Há 400 anos, o fogo consumia o teatro de Shakespeare em Londres

Há 400 anos, o fogo consumia o teatro de Shakespeare em Londres
Vista aérea do atual Shakespeare`s Globe de Londres. Prédio vazado (clique para ampliar)
Vista aérea do atual Shakespeare`s Globe de Londres. Prédio vazado (clique para ampliar)

Publicado no Sul21 em 29 de junho de 2013

O Globe Theatre de Londres é associado ao maior dramaturgo de todos os tempos: William Shakespeare. A casa foi construída em 1599 por sua companhia de teatro. Shakespeare detinha 12,5 % das ações da mesma. Dois dos seis acionistas – Richard Burbage e seu irmão Cuthbert Burbage – possuíam 25% cada e um quarteto de 12,5% cada era formado por John Heminges, Agostinho Phillips, Thomas Pope e o famoso dramaturgo. Foi o primeiro teatro construído por atores para atores. Porém, após estrear várias peças do grande autor, o Globe foi destruído por um incêndio no dia 29 de junho de 1613, exatamente há 400 anos. O Globe foi inaugurado no outono de 1599, com Júlio César e a maioria das grandes peças de Shakespeare pós-1599 foram escritas para o teatro.

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Uma gravura da época anônima que mostra o famoso teatro de Shakespeare

No século XVII, qualquer incêndio podia transformar-se numa grande tragédia, tanto que em 1666, um terço da cidade foi destruída pelo fogo. As ruas eram estreitas, herança da transformação urbana acelerada a partir do século XIII, quando Londres virou capital do reino. A técnica contra incêndios era muito prosaica: eram usados baldes d`água e, quando não funcionavam, era providenciada a derrubada das construções contíguas para impedir o espraiamento do fogo. Só que a decisão de derrubar casas dependia de uma autorização do prefeito da cidade, que analisava empiricamente os ventos e a umidade do ar e das casas. Risco completo.

A pintura acima é de autor desconhecido. As chamas que consumiram Londres em 1666 podiam ser vistas de Oxford, a 64 km de distância.
A pintura acima é de autor desconhecido. As chamas que consumiram Londres em 1666 podiam ser vistas a 60 km de distância.

A indecisão para se fazerem as derrubadas era compreensível diante de seus custos, tanto de demolição quanto de reconstrução. No grande incêndio de 1666, houve demasiada hesitação e, quando as demolições foram autorizadas, grande parte da cidade já estava em chamas. Então os imóveis passaram a ser simplesmente explodidos, o que criou outros focos de fogo. Também não se sabia o número de vítimas dos sinistros pelo simples fato de que os não nobres não eram registrados. Do ponto de vista do estado, sumia gente que não existia. No grande Incêndio foram destruídas, pelo fogo e pela ação humana, 13.200 casas e uma área de 1,7 km²

Antes do incêndio, nos quase 15 anos em que esteve ativo, o Globe foi um estrondoso sucesso. No século XVI, as companhias de teatro apresentavam-se em locais improvisados, geralmente em bares ou na rua. Em 1576, James Burbage construiu o The Theater, primeira casa do gênero do país. Em 1581, Shakespeare juntou-se a Burbage escrevendo peças e trabalhando como ator. Apesar da casa sempre lotada, sobrevieram problemas financeiros e a casa acabou fechada. A curiosidade é que o Globe foi construído com a madeira do desmonte do The Theater. Do mesmo modo que o Theater, o Globe vivia com a casa cheia e as peças apresentadas eram normalmente de seu famoso sócio.

Foto: Carmen Crochemore
O atual Globe | Foto: Carmen Crochemore

Então, no dia 29 de junho de 1613, o Globe incendiou durante uma performance de Henrique VIII. Um canhão de luz pegou fogo, inflamando as vigas de madeira. De acordo com os poucos documentos existentes, ninguém ficou ferido, exceto um homem que perdeu as calças, tendo sido apagadas com cerveja por seus amigos. Era o que estava à mão. As peças teatrais, naquela época, recebiam um povo ruidoso e festivo, que vibrava com as cenas, vaiava os vilões e assobiava, desejando ou não as seduções . Não havia estatuto que impedisse o uso do álcool.

O Globe foi reconstruído no ano seguinte, porém, como todos os outros teatros de Londres, foi fechado e destruído pelos puritanos em 1642, dando lugar a outro tipo de construção. Atualmente, Londres ostenta o Globe na margem do Tâmisa, na região de Southwark. Não é o ponto exato do ex-teatro de Shakespeare. Ele se localizava há uns 230m de onde está hoje. Não ficava exatamente na margem. A reconstrução é fiel e foi feita com base nos edifícios de 1599 e 1614. O atual Globe apresenta exclusivamente peças de Shakespeare. O Grupo Galpão, de Belo Horizonte, é a única companhia brasileira que se apresentou lá. Houve uma temporada de Romeu & Julieta que está documentada em DVD.

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O teatro durante uma peça

Há em Shakespeare paixão, ambição, amor, inveja, traição, tudo isso temperado por poesia e lirismo absolutamente originais. O Globe era e é um edifício de forma octogonal, com abertura no centro. De dentro do teatro, vê-se o céu. Não existia cortina e, por causa disso, os personagens mortos – muita gente morre nas sanguinárias peças de Shakespeare – tinham que ser retirados por auxiliares. Todos os papéis eram representados pelos homens – mulheres eram proibidas de entrar em cena – , sendo os mais jovens os encarregados de fazerem papéis femininos. No período Globe, é certo que o autor estreou Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth, talvez Romeu e Julieta e Júlio César. Foi o chamado “Período Trágico”.

Falar de Shakespeare é como falar de um ser mitológico, de um produtor de trágedias, comédias, dramas históricos e sonetos geniais. Sua obra, assim como a de pouquíssimos outros artistas, é quase indiscutível. Em Shakespeare, a Invenção do Humano, do crítico literário Harold Bloom, nota-se a dificuldade de falar de um autor tão completo. Para Bloom, Shakespeare não apenas era dono de um cérebro muito privilegiado, como também criou personagens igualmente inteligentíssimos, que seriam capazes de refletirem sobre si próprios, sobre a interação com os outros para, a partir daí, crescerem dentro das histórias, modificando suas maneiras de pensar e agir. Mas a agudeza mental dos personagens são muito bem temperadas, não existem personagens meramente frios ou chatos. Os personagens têm humor, sarcasmo, poder de sedução e são muito diferentes entre si.

Foto: Carmen Crochemore
O teatro vazio | Foto: Carmen Crochemore

Bloom destaca Hamlet e Rosalinda (de As You like it), mas talvez seja Falstaff o maior de todos. Falstaff é o soldado que não quer saber da guerra. Foi o personagem mais popular na época em que Shakespeare estava vivo. Ele aparece no drama histórico Henrique IV e na comédia As Alegres Comadres de Windsor. “Não quero glória. Dêem-me vida”. Hamlet é alguém que não acredita em nada, principalmente em si mesmo, não obstante estar entregue a uma permanente reflexão. Ele tem sete monólogos absolutamente céticos na enorme peça. E Rosalinda é uma mulher apaixonada que corteja homens e é irônica em relação àquilo que mais deseja: o amor.

Mas é impossível estabelecer a grandeza de Shakespeare em uma pequena crônica, que na verdade, era sobre aquela curiosa construção que restou queimada há 400 anos.

William Shakespeare (1564-1616)
William Shakespeare (1564-1616)

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Ser escritor no Brasil é a mais patética das profissões, diz jornal americano

Ser escritor no Brasil é a mais patética das profissões, diz jornal americano
Vanessa Bárbara está fazendo fortuna com a literatura
Vanessa Bárbara está fazendo fortuna com a literatura

The New York Times cita ainda dificuldades de professores, matemáticos e historiadores

Do R7

O jornal norte-americano The New York Times afirmou, em reportagem publicada em seu site no último fim de semana, que ser escritor no Brasil é a “mais patética de todas as profissões”.

O diário inicia a reportagem dizendo que os escritores brasileiros participaram de diversos encontros literários em países como Alemanha, Suécia e Itália, mas, mesmo assim, a carreira é desprezada no País.

O The New York Times adverte que, se você for ao Brasil, “não conte a ninguém sobre seu real ofício”. A publicação afirma que “não apenas vão negar seu cartão de crédito na mercearia, mas certamente eles irão rir de você e ainda vão questionar”.

— Não, sério, o que você faz para sobreviver?

A publicação, porém, lembra de Paulo Coelho, que é visto como dono de uma vasta, útil e lucrativa coleção de livros publicados.

O jornal destaca ainda que os escritores não estão sozinhos nessa jornada. Segundo a edição 2013 do ranking Global Teacher Status Index (Indicador Global de Professores, em tradução livre), referente à qualidade de vida dos educadores, o Brasil figura próximo da última posição na lista que reúne 21 países.

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Daniel Defoe, o grande cronista da Londres do século XVII

Daniel Defoe, o grande cronista da Londres do século XVII
Imagem anônima criada durante a Grande Peste de 1665

A chamada Grande Peste de Londres (1665-1666) foi uma epidemia que vitimou entre 75.000 e 100.000 pessoas, ou seja, um quinto da população da cidade. Um Diário do Ano da Peste (A Journal of the Plague Year) é um livro muito enganador escrito por Daniel Defoe (1660-1731), escritor e jornalista que completa mais um aniversário de morte neste domingo, 21 de abril. Até Gabriel García Márquez, que não é exatamente um tolo, quando se encantou pela obra, caiu no conto de que era uma reportagem da lavra do grande jornalista que o inglês também era. Sua perspectiva alterou-se muito ao ser informado de que Defoe tinha entre quatro e cinco anos de idade quando ocorreu a peste bubônica londrina. O autor descreve a peste como um repórter gonzo que, espicaçado pela curiosidade, vive de rua em rua cada drama, apesar do receio de contrair a doença. Como Defoe conversa com famílias que contam seus dramas em detalhes, é óbvio que se trata de um relato parcialmente ficcional. Defoe também era um ficcionista de mão cheia e estilo bastante original: num ambiente em que os escritores eram cheios de floreios e de citações à mitologia, ele era o escritor simples e direto que criara o livro mais mais vendido da Inglaterra três anos antes: Robinson Crusoe.

Os locais onde os mortos eram queimados

No livro, todo o esforço é para que o contato com os doentes seja minimizado a fim de que fosse evitada a transmissão da peste. Casas eram fechadas com doentes dentro. Também eram tomados cuidados extremos com a água. A angústia do leitor moderno aumenta muito ao saber que tudo aquilo era em vão. Os contemporâneos do escritor ignoravam como a peste bubônica era disseminada: a doença contaminava os ratos, as pulgas sugavam sangue contendo bacilos e as mesmas atacavam homens, inoculando-os. A contaminação dava-se de rato para homem através da pulga. O incrível é que Defoe faz referências aos grande número de ratos, mas não chega a apontá-los como um potencial problema. Os sintomas eram dor de cabeça, frio, dores nas costas, pulso e respiração aceleradas, febre alta e grande inquietação. Em 70% dos casos, a morte acontecia entre três e quatro dias.

Daniel Defoe (1660-1731)

Daniel Foe, de pseudônimo um pouco mais nobre – Daniel Defoe –, foi o autor, dentre outros, de três livros extraordinários: além de Um Diário do Ano da Peste e do conhecidíssimo Robinson Crusoe, Defoe foi o autor do igualmente clássico Moll Flanders, outro exemplo de romance realista “com interesses práticos e imediatos, não clássicos e remotos”, como escreveu Anthony Burgess (autor de Laranja Mecânia). Com efeito, sua formação foi o jornalismo. Pode-se dizer que a primeira versão de Defoe foi a do jornalista combativo e posicionado. A segunda foi ainda jornalística: ele percorreu seu país em busca de relatos rápidos, curiosos e despretensiosos. Será que eram todos ficção? A pergunta se justifica. Afinal, às vezes, Defoe trazia entrevistas surpreendentes com criminosos à beira do patíbulo. Ninguém testemunhou nenhuma delas, mas tais “confissões” ainda quentes, presumivelmente saídas da boca do inferno, faziam enorme sucesso.

Aos 43 anos de idade, na época da Rainha Ana, Defoe — um dissenter, nome dado aos protestantes ingleses não anglicanos — passou a atacá-la em razão de ela ser anglicana. O escritor acabou preso e condenado à exposição no pelourinho. Voltou a liberdade mas, dez anos depois, voltou ao cárcere em razão de outros panfletos contrários ao governo. Cansado das lutas, quando já tinha mais de 60 anos, veio a terceira versão e ele passou a dedicar-se exclusivamente ao romance. Mas mesmo o romancista não abria mão do jornalista. O estilo de Defoe é direto e abre mão de floreios e das demonstrações de erudição e outros que tais, tão apreciados por seus colegas. Ele sempre utilizou o verídico e o crível como apoio.

