Ascoli Piceno, em 1529, já conhecia bem nosso mundo…

Ascoli Piceno, em 1529, já conhecia bem nosso mundo…

PicenoQuem pode, não quer
Quem quer, não pode
Quem sabe, não faz
Quem faz, não sabe
E assim o mundo
Vai mal

Ascoli Piceno 1529

(Ascoli Piceno é uma cidade medieval que fica na região Marche, próximo ao Adriático).

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Quando éramos crianças (Mario Benedetti)

Quando éramos crianças
os velhos tinham como trinta
uma poça era um oceano
a morte simplesmente
não existia.

em seguida, quando meninos
os velhos eram gente de quarenta
um tanque era um oceano
a morte apenas
uma palavra

Já quando nos casamos
os anciãos estavam com
cinquenta
um lago era um oceano
a morte era a morte
dos outros.

agora veteranos
demos espaço para a verdade
o oceano é por fim o oceano
mas a morte começa a ser
a nossa.

Trad. duvidosa deste amigo de ustedes.

Foto do tradutor quando criança
Foto do tradutor quando criança

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Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua

Alberto Caeiro
Escrito em 20-6-1929

Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.

Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar o mundo por causa do estômago.
Indiferente?
Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!

Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega —
Nem um centímetro mais longe.
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.

fernando_pessoa_nao_tenho_pressa

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Que venha 2015!

Que venha 2015!

champanheTenho algumas resoluções a não cumprir, mas é melhor ficar calado, né? Coisas de todos os tipos, a manter e a fazer. Vamos lá. Vamos tentar aguentar 2015. Chega desta desgraça de 2014. Vade retro.

~o~

Desejo a todos um ano novo de muitas virtudes e alguns pecados suaves e bem aproveitados.

Rubem Braga

~o~

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Desaparecimento de Luísa Porto

Desaparecimento de Luísa Porto

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É sempre bom lembrar: O VIAGRA É UM PRODUTO AUTENTICAMENTE BRASILEIRO E EXISTE DESDE O SÉCULO XIX!!!

É sempre bom lembrar: O VIAGRA É UM PRODUTO AUTENTICAMENTE BRASILEIRO E EXISTE DESDE O SÉCULO XIX!!!

O escritor Bernardo Guimarães (1825-1884), nascido em Ouro Preto e cuja notável austeridade pode ser apreendida na foto abaixo, escreveu A Escrava Isaura. OK, mas comecemos a leitura de seu clássico poema Elixir do Pajé.

O ínclito Bernardo Guimarães
O ínclito Bernardo Guimarães

Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo,
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo pela perna abaixo?

Ao mesmo tempo em que escrevia o citado romance e também O Seminarista, O Garimpeiro e O Ermitão de Muquém – todos romances medíocres filiados à vertente regionalista da ficção romântica brasileira -, Bernardo….

Nessa postura merencória e triste
para trás tanto vergas o focinho
que eu cuido vais beijar, lá no traseiro,
teu sórdido vizinho!

…criou uma obra poética dotada de dimensão crítico-humorística incomum em meio aos indianismos, arroubos de eloquência e subjetividades lacrimejantes do romântismo brasileiro. (Flora Sussekind).

Que é feito desses tempos gloriosos
em que erguias as guelras inflamadas,
na barriga me dando de contínuo
tremendas cabeçadas?

O Elixir do Pajé, assim como o extraordinário A Origem do Mênstruo, só teve impressões clandestinas em folhetos de poucas páginas.

Qual hidra furiosa, o colo alçando,
co`a sanguinosa crista açoita os mares,
e sustos derramando
por terras e por mares,
aqui e além atira mortais botes,
dando co`a cauda horríveis piparotes,
assim tu, ó caralho,
erguendo o teu vermelho cabeçalho,
faminto e arquejante,
dando em vão rabanadas pelo espaço,
pedias um cabaço!

Um escritor da época, Artur Azevedo, nos revela que “de todos os livros de Bernardo Guimarães, o escrito mais popular é um poema obsceno intitulado Elixir do Pajé, que nunca foi impresso com o nome de seu autor. Porém é raro o mineiro que não o saiba de cor. Há na província um sem-número de cópias desse Elixir inútil e brejeiro.”

Um cabaço! Que era este o único esforço,
única empresa digna de teus brios;
porque surradas conas e punhetas
são ilusões, são petas,
só dignas de caralhos doentios.

A edição oficial das “poesias completas” de Bernardo Guimarães pelo Instituto Nacional do Livro, com data de 1959, omite sem (ou com) pudor alguns de seus poemas e mantém uma atitude de incompreensão diante de sua veia satírica e humorística.

Quem extinguiu-te o entusiasmo?
Quem sepultou-te neste vil marasmo?
Acaso para teu tormento,
indefluxou-te algum esquentamento?
Ou em pívias estéreis te cansaste,
ficando reduzido a inútil traste?
Porventura do tempo a dextra irada
quebrou-te as forças, envergou-te o colo,
e assim deixou-te pálido e pendente,
olhando para o solo,
bem como inútil lâmpada apagada
entre duas colunas pendurada?

