Há controvérsias sobre o ano em que o Bloomsday começou a ser comemorado. Alguns indicam 1925 (três anos após o lançamento do livro); outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de Joyce. A hipótese mais aceita indica que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulysses, o célebre 16 de junho de 1904.
O Instituto Ling, claro, não poderia ficar de fora.
Neste ano, temos aqui presentes Donaldo Schüler premiado escritor e também tradutor de livros como Finnegans Wake, de James Joyce, e da Odisseia, de Homero. Donlado é doutor em Letras e Livre-Docente pela UFRGS e pela PUCRS. Patrick Holloway é escritor e tradutor, possuindo doutorado em Escrita Criativa pela PUCRS e mestrado pela Universidade de Glasgow. Seus contos e poemas foram publicados no Brasil, EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá e Irlanda.
Temos também a presença do ator Charles Dall’Agnol no papel de Leopold Bloom e da Banda Irish Fellas, quarteto de música tradicional irlandesa, formado pelos músicos Caetano Maschio Santos (violino, banjo, flautas e voz), Alexandre Alles (teclado), Renato Muller (gaita-ponto e voz) e Kelvin Venturin (bódhran e voz).
Contrastando com tudo isso, no papel de patinho feio, há eu, Milton Ribeiro, jornalista, critico literário e proprietário da Livraria Bamboletras.
Mas iniciaremos passando a palavra ao representante do Consulado da Irlanda em Porto Alegre. Por favor, Mr. Jill Henneberry.
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Bem, como jornalista, tenho o vício de contextualizar tudo.
O que é o Bloomsday?
Bloomsday é o dia instituído na Irlanda para homenagear o personagem Leopold Bloom, protagonista de Ulysses, de James Joyce. Em todo o mundo, é o único dia dedicado a um personagem de um livro.
O Bloomsday é comemorado no mundo inteiro, em várias línguas. É comum que pessoas — de atores profissionais a amadores — vistam-se a rigor e refaçam cenas vividas pelos personagens de Ulysses por Dublin.
Como ele foi traduzido no Brasil?
No Brasil, temos três traduções do livro. A de Antônio Houaiss, de 1966, a de Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, e a de Caetano Galindo, de 2012. De forma complementar, o mesmo Galindo escreveu Sim, eu quero sim — Uma Visita Guiada ao Ulysses de Joyce.
O guia de Galindo se justifica. Ulysses é um livro difícil, que assusta e afasta muita gente.
Mas o que há nestas mais de mil páginas?
Como disse, tudo se passa num só dia, das 8h da manhã às 2h da madrugada do dia 17.
São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação.
Cada um escrito em uma técnica narrativa diferente.
Cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero.
(Há correspondência entre personagens da Odisseia e de Ulysses — Leopold Bloom seria Ulysses; Molly Bloom, Penélope; Stephen Dedalus, Telêmaco).
Cada capítulo faz referência a uma ciência ou ramo do conhecimento.
Em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo.
Em todos os capítulos há uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o professor de literatura Idelber Avelar.
Nestas 18 horas, Leopold Bloom tem aventuras mais ou menos análogas às do herói Ulysses: ele encontra sereias, ciclopes, feiticeiras, enfrenta a ira dos deuses e consegue retornar ileso para casa. Mas em Ulysses as figuras mitológicas são substituídas por pessoas de Dublin. As batalhas épicas acabam acontecendo dentro de fatos e diálogos de um dia comum em Dublin.
A primeira versão integral foi editada na França, em 1922, depois que editoras americanas e britânicas evitaram a publicação por considerar o original pornográfico. A Justiça dos EUA só permitiu a publicação integral em 1933. A Inglaterra, só em 1936. A razão é que os personagens falam como pessoas comuns, há fluxo de consciência, então a vida interior deles está exposta, com franqueza e muitos palavrões.
E quem é Bloom?
Quando conhecemos Leopold Bloom, ele está fazendo café da manhã para sua esposa e falando carinhosamente com um gato. Se você passasse por ele na rua, talvez nem o notasse. Sua vida exterior é circunscrita pelas ruas de Dublin e pelas exigências de uma carreira modesta. Apesar da falta de perspectivas, ele parece estar à vontade com suas próprias sombras e contradições. Ele aceita o mundo e sente prazer nas menores coisas. Conheceu a tragédia — o suicídio de seu pai, a morte de seu filho recém-nascido — e conheceu a alegria, como marido de Molly e pai de Milly. Ele ama animais, abomina a violência e aceita o fato de que sua esposa está transando com outro. Esta última parte lhe causa dor, mas ele aprendeu há muito tempo que o mundo é maior do que sua dor e a posse não faz parte de sua compreensão do amor.
Bloom também é filho de um imigrante judeu e, portanto, Joyce fugiu da escolha óbvia de criar um herói típico. Bloom é Dublin, seus amigos gostam muito dele, mas ele é um mistério. Em suas mentes, ele é passivo e “feminino”. E todos sabem que sua esposa está tendo um caso. O que está errado com ele? Que tipo de homem é esse?
Ulysses é um livro quase sem enredo e Joyce ufanava-se disso. Naquele dia, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, não muito atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto seu amigo Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell, encontra-se com Dedalus, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim. Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia.
Ou erotismo. Pois talvez a pornografia seja apenas o erotismo dos outros, não? Enfim.
Por que o livro foi proibido e censurado à princípio?
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita aqui. Enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos.
Há coisas bem estranhas no Ulysses, principalmente para os contemporâneos de 1922.
Por exemplo, a Penélope de Joyce é Molly Bloom. Se a personagem de Homero esperava o retorno de seu Ulysses fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque –, Molly não aguarda. Bloom, apesar de saber das traições de Molly com Blazes Boylan, não pretende lavar sua honra com sangue.
“Assassinato nunca, visto que dois erros não se tornam um acerto.”
A propósito, o adultério de Molly nada tem a ver com o de Capitu. Não pairam dúvidas a respeito. Bloom sabe e a própria Molly, em seu longo monólogo final de 8o páginas sem pontuação, rememora com algum detalhe os acontecimentos eróticos da tarde.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
“Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar nela, enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo e o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.”
Bloom não se comporta tipicamente como um homem da virada do século como o casal Molly e Leopold, está inteiramente fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada. Bloom é muitas vezes chamado de homem feminil. Molly é decidida e toma todas as iniciativas, inclusive foi ela quem o beijou pela primeira vez.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que esta possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.
Enquanto Ulysses lutava para voltar para sua Penélope, Bloom enrola e faz tempo na rua para não cruzar com Boylan em sua casa.
Como disse, Bloom prepara o café para Molly, arruma a cama, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com situação da filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz.
Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, comprovação — para seus amigos — que ele não é bem um homem. Pior: s amigos dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”.
Para finalizar, digo-lhes que Ulysses é puro colorido, vivacidade e energia verbal. As pessoas não são sutis ou elegantes. Não há nada mais lindo do que Bloom se masturbando na frente de Gerty MacDowell e Molly explodindo em sua insônia, nada mais frágil do que o não-machista Bloom comprando fraldas. Nada lembro de nada literariamente mais brilhante do que Joyce fazendo pouco dos padres. Não há pose, pompa, grandiosidade, apenas um enorme amor pelo humano. Na minha opinião, é uma alegria que tal livro seja o único que mereceu um feriado até hoje. Isto fala bem de nós.
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Este foi o esboço do meu roteiro. Na verdade, eu entremeei os parágrafos com várias perguntas ao Donaldo e ao Patrick, assim como com chamadas à excelente banda Irish Fellas. Tivemos belos momentos durante o Bloomsday do Instituto Ling. Concordamos, discordamos, ouvimos música irlandesa e tivemos a presença ‘in loco’ do próprio Leopold Bloom.
Com a minha autoestima tão retardada quanto meu cérebro, só hoje, pensando retrospectivamente, concluí que fizemos um belo trabalho juntos. Comandados pela Maira Ritter, o grupo que falou, cantou e atuou foi formado por mestre Donaldo Schüler, Charles Dall’Agnol, Patch Holloway, Irish Fellas, pela representante do Consulado da Irlanda Jill Henneberry e por mim. Ah, jamais esquecer das participações da Aurora, filha do Patrick (Patch Holloway), que aprendeu a caminhar faz uma semana e que parece estar gostando muito disso.
Com Gustavo Ventura Gomes, a Livraria Bamboletras também se fez presente com edições de ‘Ulysses’ e de ‘Sim, eu digo sim’ de Caetano W. Galindo.
E viva Joyce! Viva Ulysses! Vivam Molly e Leopold Bloom!
A autora de As coisas que perdemos no fogo e Este es el mar e participará do Segundo Encontro de Literatura Fantástica, em Santiago e Punta Arenas.
Por Javier García — No Culto — Suplemento Cultural do jornal La Tercera (Santiago, Chile)
Em meados de maio, Mariana Enríquez (46) viajou para um festival de escritores em Praga, República Tcheca. A autora argentina aproveitou para frequentar os lugares onde predominam cruzes e flores. “Fui ao antigo cemitério judeu e ao novo cemitério judeu onde fica Kafka”, conta ao telefone de Buenos Aires.
Renomada romancista, elogiado especialmente por suas histórias de horror, entre suas últimas publicações está Alguien camina sobre tu tumba, publicado pelo selo Montacerdos no Chile, em 2018. O volume é um conjunto de crônicas de cemitérios, localizados na Argentina, Peru, Cuba, França, Itália e Estados Unidos.
No final do volume há um epílogo que nomeia os cemitérios “que eu quero ver antes de morrer”. Um deles é chamado Kutná Hora. “É muito interessante, é cerca de 30 quilômetros de Praga, onde o Ossuário de Sedlec é, é uma igreja onde toda a sua decoração é feita de ossos. Mas desta vez eu não pude ir por tempo. Haverá uma nova oportunidade”, diz Enríquez, que está visitando o Chile esta semana.
Autora de títulos como As coisas que perdemos no fogo (2016) participará do II Encontro de Literatura Fantástica. Organizado pela Faculdade de Letras da Universidade Católica, terá palestras e leituras entre amanhã e sábado 8 de junho, em Santiago e Punta Arenas.
Como surgiu o interesse pelos cemitérios?
Eu sempre gostei deles. Em geral, tenho uma tendência estética para coisas um pouco macabras, literatura e filmes de terror. Mas decidi escrever com meus diários e dados sobre cemitérios, acho que tem a ver com a história de um amigo. Sua mãe estava desaparecida pela ditadura argentina e ele recuperou seus ossos e foi capaz de enterrar sua mãe. Então comecei a perceber que o meu fascínio por tumbas e cemitérios tem muito a ver com a minha história e a história da Argentina.
Você participou do livro de ensaios The King, bienvebido al universo de Stephen King (2019) …
O editor me perguntou. King é um autor extremamente popular e ainda não tem o reconhecimento literário que deveria ter. Ele é um dos melhores escritores no momento. Eu escolhi escrever sobre mulheres no trabalho de King. Nesse sentido, ele é muito corajoso, quebra essa regra desajeitada que um homem não pode escrever sobre as mulheres. E ele faz isso muito bem, como Annie Wilkies, a protagonista de Misery.
Para a academia, ele não é um autor altamente valorizado…
Eu acho que nunca receberia o Prêmio Nobel, mas é injusto. Eu daria o Prêmio Nobel a Stephen King. A qualidade literária é algo difícil de determinar. King escreve em vários gêneros, terror, polícia, fantasia… No twitter, ele está sempre recomendando livros. Ele é um homem que vive da literatura e que ensinou a ler uma geração. Lembro-me de quando a garota lia suas epígrafes, onde nomeava outros escritores. Eu construí um guia de leitura a partir dele.