Capa do DVD de uma das versões de Robinson Crusoe: capa de gosto duvidoso

Em 1719, ele publicou Robinson Crusoe. Naquela primavera, esgotaram-se quatro edições do livro, revelando-se um excelente negócio para Defoe, que o considerava uma mercadoria, uma ficção popular, algo que dava mais lucro que o jornalismo. A história é conhecida. O personagem-título é um náufrago que passou 28 anos em uma remota ilha tropical, encontrando índios – alguns deles canibais – e todo o gênero de aventuras pelo caminho. De grande sucesso, o livro recebeu considerações inclusive de Karl Marx, que escreveu que Crusoe não representava aquilo que diziam dele – uns diziam que ele seria uma representação do homem universal, outros da superioridade do homem branco – e sim o homem capitalista em seu momento heroico. A leitura de Marx, assim como as outras citadas podem ser facilmente reconhecidas no livro de Defoe.

Mas seus grandes livros são Moll Flanders e Um Diário do Ano da Peste. Na época de Defoe, os romances tinham títulos enormes. O de Moll Flandres diz quase tudo a respeito:

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Lição de literatura

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James Joyce e seu neto Stephen

James Joyce e seu neto Stephen

James Joyce et son petit-fils Stephen

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E o Nobel de Literatura de 2013 vai para Alice Munro

E o Nobel de Literatura de 2013 vai para Alice Munro

Alice Munro Nobel

A canadense Alice Munro ganhou o Nobel de Literatura de 2013. Desde 1976, quando o laureado foi Saul Bellow, que um prêmio não me dava tanta satisfação. É raro ficarmos satisfeitos com as escolhas da Academia Sueca. Brodsky (1987) e Seamus Heaney (1995) foram duas boas excepções, mas houve anos de absoluto nonsense: 1989 (Cela), 1992 (Walcott), 1997 (Fo) e 2004 (Jelinek).

Contista admirável, Alice Munro nunca escreveu romances. Estão publicados em Portugal, pela Relógio d’Água, seis dos catorze livros que publicou entre 1968 e 2012. (Cinco estão traduzidos pelo poeta José Miguel Silva; um por Margarida Vale de Gato.) Aos 82 anos, depois de anunciar que se retirava da literatura, o prêmio representa o triunfo do storytelling.

Do blog Da Literatura

P.S. de Milton Ribeiro — No Brasil, a Companhia das Letras lançou O Amor de uma Boa Mulher, Fugitiva e Felicidade Demais, creio. E a Globo lançou Ódio, amizade, namoro, amor, casamento. E acho que é só.

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James Joyce, 1938

James Joyce, 1938

Fotografia tirada em 1938, por Gisèle Freund, mostrando James Joyce e seu neto em Paris.

James Joyce 1938

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As contribuições de Carpeaux, Caro e Zweig, ilustres imigrantes que chegaram com a guerra

As contribuições de Carpeaux, Caro e Zweig, ilustres imigrantes que chegaram com a guerra
Carpeaux chegou em 1939 e foi trabalhar numa fazenda

Quem conheceu Otto Maria Carpeaux descrevia-o como uma espécie de monstro. O escritor José Roberto Teixeira Leite era seu amigo e desenhava assim a figura do austríaco: “Carpeaux foi um dos homens mais feios que conheci. Sua aparência neandertalesca, todo mandíbulas e sobrancelhas, fazia a delícia dos caricaturistas: parecia um troglodita, mas um troglodita que lia Homero e Virgílio no original, que se deliciava e ensinava sobre Bach e Beethoven, que diferenciava e palestrava sobre Rubens e Van Dyck”. Carpeaux também era gago. Carlos Drummond de Andrade, outro amigo, disse que, numa viagem de carro, ele foi citar Kierkegaard. “Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, Ki… Ki… Ki… e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante’.

Antes de ser Otto Maria Carpeaux no Brasil, ele foi Otto Karpfen, um austríaco que estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Mesmo gago, ele falava e escrevia em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata. Mas não sabia muito da língua portuguesa quando chegou ao Brasil no final de 1939, fugido da Alemanha nazista. Tinha pai judeu e mãe católica. Identificava-se como católico. Quando chegou, foi trabalhar no interior do Paraná, numa fazenda, no campo.

Stefan Zweig veio para uma série de palestras, voltou e morou com a esposa em Petrópolis.

O austríaco Stefan Zweig chegou aqui já famoso. Era um romancista muito popular. Judeu e austríaco, foi também poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Para as gerações mais antigas, Zweig era principalmente o autor de biografias. Escreveu várias: de Dostoiévski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi, Stendhal e uma famosíssima na primeira metade do século XX, de Maria Antonieta. Conseguiu o reconhecimento como romancista nas décadas de 20 e 30. Neste período, destacam-se os romances “Amok” (1922), “Angústia” (1925) e “Confusão de Sentimentos” (1927).

Em 1934 deixou o país e passou a viver na Inglaterra, entre Londres e Bath, onde se naturalizou cidadão britânico. Com o início da Segunda Guerra Mundial e o avanço das tropas de Hitler, o casal atravessou o Atlântico em 1940 e se estabeleceu nos Estados Unidos. Em 22 de agosto do mesmo ano, veio pela primeira vez ao nosso país. Ao todo, Zweig e sua esposa Lotte fizeram três viagens ao Brasil. Durante a primeira, entre 1940 e 1941 para uma série de palestras, escreveu:

“Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante. Hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta), as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso — , a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz — uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora”.

É uma visão sociologicamente ingênua, mas demonstrava algum amor pelo país que adotaria.

Caro veio para o Brasil porque lhe disseram que era barato

O judeu Herbert Caro veio da Alemanha para Porto Alegre. Tinha em comum com Carpeaux a cultura literária enciclopédica e o profundo amor pela música. Na Alemanha, fora impedido de exercer a advocacia devido à promulgação das primeiras leis antissemitas pelo governo nazista. Primeiramente, refugiou-se na França, onde estudou Letras Clássicas na Universidade de Dijon. Para sustentar-se, dava aulas de latim e pingue-pongue – Caro havia integrado a seleção alemã de tênis de mesa durante seis anos e sido um dos dirigentes da federação de 1926 a 1933. Permaneceu um ano na França. Pressentindo a proximidade da guerra, buscou novo exílio. O Brasil surgiu como a melhor opção. Afinal, um amigo dissera que era um país barato de se viver. E Herbert Caro chegou a Porto Alegre em 7 de maio de 1935. Na mala, pouca coisa; no cérebro, um vocabulário de cerca de três mil palavras que aprendera em algumas aulas de português antes da viagem.

O vocabulário permitia que ele entendesse o Correio do Povo e pedisse informações na rua sem compreender perfeitamente a resposta. O ouvido ainda não estava acostumado. Seus conhecimentos de Direito eram inúteis e o doutorado em Filosofia também pouco valia na Porto Alegre da década de 30. O domínio de várias línguas proveu a subsistência nos primeiros anos e direcionou sua vida.

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50 livros para morrer antes de ler

50 livros para morrer antes de ler

Publicado em 26 de janeiro de 2013 no Sul21

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Mentira. São 45 livros porque 5 receberam dois votos.

Inspirado por Car­los Wil­li­an Lei­te, do Jornal Opção, de Goiânia, o Sul21 convidou dez romancistas, poetas, ensaístas ou críticos literários para nomearem as cinco piores obras de autores brasileiros que conhecem. Obviamente, a escolha reflete o gosto pessoal e o conhecimento de cada um dos dez “jurados” e não uma condenação irremediável. Trata-se de uma anti-lista, contrária às listas habituais de melhores.

Ampliando a ideia inicial, pedimos que, a cada voto, fosse acrescentada de uma a cinco linhas justificando a escolha. Por iniciativa nossa, informamos aos votantes que não divulgaríamos seus nomes, postura que foi rechaçada por dois deles, Fernando Monteiro e Ronald Augusto, que têm suas iniciais apontadas logo após seus votos. Os outros “jurados” apenas aceitaram as regras sem comentá-las. Deste modo, não podem receber a imputação de terem planejado agir sob o manto do anonimato…

(Carlos André Moreira também pediu que seus votos fossem indicados. Justificativa abaixo (*)).

Por falar em anonimato, o autor desta introdução não votou.

Assim, acrescentamos as iniciais C.A.M. aos respectivos votos. A seguir, então, em ordem alfabética por título, a lista dos 50 livros para morrer antes de ler:

Agosto, de Rubem Fonseca

Tive de ler por obrigação e acabei tomando ojeriza pelo personagem principal do livro: a azia do protagonista.

A Casa do Poeta Trágico, de Carlos Heitor Cony

Romance artificialmente construído, com pretensões de “clima internacional” que termina por criar situações ridículas como a do casal de amantes, personagens centrais, que passam uma noite inteira trepando nas ruínas de Pompeia porque se distraíram (trepando, já) e não perceberam que o sítio arqueológico havia sido aferrolhado, de acordo com o horário de fechamento dos portões (17h). Tudo bem. O homem e a mulher não se incomodam… Sem colchão, sem lençol, sem travesseiro, sem mais nada, continuam a trepar e só vão sair das ruínas quando os funcionários reabrem Pompeia para os turistas, às 10h da manhã seguinte. É mole? Não. Teria que ser muito dura (a noite). Por cenas como essa, melhor morrer antes de ler. (F.M.)

A Casa das Sete Mulheres, de Letícia Wierzchowski

— Essa pérola do cancioneiro gauchesco tem uma das mais mal escritas primeiras páginas da história da literatura universal. O resto do livro vai pelo mesmo caminho.

— Contar a Guerra dos Farrapos a partir das mulheres próximas ao general Bento Gonçalves não é ideia ruim. Mas é tudo canhestro no livro: a narrativa, o enredo, a construção dos personagens. Uma leitura que dura para sempre, no mau sentido.

A Divina Pastora, de Caldre e Fião

Achado um único exemplar num sebo de Montevidéu pelo livreiro Monquelat de Pelotas. Antes nunca o encontrasse!

A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães

Conto de fadas de superação do interdito social. História irrealista que pretendia demonstrar que as tendências (pseudo) democráticas dependiam apenas da boa vontade cristã das pessoas. Daí a Globo ter exibido a novela que tanto agradou a classe média, sempre politicamente equivocada e alienada.

A Guerrilheira, de Índio Vargas

Embora Índio Vargas seja autor de um dos livros mais importantes sobre a ditadura militar, “Guerra é Guerra, dizia o Torturador”, este aqui parece um esboço que alguém mandou inadvertidamente para a gráfica e foi publicado sem passar por revisão. Falta foco, estrutura, cuidado com a prosa, os episódios desmentem uns aos outros, repetem-se, quando não se perdem em digressões que não acrescentam nada, nem tensão. (C.A.M.)

A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo

— Bobo. A fantasia não dá nem uma novela das seis, o texto é primário. É um crime fazer os adolescentes lerem essa chatice dizendo que se trata de literatura, pior, de um clássico. Esse livro só tem importância dentro da história da literatura brasileira, coisa que o professor pode resumir numa linha e poupar os alunos.

— Clássico absoluto e abominado nas salas de aula brasileiras, mas permanece sendo lido, vendendo e com lugar cativo na alma de cada mau professor deste grande país!

A Quarta Parte do Mundo, de Clovis Bulcão

A orelha promete um “épico eletrizante”, “baseado em fatos reais” (a malfadada passagem de Villegagnon pelo Brasil). Na verdade, “eletrizantes” são as imagens, algumas das mais feias da história da literatura brasileira, como essa: “Uma robusta garça fora ferida e grunhira como um porco”. O autor criou um mundo perigoso, em que os personagens sentem apenas emoções-clichê, como uma “mistura de pavor e ódio”, e em que podem ser “tragados por piratas ou pelos abismos do mar” (tentemos visualizar isso…). Definitivamente não recomendo.

A Suavidade do Vento, de Cristóvão Tezza

Romance fraquíssimo, que nada tem a ver com a sutileza de um Antonioni, em certa tarde, olhando para árvores descabeladamente agitadas: “Como é fotogênico o vento!”, como registrou o mestre italiano da (verdadeira) suavidade na sua “Trilogia da Incomunicabilidade”, bem longe do realismo rastaquera do Tezza desse livro. (F.M.)

As Parceiras, de Lya Luft

Psicologismo mediano misturado com literatura convencional que tenta disfarçar, sem sucesso, um estilo a meio caminho do entretenimento em tom pastel e da autoajuda intimista. Narrativa para lobas fleumáticas. (R.A.)

Bernarda Soledade, a Tigre do Sertão, de Raimundo Carrero

Muito ruim. Influenciado por Lorca (?) até no título, além das situações de “dramaticidade” de estilo juvenil em torno de mulheres confinadas à maneira exatamente de “A Casa de Bernarda Alba” (sem ter, entretanto, conseguido imitar a qualidade do inspirado poeta andaluz). Em tempo: não seria “tigresa”?… (F.M.)

