A interpretação iconográfica de Francisco Marshall sobre o quadro referido no post anterior

A interpretação iconográfica de Francisco Marshall sobre o quadro referido no post anterior

Obrigado, Chico. Ficou sensacional!
Obrigado, Chico. Ficou sensacional!

Neste post, lancei um desafio ao amigo e professor Francisco Marshall: o de analisar o significado do mural presente na sala do café da manhã do Itaimbé Palace Hotel. O resultado foi espantoso. Como disse a grande artista plástica Maria Tomaselli, “a análise foi um elixir de divertimento, raramente uma obra recebeu tão extensiva e explícita descrição e análise”. E completou zombeteiramente: “tô com inveja”. O detalhe é que o Marshall topou o desafio com o maior bom humor, respondendo muito rapidamente, ontem à noite, enquanto se recupera de uma pneumonia. Com vocês, Francisco Marshall: (ah, melhoras, meu amigo!)

Mais um ah: As fotos acompanham vagamente as partes que vão sendo analisadas.

Costumo dizer em minhas aulas de Iconografia e iconologia ou de História da arte que nos interessa a tartaruga em cima da árvore. Tartaruga não sobe em árvore, se está lá, é porque alguém a colocou intencionalmente. É a diferença entre interpretar Botticelli, Tarkovsky, Taviani, Van Damme, Stallone ou Bruce Willis, embora aquele Maverick vermelho possa ter imenso valor simbólico para algum marmanjo na plateia, sobretudo quando explode e este chora. De modo geral, a interpretação faz sentido conforme a intensidade e a qualidade de sua determinação autoral, e há casos em que a interpretação é ridícula exatamente por atribuir significados onde predomina o acaso. Nos painéis do Hotel Itaimbé, trata-se de arte kitsch, comum no interior do Brasil e do mundo, onde se fundem elementos ingênuos com referências da tradição, alguma narrativa e certas pretensões. São interpretáveis, mas temos que considerar alguma fragilidade no sistema, e dar descontos para eventuais inconsistências, ou, pior, para a simplicidade das conclusões.

Este painel tem sentido esquerda-direita e três momentos. Principia de um mundo noturno de silhuetas ferozes, alusivo à rusticidade guerreira dos ancestrais mithistóricos do gaúcho. Das lanças, destaca-se pelo brilho a parte que se assemelha a uma cruz, o que pode ter sido uma solução engenhosa para referir, de passagem, as missões jesuíticas e o papel da igreja na violência colonial. Lanceiros, cavalos, capas, cão: está claríssima a parte escura da obra.

Só faltou ao “fotógrafo” Milton Ribeiro registrar ou publicar a assinatura de quem cometeu a obra, assinada no canto superior esquerdo.

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A parte central é precedida por aurora, junto à figueira. Diante da aurora, a primeira figura é uma jovem nua sobre uma bicicleta com a direção voltada no sentido final da obra. A bicicleta substitui os cavalos, e combina com a graça jovial buscada nesta composição, a qual pode evocar, em alguns espectadores, associações com as Graças (Charites) em geral e com as de Botticelli em particular, mas não vejo relações muito fortes, exceto as que se notam entre o fotógrafo e uma cálida figura tridimensional que ultrapassa minhas capacidades hermenêuticas. A ciclista branca de negras melenas é abraçada por moça ruiva, em um precioso nu frontal. Sempre que ocorre, este tipo de nu é sinal de liberdade e ousadia. As moças desta parte do painel, ninfas, têm cabelos esvoaçantes, que notam que o(a) autor(a) nada sabe de ventos, preferiu movimentos uniformes que acentuariam coreografia, todavia inexistente. A ruiva está com os dois pés no chão e os cabelos voam, tipo do detalhe que consagra a natureza kitsch de uma obra (desculpem, não é pernosticismo: kitsch é um dialeto bem conhecido). A terceira moça do grupo está em destaque, evolui no sentido final (telos) da obra, e conduz guirlanda floral, evocando um pouco (ok, conceda-se Botticelli, com ressalvas) o mundo da ninfa Flora, a Chloris que raptada por Zéfiro virou Flora, descrita no Fasto de 2 de maio de Ovídio (primavera). As primeiras flores são margaridas amarelas, depois, rosinhas de jardim, mas que importa? A parte enigmática está na figura feminina aérea, com os pés na área noturna e a cabeça, com cabelos curtos (?) próxima da face da terceira moça terrestre (ninfa?), como se a soprasse, mas não se nota vento. Ainda na parte aérea, há, após a ninfa floral e intermediando a terceira parte do painel, um putto com um balde do qual derrama-se (aparentemente) água. Não é Eros, pois este teria algum sinal, arco, flecha, carcás, labareda para cima, abelhas, algo assim, mas só tem este balde, que define um novo território, pois suas águas vertem como base da terceira cena. De um modo geral, o painel central permutou a violência histórica por certa graça e vitalidade, em grande contraste.

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Quanto ao violinista, que aparece ao fundo, entre ninfa ruiva e flora loira, pode evocar a fantasia de Chagall (não creio, faltam mais elementos – e sobretudo talento – para se ver esta relação) ou o filme “Um violinista no telhado”, de 1971, cujo poster usava figura muito similar a esta. No caso, pode apontar um terminus post quem (datação mais antiga) para o painel, em 1971, e também uma interferência anedótica, uma concessão do(a) pintor(a) a alguém do entorno, comissionador, amante, amigo(a), mãe, ou o fascínio do(a) autor(a) com o filme, aliás muito bonito mesmo. Fora isto, parece ter como função, no movimento da obra, oferecer uma música mágica para a ninfa Flora que evolui.

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A terceira parte reapresenta as “ninfas”. A ciclista, medianeira, está voltada para a cena central, desta feita sem bici, mas ainda nua e sentada; seus cabelos negros escorrem em simetria com as águas que jorram do balde acima. Parece banhar-se; é um nú um tanto mal desenhado… mas não destoa (!). Logo atrás dela, reverberando o contraste que a mesma figura enfrenta na cena anterior, um cão muito doméstico (e desagradável, estes malditos pequineses) tendo ao fundo silhueta de metrópole com arranha-céus; nisto se transformaram um bravo mastim campeiro e lanças heroicas. Notem que os topos dos arranha-céus têm cruzes, como as lanças.

Há frutas na parte superior do painel, uvas e folhas que começam a secar. As outras duas ninfas estão a seguir, alinhadas, seguindo uma escala decadente, e uma delas a loira, final, tem na mão direita uma maçã, símbolo cristão que aqui conota decadência. Elas se cobrem progressivamente, e são sucedidas, no plano visual, por uma figura masculina encapuzada com um manto, aparentemente verde, e traços fisionômicos que indicam um retrato, um homem jovem, de cabelos negros, bigode e cavanhaque. Aposto que é o artista. Ele tem atrás de si sinais outonais (folhas secas, tronco seco) e o retorno da noite. Esta parte a fotografia não cobriu suficientemente. Encerra-se aqui a descrição iconográfica com alguma análise formal.

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Algumas conclusões:
1. O painel apresenta as estações como alegoria do ciclo do tempo, passando do inverno à primavera, verão e outono, e associadas ao desenvolvimento histórico, passando da guerra à paz, o florescimento, o acúmulo nas cidades e a decadência, na qual ainda cabe um olhar retrospectivo (do artista), místico.
2. Colocar muita roupa é sinal de decadência: de acordo.
3. Colocar qualquer roupa, ora.
4. O Milton me deve um Vinho. Note-se o V maiúsculo.
5. …feita a descrição iconográfica, fica mais fácil (se possível…) viajar, fiquem à vontade, eu cansei!