Uma mesa cheia de livros à espera de atenção. A pilha tornou-se uma coluna que continua crescendo em número e em angústia. Talvez seja a sala de um leitor, mas é também a imagem que ilustra a capa da nova edição da revista The New Yorker. O sufoco do casal, em sua cama, parece ter uma explicação na superprodução de novidades, na falta de tempo para lê-las e no surgimento de novos inimigos que competem para manter seu limitado tempo livre.
Na Espanha, o ISBN (a agência que cataloga os livros geridos pela Federação de Editores do país) descobriu uma tendência que poderia estar ligada a um movimento contra o hábito da leitura. Os editores produzem livros cada vez mais curtos. Na última década, o número de títulos lançados cresceu, mas vieram com menos páginas: a média foi, em 2017, 243 páginas na categoria ficção e poesia. Em 2009, a extensão média era 265 páginas. 20 páginas foram cortadas, de acordo com as estatísticas do cadastro que audita o setor editorial. O segmento da ficção já tem 50,8% de livros de menos de 200 páginas. Uma década atrás, eles eram 46,3%. Nós examinamos detalhes e vimos que em 2017 foram publicados 6.573 títulos com uma extensão entre 101 e 200 páginas; 3.740, entre 201 a 300 páginas; 3.816, de 301 a 500; e 1.078 de 501 a 1.000 páginas. Em 2011 houve uma recuperação, devido à superprodução de notícias (ver gráfico).
Quase 70% dos títulos de literatura são publicados por pequenos e médios editores. Luis Solano é o editor do Libros del Asteroide e reconhece ter detectado a tendência de livros mais curtos. “Eu acho que as razões são claras. Por um lado, o tempo disponível dos leitores é mais escasso do que dez anos atrás. É evidente que o entretenimento digital (da TV às redes sociais, WhatsApp, YouTube, Netflix ou outras ferramentas de comunicação) reduz o tempo de leitura, portanto, os livros que propomos devem ser melhores ou mais curtos”.
O tamanho importa
O mundo e a leitura offline adaptam suas formas à constante mobilidade das pessoas, à fragmentação dos tempos cotidianos e à multiplicação de ofertas. Por isso, ao escolher livros, reconhece Solano, os editores levam em conta que a proliferação do digital diminuiu a atenção dos leitores. “Eu não pretendo descartar os livros grandes, mas o tamanho é um fator que tem mais peso do que há alguns anos”, diz ele. Ele acredita que os autores sabem disso e se esforçam em livros que captem imediatamente a atenção do leitor, o que os compensará pelo tempo de leitura.
Raquel Vicedo, editora da Pepitas de Calabaza e sócia da livraria Cervantes y Compañía (Madri), reconhece que tem dificuldade para se dedicar a livros de mais de 250 páginas. “Se não é uma obra de arte, não vale a pena. Há muitos livros bons para serem lidos”, explica ela. Ela descreve um panorama avassalador, um mercado saturado de livreiros e leitores, incapaz de assumir o lançamento incessante de novidades. “Nestes tempos, os escritores devem nos encorajar a projetos mais curtos. É necessária muita vontade para romances longos. Mais vontade do que dinheiro”, diz a autora Lara Moreno, que acaba de publicar o livro de poemas Eu tinha uma gaiola (La Bella Varsovia). Ela, que trabalhou na editora Caballo de Troya por um ano, aponta outro fato importante: o tempo de leitura dos editores. Ela diz que os editores não gostam de analisar livros de mais de 500 páginas, só para saberem se vale a pena.
A escritora Elvira Navarro — também ex-editora do Caballo de Troya — concorda com Lara Moreno. “Talvez o fator mais importante seja a mudança de percepção da temporalidade que vivemos. Afeta a leitura e a escrita. Os tempos aceleraram e, embora no romance de entretenimento o número de páginas tenha crescido, devemos ter em mente que seus ritmos internos são rápidos. Eles são lidos em pequenos trechos”, diz Navarro. A redução de páginas também acontece em livros de ciências sociais e humanas, talvez, como diz o autor de A Ilha dos Coelhos (Random House), porque nos acostumamos a “um conhecimento parcial e superficial”. Remedios Zafra concorda com o livro Como lemos na sociedade digital?, da Fundação Telefónica, que identifica a precariedade da leitura. Na rede, flui entre a abundância, onde a leitura acontece mais pela impressão do que pela concentração.
O editor do Impedimenta, Enrique Redel, observa que “os leitores estão cada vez mais relutantes a livros volumosos. A tendência está aí. Acho que é parte de uma mudança estrutural gradual no consumo cultural, nada de novo, que afete o tempo dedicado a esse consumo”. Como Solano, Redel aponta que o tempo é limitado e que a competição é “poderosa”, entre séries, redes sociais, conteúdo online, música ou jogos. “O livro define os tempos, exige atenção total e maior envolvimento. Isso não está na moda, então o conteúdo é diluído para ser mais digerível”, acrescenta Redel, que não acredita que um leitor contumaz sofra deste problema, mas acha que o restante hesita entre um tipo de conteúdo e outro.
17 minutos de leitura por dia
O único estudo que aponta o tempo que os espanhóis dedicam à leitura foi realizado pela Comunidade de Madrid e acaba de ser publicado. Este garante que o povo de Madrid lê 10 horas por semana. Cada vez mais se lê fora de casa, como no metrô, onde 33%das pessoas leem em viagens de cerca de 40 minutos. Um recente estudo do Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) perguntou aos entrevistados o quanto liam. A resposta foi de dois a quatro livros por ano. Outros estudos, como o da Federação de Editores da Espanha, afirmam que são uma dúzia. Os leitores diários espanhóis são apenas 32%. 40% dos espanhóis dizem que não leem nada é porque não têm tempo. Os relatórios provenientes dos EUA são mais desanimadores, porque falam de uma queda de 19% no tempo de leitura por dia. Em 15 anos, ele baixou para 17 minutos.
As Academias de Sião, de Machado de Assis, dá pano para muitas mangas, apesar de não ser um de seus maiores contos. O pano para as mangas é tecido ao longo de um plot mais do que original para a época: as academias de Sião tentavam resolver um peculiar problema: “Por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? O que as induziu a discutir isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira que o rei não cuidava de outra coisa”.
Uma das academias venceu, a que declara que a alma é sexualizada. E ela extermina (literalmente) as outras. Kinnara, a mais bela concubina do Sião era uma mulher máscula: “Um búfalo com penas de cisne”. Kinnara convence o rei para que suas almas troquem de corpo por seis meses. Cumprido o prazo, cada uma seria restituída ao corpo original. A fábula de Machado pega emprestado temas orientais, sobretudo hindus. Basta lembrar o parentesco do conto com a “história hindu” de Thomas Mann As Cabeças Trocadas, onde há um personagem belo, mas com um corpo magérrimo, e outro feio, mas de belo corpo. Em Mann, há a troca de cabeças; em Machado, a de almas.
Após a troca, Kalaphangko, ou o corpo do rei agora com alma de Kinnara cuidou da fazenda pública, da justiça, da religião e matou uns tantos que não pagavam impostos. “Sião finalmente tinha um rei”, afirma Machado. Já a alma do rei “espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara”. Sim, Machado de Assis diverte-se sempre conosco. E nós com ele.
O conto parece indicar que a alma masculina seria mais ativa e racional, enquanto a feminina seria passiva e emocional. Mas Machado de Assis não está aqui criando teses e sim controvérsias e boas piadas. Um pouco mais sobre Kinnara. Quando há a troca de almas, ela passa a um plano secundário e Kalaphangko planeja matá-la para não desfazer a troca, porém ela revela estar grávida e o rei sente-se incapaz de matar seu próprio filho, símbolo de sua virilidade e da continuidade da linhagem real. Ou seja, primeiro Kinnara consegue fazer a troca de corpos através de um beijo e depois logra não ser morta pela maternidade, um predicado físico feminino. Neste sentido, a simples Kinnara é mais uma mulher decisiva num mundo machadiano cheio delas. As mulheres de Machado seduzem, escolhem, querem e conseguem, expelindo sensualidade tanto em lentas e inexoráveis secreções ou como em espasmos (ou jatos…).
Tenho vontade, mas reluto em fazer uma interpretação do século XXI sobre um conto que não é mais do que um scherzo de Machado. Mas há outros aspectos intrigantes neste conto cheio de curiosidades que independem do instrumental psi de nossos dias. (1) Machado não cai em momento algum nas piadas fáceis e depreciativas de uma sociedade machista — e estamos em 1884. (2) Diferentemente de Tolstói, por exemplo — um escritor absolutamente contemporâneo de Machado — , o brasileiro não está nem um pouco preocupado em explicar o mundo ou em trazer a Verdade e a Solução a seus leitores. Ele apenas narra brilhantemente os fatos e nos deixa aqui pensando… (3) Os acadêmicos consideram uns aos outros perfeitos estúpidos, mas permanecem academia, inclusive protagonizando o festivo momento final de As Academias de Sião, cantando todos juntos o hino “Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!”.
A bela Kinnara — àquele momento já destrocada — não entendia como os membros da academia podiam ser a claridade do mundo quando reunidos e se detestarem separadamente… Mas sabemos que é assim. É notável que o fundador da Academia Brasileira de Letras nos passe uma noção tão bufa e verdadeira do comum das academias — locais que podem ser melhor descritos como cestas de ofídios do que como clarões para o mundo.
Há dez minutos, bêbado, estava lavando louça e pensando nos motivos que levam à imortalidade do Ulysses, de Joyce. São tantos motivos que eles montam uns por cima dos outros, procurando ganhar importância. Acho que os 18 estilos de narração têm papel fundamental. Acho que o paralelismo com a Odisseia é lindo. O labirinto das referências nem se fala. Acho que o homem feminil Leopold Bloom, cujo comportamento causa até hoje tanta discussão — um homem sensível, que fazia café para a mulher com a qual não tinha mais relações sexuais, que se preocupava com os filhos, que não trepava com a mulher após a morte de Ruby, um dos filhos, que tolerava o amante em sua cama na sua ausência, isso em 1904 –, é um tipo fundamental, mas acho que as piadas grossas, os incríveis e coloridos trocadilhos, a falta de limite entre erotismo e pornografia é ainda mais central no livro. Por exemplo, na cena com Gerty em que ele se masturba na praia, embevecido pela beleza da moça, ela vê o que ele faz (sem problemas), ele ejacula nas calças (OK), mas Joyce vai além: Bloom caminha, a coisa seca, gruda. o prepúcio fica fora do lugar, ele precisa ajeitar as coisas no púbis. Também quando Molly — à noite, sempre à noite, antes de dormir, como as mulheres gostam — faz uma DR em silêncio, num furioso fluxo de consciência, o autor não recua, usa todos os termos e diz o que até hoje evitamos. Esta é uma das razões pelas quais todos nós dizemos “sim, eu digo sim” à Ulysses. Tem muito Freud e sexo em Ulysses. Não é um livro conservador. Ele é absolutamente aberto e franco. E o mundo não evoluiu suficientemente para absorvê-lo. Enquanto não o fizer, ele estará pulando, vivo, na nossa frente.
Li sobre a existência de romances, novelas e contos com as sinopses numeradas abaixo. Nunca as li. Soube delas através do ensaio Comicidade e Riso, de Vladimir Propp. Não é um bom livro, porém, para mim, é quase impossível não ficar fantasiando sobre os temas, mesmo de descrições tão curtas. Certamente, mais um defeito de fábrica.