Cai a noite sobre Palomas, de Juremir Machado da Silva

Há uma diferença bastante grande entre construir personagens inteligentes e colocar frases de efeito e nomes de grandes pensadores em suas bocas. Talvez o Juremir não soubesse disso ao escrever o seu primeiro livro. Triste é perceber que segue sem sabê-lo até hoje.

Canto da noite, de Augusto Frederico Schmidt

Para ser justo com o falecido, eu poderia ter mencionado a obra poética inteira como exemplo da pior poesia feita no Brasil. No gênero, o autor talvez tenha sido a maior impostura de todos os tempos. Por ser endinheirado e porque publicava os grandes poetas de seu tempo, era apontado, por eles, como um grande poeta. (R.A.)

Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre

Não é nem romance nem obra sociológica. Até nos faz pensar que no Brasil se praticou e se pratica a democracia racial , via miscigenação e que na casa grande havia senhores bons e na senzala escravos submissos. Cáspite !!!

Contra o Brasil, de Diogo Mainardi

— A história de um picareta que odeia o Brasil e passa o tempo todo citando frases de viajantes e pensadores que desancaram o País e seus habitantes. Acho que ninguém vai querer ler uma autobiografia do Diogo Mainardi, mas por precaução, foi para a lista.

— Mainardi não tem muita preocupação com ideias, propostas, alternativas. Sua intenção é de apenas bater, sua arte é a da objeção. Um livro cuja intenção é a de vender o complexo de vira-latas do autor. Não obtém o riso, não informa, não nada. Merece presença aqui.

Corpo Presente, de João Paulo Cuenca

É um mistério o prestígio que Cuenca desfruta como “autor da nova geração”, já que sua obra parece reunir justamente os piores maneirismos da sua geração: abuso de ironia, pretensão acima da qualidade de seu texto, investimento em fórmulas que já não convencem. Este seu primeiro romance é um bom exemplo: um “romance urbano” com um “protagonista deslocado”, perdido em “questões de sobrevivência e sexo”, redigido em uma “escrita cinematográfica”, que na verdade é uma prosa que se pretende densa e nebulosa, mas apenas abusa de orações coordenadas sem parecer que sabe onde quer chegar. Puxa, como ninguém pensou nisso antes? (C.A.M.)

Dois Irmãos, de Milton Hatoum

Já houve um Jorge Amado, e foi suficiente.

Estorvo, de Chico Buarque

— O que dizer quando o título diz tudo? Chico, como escritor, costuma, na minha modesta opinião, emular outros escritores, com resultados sempre inferiores aos do original.

— A prova impressa de que a genialidade em determinado campo artístico não implica em qualquer tipo de brilhantismo nos demais. Compositor de raro talento, Chico é um escritor medíocre, infelizmente. Acho que nem fã de carteirinha aguenta esse árido calhamaço de coisa alguma.

Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho

Outro livro enorme, uma biografia excessivamente ocupada do varejo, do trivial-mínimo, da vida pessoal de Fernando Pessoa, que o autor jura ter visto nas ruas de Lisboa (isto é, a alma penada do poeta), talvez sinalizando que ele, Cavalcanti Filho, escrevesse sobre quantas vezes, por exemplo, um bardo alfacinha é capaz de ir ao banheiro, num único dia, depois de ter repetido o fundo prato da caldeirada do “Martinho das Arcadas”… (F.M.)

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100 anos do mestre da crônica Rubem Braga

Rubem Braga (1913-1990) elevou  a crônica ao patamar de obra de arte

Publicado em 12 de janeiro de 2013 no Sul21

Sem dúvida, a crônica não é um gênero recomendável a quem almeja a posteridade. Afinal, os cronistas normalmente escrevem para o dia seguinte e seus produtos, como se fossem modernos palimpsestos*, são substituídos no outro dia. Certamente, as crônicas duram mais um pouco mais quando são publicadas em revistas, e sua glória absoluta é aparecerem em livro. Hoje, com a internet e os blogs, as crônicas são publicadas instantaneamente e talvez sejam ainda mais voláteis. O tempo de exposição das crônicas nas capas dos sites é variável e sua glória mais duradoura é a de continuar aparecendo nas pesquisas do Google ou, e aqui voltamos ao ponto comum, em livro.

Temos e tivemos excelentes cronistas em nosso país. Tivemos, por exemplo, Nelson Rodrigues e Stanislaw Ponte Preta, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, Millôr Fernandes e o sobrevivente – ainda bem! – Luís Fernando Verissimo. Mas tivemos um solitário cronista que se orgulhava de ter nascido em Cachoeiro do Itapemirim e que foi o maior de todos eles: Rubem Braga.

Segundo Bandeira (e também Drummond), melhor ainda quando estava sem assunto

A maioria das crônicas de Rubem Braga cumpriram seus destinos de palimpsesto. Afinal, ele escreveu mais de 15 mil crônicas para jornais, revistas, rádio e TV e não mais do que mil foram selecionadas pelo autor para publicação em livro. Ele publicou mais de 20 livros de crônicas, o primeiro aos 22 anos. O estranho é que Rubem Braga — um jornalista que por anos redigiu notícias em redações – tinha suas melhores performances quando tratava de não-notícias. Como escreveu Manuel Bandeira, o verdadeiro material de Rubem Braga é a escassez de assunto. Quando falava de um tema absolutamente simples e cotidiano, conseguia habilmente espremê-lo de modo a extrair as gotas de uma poesia que era só dele.

Rubem Braga nasceu há 100 anos, em 12 de janeiro de 1913, em Cachoeiro do Itapemirim (ES) e morreu no Rio de Janeiro em dezembro de 1990. Em 1929, matriculou-se na faculdade de Direito do Rio, transferindo-se depois para Belo Horizonte. Em 1932, ano em que se formou, foi trabalhar no Diário da Tarde, de BH. Logo, além de matérias, passou a escrever suas crônicas. No mesmo ano, cobriu para os Diários Associados, na frente de batalha, a Revolução Constitucionalista de 1932. Trabalhou como correspondente ou contratado em diversas cidades do país, tais como São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro.

Na FEB, Braga é o primeiro em pé, à esquerda

Acompanhou também a Força Expedicionária Brasileira na campanha de 1944-45, na Europa, quando era correspondente do Diário Carioca. Sempre viajou muito, escrevendo para jornais brasileiros sobre os países onde estava. Passou longas temporadas em Paris e em Santiago do Chile. Viajou do Paraguai à Índia, da Grécia à Mocambique. Em 1955, chefiou o Escritório Comercial do Brasil em Santiago durante o governo de Café Filho, mas não ficou um ano no cargo. Mandou um telegrama pedindo demissão. Em 1961, com os amigos Jânio Quadros na Presidência e Affonso Arinos no Itamaraty, tornou-se Embaixador do Brasil no Marrocos. Mas nunca se afastou do jornalismo.

Falamos que Rubem Braga trabalhou em Porto Alegre. Sim, ele passou somente alguns meses na capital gaúcha, em 1939, aos 27 anos, trabalhando no Correio do Povo. Na época, sofria perseguição política do governo de Getúlio Vargas e chegou a ser preso por algumas horas quando desembarcou.

O autorretrato do solitário Braga

Seu primeiro livro de crônicas, O Conde e o Passarinho, foi publicado em 1936 pela José Olympio. Na crônica que dá nome ao volume está escrito: Minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde. De fato, nunca foi conde, sempre trabalhou muito, apesar da fama de ser um ermitão de temperamento introspectivo, mas ganhou um apelido nobiliárquico: era chamado de “O Príncipe da Crônica”. Seus temas sempre foram as ruas das cidades onde viveu, suas árvores, seus pássaros – adorava descrevê-los – , as mulheres, a infância, o mar, os amigos, a saudade e a morte. Escreveu também muitas crônicas políticas, mas não as selecionava para seus livros. Era um homem de esquerda que foi ficando cada vez mais cético a respeito do discurso político. Nunca fez o habitual percurso para a direita e criticava asperamente o Golpe de 64, mesmo sem morrer de amores por João Goulart. Morreu escrevendo como um humanista cético: Nada me desgosta mais que o primarismo dos anti-comunistas que veem tudo da Russia como obra de capetas ou o tom longamente adotado pela “Imprensa Popular” divisando em tudo que é norte-americano corrupção, imperialismo, bestialidade, ignorância. Tal independência lhe renderia muitas críticas e incompreensões, tanto dos militares quanto da “Patrulha Ideológica” dos anos 70 e 80.

Apesar da fama de lírico, um crítico da ditadura de Vargas e do Golpe de 64

Por exemplo, quatro meses após o Golpe de 64, escreveu uma crônica dizendo que este fora fruto do aventureirismo frenético do Governo João Goulart. Porém, no mesmo texto, fazia a inútil advertência de que não aprovava “tolices como a cassação dos direitos políticos de Jânio Quadros, ou de homens como Celso Furtado e Anísio Teixeira”. Dois meses depois, sua postura já era bem mais decidida:

Sempre houve no Brasil quem pregasse a necessidade de um governo forte, um governo militar. Só assim poderíamos ter ordem e respeito. Um soldado que fizesse cumprir a lei. As virtudes militares de hierarquia, de disciplina, de obediência – para acabar com a clássica bagunça brasileira.

Ora, não é isso o que vemos. Há no Recife um Coronel Ibiapina que não respeita nem Superior Tribunal Militar, nem Supremo Tribunal Federal, nem general, nem marechal: quem manda é ele, quem prende e solta é ele.

(…)

Além dos violentos, dos arbitrários, dos boquirrotos, há os piores, os que torturam presos políticos. Onde está a ordem, a disciplina, onde está o respeito?

Não, fardar a bagunça não é uma solução. Tivemos mais de um presidente civil que não toleraria nem por um minuto nenhuma dessas exibições de insubordinação.

A fama e a condição de lírico não deve ser confundida com indiferença política. Rubem Braga fundou A Folha do Povo, no Recife, jornal comunista que foi fechado e seus redatores presos e espancados. Ele próprio, Rubem Braga, esteve preso no Recife antes de sê-lo em Porto Alegre. O que houve então para ele ser insistentemente identificado como apolítico? Ora, após seus 60 anos, durante o governo Médici e em plena vigência do AI-5, realmente houve um recuo do cronista em direção ao ceticismo, mas não apenas isso: o que houve foi uma escolha estética, uma substituição da crônica social e fática pelo atemporal e indireto, características aliás, adotadas por autores como Saramago e García Márquez em seus livros, apenas para citar dois autores cujas opiniões políticas jamais foram confundidas.

Por exemplo, em Ai de ti, Copacabana, há uma pequena, famosa e delicada crônica chamada O Padeiro (texto integral ao final desta matéria). Nela, Braga descreve um entregador de pães que ia de andar em andar e gritava, logo após apertar cada campainha, Não é ninguém, é o padeiro! Superficialmente, a crônica pode ser lida como a piada do homem que dizia que era ninguém, mas a crônica também permite a leitura da história do trabalhador que entregava os pães para os ricos de Copacabana, avisando-os — e talvez pensando — que era ninguém, que não valia a incomodação de abrir a porta para recebê-lo com um bom dia. A crítica que parte da esquerda fez a Rubem Braga ignorou a dimensão humana de seus relatos, que prescindia de discursos, adotando a graça, a leveza e a transcendência. Mas eram outros tempos.

Apesar da eterna carranca, um olhar carinhoso e compassivo das pessoas

E são justamente estas crônicas — as combatidas, as  indiretas, as poéticas — que Braga escolheu para os muitos livros hoje disponíveis. São crônicas líricas de fundo nada ameno. São aparentadas do Drummond de A Rosa do Povo e estão longe da literatura de salão, apesar de seus amados pássaros e árvores. E também são tristes, muito tristes como a história do homem solitário que nunca conheceu A Primeira Mulher do Nunes  (texto integral ao final da matéria), da qual todos diziam maravilhas e pela qual o narrador já estava apaixonado. Mas uma coisa ou outra o impediam de conhecê-la.

Na capa do livro diz: “Tônia Carrero, movida pela paixão”

Paradoxalmente, o solitário Braga mudava na presença do sexo feminino. Mulherengo, amou uma das mais belas atrizes brasileiras dos anos 40 e 50: Tônia Carrero. Conheceu-a em Paris. Rubem elogiava a sua beleza, fazia piadas — “gosto muito de seu joelho esquerdo” — e, aos poucos, conquistou-a. O marido dela proibiu que os dois se encontrassem. Tônia chorou muito, mas depois, solitária e triste, passou a sair ainda mais com Braga. Decidida a abandonar o marido, Tonia encontrava-se com Rubem num pequeno hotel. Um dia a concierge lhe deu um conselho: “Não perca nunca essa mulher. Ela é bonita demais”. Mas Tonia decidiu pelo rompimento e o escritor ameaçou matar-se debaixo das rodas dos carros de Paris. Nada. Ambos de volta ao Brasil, ele insistiu, mas Tonia o ignorou: “Então vou me jogar no mar!”, gritou Rubem.