Mas além de banir a produção satírica e humorística de Bernardo, os critérios românticos também não se ajustavam à sua lírica, nem sempre em consonância com os padrões da época.

Caralho sem tesão é fruta chocha,
sem gosto nem cherume,
linguiça com bolor, banana podre,
é lampião sem lume,
teta que não dá leite,
balão sem gás, candeia sem azeite.

Coube a Haroldo de Campos, em linhas sumárias mas decisivas, apontar de modo pioneiro a importância deste novo e ignorado Bernardo Guimarães.

Porém não é tempo ainda
de esmorecer,
pois que teu mal ainda pode
alívio ter.

…..

Terá Bernardo descoberto um Viagra indianista e romântico?

Eis um santo elixir miraculoso,
que vem de longes terras,
transpondo montes, serras,
e a mim chegou por modo misterioso.

…..

Com mais de cem anos de clandestinidade e antecipação, o Elixir impõem-se como a manifestação mais integral e debochada daquele indianismo às avessas que Haroldo de Campos teria visto em Oswald de Andrade.

Esse velho pajé de piça mole,
com uma gota desse feitiço,
sentiu de novo renascer os brios
de seu velho chouriço!

…..

No Elixir, uns dos alvos de Bernardo é o ritmo e a retórica de Gonçalves Dias em poemas como I-Juca-Pirama e Os Timbiras. E olha o ritmo do I-Juca-Pirama chegando aí, gente!!!

E ao som das inúbias,
ao som do boré,
na taba ou na brenha,
deitado ou de pé,
no macho ou na fêmea
da noite ou de dia,
fodendo se via
o velho pajé!

…..

E, na sátira ao indianismo, o índio vira sátiro.

Vassoura terrível
dos cus indianos
por anos e anos
fodendo passou,
levando de rojo
donzelas e putas,
no seio das grutas
fodendo acabou!
E com sua morte
milhares de gretas
fazendo punhetas
saudosas deixou…

José Veríssimo declarou que a metrificação de Bernardo é em geral mais rica, mais correta e mais variada que a de outros românticos. E completa dizendo que a forma é também mais clássica, mais simples, mais calma e mais fria. Sintam a calma do próximo trecho.

Feliz caralho meu, exulta, exulta!
Tu que aos conos fizeste guerra viva,
e nas guerras de amor criaste calos,
eleva a fronte altiva;
em triunfo sacode hoje os badalos;
alimpa esse bolor, lava essa cara,
que a Deusa dos amores,
já pródiga em favores
hoje novos triunfos de prepara,
graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!

Só em Oswald de Andrade (O Santeiro do Mangue) e Gregório de Matos, encontra-se algo próximo a esta grossa prosa de palavrões, erotismo satírico e escatológico, tramada em tão inventiva poesia antipoética.

Vinde, ó putas e donzelas,
vinde a mim abrir as vossas pernas
ao meu tremendo marzapo,
que a todas, feias ou belas,
com caralhadas eternas
porei as cricas em trapo…
Graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!

…..

Sem mais interrupções, deixo vocês com o final da epopeia.

Este elixir milagroso,
o maior mimo da terra,
em uma só gota encerra
quinze dias de tesão…
Do macróbio centenário
ao esquecido marzapo,
que já mole como um trapo,
nas pernas balança em vão,
dá tal força e valentia
que só com uma estocada
pôe a porta escancarada
do mais rebelde cabaço,
e pode um cento de fêmeas
foder de fio a pavio,
sem nunca sentir cansaço…

Desculpa, tive que interromper novamente. Quinze dias de tesão? O Cialis dá umas 6 horas, o Viagra menos!

Eu te adoro, água divina,
santo elixir da tesão,
eu te dou meu coração,
eu te entrego minha porra!
Faze que ela, sempre tesa,
e em tesão sempre crescendo,
sem cessar viva fodendo,
até que fodendo morra!

Sim, faze que este caralho,
por sua santa influência,
a todos vença em potência,
e, com gloriosos abonos,
seja logo proclamado
vencedor de cem mil conos…
E seja em todas as rodas
d`hoje em diante respeitado
como herói de cem mil fodas,
por seus heróicos trabalhos,
eleito – rei dos caralhos!

Os fragmentos do Elixir aqui publicados foram copiados do livro “Poesia Erótica e Satírica” de Bernardo Guimarães (Imago, 1992). Esta edição tem organização e prefácio de Duda Machado, do qual roubei algumas interrupções que fiz ao clássico Elixir.