1. A relação da senhora simplesmente agradável com a senhora agradável sob todos os aspectos.
2. A secretária que descreve diferentes pratos com tamanho apetite que ninguém consegue trabalhar.
3. Para enganar seus credores, declara-se insolvente. Passa seus bens para o nome do genro. Então, o genro vira-lhe as costas, deixa-o ir preso e usufrui de pequena fortuna.
4. O marido, brincando, diz à mulher e à sogra que ganhou na loteria. Ele lamenta a brincadeira, mas bem depressa a mulher, a sogra e outros parentes demonstram tamanha cobiça que ele os observa, desconhecendo-os.
Não obstante as interessantes sinopses e suas possibilidades cômicas, tão importantes para Propp, o que me interessa é que a ficção, ao expandir tais argumentos, procurará representar a realidade, acabando por ultrapassá-la e tornando-se também realidade. Será a verdade ficcional uma mentira? Sim, mas não é ela quem mais se aproxima da verdade? E, quando lida, a história ainda é do autor ou é do leitor que se apropria e reinterpreta aquela realidade? Quando lemos Lucien de Rubempré fazendo seus cálculos contábeis, ainda somos nós mesmos? E por que temos a necessidade de ler ficção? Seja Joyce, novelas na TV ou de ler romances românticos de bancas de revistas?
Mais: vocês, meus sete leitores, acreditam em alguma coisa do que escrevo aqui? Ou são só simpáticos e aceitam a convenção mesmo sem acreditar?
“Um escritor escrupuloso, em cada frase que escreve, fará a si mesmo pelo menos quatro perguntas. São as seguintes:
1. O que eu estou tentando dizer?
2. Que palavras expressarão o que devo dizer?
3. Quais imagens irá torná-lo mais claro?
4. Esta imagem é boa o suficiente para causar efeito?
E ele provavelmente se fará duas perguntas a mais:
5. Posso fazê-lo mais em curto?
6. Eu disse alguma coisa que seja feia e que possa evitar?
Seis regras
“Pode-se muitas vezes duvidar do efeito de uma palavra ou uma frase, e é preciso regras em que se possa confiar quando o instinto falha. Eu acho que as seguintes regras irão cobrir a maioria dos casos:
1. Nunca use uma metáfora ou outra figura de linguagem que você costuma ler impressa.
2. Nunca use uma palavra longa onde uma curta pode ser utilizada.
3. Se for possível cortar, corte.
4. Nunca use o passivo onde você pode usar o ativo.
5. Nunca use uma frase estrangeira, uma palavra científica ou uma palavra de jargão se você puder pensar em um equivalente em sua língua.
6. Quebre qualquer uma dessas regras se elas resultarem em um absurdo.
* Retirado do ensaio de Orwell Politics and the English Language.
Que coisa linda a revista Crokodilo que chegou hoje aqui em casa. Publicação de acabamento e conteúdo de primeira linha — apesar de contar comigo –, é editada por Céllus Marcello Monteiro. Estou acompanhado por um time que me humilha, tão superiores que são. Mesmo.
Uma palestra de Neil Gaiman explica que usar nossa imaginação e providenciar para que outros utilizem as suas é uma obrigação de todos os cidadãos.
— via The Guardian — texto completo, feito a partir da tradução do blog Indexadorae do original — dica de Elena Romanov que encontrou o texto aqui
É importante dizer de que lado estamos e o motivo, se somos ou não tendenciosos. Fazer um tipo de declaração de princípios frente à sociedade. Então, conversarei com vocês sobre leitura. Direi a vocês que as bibliotecas são importantes. Vou sugerir que ler ficção, que ler por prazer, é uma das coisas mais importantes que alguém pode fazer. Farei um apelo apaixonado para que as pessoas entendam o que as bibliotecas e os bibliotecários são e para que se preservem ambos.
E eu sou — óbvia e enormemente — tendencioso: sou um escritor, muitas vezes um autor de ficção. Escrevo para crianças e adultos. Há 30 anos me sustento através das palavras, principalmente por inventar coisas e escrevê-las. Obviamente, meu interesse é que as pessoas leiam, que elas leiam ficção, que bibliotecas e bibliotecários existam para nutrir o amor pela leitura, que haja lugares onde a leitura possa ocorrer.
Então sou tendencioso enquanto escritor. Mas eu sou muito, muito mais tendencioso como leitor. E ainda mais tendencioso como cidadão britânico.
E estou aqui dando esta palestra hoje à noite para a Reading Agency: uma instituição filantrópica cuja missão é dar a todos as mesmas oportunidades na vida, ajudando as pessoas a se tornarem leitoras entusiasmadas e confiantes. Uma instituição que apoia programas de literatura, bibliotecas e indivíduos, que abertamente incentiva o ato da leitura. Porque, eles nos dizem, tudo muda quando lemos.
E é sobre essa mudança e este ato de leitura que quero falar hoje à noite. Eu quero falar sobre o que a leitura faz. O motivo de ela ser boa.
Uma vez eu estava em Nova York e ouvi uma palestra sobre a construção de prisões particulares – uma indústria em amplo crescimento nos Estados Unidos. Tal indústria precisa planejar o seu futuro crescimento – quantas celas serão necessárias? Quantos prisioneiros teremos daqui a 15 anos? E eles descobriram que podem prever isso muito facilmente, usando um algoritmo bastante simples, baseado em descobrir a porcentagem de crianças entre 10 e 11 anos que não conseguem ler, que não conseguem ler por prazer.
Não é algo muito exato: você não pode dizer que uma sociedade alfabetizada não tenha criminalidade. Mas existem correlações bastante reais.
E eu acho que algumas destas correlações, a mais simples, vem de algo muito simples. Pessoas alfabetizadas leem ficção.
A ficção tem duas utilidades. Primeiramente, é a droga que abre a porta para a leitura. O desejo de saber o que acontece em seguida, de querer virar a página, a necessidade de continuar lendo, mesmo que seja difícil porque alguém está em perigo, mas você precisa saber como tudo vai acabar… Este é um desejo muito real. E te força a aprender novos mundos, a pensar novos pensamentos, a continuar. Descobrir que a leitura por si é prazerosa. Uma vez que você aprende isso, você está no caminho para ler tudo. A leitura é a chave. Houve um breve burburinho, há alguns anos, sobre a ideia de que estávamos vivendo em um mundo pós-alfabetizado, no qual a habilidade de fazer sentido através de palavras escritas estava de alguma forma redundante, mas esses dias acabaram. Bem, as palavras são mais importantes do que jamais foram, nós navegamos o mundo com palavras, e uma vez que o mundo desliza para a web, precisamos seguir, comunicar e compreender o que estamos lendo. Pessoas que não possam entender umas às outras não podem trocar ideias, não podem se comunicar.
A forma mais simples de ter certeza de que educamos crianças alfabetizadas é ensiná-las a ler e mostrarmos a elas que a leitura é uma atividade prazerosa. E isso significa, na sua forma mais simples, encontrar livros que eles gostem, dar a eles acesso a estes livros e deixar que eles os leiam.
Eu não acho que exista livros ruins para crianças. Vez ou outra se torna moda entre alguns adultos escolherem um subconjunto de livros para crianças, um gênero talvez, ou um autor e declará-los como ruins, livros que as crianças devem parar de ler. Eu já vi isso acontecer repetidamente. Enid Blyton foi declarado um autor ruim, R. L. Stine também, assim como dúzias de outros. Quadrinhos têm sido acusados de promover o analfabetismo funcional.
Isto é tosco, é arrogante e é burrice. Não existem autores ruins para crianças, porque cada criança é diferente. Elas podem encontrar as histórias que precisam, e levam a si mesmas para as histórias. Uma ideia banal e desgastada não é banal nem desgastada para elas, pois será a primeira vez que a criança a encontra. Não desencoraje uma criança a ler porque você acha que o que elas estão lendo é errado. A ficção que você não gosta é uma rota para outros livros que você pode gostar. E nem todo mundo tem o mesmo gosto que você.
Adultos bem intencionados podem facilmente destruir o amor de uma criança pela leitura: parar de ler o que elas gostam ou dar a elas livros “chatos mas que valem a pena”, os equivalentes “melhorados” da literatura vitoriana do século XXI… Assim você acabará com uma geração convencida de que ler não é legal e pior ainda, é desagradável.
Precisamos que nossas crianças entrem na escada da leitura: qualquer coisa que eles gostarem de ler irá movê-las, degrau por degrau, a tornarem-se leitoras. (Não faça o que fiz quando a minha filha de 11 anos estava gostando de ler R. L. Stine. Eu peguei um exemplar de Carrie, a Estranha, de Stephen King, e disse que se ela você gosta de Stine, adorará isto! Resultado: Holly não leu nada além de histórias seguras de colonos em pradarias pelo resto de sua adolescência e até hoje me dá olhares tortos quando o nome de Stephen King é mencionado).
A segunda coisa que a ficção faz é construir empatia. Quando você assiste TV ou vê um filme, você está olhando para coisas acontecendo a outras pessoas. Ficção de prosa é algo que você constrói a partir de 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você, você sozinho, usando a sua imaginação, cria um mundo e o povoa e olha através dos olhos de outros. Você sente coisas, visita lugares e mundos que você jamais conheceria de outro modo. Você aprende que qualquer outra pessoa lá fora é um eu, também. Você está sendo outra pessoa e quando você volta ao seu próprio mundo, estará levemente transformado.
Empatia é uma ferramenta para tornar pessoas grupos, que nos permite que funcionemos como mais do que indivíduos obcecados consigo mesmos.
Você também está descobrindo algo enquanto lê que é de vital importância para fazer o seu caminho no mundo. E é isto:
O mundo não precisa ser assim. As coisas podem ser diferentes.
Eu estive na China em 2007 na primeira convenção de ficção científica e fantasia da história da China. E em dado momento eu perguntei a um alto oficial do Partido Comunista: “Por que a ficção científica foi reprovada por tanto tempo. Por que isso mudou?”. É simples, ele me disse. “Os chineses eram brilhantes em fazer coisas se outras pessoas lhes dessem instruções. Eles não inovavam e não inventavam. Não imaginavam. Então eles mandaram uma delegação para os Estados Unidos, para a Apple, para a Microsoft, para o Google e souberam que as pessoas de lá, que estavam inventando seu próprio futuro, leram ficção científica quando eram meninos e meninas”. A ficção pode te mostrar um outro mundo. Pode te levar para lugares onde você nunca esteve. E uma vez que você tenha visitado outros mundos, como aqueles que comeram a maçã da árvore do conhecimento, você pode ficar completamente insatisfeito com o mundo no qual você cresceu.
O descontentamento é uma coisa boa: pessoas descontentes podem modificar e melhorar o mundo, deixá-lo melhor, deixá-lo diferente. E, enquanto ainda estamos nesse tema, eu gostaria de dizer algumas palavras sobre escapismo. Eu ouço o termo utilizado por aí como se fosse uma coisa ruim. Como se ficção “escapista” fosse um ópio barato utilizado pelos confusos, pelos tolos e pelos desiludidos. Segundo eles, a única ficção válida, para adultos ou crianças seria a ficção mimética, espelhando o pior do mundo em que o leitor ou a leitora se encontra.
Se você estivesse preso em uma situação impossível, em um lugar desagradável, com pessoas que te quisessem mal e alguém te oferecesse um escape temporário, você não ia aceitar isso? A ficção escapista é apenas isso: ela abre uma porta, mostra o sol lá fora, te dá um lugar para ir onde você esteja no controle, com pessoas com quem você queira estar (e livros são lugares reais, não se enganem sobre isso); e, o mais importante, durante a fuga, os livros também podem te dar conhecimento sobre o mundo, te dar armas, te dar armaduras: coisas reais para serem levadas de volta para a prisão. Habilidades, conhecimento e ferramentas que você pode utilizar para escapar de verdade.