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A extinta União Soviética completa 90 anos. Tal país, qual arte?

Publicado em 30 de dezembro de 2012 no Sul21

Nicolau II em 1898: um país de grande literatura, mas em convulsão

A ensaísta Flora Süssekind, num livro sobre literatura brasileira, criou o belo título Tal Brasil, qual romance? É com este espírito — apenas com o espírito, pois nossa pobre capacidade nos afasta inexoravelmente de Flora — que pautamos para este domingo o que representou (ou pesou) a União Soviética em termos culturais. Sua origem, a Rússia czarista, foi um estado que mudou o mundo não apenas por ter se tornado o primeiro país socialista do planeta, mas por ter sido o berço de uma das maiores literaturas de todos os tempos. Quem lê a literatura russa do século XIX, não imagina que aqueles imensos autores — Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Turguênev, Leskov e outros — viviam numa sociedade com resquícios de feudalismo. Através de seus escritos, nota-se claramente a pobreza e a base puramente agrária do país, mas há poucas referências ao czar, monarca absolutista que não admitia oposição e que tinha a seu serviço uma eficiente censura. Na verdade, falar pouco no czar era uma atitude que revelava a dignidade daqueles autores.

No início do século XX, Nicolau II, o último czar da dinastia Romanov, facilitou a entrada de capitais estrangeiros para promover a industrialização do país, o que já ocorrera em outros países da Europa. Os investimentos para a criação de uma indústria russa ficaram concentrados nos principais centros urbanos, como Moscou, São Petersburgo, Odessa e Kiev. Nessas cidades, formou-se um operariado de aproximadamente 3 milhões de pessoas, que recebiam salários miseráveis e eram submetidos a jornadas de até 16 horas diárias de trabalho, sem receber alimentação e trabalhando em locais imundos. Ali, havia um ambiente propício às revoltas e ao caos social, situação que antecedeu o nascimento da União Soviética, país formado há 90 anos atrás, em 30 de dezembro de 1922.

Os trabalhadores foram recebidos pela artilharia, sem diálogo

Primeiro, houve a revolta de 1905. No dia 9 de janeiro daquele ano, um domingo, tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do czar, em São Petersburgo. O protesto, marcado para depois da missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao soberano, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos. Lênin diria que aquele dia, também conhecido como Domingo Sangrento, foi o primeiro ensaio para a Revolução. O fato detonou uma série de revoltas internas, envolvendo operários, camponeses, marinheiros (como a revolta no Encouraçado Potemkin) e soldados do exército.

Se internamente havia problemas, também vinham péssimas notícias do exterior. A Guerra Russo-Japonesa fora um fiasco militar para a Rússia, que foi obrigada a abrir mão, em 1905, de suas pretensões sobre a Manchúria e na península de Liaodong. Pouco tempo depois, já sofrendo grande oposição interna, a Rússia envolveu-se em um outro grande conflito, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde também sofreu pesadas derrotas em combates contra os alemães. A nova Guerra provocou enorme crise no abastecimento das cidades, desencadeando uma série de greves, revoltas populares e fome de boa parte da população. Incapaz de conter a onda de insatisfações, o regime czarista mostrava-se intensamente debilitado até que, em 1917, o conjunto de forças políticas de oposição (liberais e socialistas) depuseram o czar Nicolau II, dando início à Revolução Russa.

Lênin trabalhando no Kremlin, em 1918

A revolução teve duas fases: (1) a Revolução de Fevereiro, que derrubou a autocracia do czar Nicolau II e procurou estabelecer em seu lugar uma república de cunho liberal e (2) a Revolução de Outubro, na qual o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução Bolchevique começou com um golpe de estado liderado por Vladimir Lênin e foi a primeira revolução comunista marxista do século XX. A Revolução de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela criação da URSS em 1922. A Guerra Civil teve como único vencedor o Exército Vermelho (bolchevique) e foi sob sua liderança que foi criado o Estado Soviético. Lênin tornou-se, assim, o homem forte da Rússia, acompanhado por Trotsky e Stálin. Seu governo foi marcado pela tentativa de superar a crise econômica e social que se abatia sobre a nação, realizando reformas de caráter sócio-econômico. Contra a adoção do socialismo na Rússia ergueu-se uma violenta reação apoiada pelo mundo capitalista, opondo o Exército Vermelho aos russos brancos (liberais).

Canibais com suas vítimas, na província de Samara, em 1921.

O país que emergiu da Guerra Civil estava em frangalhos. Para piorar, em 1921, ocorreu a Grande Fome Russa que matou aproximadamente 5 milhões de pessoas. A fome resultou do efeito conjugado da interrupção da produção agrícola, que já começara durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou com os distúrbios da Revolução Russa de 1917 e a Guerra Civil. Para completar, houve uma grande seca em 1921, o que agravou a situação para a de uma catástrofe nacional. A fome era tão severa que a população comia as sementes em vez de plantá-las. Muitos recorreram às ervas e até ao canibalismo, tentando guardar sementes para o plantio. (Não terá saído daí a fama dos comunistas serem comedores de criancinhas? Num documentário da BBC sobre o século XX, uma mulher, ao lembrar-se da fome, conta que sua mãe tentou morder sua filha pequena e que ela precisou trancar a mãe e fugir da casa. Bem, continuemos).

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Machado de Assis: uma biografia a ser conhecida

Machado de Assis: uma biografia a ser conhecida

Vocês sabem o nome do jornal que publicou o primeiro soneto de Machado de Assis? O nome era Periódico dos Pobres.

Desculpem, mas não vou encontrar nada mais digno para dizer. Talvez por meses.

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Salve, Machado!

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Bloomsday, ou o longo caminho do Ulisses de Joyce até seu público

Bloomsday, ou o longo caminho do Ulisses de Joyce até seu público

Hoje é domingo, mas se não fosse seria feriado em Dublin. Mas  há comemorações do Bloomsday em muitíssimos lugares do mundo. Uma rápida consulta ao Google comprova que haverá festas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, uma enorme em Brasília com a presença de Augusto de Campos, em Natal, outra tradicional em Santa Maria (RS) — já com dezenove anos — , entre outras. Se em Dublin o feriado existe para que as pessoas possam relembrar os acontecimentos vividos pelos personagens de Ulisses, de James Joyce, pelas dezenove ruas da cidade citadas no livro, em outras locais os admiradores do romance promovem leituras, debates, análises ou apenas diversão.

Tudo indica que o Bloomsday seja o único feriado em todo o mundo dedicado a um livro, excetuando-se a Bíblia. Read More

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Balzac revisava seus textos… E como!

Via Éder Silveira.

Balzac

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O engenhoso tradutor e sua longa batalha com Cervantes e o Quixote

Publicado em 21 de outubro de 2012 no Sul21

Quando adolescente, Ssó tentou ler Dom Quixote no original. Não entendeu muita coisa | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

No final de novembro, a Penguin-Companhia das Letras publicará uma nova tradução de Dom Quixote. Os dois volumes — o primeiro publicado originalmente em 1605 e o segundo em 1615 — virão dentro de uma caixa da coleção Penguin Classics. Na última terça-feira, o Sul21 entrevistou o tradutor Ernani Ssó. O ambiente foi bastante estimulante à conversa: o Bar Tuim. Foram duas horas e quinze minutos de literatura, chopes e bolinhos de bacalhau que procuramos condensar no texto a seguir, deixando de lado a parte gastronômica, mas não o chope, presente na conversa cada vez mais franca e informativa. Mas antes apresentemos o tradutor do Quixote.

Ernani Ssó é um homem que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, RS, numa tarde de neve. Ainda hoje, ele duvida que o Brasil seja um país tropical. Começou a cursar Jornalismo em 1973, em Porto Alegre, porque queria ser escritor. No ano seguinte, desistiu pelo mesmo motivo. Daí por diante se dedicou à literatura. Tem livros para adultos, muitas traduções, mas gosta mais de seus livros para crianças, porque são mais difíceis de escrever.

Eventualmente escreve resenhas e crônicas de humor para a imprensa. Mantém uma coluna semanal na revista eletrônica Coletiva.net e no Sul21, onde comenta literatura e política. Trabalha também, como já dissemos, como tradutor de espanhol. São mais de  cinquenta livros traduzidos. Dentre eles, um que ama especialmente: Dom Quixote de la Mancha (ou El Engenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha), de Miguel de Cervantes.

Leia mais: O Dom Quixote que viveu em Miguel de Cervantes.

.oOo.

Sul21 — Como surgiu a ideia de traduzir o Dom Quixote?

Ernani Ssó — Eu tenho uma história antiga com Cervantes. Antes de fazer vestibular, quando eu tinha 17 anos, havia uma livraria no centro de Porto Alegre chamada Duca. Isso em 1972. Eu sou de 53. Um dia, encontrei lá uma edição de bolso do Quixote, de capa dura e papel bem fininho, com letrinha microscópica. Eu não sabia nada de espanhol, mas resolvi encarar, porque tinha ouvido dizer que o Quixote era um idealista, um cara que tentava viver sonhos impossíveis. Esse cara era eu, não? Com o livro debaixo do braço, fui comprar um dicionário de bolso e um manual de espanhol. Estudei por umas duas semanas e fui ler o Cervantes. Empaquei no primeiro parágrafo, meio apavorado. Não entendi praticamente nada. Voltei pro manual, comecei a ler outras coisas, descobri Borges, Cortázar e os demais latinos. De tanto em tanto, voltava ao cavaleiro. Então, lá por 1974-75, saiu o Quixote na tradução portuguesa dos viscondes de Castilho e Azevedo. O Ivan Lessa disse no Pasquim: “Se você vai ler só mais um romance na vida, leia esse”. Obedeci na hora, comprei a tradução, mas me decepcionei: achei tudo muito chato. Pensei que Cervantes não podia ser aquilo. Depois, li as traduções brasileiras, mas não consegui me acertar inteiramente com nenhuma delas. Talvez seja birra minha, mas sentia que o livro perdia muito de sua vida e humor. Daí minha vontade de tentar recuperá-lo até onde fosse possível.

Os romances de cavalaria levavam as aventuras a um nível tão escabelado que ela perderam totalmente o pé na realidade. Se não tem mais nada humano em que tu possas te espelhar, te emocionar, curtir, tu deixas de acreditar | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — Na tradução, tu usas que tipo de linguagem?

Ernani Ssó – O espanhol de Cervantes tem mais de quatrocentos anos. Nem os próprios espanhóis entendem direito, tanto que as edições atuais vêm com dezenas e dezenas de notas. Se eu traduzo pra um português também de quatrocentos anos, estamos fritos. Só os especialistas poderiam ler. Mas esses não precisam de tradução. Se você manja de português arcaico, não terá grandes dificuldades com o espanhol daquela época. Ao mesmo tempo você não pode modernizar a ferro e fogo. Sabe, botar o Sancho falando como um personagem do Nelson Rodrigues, por exemplo. O que fiz foi preservar um ar antigo. Em vez de usar “alapar”, por exemplo, usei esconder, palavra na verdade mais antiga mas perfeitamente legível hoje. Eu tenho mania de legibilidade. Mas é claro que pra ler o Quixote o leitor tem de ter alguma cancha. Vai quebrar a cara se foi alfabetizado o mês passado.

Sul21 — O Sancho Pança é um personagem especialmente difícil de traduzir, imagino, porque ele fala através de adágios populares.

Ernani Ssó — Cara, as horas que eu gastei pesquisando! Alguns ditados não fazem sentido em português, outros perdem as rimas, perdem o ritmo, perdem a graça. Você sabe, os ditados são frases muito medidas, telegráficas. São dribles, não? Muitas vezes encontrei correspondentes em português. Mas às vezes tive até de inventar ou refazer. Sem internet eu não teria conseguido, provavelmente.

Sul21 — Tu sempre tiveste uma relação importante com o livro, mas como surgiu a encomenda da tradução?

Ernani Ssó — Sim, já era um caso. Eu pegava o original pra ler e, ao invés de curtir a história, ficava pensando “como se diz isso em português?”. Isso me acontece com outros livros, mas não o tempo todo. Deformação profissional é fogo. Mas antes de traduzir qualquer livro eu já fazia isso com Cervantes. Nos anos 90, me encorajei e comecei a traduzir o Quixote. Fiz umas duzentas páginas que ficaram no fundo da gaveta, porque nenhuma editora se interessou.

Sul21 – Quanto tempo levaste pra traduzir os dois volumes?

Ernani Ssó – Uns dois anos. Nesse meio tempo se comemorou o quarto centenário do Quixote, saiu a tradução do Sérgio Molina pra 34, a do Carlos Nougué pra Record, dizem que o Eugênio Amado reviu a que tinha feito pra Itatiaia. Aí sim é que ninguém mais me deu bola. Até que por agosto do ano retrasado, eu liguei para a Companhia das Letras e eles toparam, pra sair nessa coleção dos clássicos da Penguin-Companhia.