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Agora, no Sul21

Agora, no Sul21

Latuff trabalha, observado por Bárbara Jardim Ribeiro. Minha filha é grande fã do trabalho dele.

Foto: Bernardo jardim Ribeiro
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro

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A extinta União Soviética completa 90 anos. Tal país, qual arte?

Publicado em 30 de dezembro de 2012 no Sul21

Nicolau II em 1898: um país de grande literatura, mas em convulsão

A ensaísta Flora Süssekind, num livro sobre literatura brasileira, criou o belo título Tal Brasil, qual romance? É com este espírito — apenas com o espírito, pois nossa pobre capacidade nos afasta inexoravelmente de Flora — que pautamos para este domingo o que representou (ou pesou) a União Soviética em termos culturais. Sua origem, a Rússia czarista, foi um estado que mudou o mundo não apenas por ter se tornado o primeiro país socialista do planeta, mas por ter sido o berço de uma das maiores literaturas de todos os tempos. Quem lê a literatura russa do século XIX, não imagina que aqueles imensos autores — Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Turguênev, Leskov e outros — viviam numa sociedade com resquícios de feudalismo. Através de seus escritos, nota-se claramente a pobreza e a base puramente agrária do país, mas há poucas referências ao czar, monarca absolutista que não admitia oposição e que tinha a seu serviço uma eficiente censura. Na verdade, falar pouco no czar era uma atitude que revelava a dignidade daqueles autores.

No início do século XX, Nicolau II, o último czar da dinastia Romanov, facilitou a entrada de capitais estrangeiros para promover a industrialização do país, o que já ocorrera em outros países da Europa. Os investimentos para a criação de uma indústria russa ficaram concentrados nos principais centros urbanos, como Moscou, São Petersburgo, Odessa e Kiev. Nessas cidades, formou-se um operariado de aproximadamente 3 milhões de pessoas, que recebiam salários miseráveis e eram submetidos a jornadas de até 16 horas diárias de trabalho, sem receber alimentação e trabalhando em locais imundos. Ali, havia um ambiente propício às revoltas e ao caos social, situação que antecedeu o nascimento da União Soviética, país formado há 90 anos atrás, em 30 de dezembro de 1922.

Os trabalhadores foram recebidos pela artilharia, sem diálogo

Primeiro, houve a revolta de 1905. No dia 9 de janeiro daquele ano, um domingo, tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do czar, em São Petersburgo. O protesto, marcado para depois da missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao soberano, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos. Lênin diria que aquele dia, também conhecido como Domingo Sangrento, foi o primeiro ensaio para a Revolução. O fato detonou uma série de revoltas internas, envolvendo operários, camponeses, marinheiros (como a revolta no Encouraçado Potemkin) e soldados do exército.

Se internamente havia problemas, também vinham péssimas notícias do exterior. A Guerra Russo-Japonesa fora um fiasco militar para a Rússia, que foi obrigada a abrir mão, em 1905, de suas pretensões sobre a Manchúria e na península de Liaodong. Pouco tempo depois, já sofrendo grande oposição interna, a Rússia envolveu-se em um outro grande conflito, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde também sofreu pesadas derrotas em combates contra os alemães. A nova Guerra provocou enorme crise no abastecimento das cidades, desencadeando uma série de greves, revoltas populares e fome de boa parte da população. Incapaz de conter a onda de insatisfações, o regime czarista mostrava-se intensamente debilitado até que, em 1917, o conjunto de forças políticas de oposição (liberais e socialistas) depuseram o czar Nicolau II, dando início à Revolução Russa.

Lênin trabalhando no Kremlin, em 1918

A revolução teve duas fases: (1) a Revolução de Fevereiro, que derrubou a autocracia do czar Nicolau II e procurou estabelecer em seu lugar uma república de cunho liberal e (2) a Revolução de Outubro, na qual o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução Bolchevique começou com um golpe de estado liderado por Vladimir Lênin e foi a primeira revolução comunista marxista do século XX. A Revolução de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela criação da URSS em 1922. A Guerra Civil teve como único vencedor o Exército Vermelho (bolchevique) e foi sob sua liderança que foi criado o Estado Soviético. Lênin tornou-se, assim, o homem forte da Rússia, acompanhado por Trotsky e Stálin. Seu governo foi marcado pela tentativa de superar a crise econômica e social que se abatia sobre a nação, realizando reformas de caráter sócio-econômico. Contra a adoção do socialismo na Rússia ergueu-se uma violenta reação apoiada pelo mundo capitalista, opondo o Exército Vermelho aos russos brancos (liberais).

Canibais com suas vítimas, na província de Samara, em 1921.

O país que emergiu da Guerra Civil estava em frangalhos. Para piorar, em 1921, ocorreu a Grande Fome Russa que matou aproximadamente 5 milhões de pessoas. A fome resultou do efeito conjugado da interrupção da produção agrícola, que já começara durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou com os distúrbios da Revolução Russa de 1917 e a Guerra Civil. Para completar, houve uma grande seca em 1921, o que agravou a situação para a de uma catástrofe nacional. A fome era tão severa que a população comia as sementes em vez de plantá-las. Muitos recorreram às ervas e até ao canibalismo, tentando guardar sementes para o plantio. (Não terá saído daí a fama dos comunistas serem comedores de criancinhas? Num documentário da BBC sobre o século XX, uma mulher, ao lembrar-se da fome, conta que sua mãe tentou morder sua filha pequena e que ela precisou trancar a mãe e fugir da casa. Bem, continuemos).

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Sobre Nietzsche e “O Cavalo de Turim”, obra-prima de Béla Tarr

Sobre Nietzsche e “O Cavalo de Turim”, obra-prima de Béla Tarr

Philip Gastal Mayer escreveu o que segue em seu Facebook. E me mandou ler, escrevendo apenas Milton Ribeiro. Maiores detalhes sobre o filme aqui. O Philip, além de bom amigo e excelente violoncelista da Ospa, é um grande leitor de Nietzsche e chega matando a pau.

Elena Romanov, esse é o trecho que te falei do eterno retorno de Nietzsche, é do livro “A Gaia Ciência”, foi o que me veio à cabeça quando assisti o filme:

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” – F. Nietzsche

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Enquanto isso, Batman e Robin, atrás do muro…

batman e robin

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Escultura em homenagem a Nelson Mandela

São 50 placas de aço de 10 metros de altura, cortadas a laser e inseridas na paisagem, inaugurada quando dos 50 anos da captura e prisão de Nelson Mandela, em 6 de agosto de 1962, no próprio local onde ocorreu o fato que lhe custaria 27 anos de cadeia. Num ponto específico de observação, a escultura surpreende ao assumir a imagem de Nelson Mandela. O escultor é Marco Cianfanelli, de Joanesburgo.

Via Sérgio Gonçalves.

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Os 150 anos do nascimento de Gustav Klimt

Publicado em 14 de julho no Sul21

Klimt, Retrato de Adele Bloch-Bauer (clique para ampliar)

Em 2006, o Retrato de Adele Bloch-Bauer foi vendido por 135 milhões de dólares. Tal fato – e principalmente tal preço – demonstra a força da arte de Gustav Klimt, nascido há exatos 150 anos, em 14 de julho de 1862. Acadêmico nos primeiros anos, depois simbolista e modernista, é complicado associar o austríaco a qualquer movimento estanque. Também seus temas são muito particulares, principalmente se considerarmos seu grande interesse no feminino, fato que fez parte de sua produção ser chamada de erótica no início do século passado. Enquanto o rosto de Gustav Klimt e sua túnica permanecem pouco conhecidos do grande público, seus traços lentamente passaram a fazer parte da memória comum da humanidade, aparecendo em cartazes, propagandas e posters. Por exemplo, seus dourados, linhas e a palidez de suas mulheres – características muito marcantes em seus quadros – estavam nesta sexta-feira (13) aparecendo em uma vitrine da Rua da Praia, em Porto Alegre, servindo de demonstração para a qualidade de um monitor de computador.