Como J. R. R. Tolkien nos lembrou, as únicas pessoas que não querem o escapismo são os guardas…
Outra forma de destruir o amor de uma criança pela leitura é se assegurar de que não existam livros por perto. E não dar a elas nenhum lugar para que leiam estes livros. Eu tive sorte. Eu tive uma biblioteca local excelente enquanto cresci. Eu tive o tipo de pais que me deixavam na biblioteca no caminho do trabalho deles, eu tive o tipo de bibliotecários que não se importavam que um menino pequeno e desacompanhado ficasse na biblioteca das crianças todas as manhãs remexendo no catálogo, procurando por livros sobre fantasmas ou mágica ou foguetes, procurando por vampiros ou detetives ou bruxas ou fantasias. E quando eu terminei de ler a biblioteca de crianças, eu comecei a de adultos.
Tive ótimos bibliotecários. Eles gostavam de livros e gostavam ainda mais dos livros que estavam sendo lidos. Eles me ensinaram como pedir livros de outras bibliotecas em empréstimos entre elas. Eles não eram arrogantes em relação a nada que eu lesse. Eles pareciam apenas gostar do fato de existir esse menininho de olhos arregalados que amava ler e conversavam comigo sobre os livros que eu estava lendo, encontravam outros livros para mim, eles me ajudaram. Eles me tratavam como outro leitor – nem mais, nem menos – o que significa que eles me tratavam com respeito. Eu não estava acostumado a ser tratado com respeito aos oito anos de idade.
Mas as bibliotecas também têm a ver com liberdade. A liberdade de ler, a liberdade de ideias, a liberdade de comunicação. Elas têm a ver com educação (que não é um processo que termina no dia que deixamos a escola ou a universidade), com entretenimento, têm a ver com criar espaços seguros e com o acesso à informação.
Eu me preocupo que no século XXI as pessoas venham a entender errado o que são bibliotecas. Se você perceber uma biblioteca como estantes com livros, pode parecer antiquado e datado em um mundo no qual a maioria deles, mas não todos, existem digitalmente. Pensar assim é errado.
Eu acho que tem a ver com a natureza da informação. A informação tem valor, e quando é certa tem enorme valor. Por toda a história humana, nós vivemos em escassez de informação e ter a informação desejada sempre foi importante, sempre valia alguma coisa: quando plantar sementes, onde achar as coisas, mapas e histórias e estórias. Informação era algo valioso, e aqueles que a tinham ou podiam obtê-la podiam cobrar por ela.
Nos últimos anos, nos mudamos de uma economia de escassez da informação para uma de excesso de informação. De acordo com o Eric Schmidt do Google, agora, a cada dois dias, a raça humana cria tanta informação quanto criava desde o início da civilização até 2003. O desafio se torna não encontrar a planta escassa que cresce visivelmente no deserto, mas uma planta específica que cresce em uma floresta. Precisaremos de ajuda para navegar neste mar de informações e achar aquilo que precisamos de verdade.
Bibliotecas são lugares onde as pessoas vão para obter informação. Livros são apenas a ponta do iceberg da informação: eles estão lá, e as bibliotecas podem fornecer livros gratuita e legalmente. Crianças pegam livros emprestados de bibliotecas hoje mais do que nunca – livros de todos os tipos: de papel, digital e em áudio. Mas as bibliotecas também são lugares onde pessoas que não tem computadores, que não têm conexão à internet, podem ficar on-line sem pagar nada — o que é imensamente importante quando você procura emprego, se candidata para entrevistas ou busca benefícios que migraram para ambientes exclusivamente web. Bibliotecários podem ajudar estas pessoas a navegar neste mundo.
Eu não acredito que os livros irão ou devam migrar para as telas: como Douglas Adams uma vez me falou, mais de 20 anos antes do Kindle aparecer, um livro físico é como um tubarão. Tubarões são velhos: existiam tubarões nos oceanos antes dos dinossauros. E a razão de ainda existirem tubarões é que tubarões são melhores em serem tubarões do que qualquer outra coisa que exista. Livros físicos são durões, difíceis de destruir, são resistentes, operam sob a luz do sol, ficam bem na sua mão: eles são bons em serem livros e sempre existirá um lugar para eles. Eles pertencem às bibliotecas, que já se tornaram lugares onde você pode ir para ter acesso também a e-books, áudio-livros, DVDs e conteúdos web.
Uma biblioteca é um repositório de informação e dá a cada cidadão acesso igualitário a ele. É um espaço comunitário. É um lugar de segurança, um refúgio do mundo. É um lugar com bibliotecários. E o que as bibliotecas do futuro serão é algo que deveríamos estar imaginando agora.
A literatura é mais importante do que nunca nesse mundo de mensagens e e-mail, um mundo de informação escrita. Precisamos ler e escrever, precisamos de cidadãos globais que possam ler facilmente, compreendendo o que estão lendo, entendendo as nuances e se fazendo entender.
As bibliotecas realmente são os portais para o futuro. É muito triste que, ao redor do mundo, observemos autoridades aproveitando oportunidades para fechar bibliotecas como uma maneira fácil de poupar dinheiro, sem perceber que eles estão roubando do futuro para serem pagos hoje. Eles estão fechando portas que deveriam estar sempre abertas.
De acordo com um estudo recente feito pela Organisation for Economic Cooperation and Development, a Inglaterra é o “único país onde o grupo de mais idade tem mais proficiência tanto em alfabetização quanto em capacidade de usar ou entender as técnicas numéricas da matemática do que o grupo mais jovem”.
Ou, em outras palavras, nossos filhos e netos são menos alfabetizados e menos numerosos do que nós. Eles são menos capazes de navegar pelo mundo, de entendê-lo e de resolver problemas. Eles podem ser mais facilmente enganados e iludidos, serão menos capazes de mudar o mundo em que se encontram, ser menos empregáveis. Todas essas coisas. E como um país, a Inglaterra ficará para trás em relação a outras nações desenvolvidas porque faltará mão de obra especializada.
Livros são a forma com a qual nós nos comunicamos com os mortos. A forma que aprendemos lições com aqueles que não estão mais entre nós, que construíram a humanidade, que progrediram, que fizeram com que o conhecimento fosse incrementado ao invés de reaprendido. Existem contos que são mais velhos que alguns países, contos que sobreviveram às culturas e aos prédios nos quais eles foram contados pela primeira vez.
Eu acho que temos responsabilidades com o futuro. Responsabilidades e obrigações para com as crianças, com os adultos que essas crianças se tornarão, com o mundo que eles habitarão. Todos nós – enquanto leitores, escritores, cidadãos – temos obrigações. Pensei em explicitar algumas dessas obrigações aqui.
Eu acredito que temos a obrigação de ler por prazer, em lugares públicos e privados. Se lermos por prazer, se outros nos verem lendo, mostraremos que ler é uma coisa boa.
Temos a obrigação de apoiar bibliotecas. De usar bibliotecas, de encorajar outras pessoas a utilizarem bibliotecas, de protestar contra o fechamento de bibliotecas. Se você não valoriza bibliotecas então você não valoriza informação, cultura e sabedoria. Você está silenciando as vozes do passado e prejudicando o futuro.
Temos a obrigação de ler em voz alta para nossas crianças. De ler para elas coisas que elas gostem. De ler pra elas histórias das quais já estamos cansados. De fazer as vozes, de fazer com que seja interessante e não parar de ler para elas apenas porque elas já aprenderam a ler sozinhas. Use o tempo de leitura em voz alta para um momento de aproximação, um tempo onde não se fique checando o telefone, quando as distrações do mundo são postas de lado.
Temos a obrigação de usar a linguagem. De nos esforçarmos, de descobrimos o que as palavras significam e como empregá-las, de nos comunicarmos claramente, de dizer o que estamos querendo dizer. Não devemos tentar congelar a linguagem ou fingir que é uma coisa morta que deve ser reverenciada, mas devemos usá-la como algo vivo, que flui, que empresta palavras, que permite que significados e pronúncias mudem com o tempo.
Nós escritores – não apenas os escritores para crianças, mas todos os escritores – temos uma obrigação com nossos leitores: é a obrigação de escrever coisas verdadeiras quando estamos criando contos de pessoas que não existem em lugares que nunca existiram – entender que a verdade não está no que acontece mas no que ela nos diz sobre quem somos. A ficção é a mentira que diz a verdade. Temos a obrigação de não entediar nossos leitores, de fazê-los sentir a necessidade de virar as páginas. Uma das melhores curas para um leitor relutante, afinal, é uma história que eles não são capazes de parar de ler. E, enquanto contamos a nossos leitores coisas verdadeiras e damos a ele armas e armaduras e passamos a eles qualquer sabedoria que recolhemos em nossa curta estadia nesse mundo, temos a obrigação de não pregar, não ensinar, não forçar mensagens e morais pré-digeridas goela abaixo em nossos leitores como pássaros adultos alimentando seus bebês com vermes pré-mastigados. E nós temos a obrigação de nunca, em nenhuma circunstância, escrever nada para crianças que nós mesmos não gostaríamos de ler.
Temos a obrigação de entender e reconhecer que, enquanto escritores para crianças, nós estamos fazendo um trabalho importante, porque se nós escrevermos livros chatos que distanciam as crianças da leitura e de livros, nós estaremos menosprezando nosso próprio futuro e diminuindo o deles.
Todos nós – adultos e crianças, escritores e leitores – temos a obrigação de sonhar acordados. Temos a obrigação de imaginar. É fácil fingir que ninguém pode mudar coisa alguma, que estamos num mundo no qual a sociedade é enorme e que o indivíduo é menos que nada: um átomo numa parede, um grão de arroz num arrozal. Mas a verdade é que indivíduos mudam o seu próprio mundo de novo e de novo, indivíduos fazem o futuro e eles fazem isso porque imaginam que as coisas podem ser diferentes.
Olhe à sua volta: eu falo sério. Pare por um momento e olhe em volta da sala em que você está. Eu vou dizer algo tão óbvio que a tendência é que seja esquecido. Tudo o que você vê, incluindo as paredes, foi, em algum momento, imaginado. Alguém decidiu que era mais fácil sentar numa cadeira do que no chão e imaginou a cadeira. Alguém tinha que imaginar uma forma para que eu pudesse falar com vocês em Londres agora mesmo sem que todos ficássemos tomando chuva. Esta sala e as coisas nela, e todas as outras coisas nesse prédio, esta cidade, existem porque, de novo e de novo e de novo as pessoas imaginaram coisas.
Temos a obrigação de fazer com que as coisas sejam belas, de não de deixar o mundo mais feio do que já encontramos, de não esvaziar os oceanos, não de deixar nossos problemas para a próxima geração. Temos a obrigação de limpar tudo o que sujamos, e não deixar nossas crianças com um mundo que nós desarrumamos, vilipendiamos e aleijamos de forma míope.
Temos a obrigação de dizer a nossos políticos o que queremos, de votar contra políticos ou quaisquer partidos que não compreendam o valor da leitura na criação de cidadãos decentes, que não querem agir para preservar e proteger o conhecimento e encorajar a alfabetização. Esta não é uma questão de partidos políticos. Esta é uma questão de humanidade em comum.