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Escolha, de Anaïs Nin

Escolha, de Anaïs Nin

Eu escolho
um homem
que não duvide
da minha coragem
que não
me acredite
inocente
que tenha
a coragem
de me tratar como
uma mulher.

anais nin

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Memória, de Carlos Drummond de Andrade

Memória, de Carlos Drummond de Andrade

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

CARLOS+DRUMMOND+DE+ANDRADE

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Os 10 melhores poemas de Fernando Pessoa

Os 10 melhores poemas de Fernando Pessoa

Vergonhosamente copiado da Revista Bula.

Pedimos a 20 convidados — escritores, críticos, jornalistas — que escolhessem os poemas mais significativos de Fernando Pessoa. Cada participante poderia indicar entre um e 10 poemas. Escritor e poeta, Fernando Pessoa é considerado, ao lado de Luís de Camões, o maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores da literatura universal. O crítico literário Harold Bloom afirmou que a obra de Fernando Pessoa é o legado da língua portuguesa ao mundo.

Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, em junho de 1888, e morreu em novembro de 1935, na mesma cidade, aos 47 anos, em consequência de uma cirrose hepática. Sua última frase foi escrita na cama do hospital, em inglês, com a data de 29 de Novembro de 1935: “I know not what tomorrow will bring” (Não sei o que o amanhã trará).

Seus poemas mais conhecidos foram assinados pelos heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, além de um semi-heterônimo, Bernardo Soares, que seria o próprio Pessoa, um ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa e autor do “Livro do Desassossego”, uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século 20. Além de exímio poeta, Fernando Pessoa foi um grande criador de personagens. Mais do que meros pseudônimos, seus heterônimos foram personagens completos, com biografias próprias e estilos literários díspares. Álvaro de Campos, por exemplo, era um engenheiro português com educação inglesa e com forte influência do simbolismo e futurismo. Ricardo Reis era um médico defensor da monarquia e com grande interesse pela cultura latina. Alberto Caeiro, embora com pouca educação formal e uma posição anti-intelectualista (cursou apenas o primário), é considerado um mestre. Com uma linguagem direta e com a naturalidade do discurso oral, é o mais profícuo entre os heterônimos. São seus “O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e os “Poemas Inconjuntos”. Em virtude do tamanho, alguns poemas tiveram apenas trechos publicados. Eis a lista baseada no número de citações obtidas.

Fernando Pessoa

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

O guardador de rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Ode marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É – sinto-o em mim como o meu sangue –
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

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Poemas Escolhidos, de Sophia de Mello Breyner Andresen

Poemas Escolhidos, de Sophia de Mello Breyner Andresen

Poemas Escolhidos Sophia de Mello Breyner AndresenLeio pouca poesia e nem fui aquele tipo de adolescente que volta e meia cometia um poema. Hoje, de vez em quando, consigo parir umas coisinhas bem ruins, mas só quando estou muito angustiado ou apaixonado. Mas, é claro, li Bandeira, João Cabral, Drummond, Pessoa e o Gullar dos anos 60 e 70.

Este livro da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen foi comprado na Flip de 2004 e simplesmente ignoro o motivo que me levou a fazer tão boa compra. Volta e meio o folheava deliciado, mas só nestes dias li o livro de cabo a rabo. Se a apreciação crítica parte da satisfação que um livro nos dá no momento que o fechamos, posso dizer que este Poemas Escolhidos (Cia da Letras, 286 páginas,  2004) é excelente.

Trata-se de uma seleção dos poemas de Sophia realizada por Vilma Arêas. Como em toda a seleção, perde-se a unidade que haveria em cada livro, mas ganha-se na visão geral. Então, sem ler a fortuna crítica da poeta portuguesa, divido seus poemas em poemas do mar e da natureza, poemas da cidade, poemas político-filosóficos e poemas gregos (ou clássicos), pois a moça adorava uma citação a eles.

A vertente de que menos gosto é a clássica, até porque me falta bagagem para entendê-los completamente, mas mesmo neles ficam claras as notáveis qualidades de Sophia. Seus diálogos com outros poetas também são esplêndidos, como os que faz com Bandeira e Murilo Mendes, entre outros:

Manuel Bandeira (1967)

Este poeta está
Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar

Relembrando
O antigo jovem tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
“As três mulheres do sabonete Araxá”
E minha avó se espantava

Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura
Saudade
Eu lia
A canção do “Trem de ferro”
e o “Poema do beco”

Tempo antigo, lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um eléctrico amarelo as decepava.

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos de minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado.