Klimt, Mulher sentada (clique para ampliar)

Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente, o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para boa parte da arte produzida na virada do século XIX para o XX. Se os EUA e a Grã-Bretanha consideraram pornográfico o romance Ulisses, de James Joyce; se a França e a Rússia acharam que os balés de Diaghilev eram pornográficos (e eram mesmo, não obstante o fato de serem belíssimos), o que se dizia das pinturas finais de Gustav Klimt e o que se diz hoje delas?

Primórdios

Gustav Klimt nasceu na Áustria Imperial, na pequena localidade de Baumgarten, ao sul de Viena, quase na fronteira com a Hungria. A Áustria Imperial durou somente até 1867, substituída pelo Império Austro-Húngaro, o qual foi dissolvido em 1918, ano da morte do pintor. Klimt viveu num grande e efêmero país europeu que agregava as atuais Áustria, Hungria, República Tcheca, Eslováquia, Croácia, Bósnia Herzegovina, além de partes da Itália, Polônia, Romênia e Ucrânia.

Em 1876, com 14 anos, Klimt ingressou na Escola de Artes e Ofícios de Viena, juntamente com um de seus irmãos. Os dois ganhavam algum dinheiro desenhando e vendendo retratos a partir de fotografias. Em 1879, Klimt, seu irmão Ernst e o amigo Franz Matsch auxiliaram seu professor de pintura de murais na decoração do átrio do Kunsthistorisches Museum (Museu de História da Arte) de Viena. Devido ao excelente trabalho realizado, no ano seguinte começam a receber encomendas, passando a realizar trabalhos de cidade em cidade: quatro alegorias para o teto do Palácio Sturany em Viena, teto do estabelecimento termal de Karlsbad na Tchecoslováquia, decoração da Villa Hermès a partir de desenhos de Hans Makart, etc. Porém, em 1886, num trabalho para o Burgtheater, o estilo de Klimt começou a diferenciar-se do de seu irmão e do de Matsch e ele iniciou o processo de afastamento do academismo aprendido na Escola de Artes.

Klimt, Namoradas, 1916-17 (clique para ampliar)

A Secessão de Viena

Em 1897, Klimt fundou e presidiu, juntamente com outros artistas, a Associação Austríaca de Artistas Figurativos. O objetivo era o de contrapor-se à Casa dos Artistas, tradicional instituição conservadora que era dona da única sala de exposições importante de Viena. Em represália, a Casa decidiu não expor ou apoiar os artistas que fossem membros da nova instituição. Foi o estopim para a fundação da Secessão Vienense (Sezession Wiener), uma iniciativa de protesto de artistas da época contra as normas tradicionais. Alguns hostis chamavam essa insurgência de “revolta edipiana”, como se fosse uma espécie de movimento de fundo apenas psicológico, que consistia numa questão de filhos que se desencaminharam de seus e pais e da tradição.

O estatuto da nova associação resumia bem seu objetivo: o fomento de um novo sentido artístico na Áustria. Seus sucesso e importância foi acachapante. O grupo presidido por Klimt apresentou propostas revolucionárias para a época, equiparando o trabalho de pintores, artesãos, arquitetos, desenhistas, ilustradores e tipógrafos. O Secessão tinha por objetivo unificar a pintura e as artes aplicadas. Rapidamente, o Secessão virou o cenário artístico de Viena de cabeça para baixo, a ponto de receber o apoio do Imperador e de boa parte da alta burguesia. Seus 40 membros trabalhavam para expor trabalhos de jovens pintores não convencionais, além de divulgarem ao público vienense a obra dos melhores artistas estrangeiros e as novas tendências artísticas por meio de uma revista própria, a “Ver Sacrum” (Primavera Sagrada). Logo fundaram seu próprio salão de exposições.

Klimt, Danaë (clique para ampliar)

O pintor

Mas nem só de política vivia Klimt. Vivendo em meio ao fervilhante cenário artístico e intelectual da Viena do início do século XX, Klimt criava uma arte subjetiva e erótica de grande intensidade. Viena fervilhava. Passando um rigoroso filtro, podemos citar Freud e sua nova ciência psicanalítica; Wittgenstein e o positivismo lógico de seu Tractatus Logico-Philosophicus; Arnold Schoenberg e a música serial. Era um bom momento para a vanguarda e Klimt fez sua parte ao introduzir o colorido simbolista no cenário artístico vienense, formando a ponte para a vanguarda expressionista.

Klimt não apenas era talentoso como combativo e irreverente. Apresentou os esboços de “Filosofia” e “Jurisprudência” para os afrescos da Universidade de Viena. O projeto causou indignação devido aos nus femininos e às cores escuras. Klimt ignorou as críticas e deu continuidade ao projeto original. Nesta etapa de sua carreira, já se disseminavam em suas obras os nus femininos, representados nas mais diversas formas. A tela Nuda Veritas apresentava uma mulher inteiramente nua e Klimt parecia ter esquecido de suprimir os pelos pubianos da figura, um grande tabu na época. Acima da imagem havia uma frase provocativa: “A cada época a sua arte; à arte, sua liberdade”.

Klimt, O Chapéu de plumas negras (clique para ampliar)

Ao deixar a Secessão, sua arte passou a conter uma perspectiva muito mais pessoal, distanciando-se na necessidade de agradar a uma clientela específica. O pintor passou a criar suas telas com total liberdade. Também demonstrou ser um sensível intérprete da mulher. O ouro e a prata, objetos de desejo num período pré-feminista, servem para disfarçar a nudez. Quando o homem aparece, é acessório. e recebe tratamento totalmente diverso. Klimt nunca casou e para que realizasse seus retratos, duas ou três modelos permaneciam a seu dispor, além, é claro de seu grande amor, Emilie Flöge. Em suas pinturas, pe evidente que ele primeiro desenhava seus modelos nus para depois recobri-los com tintas. Klimt nos torna voyeurs e cúmplices.

Porém, não nada nele de cruel ou vulgar. Ele não tinha a agressividade de seu discípulo Egon Schiele nem o cinismo calculado de Picasso. Sempre houve requinte e elegância em seus nus.

Klimt mantinha um estilo rebelde também na forma de vestir-se. Usava batas e afirmava que nunca usava roupa de baixo. Pode parecer um detalhe ocioso referir-se a isto, porém esta postura contribuiu em muito para que lhe dessem uma desejada cátedra na Academia. Embora muito bem relacionado na alta sociedade que o financiava, sempre foi uma espécie de outsider em relação aos meios oficiais. Outro detalhe curioso era o hábito de pintar várias telas ao mesmo tempo.

Duas obras fundamentais: O Beijo e Judith 

O Beijo (clique para ampliar)

O Beijo (1907-1908) é uma das obras culminantes da carreira de Klimt. A obra foi aclamada desde o início, sendo imediatamente comprada pelo governo austríaco. Aqui, o esplendor decorativo chega aos extremo com belos motivos florais. As figuras enlaçadas ressaltam grande sensualidade em traços econômicos e vigorosos. O xadrez frio e retangular apontaria para os valores masculinos, enquanto os cálices das flores servem ao feminino. A beleza decorativa do quadro serve tem efeito catártico sobre o erotismo das poses. Realizada na revolucionária, mas ainda conservadora Viena, a obra provocava fascínio e estranhamento.