Sul21 — Vamos falar do romance em si. É um romance que Cervantes escreve contra alguma coisa. A motivação dele foi a raiva? É o fato de não gostar dos romances de cavalaria? Ou pelo menos fingir não gostar?

Ernani Ssó — Eu acho que ele se sentiu traído pelos romances de cavalaria. Esses romances são fantasias tão desatadas que é impossível a gente acreditar. Um cavaleiro contra um milhão de soldados, pode? Mais alguns gigantes de quebra. Não é mais humano.  Se não tem nada humano em que tu possas te reconhecer, não há como se emocionar, curtir. É puro vazio. É como num filme americano: quem consegue acreditar numa cena em que aparece um cara agarrado só pelas unhas no precipício e um bandido pisando nos dedos dele? Você sente o perigo? Acredita que o mocinho vai morrer? Só um imbecil se deixa levar por isso. Cervantes gostava de aventura, mas conhecia a realidade bem demais, esteve na guerra, foi preso, vivia na pobreza.

Sul21 — O Quixote enxerga um castelo em qualquer estalagem, uma linda donzela em qualquer prostituta. Vai lá, quebra a cara. E segue.

Ernani Ssó – Quando a força bruta da realidade pega o coitado, ele tem uma saída ótima: isso não é a realidade, são os magos que encenaram tudo. Essa reação é muito humana. A gente vê essa saída todo dia, em políticos, em religiosos, em casais apaixonados.

Esse troço vem de Aristóteles, que dizia que a comédia é inferior à tragédia porque a comédia não tem a dor. Mas tu podes inverter a frase e dizer que a tragédia não tem o riso, e aí como é que fica? | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — E Cervantes não desiste do humor.

Ernani Ssó – Não. Quando a coisa periga, ou pra solenidade, ou pro sentimentalismo, pode esperar: lá vem bala. Acho que quando o Cervantes começou a escrever, ele não tinha noção do que viria a ser o livro. Essa edição da Penguin-Companhia tem uma introdução do John Rutherford. Ele é o tradutor da versão inglesa da Penguin. Ele diz que o Cervantes sentou para escrever um romance popular. Ele não pensou que aquilo ia ser uma obra-prima. Acho que à medida que o troço foi crescendo, ele foi se dando conta da importância do livro, mas tenho minhas dúvidas de que tenha tido consciência plena do que fez. Agora, esse negócio do humor é gozado, digamos. Teve gente que reclamou para mim porque eu escrevi que o Quixote é um dos grandes livros de humor. Disseram que eu estaria diminuindo o livro ao dizer isso. É uma visão tão estreita do humor, é achar que humor é o Renato Aragão e nada mais. Se é um grande livro de humor, é porque tem outras coisas lá também. Tire o humor de Cervantes, de Borges, de Cortázar, por exemplo. Sobra um terço e olhe lá.

Sul21 — O humor é algo muito nobre, impossível viver sem.

Ernani Ssó — Mas essa birra vem desde Aristóteles, que dizia que a comédia é inferior à tragédia porque a comédia não tem a dor. Mas tu podes inverter a frase e dizer que a tragédia não tem o riso, e aí como é que fica? Eu prefiro a tragicomédia, que tem os dois lados. Os grandes momentos do Cervantes são quando ele consegue a tragicomédia.

Sul21 — É um livro muito humano. É uma dupla visão, tu vês as duas coisas: o que o Quixote imagina e o que é real, a loucura e o idealismo sobre um fundo de melancolia. Hoje, quando estava me preparando para falar contigo, li um artigo dizendo que a primeira parte do livro é muito diferente da segunda. Que a primeira tinha a forma mais livre, que era melhor. Minha lembrança é a de que eu gostei muito mais da segunda, mas não me lembro por quê…

Ernani Ssó — Naquele livro dos diálogos do Borges com o Sábato, compilados pelo Orlando Barone, os dois acham que a segunda parte é melhor. Na primeira, o Cervantes tentava agradar os acadêmicos e na segunda ele caga pra academia e escreve muito mais solto. Acho que a primeira parte tem coisas chatíssimas como aquelas inserções de novelas.

Sul21 — Essas inserções são chatas, não têm a ver com o romance.

Ernani Ssó – Sim, sim, o primeiro volume tem essas inserções chatas, mas quase todas as grandes cenas pelas quais o Quixote é lembrado, como a do moinho e a libertação dos prisioneiros das galés, estão lá. No segundo volume o texto é ainda melhor, mais natural. Existem histórias paralelas, mas são de personagens que estão envolvidos com o Quixote, histórias em que ele participa. Então é mais harmônico, é mais pensado, mais bem estruturado. Numa conta geral, também gosto mais do segundo.

Sul21 — No início tivemos os gregos, os romanos e depois houve um período em que não tivemos grandes livros. O Quixote é o fundador do romance?

Ernani Ssó — Acho que é. Pelo menos do romance ocidental. E o incrível é que, brincando brincando, Cervantes fez com mais talento e mais graça o que muitos pós-modernos tentaram fazer, e ainda tentam, coitados. Na introdução, o Rutheford até dá uma gozada nos caras.

Sul21 — Como são as notas de rodapé da tua tradução?

Ernani Ssó – Reduzi ao mínimo possível. Mas tem algumas que se referem a dados históricos ou mitológicos de que não têm como escapar. Minhas mesmo são poucas e rápidas. São sobre trechos problemáticos da tradução em que apostei mais na audácia.

Sul21 — O que há de Cervantes no livro? Ele era esse louco que enfrentava moinhos e pensava loucuras?

Ernani Ssó – Quer dizer, até onde Cervantes era quixotesco?

Sul21 — Sim.

Ernani Ssó — É aquilo que a gente estava comentando, acho que ele era um romântico, gostava de aventura, queria que o mundo fosse mais interessante, mais bonito, menos tedioso. Acho que o livro dele não é só uma vingança aos romances de cavalaria, ou aos leitores que se babavam com eles. Acredito que é uma desilusão dele com a Espanha, com o heroísmo espanhol. Você vê ele mostrando a miséria dos soldados, quebrando a cara, ficando do lado dos mouros que estão sendo expulsos da Espanha. O próprio enredo desmente os elogios que alguns personagens fazem ao Rei e à Igreja. Acho que existe uma desilusão do próprio Cervantes com a realidade espanhola. Ele era um cara talentoso, mas se ralou a vida toda, foi ferido na guerra, foi preso, viu muitos escritores medíocres faturando.

O próprio enredo vai desmentindo os elogios ao Rei e à Igreja que há nas introduções | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — Ele tem pouca coisa além do Quixote.

Ernani Ssó — Sim, pouca. Tem a Galateia. São coisas que foram escritas antes, mas publicadas depois de Dom Quixote. Fora Galateia, o resto foi publicado na época segundo volume do Quixote. Ele ficou famoso e resolveu despachar tudo. Tem as Novelas Exemplares — mais satíricas que exemplares, como ele mesmo admitiu —, peças de teatro, muitas comédias. Mas só o Quixote emplacou. Ele deu azar até aí, morreu logo depois de publicar o segundo volume.

Sul21 — Temos um contraste entre o Quixote e o Sancho Pança, que é um cara bem realista. Começa burro e vira  gênio.

Ernani Ssó — Sim. Ele entra no primeiro volume como um cara estúpido, a estupidez em pessoa. E no segundo, ele vai ficando inteligente, vai mudando, parece que o Cervantes mudou de ideia. Há essas incongruências no livro. Ele foi improvisando à medida que escrevia. Nesse sentido, é espantoso que o segundo volume tenha uma história mais fechada. Mas o interessante é que Cervantes se orgulhava mais de ter criado Sancho que Quixote. Sancho é muito menos crível que Quixote. Veja o que é a opinião do próprio autor sobre sua obra.

Sul21 — A Virginia Woolf disse que Dom Quixote foi o único livro que a fazia chorar, que a emocionava muito. Muitos escritores enormes escreveram a respeito do livro. Nabokov tem uma belíssima série de palestras sobre o Quixote. Por que tu achas que ele impacta tanto?

Ernani Ssó — Até Freud se deu ao trabalho de aprender espanhol para ler no original. Acho que você pode não acreditar muito nas aventuras do Quixote e do Sancho, mas você acredita nos personagens, se sente amigo deles. Na verdade todos nós somos um pouco o Quixote. Pelo menos eu sou: não me conformo com a realidade. É uma merda, ela não acompanha a minha imaginação e as minhas emoções. Mas a gente acaba se conformando. Tornar-se adulto é mais ou menos isso, não? Mas esse cerne irracional continua com a gente até o cemitério. Daí, nos identificamos profundamente com o Quixote. A gente ri do coitado como se se vingasse de nossa própria ingenuidade. É como quando olhamos fotos antigas nossas: veja como eu era ridículo de calça boca de sino. Rimos e ao mesmo tempo secamos as lágrimas.

Sul21 — Tu falaste sobre os personagens. O livro é muito centrado em dois personagens com os quais a gente se identifica. A Dulcineia aparece muito pouco.

Ernani Ssó — Falando nas incongruências, quando o Quixote arruma um nome para o cavalo e para ele mesmo, no começo da aventura, logo pensa que tem que ter uma amada. Aí ele se lembra de uma camponesa por quem tinha uma quedinha. O Sancho conhecia ela e o pai, e faz piadas, porque em vez de uma princesa linda é uma fulana que anda metida com os rapazes da aldeia e tal. Isso tudo nos primeiros capítulos. À medida que o livro anda, ninguém mais conhece ela. Quando o Sancho tem que levar uma carta, ele não sabe onde ou a quem entregar. O Cervantes esqueceu totalmente. No segundo volume, cadê a Dulcineia? Para eles ela não existe, é uma invenção. O Cervantes esqueceu totalmente, acho que nunca releu o próprio romance.

Sul21 — Vamos voltar à questão de traduzir humor. Acho isso muito difícil, porém, no caso do Quixote, fundamental.

Ernani Ssó – É um inferno. A graça de uma piada às vezes depende de uma palavra, ou da colocação dessa palavra na frase. Se na tradução você erra na escolha da palavra, ou no lugar onde ela entra, babaus. Há ainda a agilidade, a formulação da frase, não? Veja a tirada do Nelson Rodrigues. Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais. Que graça tem se eu digo só as mulheres normais gostam de apanhar? Talvez não seja necessário você ser humorista pra traduzir humor, mas certamente ajuda. Depois, no caso do Cervantes, há jogos de palavras, há piadas em cima de referências culturais. Se não se recriar tudo isso, a coisa fica insípida, achatada. Ou nem faz sentido nenhum.

Um dos problemas é você traduzir humor. Se você não for ágil o humor te quebra. Outro é que muitas piadas são jogos de palavras, se tu não recriares, terás que explicar a piada na nota de rodapé – o que, cá entre nós, não tem graça nenhuma | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Tu tens uma ligação com o humor.

Ernani Ssó – Sim, eu queria ser humorista quando era adolescente. Não consegui. Tive de me contentar em ser um escritor com senso de humor.

Sul21 — Onde tu localiza o tempo do teu texto?

Ernani Ssó — Eu peguei o Houaiss, que tem datação das palavras, e tomei uma atitude radical e totalmente arbitrária: até 1900 é antigo, o que veio depois é moderno. Não usei palavras que apareceram na imprensa depois de 1900. Mas a gente não devia levar essas datações muito a sério. As palavras circulam muito antes de aparecer impressas. Veja só. Cervantes usa normalmente a palavra “voleo”. Segundo o Houaiss, “voleio” só entra no português escrito no século XX. Enfim, tratei de usar palavras anteriores a 1900, mas que fossem compreensíveis hoje. E deixei de lado palavras antigas que soam moderninhas, como “esperto”, que é do século XIII. Esperto tem todo um peso hoje que detonaria com o sentido das frases de Cervantes. Outro problema são as palavras que se tornaram ridículas. Cervantes não usa “porquero” pra ser engraçado. Mas porqueiro ou, pior, porcariço são palavras cômicas, não? Chamam muita atenção. Eu preferi um termo mais neutro, guardador de porcos, pra me manter no clima do original. São por coisas assim que não se pode ser muito literal. Veja, Cervantes despacha um adjetivo ao correr da pena, mas eu ficava queimando a mufa por uma semana ou mais até achar um correspondente à altura. Um tradutor precisa certamente de algum talento, de jeito pra coisa. Mas precisa muito mais de paciência. É um serviço bom pra um preso, que não tem aonde ir e pode ficar brincando o dia todo com as palavras, e até tirar uma soneca entre uma página e outra. Eu tenho um saco de filó, como se diz, e tive a sorte de a editora não ficar me apressando. O pessoal só queria o trabalho direito. É incrível, não? No Brasil parece um luxo agir com profissionalismo.