Uma vez perguntaram a Albert Einstein como ele poderia tornar nossas crianças inteligentes. A resposta dele foi simples e sábia. “Se você quer que crianças sejam inteligentes”, ele disse, “leiam contos de fadas para elas. Se você quer que elas sejam mais inteligentes, leiam mais contos de fadas para elas”. Ele entendia o valor da leitura e da imaginação. Eu espero que possamos dar às nossas crianças um mundo no qual elas possam ler, e que leiam para elas, e onde elas possam ser capazes de imaginar e compreender.
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Esta é uma versão editada da palestra de Neil Gaiman para a Reading Agency, realizada dia 14 de outubro de 2013 no Barbican em Londres. A série de palestras da Reading Agency é uma plataforma para que escritores e pensadores compartilhem ideias originais e desafiadoras sobre a leitura e as bibliotecas.
Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir a concertos, óperas e peças de teatro. Foi ele, pessoalmente, quem assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Também assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. A lenda diz que foram várias ligações, mas uma aconteceu com certeza.
O conteúdo desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude de Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.
Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.
Nós também. Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.
Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário na Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.
Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris. Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.
As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, mas parou de injetá-la em 1918. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.
Em 1932, Bulgákov casou-se com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos.
Para quem hoje lê Bulgákov, o fato do escritor não apoiar o regime comunista é apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. Porém, como dissemos acima, Stálin adorava de uma de suas peças. Não obstante o amor do chefe, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião.
Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920. Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, curiosamente, os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria apenas um vendido. É curiosa a posição de admiração de Stálin, apesar da polêmica. Muitos escritores que não apoiaram a liderança de Stálin foram presos. Bulgákov não.
Bulgákov morreu de um problema renal em 1940, aos 48 anos.
Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.
Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de H. G. Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.
Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição, escrita em termos perturbadores. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso ajudar a louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.
A grande obra-prima
A novela satírica O Mestre e Margarida, escrita para a gaveta, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e que contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.
Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida pelo reflexo da obra não somente na cultura russa, mas na mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock homenageiam Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.
O romance começou a ser escrito em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, apenas sua mulher sabia da existência do romance.
Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova edição — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor.
Uma amiga russa me escreve por e-mail: “Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland, Manuscritos não ardem, é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é Ánnuchka já derramou o óleo, para dizer que o cenário de uma tragédia está montado”.
As cenas de Pôncio Pilatos, a do teatro, a do belíssimo voo de Margarida e a do baile são citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa.
A ação do romance ocorre em duas frentes, alternadamente: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia espetacularmente. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Korovin — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua.
Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que formam uma atordoante série de cenas hilariantes.
Naquela Moscou o diabo está em casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram notável criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde sempre à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas a base de criação de Bulgákov é outro cômico ucraniano: Gógol.
O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira à Rússia soviética ou como crítica à superficialidade das pessoas. Há mais pontos bem característicos: Bulgákov jamais demonstra nostalgia da Rússia czarista — apenas da religião — e Woland não está em oposição direta a Deus. Ele é como um ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas. E as punições de Woland são criativas, desconcertantes.
Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.
Nas imagens finais de O Mestre, Mikhail Bulgákov dá uma dura avaliação do mundo que encontrou. Ele seria infernal e sem esperança. Era óbvio que as tentativas de se tornar parte do mundo soviético falharam. Ele não entendia aquele novo idioma.
Obs.: A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica. Mas a mais recente, de Irineu Franco Perpétuo, para a Editora 34, é ainda melhor.
~ Curiosidades ~
A venda da alma
Sabe-se que Bulgákov foi muitas vezes ao Bolshoi para ver e ouvir a ópera Fausto, de Charles Gounod. Esta ópera sempre o animava, ele voltava feliz para casa. Mas, um dia, Bulgákov voltou do teatro em estado muito sombrio. Ele tinha começado a escrever sua peça sobre Stálin, Batumi. Bulgákov reconheceu-se na imagem de Fausto. Como escrevemos acima, a peça jamais foi concluída por ter sido indiretamente reprovada por Stálin.
Personagem desaparecido
Em 1937, nos 100 anos de aniversário da morte de Pushkin, vários autores apresentaram peças dedicadas ao poeta. Entre elas, havia uma de Bulgákov. Alexander Pushkin distinguia-se das obras de outros autores pela ausência do personagem principal. Bulgákov acreditava que a aparição do homenageado no palco tornaria tudo vulgar e insípido. Sua peça foi considerada a melhor daquele ano.
Tesouro
No romance A Guarda Branca, Bulgákov descreveu com bastante precisão a casa em que morara em Kiev. Lá, haveria um tesouro. Os novos proprietários da casa quase a derrubaram, quebrando paredes ao tentar encontrar o dinheiro descrito no romance. É óbvio que não encontraram nada e ainda ficaram irritados com o escritor.
História de Woland
Woland recebeu seu nome a partir do Fausto de Goethe. No Fausto, ele é citado apenas uma vez, quando Mefistófeles pede para que espíritos malignos abram espaço pois “O nobre Woland está chegando!” Em outros Faustos ele aparece como Faland ou Phaland. A primeira edição de O Mestre continha uma descrição detalhada (15 páginas manuscritas) de Woland. Esta descrição está perdida. Além disso, na versão inicial, Woland era chamado Astaroth (um dos demônios mais altos do inferno, de acordo com a demonologia ocidental). Mais tarde, Bulgákov o substituiu.
O protótipo de Behemoth
Em russo, diz-se Begemot. O ultrafamoso assistente de Woland tinha um protótipo real, só que este não era um gato, mas um cachorro: o grande cão preto de Bulgákov chamava-se Behemoth. Esse cachorro era muito inteligente. Uma vez, quando Bulgákov estava comemorando o Ano Novo com sua esposa, logo após o relógio de parede dar doze badaladas, o cachorro também latiu 12 vezes, embora ninguém lhe tivesse ensinado.
Memória
Desde os primeiros anos de vida, Bulgákov demonstrou possuir uma memória excepcional. Lia muito. Diz a lenda que ele leu tantas vezes o romance Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, que o sabia de cor.
Coleção
Bulgákov tinha todos os ingressos de teatro — peças, ópera e concertos — a que compareceu.
Crítica soviética
O escritor também colecionava, coladas em um álbum, recortes de jornais e revistas com críticas de suas obras. Dava ênfase às mais devastadoramente hostis. De acordo com Bulgákov, ali havia 298 críticas negativas e apenas 3 elogiosas.
Defesa de Stanislavski
A primeira produção no Teatro de Arte de Moscou de Os Dias dos Turbin foi garantida por Konstantín Stanislavski. Ele simplesmente afirmou que, se a peça fosse banida, fecharia o teatro.
Stálin e Os Dias dos Turbin
Stálin gostava muito da peça e assistiu-a peça pelo menos 15 vezes, aplaudindo com entusiasmo desde o camarote destinado a membros do governo. Oito vezes ele desceu para falar com os artistas após a peça, a fim de incentivar a necessidade da luta política na literatura.
“Não sei qual deles é melhor: “Os Detetives Selvagens” ou “2666” “, questiona-se Eduardo Brandão, 64, tradutor brasileiro do autor chileno Roberto Bolaño (1953-2003).
O primeiro livro foi o mais difícil para traduzir. Já o segundo, tomou mais tempo, ou melhor, mais de um ano para finalizar o volume.
Lançado um ano após a morte do autor, “2666” é composto por cinco romances, interligados por duas tramas — a busca por um autor recluso e uma série de assassinatos na fronteira México-EUA. Explicado por que a obra conviveu mais de um ano com Brandão.
Em entrevista à Livraria da Folha, ele descreveu como trabalha na tradução de uma obra, comentou sobre o processo narrativo de Bolaño, “que é mais anti-herói do que qualquer outra coisa”, entre outros aspectos. Com cerca de 140 obras traduzidas para a Companhia das Letras, o carioca começou a se dedicar à tradução de obras literárias e de ciências humanas, a partir da década de 1970.
Chegou a trabalhar como repórter do “Correio da Manhã” entre 1966 e 1968. Hoje, tem apreço especialmente pelas literaturas espanhola e hispano-americana contemporâneas.
Livraria da Folha: Bolaño faz com que o leitor sinta-se, em alguns momentos, agoniado com o desaparecimento dos personagens e surpreso com o retorno deles. No “2666”, vários personagens mal se cruzam nas histórias. Enquanto traduzia, você se sentiu perdido ou surpreso com o retorno de algum deles?
Eduardo Brandão: Não, porque eu já tinha traduzido outros romances dele como “Os Detetives Selvagens” (2006) e ele usa esse mesmo recurso. De certa maneira, ele [Bolaño] reproduz muitas vezes o que acontece na vida da gente. Você cruza com uma pessoa, conversa, conhece, de repente você nunca mais a vê, e talvez ela apareça lá na frente novamente em outras circunstâncias. Desse ponto de vista, o procedimento narrativo do personagem que vai, some e nunca mais volta a aparecer, é bem calcado na nossa realidade.
Livraria da Folha: O “2666” assemelha-se a uma matriuska –a cada “abrir” de histórias, outras aparentemente menores saltam à vista. Qual história do livro mais lhe impressionou?
Brandão: O que mais me chocou foram as histórias dos crimes no México, onde ele [Bolaño] faz uma espécie de “romance-reportagem”. Achava que era invenção, depois descobri que aquilo é pura verdade e continua existindo. Saiu outro dia no jornal.
Livraria da Folha: Você levou quanto tempo para traduzir o “2666”?
Brandão: Levei ao todo mais de um ano, mas houve algumas interrupções para fazer outras coisas não tão grandes. Não lembro exatamente quando comecei. Entreguei no começo do ano.
Livraria da Folha: A próxima tradução que você fará do Bolaño será a do “O Terceiro Reich”? Quando será lançado pela Companhia?
Brandão: Já traduzi. Vai ser lançado no ano que vem, mas não tenho certeza da programação.
Livraria da Folha: Como é seu ritmo de trabalho durante uma tradução? Você dedica quantas horas por dia? Tem uma disciplina, digamos assim?
Brandão: Sim, começo por volta das 10h e acabo lá pelas 23h30. De trabalho, deve dar umas 8h, contando as interrupções.
Brandão: O mais difícil de todos foi “Os Detetives Selvagens”.
Livraria da Folha: Por que?
Brandão: Porque são várias narrativas, há mais de cem narradores. Isso é mais complicado, porque ele consegue dar a cada um deles uma fala própria. Você tem que tentar reproduzir o jeito daquelas pessoas falarem. O mais complicado deles foi o Amadeu, um velho que queria bancar um jovem. Ele usa umas gírias jovens, mas bem defasadas. O jeito de falar dele, empolado, informal, criou um estilo.
Livraria da Folha: Você traduziu 140 obras para a Companhia das Letras. De literatura infantojuvenil à livros de história e filosofia. Qual tradução foi a mais complicada de ser realizada e por que?
Brandão: Os infantojuvenis me distraem mais. Foi “Os Detetives Selvagens” mesmo, inclusive pelo uso dos “mexicanismos”.
Livraria da Folha: Você recorreu a dicionários?
Brandão: Eu tive uma sorte danada com esse livro, porque acabei encontrando uma pessoa que me ajudou. Mandei um e-mail para essa moça. Ela conheceu o Bolaño lá no México e era da região onde passava boa parte das histórias do livro. Aquelas gírias “barra-pesada” que tinha ali [livro] só com ela mesmo.
Livraria da Folha: Cada parte do romance pode ser lida de forma independente. Você concorda com Bolaño ao defender que a obra fosse publicada em cinco volumes?