Judith (clique para ampliar)

Judith (1901) é uma representação plástica que fica entre a morte e a sexualidade, drama que fascinava o autor. O dourado atenua a figura da mulher no fundo. Distante e imaterial, o corpo da modelo contrasta com a sensualidade de um rosto quase fotográfico. Por algum tempo, o quadro foi denominado Salomé, a mulher sedutora que provocou a morte de João Batista, já que muitos recusavam-se terminantemente a admitir qua a retratada era a virtuosa Judith — a heroína judia que matou um general inimigo. Seus lábios entreabertos e os olhos semicerrados lhe conferem um ar intensamente erótico, mas também de sensualidade mórbida.

A propósito, sua fase dourada foi marcada pela reação altamente positiva de crítica e público. Em muitas pinturas daquele período, ele utiliza folhas de ouro, como no citado Retrato de Adele Bloch-Bauer e em O Beijo, talvez sua mais famosa tela. Klimt foi um pintor soberbo de paisagens e de arte decorativa, mas suas obras de modelos femininos – habitualmente de forte apelo sexual – são as criações mais importantes. Sua consagração em vida trazia-lhe muitos clientes, mas também tornou-o altamente seletivo. Pintava com extrema minúcia, muitas vezes obrigando seus modelos a longuíssimas sessões.

Foi apaixonadíssimo por Emilie Flöge, com quem teve um longo caso de amor. Ela foi sua musa e companheira durante muitos anos, de 1891 até sua morte, em 1918. Klimt escreveu pouco sobre sua pintura e métodos. Não deixou diários, apenas cartões-postais escritos para Emilie. Mas há um raro escrito seu com o título de “Comentário sobre o inexistente autorretrato” que diz “Estou menos interessado em mim do que em outras pessoas como tema para pinturas. Me interesso acima de tudo por mulheres. Não há nada de especial em mim. Sou um pinto que trabalha dia após dia, de manhã à noite. Quem quiser me ver deve olhar minhas fotos”.

Gustav Klimt e sua companheira Emilie Flöge (clique para ampliar)

 

Klimt posando sem a tradicional bata
Klimt em 1906
E de corpo inteiro com a bata. Sem roupa de baixo.

O dia de hoje em Viena

No Museu Leopold, serão expostas as 400 cartas e mensagens trocadas por Gustav e Emilie. Igualmente serão expostos objetos pessoais.

O Museu de Viena esporá sua coleção completa de Klimt, incluindo a máscara mortuária do artista e mais de 400 obras. Também  serão expostos objetos pessoais, como uma inusitada tampa de privada decorada por ele.

Já o austero Museu de Belvedere, que possui sua obra O Beijo, organizou um “Concurso de sósias de Gustav Klimt e de Emilie Flöge”.

Por fim, a Galeria Secessão vai expor sete paineis do famoso “Friso de Beethoven”, apresentado em 1902.

O dia de hoje no Google

Mais algumas obras de Klimt

 

Klimt, The Beethoven Frieze II (clique para ampliar)

 

Klimt, A Esperança I

 

Klimt, Moving water (clique para ampliar)

 

Klimt, Nuda Veritas (clique para ampliar)

 

Klimt, Retrato de Frirza Riedler (clique para ampliar)

 

Klimt, As Três idades da mulher (clique para ampliar)

 

Klimt, Emilie Flöge (clique para ampliar)
Retrato de Serena Lederer

E uma bela homenagem que acaba de aparecer no YouTube, por Cau Barata

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Três fotos do Bernardo no Iberê

Três lindas fotos tiradas pelo meu filho Bernardo no e do prédio da Fundação Iberê Camargo, projeto do português Álvaro Siza. Segundo o Ronald Augusto, haveria um S e um Z, uma assinatura, no exterior do prédio.

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Simbiosis, escultura de Pascale Archambault

Simbiosis, escultura em mármore de autoria de Pascale Archambault, vencedora do Primer Festival de Escultura de Guatemala “Guatemala Inmortal” de 2007, do qual participaram 256 artistas de 56 países.

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Noite paradoxal: Mi Querida e Poemúsica

Isabel Schipani e seu bom chá de Tchékhov

Às 18h, fomos lá para a Casa de Cultura Mario Quintana, mais exatamente para o Teatro Carlos Carvalho. Uma peça simples, um palco com uma mesa de chá e uma cadeira de balanço para um monólogo de 45 minutos da atriz uruguaia Isabel Schipani. Mi Querida é baseado no conto de Tchékhov conhecido entre nós como Queridinha ou O Coração de Olenka. É uma personagem que mimetiza seus amores, adotando suas opiniões e defendendo suas atividades, justificando-os. Dentro de uma espécie de conto circular sobre a perplexidade feminina de quem era chamada sempre de Minha Querida! e que nunca deixa de transitar entre a desolação e a felicidade, a personagem principal trata também a plateia com amor. Enquanto desfiava o belíssimo texto  de Griselda Gambarro / Anton Tchékhov, Olga servia chá e doces para a plateia. Eu, sentado na primeira fila, tomei chá — excelente — e comi uma bolachinha — idem — servidos por Olga. O texto passado ao teatro não deixa o original russo escapar. Toda a notável sofisticação e falsa despretensão de um conto que comenta com lirismo a condição feminina permanece intacta. Pena que pouca gente estava lá, cometendo uma enorme injustiça para com a arte. Ah, a peça ainda estará em cartaz hoje (19) e amanhã (20) às 18h. É mancada das grandes perder.

Poemúsica: exibição constrangedora de anacronismo sessentista

Meio apavorados com a chuva, aguardamos pelo Poemúsica, espetáculo inclassificável que reunia a poesia de Augusto de Campos para ser ouvista, seu filho músico e compositor Cid Campos e Adriana Calcanhotto. A coisa inicia com uma palestra de Augusto sobre poesia concreta nos anos 50 e 60. Nossa estupefação vem do fato de aquilo ter sido o melhor da noite. Logo depois, Cid Campos canta, acompanhando com pertinência o tempo medonho lá fora. Cantor pior é difícil. Calcanhotto entra no palco lá pela metade e comporta-se de forma reverente a Augusto de Campos, cantando pouco, permitindo até que Cid voltasse a soltar sua voz mesmo com ela no palco.

Meus sete leitores sabem o quanto gosto da vanguarda. Estou sempre disposto a rir de quem não ama Joyce, Carroll e Melville, só para citar três gênios utilizados por Campos. Mas o espetáculo de Campos foi 90 minutos de terror. Vendo Augusto de Campos atolado com os dois pés na vanguarda dos anos 60, notamos como esta envelheceu muito mais do que o poeta, ainda firme e em boa forma aos 81 anos. Fazendo referências a autores canônicos como Joyce, Carroll, Melville e Dickinson, mas deixando de lado toda a transcendência dos mesmos, reduzindo-os ao quase nada da descrição que Campos faz, por exemplo, de Moby Dick, a coisa toda é irritante. Sobre retalhos radicalmente desligados das obras originais, Cid compõe melodias prosaicas, de uma simplicidade que seria comovente se estivéssemos num sarau de uma velha viúva aposentada, esquecida mais ainda apaixonada pela grande literatura. Já Adriana deve gostar de poesia concreta e de modo algum a critico por isso. Também gosto. Só que sua presença acessória, cantando e imitando sons de baleia num cello — referência ao cachalote de Melville — fez-me lembrar de Cathy Berberian cantando Ticket to Ride e no valor do violoncelo, que — tão novo e bonito — estaria melhor na mão de um estudante do instrumento. Ora, já que havia tantos vídeos e sons gravados em Poemúsica, por que não foram mostrados sons reais de baleias? Tenho um amigo que tem um CD com mais de uma hora de baleias cantantes, posso repassar!

Abaixo, a Cathy Berberian a qual me refiro. Vejam com atenção a partir de 1min10.