Carta de Natal a Murilo Mendes (1975)

Querido Murilo: será mesmo possível
Que você este ano não chegue no verão
Que seu telefonema não soe na manhã de Julho
Que não venha partilhar o vinho e o pão

Como eu só o via nessa quadra do ano
Não vejo a sua ausência dia-a-dia
Mas em tempo mais fundo que o quotidiano

Descubro a sua ausência devagar
Sem mesmo a ter ainda compreendido
Seria bom Murilo conversar
Neste dia confuso e dividido

Hoje escrevo porém para a Saudade
— Nome que diz permanência do perdido
Para ligar o eterno ao tempo ido
E em Murilo pensar com claridade —

E o poema vai em vez desse postal
Em que eu nesta quadra respondia
— Escrito mesmo na margem do jornal
Na Baixa — entre as compras do Natal

Para ligar o eterno e este dia

Dentre os poemas do mar, há constantes referências ao passado de Portugal e aos navegadores. Vejam a beleza deste:

Mundo nomeado ou A descobertas das ilhas

Iam de cabo em cabo nomeando
Baías promontórios enseadas:
Encostas e praias surgiam
Como sendo chamadas

E as coisas mergulhadas no sem-nome
Da sua própria ausência regressadas
Uma por uma ao seu nome respondiam
Como sendo criadas

Como exemplo de poema de cidade, leiam a belíssima prosa poética abaixo:

Caminho da manhã (1962)

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.

Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.

A política e a filosofia podem estar presentes de forma menos clara

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Ou claros como este:

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De Sophia de Mello Breyner Andresen:

De Sophia de Mello Breyner Andresen:

Mundo nomeado ou A descobertas das ilhas

Iam de cabo em cabo nomeando
Baías promontórios enseadas:
Encostas e praias surgiam
Como sendo chamadas

E as coisas mergulhadas no sem-nome
Da sua própria ausência regressadas
Uma por uma ao seu nome respondiam
Como sendo criadas

Ilha-Grande

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Kafka e a Ponte Carlos

O astrólogo da Corte calculou o dia exato. O Imperador Carlos IV deveria colocar a primeira pedra ao pôr-do-sol no nono dia do sétimo mês de 1357, exatamente às 17h31. A obra só terminou no século XVI, duzentos anos depois. Provavelmente, a construção sofreu interrupções, pois não é muito grande. Mas o astrólogo tinha razão, desta vez ela não caiu, justificando todo o cuidado.

Kafka tinha com Praga um caso semelhante a Machado de Assis com seu bairro de Cosme Velho, na zona sul do Rio de Janeiro: o checo nunca abandonou a cidade e circulava em um perímetro pequeno dela, que já não é muito grande. No Museu Kafka, descobri uma coisa que não sabia — minha filha Bárbara chamou minha atenção para o fato: Kafka era um contumaz namorador, teve inúmeros casos. As tchecas são muito bonitas e também são assim as namoradas do escritor. A menos bela era a preferida da família, Felice; a mais bela era a preferida do escritor, Julie ou Julia, não lembro bem. Seu pai Hermann fez tudo para separar o casal, pois a moça não era judia. Conseguiu. Mas tergiverso.

(Tergiversando um pouco mais: a música de Praga é o jazz. Há grupos de jazz tanto sobre a Ponte quanto nos bares e teatros. Acho incrível).

Estou lendo um livro sobre a Praga de Franz Kafka que comprei naquela cidade — calma, o livro é em espanhol — e descubro que o autor passava mais de uma vez por dia pela Karlův most, ou a Ponte Carlos. Mais: descubro que, antes de completar 20 anos, rabiscou para si mesmo o poema abaixo, sem título, mas em honra a um dos lugares mais belos que conheço.

Homens, que cruzam pontes escuras
passando junto a Santos
ornamentados por débeis luzes.

Nuvens, que correm pelo céu cinzento
passando junto a igrejas
com mil torres que condenam.

E alguém, apoiado no parapeito de alvenaria,
que olha na água da noite,
suas mãos sobre velhas pedras.

(tentativa de tradução por Milton Ribeiro)

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Pablo Neruda, o homem que gostava de ser chamado de “poeta de utilidade pública”

O poeta Pablo Neruda (Parral, 12 de Julho de 1904 — Santiago, 23 de Setembro de 1973)

Publicado em 23 de setembro de 2012 no Sul21

Uma coincidência de datas leva o Sul21 a novamente deslocar seu foco para o Chile. Afinal, uma semana após o inequívoco assassinato de Víctor Jara, houve uma estranha morte: a do poeta, diplomata e comunista Pablo Neruda. A insistência de Manuel Araya, antigo motorista do escritor, em afirmar que o poeta foi assassinado por agentes do regime, levou a Suprema Corte chilena a investigar, ainda sem resultados, a morte do Prêmio Nobel de Literatura de 1971, também nos primeiros dias da ditadura de Pinochet. No livro Sombras sobre Isla Negra, la misteriosa muerte de Pablo Neruda (2012), o jornalista espanhol Mario Amorós dá um panorama bastante amplo sobre as dúvidas que cercam a morte do grande poeta.

Resumindo: a causa oficial da morte foi uma septicemia causada pelo câncer na próstata, ainda em estágio inicial, que o poeta contraíra. Porém a esposa de Neruda, Matilde Urrutia, garantiu que a causa de morte não foi o câncer. Ela afirmava que a causa mortis fora simplesmente uma parada cardíaca e jamais denunciou que seu marido tivesse sido assassinado. Enquanto isto, Araya, designado pelo Partido Comunista como assistente privado e motorista de Neruda, que tinha 20 anos em 1973, testemunhou à Justiça chilena ter visto um médico aplicando uma injeção venenosa em Neruda.