Brandão: Um volume foi a decisão mais sensata, inclusive foi a da viúva. Ele fez aquilo com uma preocupação não literária, vamos dizer assim, preocupado com os filhos e com a mulher. Apesar de ter histórias meio soltas, nenhuma é solta ali. Elas têm um ponto de contato.
Livraria da Folha: Na trama de “2666”, Archimboldi morreu em 2003. Em parte, ele mimetiza o que foi o século 20 e o que seria o 21. Na sua opinião, qual dos dois séculos ou nenhum deles o livro representa?
Brandão: Acho que ele está mais com o pé no 21, principalmente por toda essa questão do narcotráfico. Claro que isso já existia no século 20, de certa forma ele [Bolaño] anteviu.
Livraria da Folha: Bolaño gosta de adotar em seus romances heróis fracassados pela própria realidade na qual sobrevivem ou simplesmente anular a existência deles. Você acredita que a narrativa de Bolaño faz as vezes de herói de seus personagens e até do próprio escritor?
Brandão: Herói não, propriamente, é mais anti-herói do que qualquer outra coisa. A narrativa dele surge de uma maneira tão espontânea. Existe ali uma catarse.
Livraria da Folha: As histórias não se fecham, são deixadas no ar. Se pudesse escolher uma delas para finalizar, qual seria e por que?
Brandão: Eu não concluiria, adorei o livro assim.
Livraria da Folha: Você conhecia o Bolaño antes de traduzi-lo?
Brandão: Confesso que nunca tinha ouvido falar. O primeiro que traduzi foi “Noturno do Chile”, que achei meio estranho. Depois peguei “Os Detetives Selvagens”, adorei e virei bolañista. Quando traduzi “Os Detetives Selvagens”, não existia ainda a “bolañomania”. Agora está começando a sair um monte de coisa [refere-se às cartas e manuscritos que serão publicados], embora ele fosse reservado sobre sua vida.
Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque — que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Em super resumo, estas são as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria.
Pois então abrimos o Ulysses de Joyce e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, não é nada fiel. Bloom é um Ulisses nada heróico, é antes um judeu irlandês de vida comum, que sabe das traições de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue.
Assassinato nunca, visto que dois erros não tornam um certo.
O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.
Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente abordagens sexuais inteiramente diversas de tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas e masturbatórias. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é mais pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.
Ulysses é um texto que procura minar as noções de gênero. O romance não promove a superioridade masculina, mas sim eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde a noção de gênero com a criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, está fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Bloom comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”. Também, como talvez uma mulher o fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela veja seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que, na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. Antes do famoso monólogo de Molly, Bloom recapitula o primeiro encontro sexual com a mulher, em consonância com que já sabíamos: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca).
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o famoso monólogo de Molly, o leitor entra nos pensamentos dela na cama ao lado de Bloom, que dorme ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de família. Quando lembra da amamentação da filha, ela recorda que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para ele chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser a provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil.
Porém, em qualquer hipótese, o texto de Joyce afunda e afunda a masculinidade.
Como o capitalismo contemporâneo cria sem cessar ocupações inúteis, enquanto remunera muito mal as mais necessárias. Quais as alternativas? Garantia de trabalho? Ou Renda Cidadã Universal?
David Graeber, entrevistado por Eric Allen Been, na Vice| Tradução: Antonio Martins
Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.
Mas enquanto muitos de nós julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro, “Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre outras obras, Dívida: Os Primeiros 5000 anos e The Utopia of Rules [ainda sem edição em português] é professor de Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).
A “Vice” encontrou-se há pouco com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.
Em primeiro lugar, o que são empregos de merda e por que existem?
David Graeber: Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda. Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.
Uma série de fatores contribuiu para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons” trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?
Até mesmo os empregos de merda garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas, por que isso é ruim?
Mas a questão é: se a sociedade tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos? Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.
Em termos individuais, isso pode ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo? Mas não são.
As pessoas contratadas para tais trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um trabalho de verdade.
Segundo seu livro, a sociedade pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham.
É interessante. Chamo de trabalho real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante, trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências, faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a eles.
Porém, os empregos oferecidos aos estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas, essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.
E os empregos tecnológicos ou na mídia. Seriam, também, de merda?
Certamente. Por meio do Twitter, pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para “demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas julgassem o trabalho importante.
Na mídia, ha um exemplo interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê estas publicações.
A automação é vista, muitas vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?
Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.
Como antropólogo, sei perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.
Pergunto: por que as pessoas agem como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema? Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem, temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em um sistema eficiente.
Um dos pontos mais interessantes do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.
Foi uma das coisas que, pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não. Alguns eram totalmente mainstream.
Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.
Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.
Aparentemente, você é pouco favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir a garantia de renda cidadã.
Sim. Sou alguém que não quer criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.
Acredito que a garantia de trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos o que queremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?
Esta não é bem uma resenha, nem uma palestra, são anotações que nem são 100% minhas. Encontrei-as num arquivo word perdido no micro. Há frases minhas e outras “roubadas” sei lá de quem. Mas vale a pena fazer referência a este livro engraçadíssimo. Qualquer referência.
O livro é narrado por Alexander Portnoy durante uma consulta ao psicanalista. Como em toda terapia que se preze, ninguém da família escapa. Alex é um judeu viciado em sexo e masturbação, incapaz de estabelecer um relacionamento duradouro, e que tem uma relação complicada com os pais, especialmente com a mãe castradora. Como o livro é um monólogo de Alex, não dá pra saber até que ponto a mãe é realmente tudo aquilo que ele fala. O que fica claro é que ele também sente desejo pela mãe. E pela irmã.
O pai aparece como um moleirão vendedor de seguros, submisso à mulher, vítima de uma prisão de ventre permanente e de um desespero mudo.
A mãe superprotetora, a própria e folclórica mãe judia, entra em pânico quando descobre que o seu Alex, criança, come hambúrguer escondido, e também quando constata que ele, adulto, adquiriu um tapete gasto, propenso a escorregões.
Quando Alex começou a demorar mais que o usual no banheiro, ela logo se preocupou com umas supostas diarreias. Só poderiam advir da comida de lanchonete. À entrada fechada do banheiro, ela exigia que o filho confessasse ter andado comendo guloseimas industrializadas ao sair do colégio. Ordenava, esmurrando a porta, que ele lhe deixasse examinar o produto de seus intestinos. Ou seja, enquanto o pobre adolescente Portnoy tentava se concentrar em suas fantasias sexuais durante a masturbação, a mãe lhe interrogava através da porta a respeito do que havia comido. Não havia nenhum espaço privado.
Um homem judeu com os pais vivos é um recém-nascido indefeso!”, diz Portnoy ao dr. Spielvogel. “Por favor, me ajude e depressa! Me liberte desse papel de filho sufocado numa piada judaica! Porque está começando a perder a graça aos 33 anos!.
Em outro trecho, o mesmo apelo: “Chega de ser um bom menino judeu, agradando meus pais em público e esfolando o ganso no meu quarto!”.
Um relato das idas mensais com o pai à sauna:
Fico em posição de sentido entre as pernas de meu pai enquanto ele me cobre da cabeça aos pés com uma grossa camada de espuma de sabão e olho com admiração para o que pende do banco de mármore em que ele está sentado. Seu escroto parece um rosto comprido e encarquilhado de um velho com um ovo enfiado em cada lado da papada caída, já o meu lembra mais uma bolsinha mínima e rosada pendurada no pulso de uma boneca de menina…
Ele prossegue:
Quanto ao “shlong” dele, a mim, que tenho um pinto do tamanho da ponta de um dedo mínimo, ao qual minha mãe gosta de se referir em público (está bem, foi só uma vez, mas bastou essa vez para durar a vida inteira) como a minha “coisinha”, o “shlong” dele me faz pensar nas mangueiras de incêndio que ficam enrodilhadas nos corredores da escola.
Em seu caudaloso desafogo, Portnoy implica tanto com os “góis” como com seus próprios pares — “Me faça um favor, meu povo, pegue seu legado de sofrimento e enfie no cu”. Mas não escapa do dilema de se sentir ao mesmo tempo atraído por aqueles e amado por estes.
Dentre os personagens masculinos de Philip Roth, Portnoy é o que tem maior verve desbocada, uma verdadeira visão de mundo ao mesmo tempo anarcoerótica e pessimista. É um personagem com o infatigável pênis em riste. Tem a masturbação como uma das belas-artes.
O personagem-narrador, Alexander Portnoy, que desde a primeira página deita num divã pra contar sua vida ao psicanalista, expõe uma das mais bem elaboradas subjetividades da literatura contemporânea, e das mais engraçadas.
A culpa está presente em todo o romance. Não é fruto da fragilidade de Portnoy, que, em verdade, tem atitudes até bem corajosas perante o moralismo judaico e os valores familiares tradicionais. Ele discute com os pais. Nega a existência de Deus diante deles. Professa opiniões políticas liberais. O problema não é tanto a psicologia de Portnoy, pretensamente frágil, mas a força descomunal dos valores que lhe puseram na cabeça desde a mais tenra infância.
Claro que o livro é escrito por um narrador não muito confiável, então devemos ter cuidado com todas as informações jogadas no livro.
Esse jovem masturbador se transforma num adulto bem-sucedido e adequado, mas cheio de culpa por achar-se pervertido.
Todo ano é a mesma coisa. Ainda bem. Desde o final da década de 20 do século passado, sempre no dia 16 de junho, um número crescente de leitores e admiradores de James Joyce reúnem-se para celebrar o autor de Ulysses (1922), obra que se passa no dia 16 de junho de 1904. Naquelas quase mil páginas, há sexo por todo lado e, em uma palestra que dei para o Bloomsday de 2012, tratei desse assunto. Claro, não é uma palestra acadêmica e dei risadas com a primeira pergunta que surgiu após a mesma: “Já assisti mais de dez palestras em Bloomsdays, porque só me diverti nesta aqui?”.
Abaixo, está todo o texto de preparação que escrevi para aquele dia.
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A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.
(The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works).
JAMES JOYCE
Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura.
O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.
Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Como escreve Idelber, naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
A imagem ao lado pode ser eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não omemoraríamos o Bloomsday.
No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. A segunda tradução foi a da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.
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Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.
Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto, Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heroico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?
Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância.
Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido?
Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito.
Trad. Caetano Galindo
Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud.
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Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.
NORA BARNACLE
Em Ulysses, Leopold Bloom é um cidadão irlandês, pai e marido de Molly. Teve dois filhos, Milly e Rudy, sendo que o segundo morreu onze dias após o nascimento e Milly — que está com 15 anos em 16 de junho de 1904 — estuda em outra cidade. Ela aparece no romance apenas nas saudades de Bloom, o qual também lamenta muitíssimo a perda de Rudy. Ele é um bom pai de quase quarenta anos e começa o dia de forma tipicamente irlandesa. A primeira coisa que come são rins de carneiro grelhados, eles exalam um leve e inebriante perfume de urina. Porém, não vim aqui criticar a gastronomia irlandesa e britânica. Faço referência a este quarto capítulo porque nele Bloom aparece servindo sua mulher-ninfa na cama. É importante notar que é ele quem serve o breakfast, não o contrário. Bloom, que foi confessadamente criado por Joyce para ser o homem comum, o everyman, aparece sem heroísmos, com uma dimensão inteiramente humana, sem atitudes épicas.
Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus:
Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade? Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo.
O amor de Bloom manifesta-se diferentemente, ignorando posturas machistas, nas atitudes e nos pensamentos em relação à família, mas uma das surpresas de Ulysses é como esta rotina é contraposta à sexualidade que aparece no romance. Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente as abordagens sexuais inteiramente diversas e as tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas, masturbatórias e, por que não dizer?, masoquistas. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.