Um tradutor precisa certamente de algum talento, de jeito pra coisa. Mas precisa muito mais de paciência. É um serviço bom pra um preso, que não tem aonde ir e pode ficar brincando o dia todo com as palavras, e até tirar uma soneca entre uma página e outra | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

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Guimarães Rosa é — e sempre será! — notícia

Guimarães Rosa é — e sempre será! — notícia

Parece haver uma conjuração em curso. Desde ontem, quando confessei não lembrar bem de Grande Sertão: Veredas, estou recebendo uma série admoestações de queridos amigos. Curiosamente, Paulo Timm (dois links, o que comprova que Guimarães Rosa só pode ser cantado por quem controla dois espaços na internet) não me fez qualquer advertência, mas me mandou um texto sobre Rosa e Grande Sertão, o qual não posso deixar de publicar. Paulo Timm é homem de dois mundos e age de forma exatamente contrária a do meu falecido amigo Herbert Caro. O Dr. Caro viajava para a Alemanha a cada 1º de dezembro a fim de fugir da “canícula”. Voltava a Porto Alegre lá por 31 de março, vivendo dois invernos por ano. Já Paulo Timm busca o calor: vive um verão em Torres (RS) e outro em Covilhã, na Serra da Estrela (Portugal). 

Bem, antes de passar a palavra a Paulo Timm, prometo que vou ler os dois livros que já estão sobre o meu criado-mudo e depois repego o Grande Sertão, OK? E não gritem mais comigo!

.oOo.

“Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranquilos e escuros
como o sofrimento dos homens.”

Então, Guimarães é notícia em destaque?

Por quê…?

Aconteceu alguma coisa? Ganhou o Nobel de Literatura Post Mortem? A patrulha descobriu que ele era racista, homofóbico, ou vice-versa?

Nada disso, apenas Guimarães — eterno — e uma resenha ao léu no Blog do Milton Ribeiro, que não resisti a comentar. Daí a cobrança dele por esta aventura que se segue: falar sobre o maior autor moderno do país. Aquele que ultrapassou o modernismo e o regionalismo para entronizá-los na literatura mundial, com a mesma envergadura de “Cem Anos de Solidão”. Talvez mais original, mais ousada. Advirto o editor: – Não sei nada de literatura, a não ser como leitor. Penso comigo: – Devorei a “Biblioteca Lar Feliz” que minha mãe, professora primária em Santa Maria, guardou com tanto zelo, até morrer. E havia outra coleção: “Terremarear”… Como esquecer esses nomes todos? Mas, curiosamente, lá não havia muitos clássicos. Até hoje não li sequer um livro de Shakespeare. Conheço-o, como diria Machado, de vista e de chapéu. Ainda assim, pra mó de me compreenderem saibam que “ Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória.”  No Cícero Barreto e Colégio São Luiz, em Santa Maria, anos 1950/53. E o fiz até cansar, porque era muito fraquinho, não dava pra esportes coletivos, mal brincava na rua. Sempre escutando minha mãe: ” Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim”.

Mas Milton me anima: — Trata-se de depoimentos, fã clube!

Levo medo. “Abriu em mim um susto. Mal haja-me!”  Afinal respondo:  :“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só : o Que-Diga.”

“Parece até que ficou o feliz, que antes não era…”

Pois assim funciona o Guimarães, pra mim:  Como um desencontro de palavras  que escorre em melodia, como a fala de todo mineiro. Outra lógica.

Decididamente, me retombo como água caindo em cachoeira. E me vou, retórico, vaidoso e despido de vergonhas a caminho da crônica, embebido de diadorices .

Grande Sertáo, Veredas foi o melhor romance que li:  Lhe digo, à puridade.- Pois não sim…?”

A primeira vez na juventude e não consegui entender nada. Nem o título. Sertão, pra mim, ficava no Nordeste do país: “Vidas Secas”, “O Cangaceiro”, “O Pagador de Promessa”. Glauber, “Os Retirantes”. Guimarães não é minero?, perguntei ao Fabinho, um de meus gurus, comunista visceral, com quem repartia o verdadeiro “aparelho” na Demétrio Ribeiro, 1094. Meados da década de 60. Aliás, outro cadáver da ditadura. Homenagem. Ele me disse que sim, mas não explicou mais. Tudo é e não é…” Passei décadas sem voltar ao livro. Mas, perto dos 60 anos, fui morar num ermo de Goiás: Olhos d‘Água. Afinal, um homem nessa idade “ carece de aragem de descanso. Solito e Deus. Cuidando de plantar mandioca, cuidar das galinhas e fazer poesia. Cansado de guerra!

“Sofro pena de contar não….Melhor se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandio-brava, que mata?

Lá convivi com muitas gentes oriundas das Gerais, pessoas simples, rudes e sábias. E também com um mineiro, meu senhorio, Betão, de Cordisburgo, cidade de Guimarães, cujo pai havia sido dele colega. Eu lhe ensinei a tomar chimarrão nas madrugadas, ele me devolvia com mineirices.  E susseguinte… sem remediável, ”percebendo a maneira curiosa de toda aquela gente pensar e falar, ocorreu-me voltar ao “Grande Sertáo”. Pois “ponho primazia é na leitura — eu gosto muito de moral — ajudo com meu querer acreditar. De sorte que carece de se escolher. Que no causo, é reler com o jeito, agora, de poder entender. Porque aprendi com aquela gente do Planalto Central, que o excesso de argumentos e a falta de jeito falecem a razão. Que redescoberta! Comecei a entender tudo. Há sertão nas Gerais, um sertão misterioso e encharcado durante as águas, que são abundantes; há uma filosofia popular profunda entre mineiros e goianos (estes, dizem, mineiros fugidos depois de matar alguém…) Hoje, Grande Sertão, é um dos meus livros de cabeceira. Vez por outra roubo-lhe uma expressão. Ou um parágrafo inteiro – aí cito…-. E coisa incrível: Oferecendo-me para ler em grupo com algumas pessoas o livro, aqui em Torres, descobri duas mulheres devotas da obra, uma psicóloga, Angela, a outra professora, Vera. Nem precisou reler o livro com elas. Elas o sabiam melhor do que eu… Coisas deste mundo que ninguém, nem o mais o desinquieto, desentende… “Só um e outro, um em si juntos. O viver em ponto sem parar (consegue). Coração-mente. Pensamento. Avançam parados dentro da luz.

Parece que aqui, mesmo com o mar a tiracolo, com a Serra Geral subindo ao longe, também tem sertão…Pois ele está é dentro da alma de cada um de nós.

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Pablo Neruda, o homem que gostava de ser chamado de “poeta de utilidade pública”

O poeta Pablo Neruda (Parral, 12 de Julho de 1904 — Santiago, 23 de Setembro de 1973)

Publicado em 23 de setembro de 2012 no Sul21

Uma coincidência de datas leva o Sul21 a novamente deslocar seu foco para o Chile. Afinal, uma semana após o inequívoco assassinato de Víctor Jara, houve uma estranha morte: a do poeta, diplomata e comunista Pablo Neruda. A insistência de Manuel Araya, antigo motorista do escritor, em afirmar que o poeta foi assassinado por agentes do regime, levou a Suprema Corte chilena a investigar, ainda sem resultados, a morte do Prêmio Nobel de Literatura de 1971, também nos primeiros dias da ditadura de Pinochet. No livro Sombras sobre Isla Negra, la misteriosa muerte de Pablo Neruda (2012), o jornalista espanhol Mario Amorós dá um panorama bastante amplo sobre as dúvidas que cercam a morte do grande poeta.

Resumindo: a causa oficial da morte foi uma septicemia causada pelo câncer na próstata, ainda em estágio inicial, que o poeta contraíra. Porém a esposa de Neruda, Matilde Urrutia, garantiu que a causa de morte não foi o câncer. Ela afirmava que a causa mortis fora simplesmente uma parada cardíaca e jamais denunciou que seu marido tivesse sido assassinado. Enquanto isto, Araya, designado pelo Partido Comunista como assistente privado e motorista de Neruda, que tinha 20 anos em 1973, testemunhou à Justiça chilena ter visto um médico aplicando uma injeção venenosa em Neruda.

A nota da morte de Neruda no Jornal do Brasil. Clique para ampliar.

No inquérito aberto, consta a declaração do diplomata mexicano Gonzalo Martínez de que o escritor estava bem e fazia planos para o exílio um dia antes de morrer. “A dúvida é esta: se aplicaram dipirona (analgésico) para amenizar as dores, como afirmou o médico da clínica, ou se injetaram veneno, como testemunha o motorista”, escreveu Amorós.

O então embaixador mexicano no Chile confirmou a informação passada por Araya de que Neruda pretendia viajar ao México a fim de fazer oposição ao governo de seu país a partir do exterior. Ele confirmou também que o governo mexicano havia enviado um avião para buscar, no Chile, Neruda e outros futuros exilados. O problema é que a saída de Neruda não era consenso entre a junta militar desorganizada e assassina daqueles dias. Depois de Allende, o poeta era o cidadão chileno mais conhecido mundialmente e os militares tinham certeza de que ele causaria problemas ao regime no exterior. O juiz Mario Carroza, que preside o processo, concorda e considera plausível a hipótese de assassinato, já que Neruda no exílio representaria uma “situação difícil” para Pinochet.

Uma morte cada vez mais discutida

Como se não bastasse, o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, um Democrata Cristão que governou o Chile por seis anos antes de Allende (1964-1970) (não confundir com seu filho Eduardo Frei Ruiz-Tagle, presidente do país entre 1994 e 2000), faleceu em 1982 na mesma clínica, a Santa María, quando liderava uma incipiente oposição ao regime. Sua morte ocorreu devido a complicações ocorridas em uma cirurgia simples. As complicações são as mesmas de Neruda, tudo acabou numa septicemia causada comprovadamente por envenenamento. Em 7 de dezembro de 2009, foram presas seis pessoas implicadas no homicídio de Frei. As perícias indicaram que sua morte foi provocada “pela introdução paulatina de substâncias tóxicas não convencionais e pela aplicação de um produto farmacológico não autorizado”. A intoxicação com as mesmas substâncias usadas na fabricação de gás-mostarda e de veneno de rato, causou o enfraquecimento do sistema imunológico de Eduardo Frei Montalva que facilitou o aparecimento de “bactérias oportunistas”, que “resultaram na causa final da sua morte”. Em outras palavras, uma septicemia como a de Neruda.

Neruda abriu mão de sua candidatura à presidência do Chile para apoiar Allende. Ambos faleceram naquele trágico setembro de 1973.

Seguindo em nossa história sem cronologia, talvez seja importante ressaltar que, durante a eleição presidencial do Chile, em 1969, Neruda, que era candidato a Presidente, abriu mão de sua candidatura em favor de Salvador Allende. Dois anos depois, em outubro de 1971 , quando Neruda recebeu o Nobel de Literatura, Allende convidou-o para uma leitura de alguns de seus poemas no Estadio Nacional de Chile. Público: 70 mil pessoas.

Aliás, em 1945, Pablo Neruda lera para 60 mil pessoas no Pacaembu, em 15 de julho de 1945, …

Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações. Saudações das neves andinas,
saudações do Oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos
os povoadores de minha pátria longínqua.
Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?

Uma mensagem tinham. Era: Cumprimenta Prestes.
Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.
Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.
E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.

Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.
Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.

(…)

… em homenagem ao líder comunista Luís Carlos Prestes.

O jovem Neruda

Uma vida que mistura poesia e militância

Pablo Neruda é o pseudônimo de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, nascido em Parral, no Chile, em 1904. Desde o primeiro poema, adotou Pablo Neruda, em homenagem ao poeta e contista checo Jan Neruda. Começou a escrever muito jovem e logo foi reconhecido como uma voz distinta. Alcançou reconhecimento no mundo de fala espanhola com Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924), obra que, junto com Tentativa del hombre infinito (1926) são seus principais livros da juventude. Na época, Neruda era um poeta entre o modernismo e a vanguarda. Mas era impossível viver apenas de poesia e eventuais colaborações em jornais e Neruda obteve ingresso na carreira consular, o que o levou a residir na Birmânia, Ceilão, Java, Singapura e, entre 1934 e 1938, na Espanha, onde conheceu García Lorca, Vicente Aleixandre, Gerardo Diego e outros componentes da Geração de 27, fundando a revista Caballo Verde para la Poesía. Desde o primeiro manifesto da revista, tomou partido de uma “poesia sem pureza”, próxima da realidade imediata, o que já indicava sua disposição futura.

Apoiou os republicanos durante a Guerra Civil Espanhola. Reflexo óbvio desta época é España en el corazón. Himno a las glorias del pueblo en la guerra 1936-1937. Pouco a pouco, seus poemas deixaram o hermetismo de sua produção quando jovem e passaram a temas seculares mais sombrios, que se referiam ao caos da realidade cotidiana, à passagem do tempo e à morte.

De volta ao Chile, Neruda ingressou em 1939 no Partido Comunista. Em 1945, foi eleito senador. Também foi o primeiro poeta a ser agraciado com o Prêmio Nacional de Literatura no Chile. Mas seus discursos no senado desagradavam de tal modo a direita chilena que Neruda passou a ser ameaçado fisicamente, o que o levou ao exílio, primeiramente na Argentina. A vida política de Neruda e sua literatura eram aspectos da mesma pessoa e aqueles foram os anos da poesia de inspiração social de Canto General (1950).