A nota da morte de Neruda no Jornal do Brasil. Clique para ampliar.

No inquérito aberto, consta a declaração do diplomata mexicano Gonzalo Martínez de que o escritor estava bem e fazia planos para o exílio um dia antes de morrer. “A dúvida é esta: se aplicaram dipirona (analgésico) para amenizar as dores, como afirmou o médico da clínica, ou se injetaram veneno, como testemunha o motorista”, escreveu Amorós.

O então embaixador mexicano no Chile confirmou a informação passada por Araya de que Neruda pretendia viajar ao México a fim de fazer oposição ao governo de seu país a partir do exterior. Ele confirmou também que o governo mexicano havia enviado um avião para buscar, no Chile, Neruda e outros futuros exilados. O problema é que a saída de Neruda não era consenso entre a junta militar desorganizada e assassina daqueles dias. Depois de Allende, o poeta era o cidadão chileno mais conhecido mundialmente e os militares tinham certeza de que ele causaria problemas ao regime no exterior. O juiz Mario Carroza, que preside o processo, concorda e considera plausível a hipótese de assassinato, já que Neruda no exílio representaria uma “situação difícil” para Pinochet.

Uma morte cada vez mais discutida

Como se não bastasse, o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, um Democrata Cristão que governou o Chile por seis anos antes de Allende (1964-1970) (não confundir com seu filho Eduardo Frei Ruiz-Tagle, presidente do país entre 1994 e 2000), faleceu em 1982 na mesma clínica, a Santa María, quando liderava uma incipiente oposição ao regime. Sua morte ocorreu devido a complicações ocorridas em uma cirurgia simples. As complicações são as mesmas de Neruda, tudo acabou numa septicemia causada comprovadamente por envenenamento. Em 7 de dezembro de 2009, foram presas seis pessoas implicadas no homicídio de Frei. As perícias indicaram que sua morte foi provocada “pela introdução paulatina de substâncias tóxicas não convencionais e pela aplicação de um produto farmacológico não autorizado”. A intoxicação com as mesmas substâncias usadas na fabricação de gás-mostarda e de veneno de rato, causou o enfraquecimento do sistema imunológico de Eduardo Frei Montalva que facilitou o aparecimento de “bactérias oportunistas”, que “resultaram na causa final da sua morte”. Em outras palavras, uma septicemia como a de Neruda.

Neruda abriu mão de sua candidatura à presidência do Chile para apoiar Allende. Ambos faleceram naquele trágico setembro de 1973.

Seguindo em nossa história sem cronologia, talvez seja importante ressaltar que, durante a eleição presidencial do Chile, em 1969, Neruda, que era candidato a Presidente, abriu mão de sua candidatura em favor de Salvador Allende. Dois anos depois, em outubro de 1971 , quando Neruda recebeu o Nobel de Literatura, Allende convidou-o para uma leitura de alguns de seus poemas no Estadio Nacional de Chile. Público: 70 mil pessoas.

Aliás, em 1945, Pablo Neruda lera para 60 mil pessoas no Pacaembu, em 15 de julho de 1945, …

Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações. Saudações das neves andinas,
saudações do Oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos
os povoadores de minha pátria longínqua.
Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?

Uma mensagem tinham. Era: Cumprimenta Prestes.
Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.
Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.
E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.

Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.
Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.

(…)

… em homenagem ao líder comunista Luís Carlos Prestes.

O jovem Neruda

Uma vida que mistura poesia e militância

Pablo Neruda é o pseudônimo de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, nascido em Parral, no Chile, em 1904. Desde o primeiro poema, adotou Pablo Neruda, em homenagem ao poeta e contista checo Jan Neruda. Começou a escrever muito jovem e logo foi reconhecido como uma voz distinta. Alcançou reconhecimento no mundo de fala espanhola com Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924), obra que, junto com Tentativa del hombre infinito (1926) são seus principais livros da juventude. Na época, Neruda era um poeta entre o modernismo e a vanguarda. Mas era impossível viver apenas de poesia e eventuais colaborações em jornais e Neruda obteve ingresso na carreira consular, o que o levou a residir na Birmânia, Ceilão, Java, Singapura e, entre 1934 e 1938, na Espanha, onde conheceu García Lorca, Vicente Aleixandre, Gerardo Diego e outros componentes da Geração de 27, fundando a revista Caballo Verde para la Poesía. Desde o primeiro manifesto da revista, tomou partido de uma “poesia sem pureza”, próxima da realidade imediata, o que já indicava sua disposição futura.

