaixo, a propaganda da discórdia:

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Dramaturgia de senzala

Hoje é o Dia da Consciência Negra e é feriado em grande parte do país. Pois curiosamente, justo nessa semana, a novela Viver a Vida mostrou uma cena que despertou a ira dos movimentos afro. Além da ira, reclamam do sumiço da cena em que a personagem Tereza (Lilia Cabral) humilha e dá um tapa no rosto de Helena (a belíssima Taís Araújo). Sim, concordo; não é muito fácil de encontrar, a Globo deve ter ido à caça, dando cabo da mesma. Mas pus meus cães gugleanos à procura e eles a capturaram facilmente. Está ao final deste post. Dá até para baixar, mas meu micro não vai abrigar porcarias de novelas.

Concordo que a dramaturgia é de senzala e a qualidade do texto torna obra-prima A Escrava Isaura. Quero quer que o movimento negro se indignou mais com a dramaturgia senhor-escravo do que com o texto. Este é muito mais ofensivo àqueles que defendem o aborto, meu caso e das feministas. A CUT também opinou, mas, como tem acontecido, consigo discordar de todos.

As novelas são verdades ficcionais, então não sei se cabem protestos à Globo. Acredito que os irados estejam sendo tolos ao desconsiderarem o fato de que, certamente, Tereza se tornará uma terrível vilã comedora de afrodescendentes — coisa típica dessas “obras” — e que será rejeitada até por sua filha caucasiana. Os protestantes acham que as pessoas que veem essas novelas imaginam que estão ouvindo a razão? Ingenuidade. O que estes “representantes da sociedade” desejam dizer à emissora é que ela não pode criar personagens racistas nem utilizar católicos que sejam contra o aborto? Claro que pode! Talvez até deva, pois eles estão aí mesmo. O que a “sociedade do politicamente correto” deseja é o silêncio, a censura? Menos, né?

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