Neruda discursando na URSS

De lá, ele foi para o México, e mais tarde visitou a URSS, China e países do Leste Europeu. Após esta longa viagem, durante a qual Neruda escreveu poemas laudatórios e datados às grandes figuras de sua época, recebeu o Prêmio Lênin da Paz e retornou novamente ao Chile. Sua poesia passou a uma nova fase onde a simplicidade formal correspondeu a uma grande intensidade lírica, emoldurada por serenidade e humor.

Sua produção foi reconhecida internacionalmente em 1971, quando foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. No ano anterior, como dissemos, havia renunciado a candidatura presidencial em favor de Salvador Allende, que o nomeou embaixador em Paris logo depois. Dois anos mais tarde, já seriamente doente, ele retornou ao Chile. Sua autobiografia, Confieso que he vivido (1974), foi publicada postumamente.

O poeta

Neruda esteve sempre disponível a todas as influências possíveis. Sua ligação com o movimento surrealista e  vanguarda espanhola e americana são claras em seus trabalhos iniciais. Quem lê Residencia en la Tierra (1925-1931) percebe a quantidade de imagens que emergem do inconsciente. As transformações do poeta nunca ocorreram subitamente. Assim, Crepusculario (1923) é fortemente pelo modernismo, enquanto Residencia en la Tierra já é surrealista, com imagens de sonhos de aparente irracionalidade. Mais tarde, em Canto General (1950), ele evolui para uma poesia comprometida com a realidade política e social. De fase em fase, Neruda parece ir trocando lentamente as pedras do mosaico de seus temas, mas mantém o estilo inconfundível, compondo uma obra vasta, coerente e comprometida.

O poeta íntimo e de “utilidade pública”, como gostava de se autodefinir

“Minha poesia é meu íntimo, eu a concebo como emanada de mim. Como minhas lágrimas e meu pouco cabelo, ela me integra.” A originalidade da Neruda advém não apenas de seu estilo, mas da escolha de temas. Ele rejeitou os temas mais comuns: o pôr do sol, as estações, os namoros na varanda ou no jardim, etc. Seus assuntos são cidades modernas, os rostos de criaturas monstruosas, a vida cotidiana em seu grotesco de miséria e de marasmo. E a morte, sempre a morte — palpável, inanimada ou ainda em vida. Ela é sua maior obsessão e penetra em tudo, no amor, na ruína, na agonia e na corrupção.

Sua poesia política e combativa não deve ser confundida com palavras de ordem gritadas à multidão. São argumentações nas quais nunca estão ausentes a poesia e a beleza. Neruda foi um homem político de posições claras, mas isto é apenas uma faceta de um grande criador, de um homem que refletiu seu mundo de maneira incomum e abrangente, que foi sensual e trágico, confessional e hermético, simples e filosófico, errante e contemplativo, íntimo e de “utilidade pública”, como ele gostava de ver chamada sua obra.

Reza a lenda que Neruda finalizou Confiesso que he vivido (Confesso que vivi) exatamente no dia 11 de setembro, data do golpe militar e da morte de Allende. Suas casas, entre elas a lendária casa de Isla Negra, foram invadidas. Logo ele foi para a clínica de Santa María e a partir de então tudo são dúvidas, até sua morte em 23 de setembro.

Com informações do artigo Características de la poesía de Pablo Neruda, de Carmen Goimil Peluffo, além de vários livros de e sobre Neruda.

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Tolstói: o genial escritor que fugiu de casa aos oitenta e dois anos

Tolstói em seu escritório (Clique para ampliar)

Publicado no Sul21 em 8 de setembro de 2012 

Liev Tolstói foi o primeiro grande injustiçado pelo Prêmio Nobel. Nascido em 9 de setembro de 1828, o escritor russo viveu até 1910 — o prêmio começou a ser entregue em 1901 — e, em seus últimos anos de vida, já era uma figura incontornável não apenas da literatura russa, mas da mundial. Ele foi um dos primeiros a entrar numa importante lista de não ganhadores que depois ganharia outros nomes notáveis como Marcel Proust, James Joyce, Vladimir Nabokov, Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Machado de Assis, Émile Zola, Henrik Ibsen e Paul Valéry, para citar alguns. Obviamente, alguns destes nomes apenas tornaram-se importantes post mortem ou, como Machado de Assis, escreviam em línguas menos traduzidas, mas o caso de Tolstói foi bastante estranho, pois, como dissemos, o escritor viveu grande parte de sua vida como uma indiscutível celebridade. Nada mais merecido.

Anton Tchékhov e Tolstói em Iasnaia Poliana

Caso semelhante ao de Dostoiévski, Tolstói foi por anos lido no Brasil em traduções de segunda mão. Isto é, como não havia no país tradutores de russo, ambos eram traduzidos do francês… Apenas nos últimos 30 anos, começaram a aparecer as traduções diretas do russo, as quais revelaram o descuido e o desrespeito com que eram tratados estes autores, além de muitos outros. O elogio mais comum feito a Tolstói era o de que se tratava de um estilista absolutamente impecável. O tradutor Rubens Figueiredo, que recentemente traduziu para a Cosac & Naify seus três principais romances — Anna Kariênina, Guerra e Paz e Ressurreição — obrigou-se a escrever uma série de explicações a respeito de certas estranhezas em seu texto. Ocorre que no original há repetições de palavras bem próximas umas das outras, procedimento que Figueiredo criteriosamente manteve, mas que os antigos tradutores não admitiam. Por exemplo, nas páginas 241-242 de Anna Kariênina (Cosac & Naify) há um parágrafo de quase uma página onde a palavra “camponeses” aparece 15 vezes. Tais repetições não devem ser confundidas com descaso.  “Gosto daquilo que chamam de incorreção. Ou seja, daquilo que é característico”, dizia Tolstói.  Também o uso de parênteses eram corrigidos pelos tradutores do passado, assim como as frases, muitas vezes longuíssimas, acabavam particionadas.

A famosa edição da Livraria do Globo, em dois volumes (Clique para ampliar)

Desta forma, um dos caminhos para estarmos mais próximos do autor russo é o de procurar as traduções feitas diretamente do original e ignorar as antigas traduções da Editora Globo para Guerra e Paz e Kariênina, por exemplo, as quais traziam um autor distorcido, com maior elegância e polimento do que o original. Pois para expressar o pensamento mais simples de alguns mujiques — os camponeses russos — , Tolstói se utilizava de pouco requinte e de um vernáculo mais limitado. O escritor russo também pensava que, em alguns casos, as repetições davam mais coesão e clareza a certos trechos.

Nestes dois grandes romances, Tolstói demonstra sua arte de forma inequívoca. Ele foi um perfeito contador de histórias polifônicas. Trabalhava com muitos personagens, as interações entre eles, suas ações e pensamentos nunca são artificiais e, de forma profundamente humana, até as paisagens descritas passam pelo filtro do estado de espírito de quem as observa. Guerra e Paz e Anna Kariênina são belíssimas sinfonias para muitas vozes.  Chama atenção o caminhão de realismo despejado pelo autor sobre seus personagens. Anna, por exemplo, está a léguas de poder aspirar a uma condição de boa pessoa do século XIX ou de qualquer tempo. Na época, ser virtuoso era o que mais contava e ela, passando por cima de Kitty e largando seu marido por pura concupiscência, renegando a filha ainda bebê e sendo suscetível a atitudes muito impulsivas, está longe do ideal virtuoso. Para completar, encontra justificativas para quase todos os seus atos, porém Tolstói não esboça o menor gesto de justificá-la assim ou assado.

Tolstói e Gorki também em Iasnaia Poliana. Foto de 1910. (Clique para ampliar).

Já as novelas Sonata a Kreutzer e A Morte de Ivan Ilitch são o extremo contrário. Focadas, com poucos personagens e devastadora análise psicológica, a primeira fala sobre o casamento, a infidelidade e a hipocrisia social e a segunda sobre a morte. Em agosto de 1883, duas semanas antes de falecer, o escritor russo Ivan Turguêniev escreveu a Tolstói: “Faz muito tempo que não lhe escrevo porque tenho estado e estou, literalmente, em meu leito de morte. Na realidade, escrevo apenas para lhe dizer que me sinto muito feliz por ter sido seu contemporâneo, e também para expressar-lhe minha última e mais sincera súplica. Meu amigo, volte à literatura”. Tolstói era efetivamente dado a passar longos períodos sem escrever e, diante do pedido do amigo, respondeu com a angustiada consciência do irrepreensível juiz Ivan Ilitch em breves 85 páginas. No texto, é mostrado um rigoroso acerto de contas interno, revelando a inutilidade da vida de Ivan. Preso ao leito, frente à morte certa, Ivan Ilitch vê como a rotina, nosso mais pesado algoz, e a vida burguesa impediram-no de apenas… pensar.

Se considerarmos sua obra como ficcionista, chegaremos à conclusão de que quase tudo aquilo que criou ainda é lido. Os três romances citados, mais as novelas A felicidade conjugalSonata a Kreutzer e A morte de Ivan Ilitch, além de relatos autobiográficos e de contos populares são a parte principal de sua obra. Tolstói foi romancista, novelista, contista, ensaísta e dramaturgo. Mas também foi o filósofo criador do tolstoísmo, uma forma de vida pastoral e pacifista que hoje nos parece bastante aparentada da forma de vida dos hippies dos anos 60 do século XX.

Imagem do excelente A Última Estação, com Christopher Plummer (Tolstói) e Helen Mirren (Sônia) | Foto: Divulgação

Atualmente, o lado filósofico e a vida pessoal de Tolstói fazem a festa de outros autores, de filmes e séries de TV. Só para citar os casos mais conhecidos: em Diário de uma Ilusão, de Philip Roth (cujo título original é The Ghost Writer, o que nos faz pensar nos critérios dos antigos tradutores de nosso retratado), há um capítulo intitulado Casado com Tolstói, que se refere ao contumaz sumiço de um dos cônjuges.  Também houve o bom filme A última estação, onde vemos as causas de uma das tais fugas. É que, para além de ser um gênio, o escritor russo era um puro. Tão puro que gerava suspeitas. Em 1856, ele, que fazia parte da nobreza russa, libertou todos os seus servos e doou-lhes as terras onde trabalhavam. Estes, porém, desconfiados, devolveram as propriedades ao ex-dono. Ele tinha, aliás, uma recorrente inclinação de desfazer-se de seus bens materiais, inclinação que não estava de acordo com a opinião de sua esposa Sônia.

O escritor em 1848

No final da década de 1850, preocupado com a péssima qualidade da educação no meio rural, Tolstói criou uma escola para filhos de camponeses na aldeia onde nasceu e viveu, a célebre Iasnaia Poliana. O escritor mesmo escreveu grande parte do material didático e, ao contrário da pedagogia da época, deixava os alunos estudarem quando quisessem, sem regras excessivas e, estranhamente, sem punições físicas. Educar para libertar. Esse era seu norte pedagógico. Recentemente, parte do material criado para a escola por seu fundador foi traduzido do russo.  Contos da Nova Cartilha é o resultado desta incursão. A obra é uma coletânea de textos extraídos das duas cartilhas elaboradas por Tolstói. São fábulas, histórias reais, contos folclóricos, descrições de paisagens naturais e adivinhações. O estilo é conciso, aproximando-se do ritmo da linguagem oral.

Tolstói e uma de suas filhas (Clique para ampliar)

Em 1862, casou-se com Sônia Andreievna Bers, com quem teve 13 filhos. A qualidade do casamento seria melhor aferida por um sismógrafo. Foi neste ambiente que Tolstoi produziu seus principais romances. Guerra e Paz consumiu sete anos de trabalho e é a prova de que um mau casamento pode produzir bons frutos. O autor atormentava-se mais do que habitual em seres humanos com questões sobre o sentido da vida e, após desistir de encontrar respostas na filosofia, na religião e na ciência, deixou seduzir-se pelo estilo de vida dos camponeses. Foi o que ele chamou de sua “conversão”. Após a “conversão”, Tolstói deixou de beber e fumar, tornou-se vegetariano e passou a vestir-se como camponês. Convencido de que ninguém deveria depender do trabalho alheio para viver, passou a limpar seu quarto, a plantar a comida da qual se alimentava e a produzir as próprias roupas e botas. Suas ideias atraíram um séquito de seguidores, que se denominavam “tolstoianos”. Como resultado, Tolstói passou a ser vigiado pela polícia do czar.

Liev Tolstói e sua esposa Sônia em 1910, ano da morte do escritor

Porém, Sônia não o deixava alcançar a simplicidade. Ela lhe cobrava os luxos aos quais estava acostumada. Os filhos davam razão à mãe, que ameaçava matar-se quando o escritor dizia que fugiria de casa. A partir de 1883, houve uma disputa entre sua esposa e Tchértkov, um militar que gozava da confiança do autor e que se tornou um paladino de suas ideias na Rússia. Sônia foi nomeada controladora de seu patrimônio, combatendo o marido, que acreditava nos feitos purificadores da caridade. Obviamente, a bondade de Tolstói levou-o a afastar-se do governo, da justiça e da Igreja Ortodoxa russa; acabou excomungado.