Apoiou os republicanos durante a Guerra Civil Espanhola. Reflexo óbvio desta época é España en el corazón. Himno a las glorias del pueblo en la guerra 1936-1937. Pouco a pouco, seus poemas deixaram o hermetismo de sua produção quando jovem e passaram a temas seculares mais sombrios, que se referiam ao caos da realidade cotidiana, à passagem do tempo e à morte.

De volta ao Chile, Neruda ingressou em 1939 no Partido Comunista. Em 1945, foi eleito senador. Também foi o primeiro poeta a ser agraciado com o Prêmio Nacional de Literatura no Chile. Mas seus discursos no senado desagradavam de tal modo a direita chilena que Neruda passou a ser ameaçado fisicamente, o que o levou ao exílio, primeiramente na Argentina. A vida política de Neruda e sua literatura eram aspectos da mesma pessoa e aqueles foram os anos da poesia de inspiração social de Canto General (1950).

Neruda discursando na URSS

De lá, ele foi para o México, e mais tarde visitou a URSS, China e países do Leste Europeu. Após esta longa viagem, durante a qual Neruda escreveu poemas laudatórios e datados às grandes figuras de sua época, recebeu o Prêmio Lênin da Paz e retornou novamente ao Chile. Sua poesia passou a uma nova fase onde a simplicidade formal correspondeu a uma grande intensidade lírica, emoldurada por serenidade e humor.

Sua produção foi reconhecida internacionalmente em 1971, quando foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. No ano anterior, como dissemos, havia renunciado a candidatura presidencial em favor de Salvador Allende, que o nomeou embaixador em Paris logo depois. Dois anos mais tarde, já seriamente doente, ele retornou ao Chile. Sua autobiografia, Confieso que he vivido (1974), foi publicada postumamente.

O poeta

Neruda esteve sempre disponível a todas as influências possíveis. Sua ligação com o movimento surrealista e  vanguarda espanhola e americana são claras em seus trabalhos iniciais. Quem lê Residencia en la Tierra (1925-1931) percebe a quantidade de imagens que emergem do inconsciente. As transformações do poeta nunca ocorreram subitamente. Assim, Crepusculario (1923) é fortemente pelo modernismo, enquanto Residencia en la Tierra já é surrealista, com imagens de sonhos de aparente irracionalidade. Mais tarde, em Canto General (1950), ele evolui para uma poesia comprometida com a realidade política e social. De fase em fase, Neruda parece ir trocando lentamente as pedras do mosaico de seus temas, mas mantém o estilo inconfundível, compondo uma obra vasta, coerente e comprometida.

O poeta íntimo e de “utilidade pública”, como gostava de se autodefinir

“Minha poesia é meu íntimo, eu a concebo como emanada de mim. Como minhas lágrimas e meu pouco cabelo, ela me integra.” A originalidade da Neruda advém não apenas de seu estilo, mas da escolha de temas. Ele rejeitou os temas mais comuns: o pôr do sol, as estações, os namoros na varanda ou no jardim, etc. Seus assuntos são cidades modernas, os rostos de criaturas monstruosas, a vida cotidiana em seu grotesco de miséria e de marasmo. E a morte, sempre a morte — palpável, inanimada ou ainda em vida. Ela é sua maior obsessão e penetra em tudo, no amor, na ruína, na agonia e na corrupção.

Sua poesia política e combativa não deve ser confundida com palavras de ordem gritadas à multidão. São argumentações nas quais nunca estão ausentes a poesia e a beleza. Neruda foi um homem político de posições claras, mas isto é apenas uma faceta de um grande criador, de um homem que refletiu seu mundo de maneira incomum e abrangente, que foi sensual e trágico, confessional e hermético, simples e filosófico, errante e contemplativo, íntimo e de “utilidade pública”, como ele gostava de ver chamada sua obra.

Reza a lenda que Neruda finalizou Confiesso que he vivido (Confesso que vivi) exatamente no dia 11 de setembro, data do golpe militar e da morte de Allende. Suas casas, entre elas a lendária casa de Isla Negra, foram invadidas. Logo ele foi para a clínica de Santa María e a partir de então tudo são dúvidas, até sua morte em 23 de setembro.

Com informações do artigo Características de la poesía de Pablo Neruda, de Carmen Goimil Peluffo, além de vários livros de e sobre Neruda.

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Poema da buceta cabeluda, de Bráulio Tavares

Poema da buceta cabeluda, de Bráulio Tavares

A buceta da minha amada
tem pêlos barrocos,
lúdicos, profanos.
É faminta
como o polígono-das-secas
e cheia de ritmos
como o recôncavo-baiano.

A buceta da minha amada
é cabeluda
como um tapete persa.
É um buraco-negro
bem no meio do púbis
do Universo.

A buceta da minha amada
é cabeluda,
misteriosa, sonâmbula.
É bela como uma letra grega:
é o alfa-e-ômega dos meus segredos,
é um delta ardente sob os meus dedos
e na minha língua
é lambda.