Os limites rígidos que compunham a prática religiosa e as normas sociais na virada do século XX são demasiadamente sufocantes para a expressão de Joyce da individualidade e do desejo carnal. No episódio em que Bloom masturba-se na praia, observando Gerty MacDowell, tendo por fundo um culto religioso, Joyce não apenas justapõe religião e erotismo, mas incorpora uma prática sexual não convencional.
Com isto, ele desafia o senso comum do que seria a sexualidade na virada do século XX e utiliza seu romance como um veículo através do qual pode expressar seu desejo de fundamentar sua crença no instinto e no físico — não esqueçam que cada capítulo do Ulysses refere-se também a uma parte do corpo humano. Para Joyce, a sexualidade é um ato de expressão da natureza. Neste sentido, concordava inteiramente com D. H. Lawrence, o qual desejava conceder ao corpo um reconhecimento igual ao que era dado à mente. É claro que tais intenções do romance iam ao encontro das teorias de Freud — o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana –, mas ia contra a moral vigente da virada do século. Os encontros de Bloom com mulheres no livro parecem servir de alívio para a exclusão social e a traição de Molly, são o meio utilizado por ele para adquirir o equilíbrio ou equanimidade entre sua existência e a de Molly.
Ulysses é um texto que procura minar e redefinir as noções de gênero e de hierarquia na sociedade patriarcal da época. O romance não promove a superioridade masculina, mas eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde e desafia a noção de gênero na dicotomia da criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, desafia os estereótipos que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Poderíamos definir a pornografia como a apresentação de cenas destinadas a despertar desejo sexual no observador? Assim como num filme de sexo explícito, Ulysses rastreia movimentos e sensações corporais, realizando (ou escandalizando) o desejo do leitor de observar com precisão a mecânica do corpo. No entanto, Joyce não faz pornografia: aqui, a predição de Rushdie funciona perfeitamente: apesar de possuir elementos pornográficos, Ulysses oferece a transformação da pornografia em uma forma de arte clássica. Tendo lido e estudado psicanalistas como Freud, Joyce nos oferece não apenas uma nova ficção e linguagem, oferece-nos um ponto de vista original para entender o sexo. A atitude perante a sexualidade estava mudando após a virada do século, especialmente na esfera psicanalítica, e Joyce reflete em Ulysses este novo interesse na sexualidade, o crescimento de uma ciência sexual e o desenvolvimento de novos conceitos que rompiam cabalmente a associação entre sexualidade e reprodução. Joyce pertencia ao grupo de grandes pensadores da época, que procuravam entender e redefinir a sexualidade. Declan Kiberd afirma jocosamente que “Ulysses era não apenas um exemplo de um empreendimento comercial de alto risco, mas também um manual muito particular que extrapolava em muito questões literárias”.
É importante salientar a relação de Joyce com a tradição inglesa do romance. A Irlanda estava sob o domínio inglês. Os ancestrais de Joyce abandonaram lentamente o gaélico — ainda falado em regiões rurais da Irlanda — pelo inglês. Deste modo, os irlandeses viviam a uma certa distância da literatura inglesa ou ao menos utilizavam a língua com menor respeito, muitas vezes com insolência. Deste modo, há, além das ideias de Joyce, um aspecto sociológico que torna a quebra da tradição um ato até desejável de afirmação de nacionalidade. Joyce não falava mal de Dublin e da Irlanda, como alguns afirmam, mas era, sim, contra a sentimentalização do passado, revoltava-se contra o provincianismo de achar que o passado — mesmo um inventado, como o dos gaúchos tradicionalistas — ia voltar.
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Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enorme, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela expõe-se de uma forma muito transgressora — não está sozinha enquanto o marido dorme ao lado? — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo de dentro dos pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino com primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a psicanálise ainda não o fazia.
Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois Gerty faz o mesmo.
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o leitor entra nos pensamentos de Molly enquanto ela se encontra na cama ao lado de Bloom, ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, muitíssimas de nossas ações.
Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo em background, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco a toda a existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo Ulysses exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas do Ulysses tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre seus personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.
Segundo Álvaro Lins citado em artigo do escritor Franklin Cunha, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes.
Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana..
Falta uma semana para o Dia dos Namorados e a Bamboletras criou uma listinha despretensiosa dos mais importantes casais da literatura. Muitos deles estão em nossas estantes.
Claro, o legal da data é estar junto e celebrar a relação, mas sabemos que um presente sempre abre um sorriso. Ainda mais quando este é um livro escolhido com cuidado. E, se você já observou seu amor lendo, sabe que ler é sexy.
Nossa listinha (reclamações nos comentários):
Romeu e Julieta — Romeu e Julieta Capitu e Bentinho — Dom Casmurro Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy — Orgulho e Preconceito Bibiana Terra e Rodrigo Cambará — O Tempo e o Vento Bridget Jones e Mark Darcy — O Diário de Bridget Jones Scarlett O’ Hara e Rhett Butler — E o vento levou… Tristão e Isolda — O Romance de Tristão e Isolda Abelardo e Heloísa — Abelardo e Heloísa Heathcliff e Catherine Earnshaw — O Morro dos Ventos Uivantes Jay Gatsby e Daisy Buchanan — O Grande Gatsby Blimunda e Baltasar — Memorial do Convento Diadorim e Riobaldo — Grande Sertão: Veredas Anna Kariênina e o Conde Vronski — Anna Kariênina Florentino Ariza e Fermina Daza — O Amor nos Tempos do Cólera Estella Havisham e Philip Pirrip — Grandes Esperanças Werther e Carlota — Werther Lara e Iúri Jivago — Doutor Jivago
É curioso – não creio que isso tenha sido observado até agora – que os países tenham escolhido indivíduos que não se parecem muito com eles. Seria o caso de imaginar, por exemplo, que a Inglaterra escolheria o dr. Johnson como seu representante; mas não, a Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é – por assim dizer – o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o understatement, é o fato de dizer um pouco menos das coisas. Shakespeare, porém, tendia à hipérbole na metáfora, e se ele tivesse sido italiano ou judeu, por exemplo, não haveria nada de surpreendente.
Outro caso é o da Alemanha; um país admirável, tão facilmente fanático, e que escolhe justamente um homem tolerante, que não é fanático e que não está muito preocupado com o conceito de pátria; escolhe Goethe. A Alemanha é representada por Goethe.
A França não escolheu um autor, mas a tendência é Hugo. Evidentemente, sinto uma grande admiração por Hugo, mas Hugo não é tipicamente francês, Hugo é estrangeiro na França; Hugo, com aquelas grandes decorações, com aquelas vastas metáforas, não é típico da França.
Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, por Calderón, por Quevedo. Mas não, a Espanha é representada por Miguel de Cervantes. Cervantes é um homem contemporâneo da Inquisição, mas é tolerante, é um homem que não tem nem as virtudes nem os vícios espanhóis.
É como se cada país achasse que precisa ser representado por uma pessoa diferente, por uma pessoa que possa ser, um pouco, uma espécie de remédio, uma espécie de teriaga, uma espécie de antídoto para seus defeitos.
Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases: o algarismo não tem frases, nem retórica.
Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso país dirá:
– Quando uma constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o Sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito a todos superior a todos os direitos.
A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:
– A nação não sabe ler. Há 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles: é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha, – por divertimento. A constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.
Replico eu:
– Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituições …
– As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: “consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação”; mas – “consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%”. A opinião pública é uma metáfora sem base: há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Câmara: “Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem…” dirá uma coisa extremamente sensata.
E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não temos base segura para os nossos discursos, e ele tem o recenseamento.
Traduzido com extrema liberdade pelo autor do blog
Lembro-me vagamente de um magnífico artigo de Giorgio Manganelli, explicando como um leitor sofisticado pode saber se um livro vale a pena ser lido, mesmo antes de abri-lo. Ele não estava se referindo à capacidade muitas vezes requerida a um leitor profissional, ou a um leitor afiado e criterioso. Não estava se referindo àqueles que podem julgar um livro a partir de uma linha de abertura, de duas páginas, de uma olhada aleatória do índice ou muitas vezes da bibliografia. Isso é simplesmente experiência. Não, Manganelli estava falando sobre uma espécie de iluminação, de um dom que evidentemente alegava ter.
Em How to Talk About Books You Haven’t Read (de Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura) é explicado como você pode falar sobre um livro que você não leu, até mesmo para seus alunos, inclusive quando se trata de um livro de extraordinária importância. Seu cálculo é científico. As boas bibliotecas contêm vários milhões de livros: mesmo que se leia um por dia, leríamos apenas 365 livros por ano, cerca de 3.600 em dez anos, e entre as idades de dez e oitenta anos nós teremos lido apenas 25.550. É pouco. Por outro lado, qualquer italiano que tenha tido uma boa educação secundária sabe perfeitamente que pode participar de uma discussão, digamos, sobre Matteo Bandello, Francesco Guicciardini, Matteo Boiardo, sobre as tragédias de Vittorio Alfieri ou sobre as Confissões de um Italiano, de Ippolito Nievo, conhecendo apenas o nome e algo sobre o contexto crítico, sem ter lido uma palavra deles.
E o contexto crítico é o ponto crucial de Bayard. Ele declara desavergonhadamente que ele nunca leu Ulysses de James Joyce, mas que pode falar sobre isso aludindo ao fato de que é baseado na Odisseia, que ele também admite nunca ter lido na íntegra. Ulysses também é baseado em um monólogo interno, com a ação se desenrolando em Dublin durante um único dia, etc. “Como resultado”, ele escreve, “muitas vezes me encontro falando sobre Joyce sem a menor ansiedade”. Conhecer o relacionamento de um livro com outros livros geralmente significa que você sabe mais sobre o livro do que se tivesse lido a obra.
Bayard mostra como nós, quando lemos certos livros percebemos que estamos familiarizados com seus conteúdos porque eles foram lidos por outros que falaram sobre eles. Ele faz algumas observações extremamente divertidas sobre uma série de textos literários que se referem a livros nunca lidos, incluindo Robert Musil, Graham Greene, Paul Valéry, Anatole France e David Lodge. E ele me faz a honra de dedicar um capítulo inteiro ao meu O Nome da Rosa, onde William de Baskerville demonstra familiaridade com o segundo livro da Poética de Aristóteles no momento em que o segura nas mãos pela primeira vez. Ele faz isso pela simples razão de que ele infere o que diz a partir de algumas outras páginas de Aristóteles.
Um aspecto intrigante do livro de Bayard, que é menos paradoxal do que parece, é que também esquecemos uma porcentagem muito grande dos livros que realmente lemos e, de fato, nós construímos uma espécie de imagem virtual deles que não consiste tanto no que dizem, mas no que eles evocaram em nossa mente. Então, se alguém que não tenha lido um livro cita passagens ou situações inexistentes, estamos prontos a acreditar que estão no livro.
Bayard se interessa pela ideia — e aqui é a voz do psicanalista em vez do professor de literatura — de que toda leitura ou não-leitura ou leitura imperfeita têm aspectos criativos e que, enfim, os leitores fazem sua parte. E ele prevê a criação de uma escola onde os estudantes “inventam” livros que não precisam ler, já que falar de livros não lidos é um meio de autoconsciência.