Com disse no título, foi uma noite paradoxal. Na primeira parte, Tchékhov é homenageado de forma compreensiva (no sentido de compreensão). Na segunda, as homenagens são em forma de grife. Os Campos pai e filho pegam algumas grifes para si e Calcanhotto trata de por no seu currículo uma colaboração com o velho. Uma dica? Vão no Tchékhov, como já disse.

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Antoni Gaudi — Casa Batlló em Barcelona

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O Gênio Português?

A artista contemporânea portuguesa Joana Vasconcelos terminou a nova escultura para o  hall da Assembleia da República intitulada: O GÉNIO PORTUGUÊS. Retirado daqui.

Alguém me explica, por favor?

P.S. — Alguém explicou nos comentários: não é da Joana Vasconcelos e é um disparate total ser atribuído à artista. Alguém anda a fazer pesquisa muito preguiçosa e desleixada.

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As Irmãs Brown, fotografias de Nicholas Nixon

Retirado, com a maior cara-de-pau, daqui.

O fotógrafo Nicholas Nixon iniciou em 1975 seu projeto, ainda em andamento, As Irmãs Brown, uma compilação de fotos bastante singular. A série é composta de retratos em preto e branco de quatro irmãs sempre na mesma ordem da esquerda para a direita.

Aclamada pela crítica, a série foi exposta em diversos museus de arte.

A intenção de Nixon foi mostrar como o tempo age sobre nosso corpo. No início as irmãs tinham idade variando de 15 a 25 anos e a mais velha delas, Bebe, é esposa do fotógrafo.

1975
1985
1995
2010

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Pterodátilos, a peça, um saco

Pouco a pouco fui ficando irritado. Só lugares comuns. Uma família decadente: a mulher é bêbada e drogada; o pai é pedófilo e perdeu seu rendoso emprego (para ficar mais clichê, ainda esconde da família); a filha não pode ser mais confusa, às vezes é lésbica, às vezes está grávida e no final se suicida; o filho é gay. A atmosfera é de apocalipse, daí a referência aos bichos de 54 toneladas do título. Hoje, tais animais não estão mais sobre a Terra. Segundo o pesada e nada elegante metáfora do autor, talvez as famílias burguesas se extingam em breve. O palco se desmancha ao final.

Pô, quem já não viu isso? Desde os anos 50 tivemos n variações do mesmo tema. No final, o público aplaude em pé… Há o Marco Nanini, sabe como é. Para piorar, mesmo com todo meu amor ao politicamente incorreto, achei o humor muito próximo do preconceito. Claro, se fosse de bom gosto eu nem pensaria no subjacente, apenas riria. Não gostei nada. Nanini não impressiona em seu papel duplo de pai e filha, o trabalho de ator está na banguela.

O texto de Pterodátilos é de 1993 — o autor é o americano Nicky Silver — mas, não fosse a AIDS do filho, poderia ter 50 anos. A direção de Felipe Hirsch. Creio que ninguém que tenha mais de 40 anos e alguma vivência artística possa pensar que está vendo uma novidade. Tudo tem a cara de Edward Albee, Tennessee Williams, Arthur Miller…

Leio que Marco Nanini disse que “A casa está desmoronando e isso fica mais evidente nesta montagem”. Com efeito. A única coisa que sobrou de bom foram as soluções técnicas para o cenário, que literalmente se desmancha na nossa frente. É pouco.

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Não há razão para comparar Adriana Calcanhotto e Ná Ozzetti, mas…

Bem, no último sábado, escrevi isso aqui numa matéria para o Sul21 (publiquei só o que está em itálico, claro):

Ao menos neste período, não há como reclamar da vida cultural de Porto Alegre. Na última terça-feira (06), iniciou o Porto Alegre em Cena, que vai de 6 a 27 de setembro. Entre os dias 7 e 20 deste mês, temos a famigerada — sim, estou sendo altamente pejorativo —  Semana Farroupilha, que dura bem mais que uma semana e, neste sábado (10), começou a 8ª Bienal do Mercosul, que se estende até o dia 15 de novembro, ultrapassando o final da Feira do Livro que irá de 28 de outubro a 12 de novembro. Considerando-se todos os eventos, ficam contemplados o teatro, a música popular, as tradições, as artes plásticas e a literatura.

E é tudo muito barato ou gratuito. Hoje, sigo nos concertos e peças. Das 20h30 até o intervalo, verei o concerto da OSPA, e depois, às 22h, vou assistir a peça uruguaia Neva. O tema é a figura de Olga Knipper, mulher de Tchékhov, que nunca foi lá muito veraz em suas histórias e que tinha um comportamento polêmico como ex-esposa do grande dramaturgo. No drama, ela vive uma crise: longe dos palcos, cuida de seu marido, que definha num sanatório alemão. Isso, a doença, macularia uma imagem de atriz perfeita construída em anos de trabalho. Muito fantasiosa, Olga representa a respeito de tudo. Por exemplo, sabe-se das muitas versões acerca da morte de Tchékhov, reinventadas pela mulher como se fosse uma cena de teatro a ser lapidada. O resultado é até hoje não se sabe como foi. Aguardemos pela noite.

Voltando (ou recém chegando) a nosso assunto: sábado, fui ver Ná Ozzetti e, ontem à noite, Adriana Calcanhotto. Foram dois shows acústicos de duas cantautoras, ambas acompanhadas por excelentes bandas; Ozzetti com um quarteto, Calcanhotto com um trio; as duas no Theatro São Pedro. Ozzetti é muito tímida e trancada no palco, Calcanhotto esconde muito melhor o fato de também ser assim. Não, não há necessidade nenhuma de compará-las e, se o faço, é apenas pela proximidade e pela diferença entre os espetáculos.

O show de Ná, Meu Quintal, morre na baixa qualidade de suas composições. A cantora — muito melhor tecnicamente e com mais extensão vocal do que Calcanhotto — mostra músicas fraquinhas com letras de bicho-grilo tardio. Salva-se algumas canções de Luiz Tatit e a excelente interpretação de Na Batucada da Viva, de Ary Barroso e Luiz Peixoto (1934). Enquanto Ná mostrava suas músicas e parcerias, eu tratava de deixar o tempo passar, revisando mentalmente a agenda, etc. Meu Quintal é apenas simpático.

Adriana Calcanhotto tem outra presença. Impõe-se, não é nada leve ou bicho-grilo como Ná. Suas músicas têm boas letras e Adriana compensa a falta de extensão de sua voz com músicas facilitadoras — simples, diretas, boas. O resultado é que Micróbio do Samba funciona maravilhosamente. É um espetáculo dedicado de cabo a rabo ao samba. Toda de preto, Adriana não faz um show “pra cima”; canta com inteligência e poesia a vida cotidiana. Sua dança quase imóvel, as poucas palavras e a fingida indiferença para com os aplausos não são apenas heranças benditas do rock, são a construção de uma personagem agradavelmente blasé durante as quase duas horas de espetáculo. Sua única fala, além da apresentação dos músicos e de um rápido boa noite, foi muito emocionante. Ela acendeu um copo de Steinhäger (isso mesmo) para homenagear Caio Fernando Abreu, que ontem faria 63 anos. Recomendo!

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Grandiosa obra de arte posta à venda

Em tempos de Bienal do Mercosul, minha filha Bárbara, de 16 anos e que prestará (prestará?) vestibular para História em janeiro, experimentou uma súbita criatividade durante o almoço e criou a peça-instalação Capitalismo Selvagem. Pelo custo de R$ 5.000, damos uma mesa pequena de fórmica, uma toalhinha branca e bela peça abaixo, cunhada por ela. Tudo acompanhado por uma plaquinha

Capitalismo Selvagem

Bárbara Ribeiro

(2011)

Ideal para sua sala. A peça é única e exclusiva. 5 pilas, OK?