A buceta da minha amada
é um tesouro
é o Tosão de Ouro
é um tesão.
É cabeluda, e cabe, linda,
em minha mão.

A buceta da minha amada
me aperta dentro, de um tal jeito
que quase me morde;
e só não é mais cabeluda
do que as coisas que ela geme
quando a gente fode.

Tela de Georgia O`Keeffe
Tela de Georgia O`Keeffe

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Mulheres submersas (Imitação da Água)

Foto de Toni Frissell, em Weeki Wachee Spring, Florida, 1947
Foto de Erick e Ian Regnard

Trecho de Imitação da Água, de João Cabral de Melo Neto (tudo porque estou mexendo na biblioteca e abrindo muitos livros para dar uma olhadinha):

De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda adeitada,
na praia, te parecias

Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.

Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.

(…)

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Ana Cristina Cesar aos 60

Publicado em 3 de junho de 2012 no Sul21.

Quando Ana Cristina Cesar cometeu suicídio em 1983, aos 31 anos, atirando-se pela janela do apartamento dos pais, na rua Tonelero, em Copacabana, foi um pranto geral no mundo das letras. Era compreensível. Tratava-se de um raríssimo e precioso talento emergente na acanhada literatura e poesia brasileiras, era parte importante do futuro. Muito culta e bonita, Ana, nascida há 60 anos, em 2 de junho de 1952, recebeu as mais surpreendentes homenagens post mortem. Além dos obituários e do lamento de seus leitores, apareceu uma fila de ex-namorados e conhecidos escrevendo enlouquecidas colunas. Pessoas que conviveram com ela, que a viram uma ou outra vez, que beberam algo em sua companhia, que a beijaram ou ficaram com ela, muita gente desejou registrar o quanto gostava e admirava Ana C. Porém, o que mais estarrecia eram os citados namorados. Inacreditáveis, pareciam dispostos a uma competição de visceralidade e mau gosto, da qual estava livre Marcos Augusto Gonçalves e outros poucos. Desejavam comprovar sua (ou uma) intimidade com detalhes e mais detalhes. Tal fato é tanto mais espantoso quando comparado com a enorme elegância da poetisa.

Sinto ciúmes desse cigarro que você fuma
Tão distraidamente.

Tudo foi muito rápido para Ana Cristina Cesar. Aos seis anos, antes mesmo de ser alfabetizada, ditava poemas para sua mãe escrever. Em 1969, aos 17 anos, foi para Londres num intercâmbio, voltando apaixonada pela literatura de língua inglesa, e principalmente pelas obras de Katherine Mansfield, Sylvia Plath e Emily Dickinson. Aos 19, começou a cursar Letras na PUC-RJ, além de traduzir e escrever. Tornou-se uma espécie de musa da geração mimeógrafo, que distribuía poesia em folhas de ofício grampeadas, saídas das máquinas das universidades. Logo Ana começou a ser publicada pelos jornais alternativos e revistas e para depois aparecer em edições independentes. Seus livros, sempre pequenos, tinham o poder de multiplicar-se e podiam ser encontrados não somente no Rio de Janeiro. Enquanto isso, a autora fazia mestrado em comunicação na UFRJ e em tradução na Inglaterra. No ano de 1980, publicou o livro de crítica Literatura não é documento e, em 1982, A teus pés (1982), que reunia três livros independentes anteriormente publicados: Luvas de pelica, Correspondência completa e Cenas de Abril. A teus pés, publicado pela Brasiliense em 1982, é, na verdade, uma série de fragmentos que misturam poesia, cartas e diários em linguagem confessional. É leitura obrigatória em diversos concursos vestibulares pelo país.

Percebo que o lance de notações tipo agendinha tem a ver com certa briga entre fora e dentro, registro e psicologia, cenografia e interioridade. Registrar com um muxoxo de quem não pudesse derramar. Mas para não ficar neo-realista só vale se a tensão passar. Tem mais aí? Ai, um batonzinho.

Ana teve outros volumes publicados após sua morte em 1983. Há Critica e tradução, um volume de 464 páginas lançado pela Ática em 1999 e que é outra reunião de livros menores — Escritos no Rio, Escritos da Inglaterra e Literatura não é documento —  e que inclui uma tradução anotada do célebre conto Bliss, de Katherine Mansfield. Sobre traduções, ela escreveu:

A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. (…) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia em geral, não existe entrelinha. (…) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está buscando o quê? O que não está ali?

Apesar do fato de a palavra “marginal” parecer adequar-se muito pouco a esta mulher do século XIX, disfarçada em século XX, o periférico acompanha-a mesmo, hoje, 29 anos após sua morte. Ao lado dos estudos acadêmicos e livros a ela dedicados, além dos artigos publicados em revistas e jornais, uma consulta ao Google fará com que nos deparemos com algo muito mais forte e vivo: um número anormal de blogs que ora lhe são dedicados inteiramente ou com posts onde ela é citada com devoção. Nestes posts, o lado confessional de sua literatura é explorado nos mínimos detalhes.