Bayard demonstra como, quando alguém fala sobre um livro não lido, mesmo aqueles que leram o livro não percebem os erros. No final de sua obra, ele admite ter apresentado três falsas informações em seus resumos de O Nome da Rosa, O Terceiro Homem, de Graham Greene e Changing Places de David Lodge. O divertido é que, quando li os resumos, notei imediatamente o erro em relação a Graham Greene, fiquei em dúvida sobre Lodge, mas não percebi o erro em meu próprio livro. Isso provavelmente significa que eu não li atentamente o que Bayard escreveu, que eu simplesmente espreitei o texto. Mas o mais interessante é que Bayard não percebeu que, ao admitir seus três erros intencionais, assumiu implicitamente que uma maneira de ler é mais correta do que outras, tanto que ele foi obrigado a fazer um estudo meticuloso dos livros que cita para poder sustentar sua teoria sobre não lê-los. A contradição é tão evidente que faz pensar se Bayard realmente leu o livro que escreveu.
Extraído de Crônicas de uma Sociedade Líquida por Umberto Eco, traduzido do italiano para o inglês por Richard Dixon.
Umberto Eco era um romancista italiano, crítico literário, filósofo, semiótico e professor universitário.
Quando era menor, meu filho Bernardo às vezes perguntava: “Pai, qual é o teu escritor preferido?”. Minha resposta era que meu escritor preferido eram uns 100 caras. Quando ele insistia, citava algo por volta de 10. Quem? Acho que Cervantes, Dostoiévski, Balzac, Kafka, George Eliot, Machado, Rosa, Stendhal, Virginia Woolf, Sterne, Thomas Mann, Tchékhov, mais ou menos isto. Mas, se meu inquisidor fosse implacabilíssimo como Fernando Monteiro em suas listas e me ordenasse escolher um e somente um, eu — talvez estranhamente — escolheria Anton Pavlovitch Tchékhov.
Acho que gosto se discute sim. Em meu caso com Tchékhov, creio saber parcialmente de onde vem meu fascínio por suas histórias e peças de teatro. Estou consciente de algumas coisas que aprovo nele: o realismo, a clareza, o humor, a leveza, a abordagem compreensiva dos personagens, a pouca ênfase a coisas que outros escreveriam cheios de exclamações (ele parece dizer: não te ajudarei, descubra sozinho o que há de importante aqui), a imaginação para criar cenas e situações significantes, uma visão um pouco desencantada do amor — o qual é visto sem muitas ilusões — e a total falta de preconceitos que o permite transitar por toda a sociedade russa do século XIX. Talvez ele não fale a todos da forma como fala a mim. Sei que Dostoiévski, Mann, Cervantes, etc. são melhores, porém insisto: Tchékhov é o meu escolhido. É também uma questão de convivência agradável, preferimos ficar com alguém cuja presença e essência nos seja amiga.
Era o verão de 1978, tinha 20 anos e passava férias na casa de minha irmã, que fazia pós-graduação no Rio de Janeiro. Lembro do dia: manhã chuvosa, temperatura amena, não ia dar praia. Voltei para a cama e peguei O Beijo e Outras Histórias. Pensava que, tendo lido quase todos os livros de Dostoiévski, Tolstói, Gogol e Turguênev traduzidos na época, me restava conhecer aquele Tchékhov. Amava os russos e, naqueles anos, também os soviéticos… Então, comecei a ler O Beijo — uma boa história — indo depois para o conto da cachorrinha Kaschtanka. Gostei. Almocei no centro e, quando passeava pela Cinelândia, resolvi entrar na Biblioteca Nacional e pedir para ver o que eles tinham de meu novo escritor. Eles trouxeram poucos livros, mas, dentre eles, estava O Beijo.
Peguei o livro e continuei a lê-lo na BN. Passei a uma história que estava no final do livro: Enfermaria Nº 6. Em minha vida, li-a umas 4 vezes, a última deve fazer uns 15 anos. Talvez tenha sido minha maior experiência literária. Fiquei estupefato com a quantidade de humanidade que me era repassada, com a economia do autor, com a poesia condensada de sua prosa. Ali não havia teses a defender, nem grande enredo, mas havia uma sinceridade, uma nitidez nos personagens que me causou enorme impressão. Continuei a ler as histórias de trás para diante e conheci a irônica Uma História Enfadonha, na qual descobri que Tchékhov podia criar diálogos tão bons quanto os de Jane Austen.
Tchekhov viveu apenas 44 anos e era médico. Até os 26 anos, publicou 300 histórias em jornais russos, quase todas cômicas. Vivendo em Moscou, era obscuro. Porém, sem que soubesse, estava tornando-se famoso em São Petersburgo, onde tinha numerosos leitores. Isto perdurou até o dia em que recebeu uma carta do severíssimo crítico Grigorovitch:
“Os atributos variados de seu indiscutível talento, a verdade de suas análises psicológicas, a maestria de suas descrições (…) deram-me a convicção de que está destinado a criar obras admiráveis e verdadeiramente artísticas. E o senhor se tornará culpado de um grande pecado moral, se não corresponder a estas esperanças. O que lhe falta é estima por este talento, tão raramente conhecido por um ser humano. Pare de escrever depressa demais…”
Tchékhov mudou e, sem perder a graça e a leveza mozartiana de seu texto, tornou-se realista. O novo estilo custou-lhe críticas violentas, que o acusavam de “mau gosto” e de utilizar “detalhes sujos e grosseiros”. Ele respondeu: “Pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as pérolas e mostrá-las livres de qualquer impureza, equivale a rejeitá-la.”
Rubens Figueiredo, tradutor e prefaciador de O Assassinato e outras histórias faz outras observações sobre Tchekhov:
“No ambiente intelectual russo, o debate só parecia fazer sentido quando tomava formas extremadas. A fama crescente de Tchékhov e a expectativa em torno de seus textos obrigaram-no a defender-se dos mal-entendidos, cada vez mais numerosos.”
“Os leitores russos se haviam acostumado a tomar os escritores como campeões de credos políticos e religiosos mas, no caso de Tchékhov, esbarravam em textos obstinadamente inconclusivos. Mais grave ainda, suas entrelinhas pareciam indicar que tanto as grandes sínteses intelectuais quanto os padrões de pensamento herdados pelos costumes serviam antes para encobrir a realidade.”
“O desconcertante é que Tchékhov consegue munir sua prosa de uma sutileza capaz de sugerir outras camadas de experiência, como se a realidade nunca se esgotasse.”
E, mais desconcertante, para um autor do sáculo XIX: “Para Tchékhov, a religião era moralmente indiferente. Ou seja, a crença, seus conceitos, seus símbolos e rituais eram ineficazes para deter a crueldade e o egoísmo, mas tampouco constituíam suas causas.”
Tchékhov: “Não cabe ao escritor a solução de problemas como Deus ou o pessimismo; seu trabalho consiste em registrar quem, em que circunstâncias, disse ou pensou sobre Deus e o pessimismo.”
Há muitos livros de Tchekhov que indicaria. Tenho 22 na minha frente. Como ele era contista, novelista e dramaturgo, há muitas coletâneas e, nelas, muitos contos e novelas repetidas. Vamos começar pelas peças teatrais: acho que As Três Irmãs, A Gaivota, Tio Vânia e O Jardim das Cerejeiras são tão extraordinárias que prescindem dos atores e podem ser lidas como uma novela de diálogos. A novela Enfermaria Nº 6 está em vários livros, assim como os contos Inimigos, A Dama do Cachorrinho e um conto clássico que os tradutores deveriam se reunir a fim de estabelecer um nome, pois ele pode se chamar Queridinha aqui, O Coração de Olenka ali, Dô-doce (?) acolá, assim como Amorzinho ou qualquer outra coisa.
Os melhores livros são as duas traduções de Bóris Schnaidermann:
– A Dama do Cachorrinho e outros contos. Editora 34. 1999 Trad. de Bóris Schnaidermann ou
– Contos. Civilização Brasileira. 1959.
(O segundo é o mesmo livro reeditado e revisado por Schnaidermann 40 anos depois. Mas quem encontrar a edição de 59 num sebo pode comprá-lo de olhos fechados. As duas versões são espetaculares.)
Outros livros que indico:
– Contos e Novelas. Edições Ráduga (Moscou). 1987. Um primor de tradução para o português realizada por Andrei Melnikov.
– O Assassinato e outras histórias. Cosac & Naify. 2002. Trad. de Rubens Figueiredo.
– O Beijo e outras histórias. Círculo do Livro. 1978. Trad. de Bóris Schnaidermann.
– A Enfermaria Nº 6 e outros contos. Editorial Verbo. 1972. Trad. de Maria Luísa Anahory.
– Os mais brilhantes contos de Tchekhov. Edições de Ouro. 1978. Trad. de Tatiana Belinky.
– Histórias Imortais. Cultrix. 1959. Trad.de Tatiana Belinky.
– E ler suas peças de teatro é um deleite só.
Filmes:
Há dois esplêndidos filmes de Nikita Mikhálkov baseados “em qualquer coisa de Tchekhov” (palavras do próprio diretor e roteirista): Peça Inacabada para Piano Mecânico (1977) e o famoso Olhos Negros (1987) com Marcello Mastroianni detonando no papel principal atrás da Dama do Cachorrinho.
Em vida, Anton Tchékhov já era conhecido, respeitado e até popular, mas não era uma celebridade. Após sua morte, Tolstoi disse: “Creio que Tchékhov criou novas — absolutamente novas — formas de literatura que não encontrei em parte alguma. Deixando de lado falsas modéstias, afirmo que Tchékhov está muito acima de mim”.
Naquele tempo, os contemporâneos não deram atenção a esta opinião. Pensavam que o conde já idoso estava a superestimar Anton Tchékhov, atribuindo-lhe características acima das que merecia. Passados cem anos, vemos agora que Tolstoi não estava tão equivocado. Atualmente, na Rússia, Anton Tchekhov encontra-se ao lado dos grandes clássicos: Púchkin, Gogol, Dostoiévski e Tolstói. E, como dramaturgo, está entre os mais célebres e montados autores mundiais.
“Anton Pavlovitch Tchekhov sentou-se na cama e de maneira significativa disse, em voz alta e em alemão: ´Ich sterbe´ – estou morrendo. Depois, segurou o copo, voltou-se para mim, sorriu seu maravilhoso sorriso e disse: ´Faz muito tempo que não bebo champanhe´. Bebeu todo o copo, estendeu-se em silêncio e, instantes depois, calou-se para sempre. E a pavorosa calma da noite foi apenas alterada por um estampido terrível: a rolha da garrafa não terminada voou longe.” Olga Knipper, esposa de Anton Tchekhov.
Faz pouco mais de 100 anos que o fato narrado acima ocorreu. Tchekhov faleceu em 15 de julho de 1904 em Badenweiler, Alemanha.
E-mail do Fernando Monteiro:
Você tem toda a razão sobre Tchékov: ele tem uma “redondez”, uma satisfação tão total e plena do que esperamos encontrar num escritor… que mereceria, sim, ser o escolhido, entre todos, como o preferido de um leitor super-exigente.
Das histórias de AT, eu gosto especialmente de “A Estepe”, uma novela relativamente curta e genial, que narra a viagem de uma criança como uma metáfora (a novela toda) da viagem que atravessamos sem saber porque e para quê.
Assim é que o meninozinho russo (o próprio Anton, é claro) viaja — e a travessia da estepe vasta, com todos os seus incidentes, se torna o núcleo mesmo da impressão estranha da novela, como naquele filme (Olhos Negros) de Michalkov, em que Mastroianni recorda “as névoas da Rússia num passeio de carruagem, na infância, há muito tempo”…
Creio até que Nikita Michalkov faz uma alusão mais ou menos direta à novela, porque o argumento de “Olchie Chiorne” foi criado a partir da fusão duas narrativas clássicas de AT.
Para mim, Tchékov é o Machado de Assis da pátria de Dostoiévski.