Problemas em casa

No período final de sua vida, acentuou-se a briga entre Sônia e Tchértkov. Agora o motivo eram os direitos autoriais de seus livros. Em 1908, Tchértkov escreveu um testamento em nome de Tolstói, onde outorgava a si mesmo o direito sobre os livros após a morte do autor. O militar foi para história como um mal intencionado que se aproveitava da credulidade do autor de Guerra e Paz. Provavelmente mereceu tal má fama póstuma. O fato é que os anos próximos à morte do escritor foram um inferno familiar. O conflito com Sônia era tal que Tolstói fez o que já fizera em oportunidades anteriores: fugiu de casa. Sônia não se matou, na verdade foi mais uma vez atrás do marido fugitivo. Só que desta vez ele morreu em meio à fuga. Faleceu na aldeia de Astápovo, em 7 de novembro de 1910. Anos depois, Sônia recuperou para a família os direitos sobre a obra de seu marido.

Tolstói em seu leito de morte

Poema da gare de Astapovo, de Mario Quintana

O velho Leon Tolstói fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se …e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

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Julio Cortázar: o incrível escritor que encolheu

Publicado em 28 de agosto de 2012 no Sul21

Cena de “O Incrível Homem que Encolheu” (1957), filme B de Jack Arnold

Até meados da década de 80, Julio Cortázar (26 de agosto de 1914 – Paris, 12 de fevereiro de 1984), um gigante de quase dois metros de altura, era um escritor lido no mundo inteiro, era quase popular. O tempo e a reavaliação por parte da crítica e dos leitores, tratou de afastá-lo do lugar que ocupava naquela época, mas ainda é um escritor respeitado, principalmente em nosso país. Já fora do Brasil, principalmente na Argentina, Cortázar foi desconstruído primeiramente pela crítica, que jogou seu ácido sobre vários pedaços da ficção do autor, e depois passou a um segundo plano no gosto dos leitores. Hoje, é personagem secundário nas livrarias de Buenos Aires e Montevidéu, fato que não ocorreu com a maioria de seus pares.

Tal recuo não chegou a ser fatal para a memória do escritor, apesar da agressividade de alguns críticos hispano-americanos, mas o retirou da posição de escritor vanguardista para recolocá-lo mais atrás, num posto de autor de alguns grandes livros. O encolhimento de Cortázar deu-se principalmente no âmbito de que ele deixou de ser considerado um escritor revolucionário para acomodar-se numa poltrona mais conformista do ponto de vista estético. A internacionalmente respeitada Beatriz Sarlo foi uma das ensaístas que desmistificou a obra-magna de Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Chamou-a de obra precocemente carcomida pelo tempo. Verdade. Sarlo diz que a possibilidade de ser lido em qualquer ordem de capítulos é um fato menor, até porque o sentido do livro não se altera se for adotada outra ordem, o que torna o expediente um acessório meramente pirotécnico.

Cortázar: autor popular apenas para uma ou duas gerações?

Cortázar está longe de ser um embuste, mas boa parte da obra do autor passou a ser considerada sob uma luz menos indulgente, na verdade sob a luz das repetições que afetariam seus romances e livros de contos escritos após de Todos os fogos o fogo. Com pouca margem de erro, pode-se projetar que o escritor argentino vá em futuro próximo fazer companhia a Hermann Hesse como autor de uma ou duas gerações.

Sue, a escolha francesa na época de Balzac. Quem entende?

As reavaliações artísticas não são novidade. Os contemporâneos de Balzac consideravam Eugène Sue o maior escritor francês de sua época. Quando comparamos os autores e ficamos sabemos que um dos principais intentos da vida de Balzac era o de desafiar a supremacia de Sue, passamos a desconfiar daquela contemporaneidade parisiense. O que pensavam? Sue é um escritor paupérrimo, certamente, mas sabia falar aos leitores europeus do século XIX. Balzac não está sozinho em sua luta contra a incompreensão da sociedade onde estava inserido. Quem era o maior compositor da época daquele que é hoje considerado o maior compositor de todos os tempos? Telemann. Sim, os contemporâneos de Bach não o reconheciam, mas amavam o hoje periférico Telemann. De alguma forma, Telemann, como Sue, sabiam o que o contexto onde estavam inseridos exigia. Não é pecado saber agradar a seus leitores imediatos.

Cortázar: Che Guevara como personagem

A “queda” de Cortázar — um escritor considerado vanguardista em sua época —  é um fenômeno. Ele não deve ser comparado a Sue em qualidade. Seu requinte formal, seu charme e suas histórias o colocaram na linha de frente dos ficcionistas mundiais de sua época. Basta dizer que seu conto A Autoestrada do Sul (de Todos os fogos o fogo) inspirou o filme Weekend (1967), de Jean-Luc Godard, e As Babas do Diabo (de As Armas Secretas)o clássico Blow-up (1966) de Michelangelo Antonioni. Ou seja, era um escritor que gozava de reconhecimento mundial. Na política, também era de vanguarda. Cortázar apoiou a revolução cubana, combateu as ditaduras argentinas, defendeu o Governo sandinista. Poucas vezes um escritor ousou entronizar um revolucionário como personagem de uma de suas narrativas como fez Cortázar com Che Guevara, o narrador asmático do conto Reunião, também de Todos os fogos o fogo.

Citamos três vezes Todos os fogos o fogo. Neste livro — que é uma espécie de súmula do Cortázar contista e é uma das últimas seleções de contos seus realmente boas — , já se nota sinais de repetição e cansaço. O clássico A Autoestrada do Sul, por exemplo, narra a história fantástica de um extraordinário engarrafamento numa rodovia que vai dar em Paris. Todos os carros parados. Por horas, dias, semanas, muda a estação e eles ali. Os gregos inventaram a “hipérbole”, que é a intensificação de um fato até o inconcebível, um superexagero que transforma os fatos em outra coisa. Os carros passam um ano inteiro parados na estrada. São criadas novas relações, um novo comércio, outra vida, outras disputas, outras formas de sobrevivência. Quando os carros voltam a andar, o leitor lamenta. Parece uma brilhante variação do também excelente A casa tomada, de 1951. Era 1966 e — pensa-se atualmente – a hora de Cortázar repensar sua literatura. Não foi o que aconteceu. Ele seguiu repetindo-se e publicando seus livros e uma velocidade cada vez maior.

Em sua casa, em Paris.

O professor de literatura latino-americana da Universidade de Tulane (EUA), Idelber Avelar, provocou a ira de muitos leitores brasileiros com uma crítica talvez demasiadamente acerba ao escritor argentino, mas que continha uma análise do esquema — ou fórmula — dos contos de Julio Cortázar que é difícil de rebater. Segundo Idelber, há uma:

(…) tediosa previsibilidade. Essa fórmula pode ser resumida em três ou quatro movimentos: 1) um personagem, sempre homem, topa-se com um lá-fora, um estrangeiro, um desconhecido: o réptil no zoológico em “Axolotl”, o acidente de moto em “La noche boca arriba”, a queda do avião em “La isla al mediodía”, a artista de cinema em “Queremos tanto a Brenda”, a Revolução Sandinista em “Apocalipsis en Solentiname” etc. 2) O choque produz no sujeito um desassossego que o descoloca, e instala uma esfera “fantástica” diferente da que estava presente na ordem anterior: o visitante do zoológico começa a transformar-se em réptil em “Axolotl”, o acidentado de “La noche boca arriba” começa a ter alucinações de que é um prisioneiro azteca, o passageiro do avião em “La isla al mediodía” passa a ter a visão perfeita da ilha, o fã começa a se fundir com a atriz em “Queremos tanto a Brenda”, as fotografias tiradas na Nicarágua começam a revelar uma realidade terrível que o protagonista não havia visto etc. 3) O conto conclui com a esfera “fantástica” coexistindo com ou substituindo a realidade anterior, enquanto o leitor sente que, catarticamente, passou por uma purgação, uma aventura através da qual a ficção lhe deu o vislumbre de uma outra dimensão. A execução desses passos é intercalada com pitadas de humor piegas à la María Elena Walsh, algumas piadas machistas e um ou outro comentário supostamente high-brow sobre alguma esfera da cultura de massas, em geral o jazz.

A previsibilidade é tal que basta ler sete ou oito contos de Cortázar – falo dos textos posteriores a Bestiário – para que se adivinhe, sem muitos problemas, como terminarão os outros relatos. Leia Todos os fogos, o fogo, e depois faça o exercício com As armas secretas. É muito mais fácil que adivinhar final de telenovela ou bang-bang.

Amor ao jazz, o cult repetidamente citado | Foto: Alberto Jonquieres

Mas a época de Cortázar aprovava. Quando Idelber fala em comentários intelectuais sobre o jazz, lembramos que o aval de Cortázar era importante para muitos ouvintes iniciantes do gênero. O jazz foi tema e fonte em grande parte de sua obra literária de forma tão insistente que hoje o autor nos deixa a impressão de abraçar uma espécie de pedagogia jazzística. Tal postura sobre este e outros assuntos empurra-lhe um fardo que, há 30 anos, ninguém esperaria que Cortázar recebesse: o de escritor para adolescentes, a de um autor para pessoas em formação. É o que diz, por exemplo, o excelente ficcionista César Aira, que afirma que o que ficará de Julio Cortázar serão os livros de contos Bestiário e Todos os fogos o fogo.

Neste sentido, ocupa uma posição singular o livro Histórias de Cronópios e de Famas. Publicado em 1962, o livro oferece narrativas hilariantes dentro de um mundo dividido entre “cronópios”, “famas” e “esperanças”. Os cronópios são distraídos e poéticos. São indiferentes ao secular, sofrem acidentes, choram, perdem seus pertences, atrasam-se, viajam levando coisas inúteis. As narrativas dedicadas a eles torna-os irresistivelmente simpáticos e sedutores. Os famas são o inverso. Objetivos, são organizados, práticos e cuidadosos. Quando viajam, por exemplo, pesquisam preços e a qualidade dos lençóis de cada local onde ficarão. Na volta, fazem álbuns de fotografias. Suas histórias são as mais engraçadas por suas compulsões. Já as esperanças são a maioria silenciosa. Deixam-se levar. Este pequeno volume é hoje indicado em escolas hispano-americanas como uma hilariante introdução de jovens ao mundo da literatura. Ou seja, é encarado efetivamente de outra forma daquela com que era lido anos atrás.

Zweig, famoso nos anos 20, hoje é pouco lembrado, mesmo no Brasil, para onde veio.

Porém, no Brasil, o prestígio de Cortázar segue estranhamente inabalado. Espécie de novo Stefan Zweig, Cortázar segue com uma legião de entusiastas em nosso país. É um fenômeno brasileiro. Vindo de uma literatura cujo prestígio mundial iniciou com a descoberta de Jorge Luis Borges nos anos 60, principalmente pela França, que na época era um país capaz de consagrar um escritor, Cortázar, segundo Beatriz Sarlo, viu-se na ponta de lança da internacionalização da literatura latino-americana por duas razões: o primeira é o desenvolvimento da própria literatura da região e a segunda é a propaganda da Revolução Cubana. Autores que se identificavam com Cuba ganharam rápida repercussão internacional. Esse é exatamente o caso de Cortázar e do colombiano Gabriel García Márquez, mas não de Borges, de Juan José Saer, do mexicano Juan Rulfo ou do uruguaio Juan Carlos Onetti, que seriam, sem dúvida alguma, escritores muito maiores.

A América espanhola parece concordar com estas palavras. O Brasil é que não.

Os anos 60  e 70, décadas de grande sucesso de Cortázar, eram muito estranhos.

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A carta de suicídio que Virginia Woolf deixou para seu marido Leonard

Virginia Woolf amava Leonard. Ele era seu grande amigo e editor. Como a escritora não se interessava por homens, o termo amigo serve com exatidão. Eram grandes amigos, grandes companheiros que se amavam e buscavam sexo em outras paragens. Uma curiosidade: como VW revisava, revisava e revisava interminavelmente seus livros, Leonard os “roubava” quando achava que estavam prontos. Simplesmente pegava uma cópia e mandada para o prelo. Virginia seguia mexendo em suas vírgulas, enquanto Leonard só observava. Dias depois, para não torturá-la muito, ele a informava: “Pode parar de revisar. O livro está sendo impresso. Está pronto há semanas!”. Ela ficava puta, mas acabava por agradecer a Leonard, seu adorado marido. Estava livre do livro e podia planejar outro.

Abaixo, a carta que deixou para Leonard quando sentiu que ia entrar em nova crise depressiva e desistiu da vida.

A carta de suicídio de Virginia Woolf

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