Capitalismo Selvagem, obra de Bárbara Ribeiro (peça única, irrepetível, exclusiva)

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"Não adianta ir da Classe D para a C apenas para comprar uma geladeira", diz diretora de Economia da Cultura

Obs.: Essa entrevista foi feita por mim para o Sul21, mas como o assunto é cultura — um dos assuntos mais frequentes neste eclético blog — , deixo-a também aqui para meu 7 fiéis leitores.

Foto de Ramiro Furquim / Sul21

Denise Viana Pereira é a Diretora de Economia da Cultura da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul. Trabalha, pois, com o Secretário Luiz Antônio de Assis Brasil numa das secretarias mais pobres e de maior visibilidade do governo, vendo apenas 0,07% do orçamento estadual e sendo visitada por boa parte dos artistas e produtores do Rio Grande do Sul. Denise é formada em Comunicação Social pela Ufrgs, é especialista em Teoria de Jornalismo e em Economia da Cultura. De 1999 a 2001, integrou a equipe do Instituto Estadual de Música da Secretaria de Estado da Cultura do RS. Nos anos de 2003 e 2004, foi Chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre e integrou a Representação Regional Sul do Ministério da Cultura entre 2006 e dezembro de 2010.

Em sua entrevista ao Sul21, Denise Viana Pereira fala sobre a nova lei que substitui a antiga LIC e sobre os planos nada modestos da Cultura do estado.

Sul21: Nos últimos dias, foram aprovados R$ 3,6 milhões em autorizações para captação de patrocínios via LIC. Associada a esta notícia, há a nova legislação de apoio e fomento à cultura, aprovada em dezembro de 2011.

Denise Viana Pereira: Sim, a LIC – Lei de Incentivo à Cultura – foi sancionada em 1996 e começou a funcionar em 1997, indo até agosto de 2010. Após esta data, ela foi suspensa até 7 de dezembro quando foi regulamentada a nova lei de fomento e apoio à Cultura, que se chama Pró-Cultura.

Sul21: A LIC não existe mais?

DVP: Não existe mais. Ela só permanece para os projetos que ainda estão em tramitação. Os novos processos não ingressam mais via LIC, mas sob o Pró-Cultura. O Pró-Cultura tem no seu bojo dois mecanismos: um mecanismo é o Fundo de Apoio à Cultura, grande conquista que nós aprovamos em 2001 na Assembleia Legislativa e que nunca tinha sido regulamentada, e um mecanismo de compensação fiscal semelhante à antiga LIC. O Pró-Cultura, então, engloba o fomento direto – pelo Fundo – e a compensação fiscal.

Sul21: Como funciona?

DVP: Na lei antiga, a empresa poderia se compensar de 75% do total do projeto descontando o valor de seu ICMS. Na nova lei, o desconto é de 100%. Porém, regra geral, para todo o projeto, o patrocinador fica obrigado a um depósito de 10% no Fundo de Apoio à Cultura, à exceção de projetos para Patrimônio Cultural e Construção de equipamentos culturais, para os quais o depósito é de 5%. Então, há a compensação, a isenção, mas há o incentivo propriamente dito, o qual é depositado no Fundo.

Sul21: Há um teto de isenção fiscal determinado pelo estado?

DVP: Sim, e este é muito baixo. O teto de isenção fiscal é de 28 milhões. Então, 10% são 2,8 milhões. É pouco para o Fundo. No ano passado, foi enviado um projeto de lei que prevê um aumento deste valor para R$ 35 milhões. A lei permite que este teto possa chegar ao máximo de 0,5% da receita líquida do estado. Trata-se de um valor variável, que hoje deve bater nos R$ 70 milhões.

Sul21: Resumidamente, poderia descrever o processo de aprovação do Pró-Cultura com a compensação fiscal?

DVP: O processo é (1) o proponente cadastra-se no site, (2) validação por parte da SEDAC, o que hoje demora 7 dias; (3) então, o proponente tem 15 dias para trazer documentos; (4) de posse dos documentos, fazemos a análise técnica detalhada onde normalmente questionamos coisas que não ficaram claras e então (5) o projeto é enviado para o Conselho Estadual de Cultura, que tem 60 dias para analisar. Após a aprovação, esta é publicada no Diário Oficial do Estado e o autor do projeto recebe uma carta que autoriza a captação, ou seja, o patrocínio por parte das empresas. O prazo mínimo total para a aprovação de um projeto é de 90 dias, por lei. Na prática, sabemos que este tempo não ocorre antes de 4 meses. O que desejamos é chegar cada vez mais próximos dos 90 dias. Estamos em contato com o Conselho para que eles analisem a possibilidade de diminuição de seus prazos. Tudo é muito moroso e há uma comparação inevitável: a Lei Federal é muito mais ágil. Não faz sentido. Temos que nos apropriar do sistema federal.

Sul21: Como é que o novo governo encontrou a SEDAC?

DVP: O secretário Assis Brasil sempre diz que não adianta a gente ficar olhando para o passado. O que a gente quer é que nossa marca seja o diálogo. Queremos manter as portas abertas e até retiramos algumas divisórias que haviam em nossa estrutura física… Queremos receber todos, ouvir todos os que nos procuram. Todos são atendidos. Acabamos inteiramente com certo tom policialesco da SEDAC. Nós éramos vistos pelos produtores culturais, de antemão, como oponentes, quando na verdade ambos são proponentes. Claramente, havia grande distância entre os produtores e o sistema de fomento e financiamento da cultura no estado. Nós queremos o oposto.

Sul21: Quais são objetivos factíveis dos quatro anos da gestão?

DVP: O primeiro objetivo é o de fazer a Casa de Cultura Mario Quintana funcionar a pleno. Resolvendo desde a obra de fixação da fachada até recheá-la de programação. O segundo é o de construir o Teatro da OSPA. Os outros estão associados ao plano de recuperação do orçamento da cultura do estado, que nos tirará deste “quase nada” de recursos que temos hoje. Hoje, temos 0,07% do orçamento do estado. Nossa intenção é a de chegar, ao final dos quatro anos do governo Tarso, a 1,5%. Queremos 0,5% no segundo ano de gestão, 0,75% no terceiro, 1% no quarto e 1,5% para a próxima gestão.

Sul21: Há outros?

DVP: Temos também projetos ligados à utilização do Fundo de Apoio à Cultura. Pretendemos criar editais a fim de selecionar projetos de Casas de Cultura, teatros, cinemas ou bibliotecas para o interior do estado. Queremos equipamentos culturais para o interior. Nós selecionaremos os projetos; desta forma, não seriam equipamentos de propriedade do estado. Nós apoiaremos projetos que permitam aos municípios se equiparem. Imaginamos valores de até R$ 500 mil. Muitas vezes há prédios que poderiam se transformar num teatro ou numa biblioteca. Nossa intenção é participar da reutilização destes espaços para fins culturais.

Sul21: Não há quase mais cinemas no interior.

DVP: Bem, neste sentido nós trabalhamos com a ideia dos cineclubes. Nosso plano de governo inclui a criação de 100 Cines mais Cultura ao longo dos quatro anos de gestão e envolve a criação de 500 Pontos de Cultura lato sensu. Nos Pontos de Cultura, o governo aporta recursos para iniciativas que já existem, dando apoio aos chamados Pontos de Cinema (cineclubes), aos Pontos de Brincar (brinquedotecas), aos Pontos de Leitura (pequenas bibliotecas) e aos Pontos de Memória (museus comunitários ou ações de memória). Estas são ações que o MinC desenvolve. Este ano, deveremos receber R$ 10 milhões para começarmos.

Sul21: E a OSPA? Sem sede, ensaiando no cais do porto, convivendo com falta de músicos, concursos… E o novo Teatro que não sai do papel?

DVP: Hoje temos boas perspectivas. O secretário Assis Brasil é um ex-membro da orquestra e está bastante compromissado com a OSPA. Foi elaborada uma emenda parlamentar de R$ 20 milhões para a construção – o custo do teatro é de R$ 32 milhões. Em um de seus primeiros pronunciamentos, a presidente Dilma Rousseff falou em necessidades de contenção e suspendeu todas as emendas. Algumas destas foram extintas, mas a da OSPA não. O governador Tarso já enviou correspondência para a Ministra da Cultura e para a Comissão de Educação e Cultura do Congresso. Há toda uma mobilização estadual pela manutenção da emenda parlamentar de R$ 20 milhões. Isto garantiria 2/3 da obra. De outra parte, o MinC, em reunião aqui conosco, com a presença do secretário Assis Brasil, comprometeu-se em colocar mais R$ 7,5 milhões ou R$ 10 milhões – dependendo da emenda deste ano – , à razão de 2,5 milhões por ano. Se a emenda de R$ 20 milhões entrar este ano, eles não repassariam a primeira parcela de R$ 2,5 milhões, ficando o primeiro pagamento para 2012. Em resumo, repito, temos boas perspectivas.

Sul21: Houve uma discussão sobre possíveis mudanças no projeto do Teatro a fim de que ele pudesse receber óperas. Propôs-se a criação de um fosso para a orquestra…

DVP: Falando de uma forma rasa, o secretário compreende as críticas – o IAB igualmente não está de acordo com a parte externa do projeto e há esta discussão sobre óperas – , mas sua ideia é a de que o Teatro da OSPA é uma sala sinfônica e não outra coisa. E mesmo que haja discussões — penso que sempre haverá — não podemos atrasar mais 20 anos uma construção que nos faz falta há décadas. Então, temos um projeto pronto, pago, e achamos que ele não deve mais ser alterado. Estamos em outra fase e, se retrocedermos a uma anterior, quando teremos o Teatro?

Sul21: Fomento é política cultural? E a distribuição, divulgação e venda?

DVP: De modo algum fomento é política cultural. O mecanismo de financiamento e fomento não pode ser nossa única atividade; isto é apenas um instrumento. É muito insuficiente e concentra a pouca verba disponível nas capitais e nos artistas conhecidos. Para isso é que agora temos o Fundo de Apoio à Cultura, temos que fortalecê-lo para poder diversificar o tipo de projeto a ser apoiado. Por outro lado, temos que nos preocupar não apenas com os projetos, mas com a criação de hábitos de consumo de toda produção cultural. Temos que apoiar a distribuição, o consumo e a formação de plateias. É um problema igual ou maior do que o de produção, que é o que a LIC fazia exclusivamente. As leis de incentivo fomentam a produção, mas não fomentam a distribuição, elas concorrem muito pouco para a absorção daquilo que criam. Veja o caso do blog da Maria Bethânia: Jorge Furtado foi brilhante ao dizer que se tivessem pedido três vezes o mesmo valor para um filme que ninguém fosse assistir, não iam reclamar de nada, mas como é um blog e há um preconceito com o meio virtual – criado pela grande mídia – ninguém diz que Bethânia estará divulgando uma porção de poetas que ficariam de outro modo inacessíveis. Sou totalmente favorável ao blog dela. Grande parte desta discussão é sufocada pelo desconhecimento que as pessoas têm do contexto da produção e das necessidades culturais.

Sul21: Teu cargo é o de Diretora de Economia da Cultura. O que significa exatamente?

DVP: Como tu disseste, não adianta a gente apenas fomentar a produção. O olhar da economia sobre a cultura nos dá uma noção de que existe uma cadeia produtiva inteira, que vai até o público.

Sul21: Normalmente os artistas não pensam na parte comercial…

DVP: Sim, há que pensar na divulgação, nas vendas, na infraestrutura. Mas o pensamento não pode também ser apenas mercantilista, pois há dois valores envolvidos: o valor econômico do produto cultural e o valor simbólico, que vai transformar a pessoa que assistirá uma orquestra pela primeira vez, que vai fazê-la pensar em coisas sobre as quais jamais tinha antes refletido. É preciso pensar na sustentabilidade da produção.

Sul21: Sim, o espectador sai melhor, mais rico de um filme, peça ou espetáculo, mas como medir a importância desta experiência, deste conhecimento?

DVP: Nós estamos num momento maravilhoso, porque o governador é sensível à cultura. Ele é completamente consciente deste valor simbólico e da importância de termos cidadãos capazes de serem reflexivos e críticos, em contraposição a cidadãos que vêm da classe D para a C apenas para comprar uma geladeira ou uma batedeira e continuar se matando na esquina ou atropelando ciclistas. Se a gente quer mexer na sociedade, temos que necessariamente passar por sua culturalização. E temos a nossa favor a tecnologia, que dá acesso a bens culturais com maior facilidade do que no passado. Antigamente, a montagem de um cineclube era coisa para heróis, hoje tu colocas um DVD debaixo do braço e sai mostrando os filmes. Hoje já temos óperas sendo apresentadas ao vivo em cinemas. O mundo é outro, temos que utilizá-lo.

Sul21: É difícil convencer alguém disso ou a arte ainda funciona do modo como Louis Armstrong definia o jazz: “If you gotta ask, you`ll never know”?

DVP: Sim, é difícil. Mas nós não devemos nos conformar com este corolário do “eu sei a importância que tem e se tu não sabes, nunca vais saber”. Desta forma, tu não convences o outro, tu não dás acesso à cultura. Imagina um professor dizendo ao aluno: “Tu nunca vais entender, meu filho!”. O ser humano muda, avança. Essa é a nossa missão fundamental.

Sul21: Pois é, estamos chegando à educação, não?

DVP: E chegamos… Por exemplo, o trabalhador da área da cultura ganha três vezes mais do que a média da indústria. Há um dado estarrecedor: na Bahia, 54% dos empregados ou são analfabetos ou tem primeiro grau incompleto. No setor cultural, este índice de analfabetismo cai para 34%. Não há estatística análoga para o RS, mas tenho certeza de que no RS o índice de 34% deve ser de gente que tem o terceiro grau incompleto e no entanto… O Acre, a Bahia e Pernambuco estão muito à frente do RS na área cultural. Há muito tempo eles trabalham com conceitos modernos e estão inseridos naquilo que o MinC criou em 2007: o Programa de Desenvolvimento da Economia da Cultura, que trabalha com todos esses conceitos de cadeia produtiva que expus.

Sul21:Para terminar, para que serve a SEDAC e a que veio?

DVP: A pergunta deve ser respondida fugindo das respostas que passam perto de expressões como “alimento da alma”, etc. A cultura deve ter as três dimensões que o MinC defende: o valor simbólico, o valor econômico e o valor de cidadania, de promotor de direitos. Esse é o nosso norte.

Sul21: Desejamos boa sorte.

DVP: Muito obrigado.

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Ai, que preguiça

Publicado em setembro de 2005

E tenho tanta coisa para fazer! Hoje eu quero apenas… uma pausa de mil compassos. E ver esta menina de Leonardo da Vinci surgir. Uso “menina” apenas para continuar parafraseando a Paulinho da Viola, pois esta é La Dama Scapigliata (A Dama Escabelada) de Leonardo da Vinci. Haveria algo melhor para esta tarde chuvosa em Porto Alegre?

Os daltônicos como eu devem ter uma idéia muito diferente do comum sobre as artes plásticas. Gosto disto:

Estou ali, de roupa clara, olhando para você. Dia chato. Com licença, vou trabalhar.

Tiau.

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Milton Ribeiro's Blogger Gallery of World's Finest Arts III

Já que estou um pouquinho sem tempo para escrever…


Ilustração de Gustave Doré (1832-1883) para o Quixote.

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A Rádio da Universidade (Parte II) & Como Inventei os Blogues

Publicado no dia 5 de dezembro de 2003.

Meu último post teve repercussão inteiramente diversa dos anteriores. A repercussão positiva veio na forma de entusiasmados e-mails e telefonemas de apoio. Estes, na maioria de pessoas pertencentes ao Departamento de Música da UFRGS e à propria Rádio, não queriam ser identificados. Uma pena. A repercussão negativa veio dentro dos comentários do blogue, misturada a outros apoios. Fiquei discutindo com um grupo de alunos inteligentes e articulados – mas dos quais discordo! -, que desejavam, além de defender a profe (ou sora, segundo meus filhos), manter o que pensam ser um laboratório. Um laboratório público, bem entendido.

Estes talvez não precisem se preocupar, pois representam hoje o poder; mas suas idéias me deixaram pasmo. Algumas delas: a RU foi um equívoco por 45 anos e agora seus rumos estão sendo finalmente corrigidos… A gloriosa RU tem de ser dos alunos… Os ouvintes de música erudita melhor fariam se fossem para a Internet a fim de montar suas próprias rádios… Puxa, o correto não seria o inverso? Se a PUC tem uma rádio-laboratório, por que a UFRGS não pode manter uma? Com a Internet, isto é fácil de viabilizar. Há também, na idéia dos alunos, a crença de que somos elitistas, ricos, etc. Realmente, não nos conhecem. Somos pessoas de todas as classes sociais e muitos tornaram-se músicos ou apaixonados ouvintes por vivenciarem a antiga RU. Assim como não me conhecem as pessoas que querem que eu brigue sozinho pelo retorno da RU às origens, pois não podem aparecer, têm medo de retalhações, etc. Democrático, não? A continuidade lógica destas idéias obtusas leva-me a pensar também na extinção da OSPA (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre). Por que não? Afinal, o que o Estado tem a ver com a arte?

Sugiro que o missão-devaneio que há no site da rádio mude imediatamente, seguindo a sugestão de uma amiga. De “Especializada em Música Erudita” para “Especializada na formação de novos comunicadores”. Maus comunicadores, pois serão especialistas em criar o que melhor lhe aprouverem , não a se adaptar a um meio de comunicação pronto, que é o que encontrarão na vida real. Vida real… Acho melhor voltar logo à literatura, à música e a meus comentários sobre qualquer assunto. Toda a vez que falamos na UFRGS vem junto uma política muito chata e complicada… Para terminar: se a Prof. Sandra de Deus quiser falar comigo, não há problema, basta vir a meu blogue e escrever qualquer coisa. Logo após, entrarei em contato. Se ela quiser, até peço desculpas pelas brincadeiras com seu nome.

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Eu inventei os blogues. Um dia visitei o site de Sergio Faraco e pensei em como seria interessante àqueles que o lessem se ali houvesse uma espécie de diário do escritor. Trata-se do maior contista brasileiro. Imaginei como seria bom se tivéssemos notícias sobre novas obras, sobre o último jogo de sinuca, sobre mecânica de automóveis e sobre tudo o que lhe passasse pela cabeça, desde considerações eruditas até abobrinhas. Fiquei pensando numa entrevista que ele concedera. Gosto de carros, de todos os esportes e de muitas outras coisas que nada têm a ver com prática literária. O prazer não me dá remorso. Onde não há prazer não há proveito, escreveu Shakespeare. Não sou como esses escritores que só sabem falar de literatura e cujas obras nunca se equivalem ao que sabem ou pensam saber. Falo de qualquer coisa, estou atento ao acontece ao meu redor. Não vivo num buraco, alimentando-me de sopa de letrinhas.

Nesta vontade de saber mais sobre Faraco, pensei que deveria existir alguma coisa pronta na Internet, um software que funcionasse como um diário, só que utilizada por gente interessante. Isto é, inventei internamente a idéia de blogue – nada brilhante para quem está sempre divagando -, depois fui para o Google e o descobri em 5 minutos. Entrei em alguns e fiquei decepcionado, era tudo muito fútil. Então, fiz a seguinte pesquisa: “Blog+Beethoven+111+Mann”. Imaginei que esta curiosa quase-livre-associação deveria fazer com que eu encontrasse um blogue de alto nível que estivesse a comentar o famoso oitavo capítulo de Doutor Fausto de Thomas Mann. E encontrei. Era o blogue do Zadig. E era brilhante. Tudo aconteceu em menos de 1 hora. Hoje, tenho outros amigos e amigas de mesmo tamanho na bloguesfera, mas Zadig foi o primeiro e o primeiro… (completem vocês)

Fiz-lhe um enorme comentário e recebi de volta um e-mail ainda maior me explicando detalhadamente o que era um blog. Ontem, recebi um belo e-mail do Zadig (que também atende por Adalberto Queiróz ou BetoQ) me propondo um texto a quatro mãos. Milton, numa dessas últimas Bravo! tem um artigo sobre o qual desejaria trabalhar a quatro mãos (se pensamos em escrever pelo teclado) ou a duas (se pensarmos na velha e boa lapiseira): seria como voltarmos ao problema bem situado por você quando falou sobre a…

Como dizer não? Gostei muito da proposta e do assunto, que vou deixar em segredo. No e-mail, havia também notícias de uma cirurgia de apêndice da Sherazade. O Zadig (com quem divido teto, prazeres, sonhos e dívidas, nessa ordem exata) me mostrou um texto do seu blog… Ela está em fase recuperação de uma apendicite e logo vai viajar para o casamento da filha Maíra, que mora fora do Brasil. Somaram-se duas ansiedades: uma boa – Maíra vai casar e está muito feliz; outra preocupante – Helenir adoeceu. Graças a Deus, tudo vai bem na sua recuperação, mas o susto ficou.

Eles são goianos e moram em Goiânia, mas estudaram na UFRGS (olha ela aí de novo, gente!). Maíra nasceu aqui em Porto Alegre e o casal tem outra filha, presumivelmente goiana. Temos muita coisa em comum. Muito legal conhecer você: minha mulher Helenir (que também é doida por Balzac) comentou quando viu partes do seu blog (ela não tem muita paciência com a web): “Mas este cara é seu irmão – leu tudo que você lê, gosta de muita coisa que você gosta. Infelizmente, não do Grêmio.”

É verdade. Sou colorado. Muito. E ele fuma charutos, enquanto eu detesto qualquer fumo; e ele é neo-católico, eu sou indiferente; e ele fala e escreve em francês, eu só fiquei francófilo antes da guerra e volto a ficar sempre que vejo a Juliette Binoche sorrir; e ele não gosta de cinema, eu o amo; e ele às vezes bebe além da conta, eu, só um cálice. Mas somos parecidos e amigos.

Conversamos várias vezes por semana. Já trocamos mimos pelo correio. Eles também o fizeram com o Guiu Lamenha, mas não sou ciumento, gosto de apresentar meus amigos uns aos outros. …não paro de ouvir a Missa de Bach que você me enviou. Como é possível não deixar o pensamento voltar-se a Deus ouvindo aquilo, Milton? É, Zadig, será duro me convencer, mas acho que se houver uma justiça divina melhor que a brasileira, estou salvo. Nos encontraremos no julgamento e vamos ser absolvidos, não se preocupe! Afinal, só faço mal à Sandra de Deus… Porém, como garantia, espero conhecer o cerrado e vocês pessoalmente antes.

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