Noite de Natal

Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos
Entretanto sou moça
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável pra perto das
botas pretas
pudera

(A teus pés, pág. 62)

Ana Cristina, ou Ana C., como é mais conhecida, não deixou bilhete de despedida. Deixou poesias. Sabe-se pouco dos motivos que a levaram ao suicídio. Ela recém voltara de Londres, estava deprimida, tentara matar-se dias antes afogando-se no mar, em episódio mal descrito pelos biógrafos, até chegar ao ato final no apartamento dos pais. Enquanto sua literatura desenha uma rarefeita fronteira entre o ficcional e o autobiográfico, suas fotos mostram uma moça muito sorridente. Quem conheceu Ana, fala de uma pessoa de poucas palavras, mas de expressão clara, cristalina. Heloísa Buarque de Hollanda foi uma das primeiras ensaístas a reconhecer o valor de seus trabalhos, “eles possuem um traço diferente, extremamente pessoal, que não dá para classificar de modo nenhum como marginália ou algo parecido”.

Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio”. (Ana Cristina Cesar, Inéditos e Dispersos).

Seus leitores procuram textos que se relacionem com seu suicídio. Mas qualquer certeza a esse respeito é fantasia. Ana desenvolveu alguns de seus melhores trabalhos ao traduzir as poesias de Sylvia Plath (1932-1963), outra poetisa, outra suicida. Um destino muito igual numa idade muito igual o dessas duas mulheres que não conseguiram viver, mas expressaram sua dor da forma mais pura possível.

Soneto

Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento

Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno maior
Ou é um lapso sutil?

Ainda provocando paixões por seus textos e poemas, esta filha da poesia marginal dos anos 70 traz e atualiza  dois gêneros usualmente considerados literatura menor: a carta e o diário. São retalhos nostálgicos — quase sempre sucintos, sem beletrismo e adjetivação — que usam o coloquial, mas também exploram de forma muito original a interação entre o sujeito lírico e seu leitor implícito.

Tenho uma folha branca

e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.


Inéditos e Dispersos é outra coletânea que a Brasiliense publicou no início dos 80. Há passagens esplêndidas, mas o livro é muito irregular, deixando claras a limpeza de suas gavetas e papéis. Até bilhetes foram publicados. Ana certamente cortaria muita coisa deste livro.

Ao lado dos textos que estão sendo publicados neste fim de semana nos jornais e sites, está marcada para o próximo dia 6 de junho, às 20h, o Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, uma homenagem a Ana Cristina Cesar. Ana 60 Cesar será um bate-papo entre o poeta Armando Freitas Filho, que foi grande amigo de Ana C., e a escritora e professora de teoria crítica da cultura da UFRJ Heloisa Buarque de Hollanda, de quem a homenageada foi aluna. O evento, aberto ao público, será gratuito, com distribuição de senhas a partir das 19h.

Olho muito tempo o corpo de um poema

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

Ausência

Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Não há falta na ausência.
Ausência é um estar em mim.
E sinto-a tão pegada, aconchegada nos meus braços,
Que rio e danço e invento exclamações alegres,
Porque a ausência, esta ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade – Com o pensamento em Ana Cristina)

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Günter Grass arranja uma briga ao acusar Israel de ameaçar a paz mundial

Günter Grass pode ser há anos um ótimo escritor decadente, mas suas opiniões são muito ouvidas num país onde os autores são discutidos na TV e ainda têm certa influência. Grass volta a ser comentadíssimo aos 84 anos em razão do poema que fez publicar na semana passada e que reproduzo abaixo. Acho que a Europa está muito atrasada na terapia da enorme culpa em relação ao Holocausto ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial. O tratamento não visa negar o que houve — foi uma tragédia real que envergonha a humanidade –, mas elaborar alguma coisa, pois convenhamos: já deveríamos ter enchido o saco e virado a página, ainda mais quando vemos Israel até hoje exibir-se como vítima no Ocidente, com seu governo sentindo-se justificado para fazer o que bem entende com os palestinos, além de distribuir ameaças aos vizinhos. E, claro, tudo isso serve para acirrar a simplicidade fundamentalista de ambos os lados.

A obviedade bem escrita por Grass foi a seguinte: ele sugeriu que o país era tão perigoso quanto o Irã, jogando indesejável luz sobre o programa nuclear de Israel. Aproveitou para criticar a hipocrisia do Ocidente e classificou o Estado judeu como uma ameaça para a “já frágil paz mundial” em meio a postura beligerante do país contra o Irã. O texto virou motivo de polêmica tanto em Tel Aviv, quanto em Berlim.

Claro, o poema toca num ponto sensível. Afinal o Prêmio Nobel ousou fazer a comparação proibida. Comparou moralmente o impecável estado de Israel ao horrível Irã. As respostas foram as de praxe: (1) primeiro Israel declarou Grass como persona non grata, etc. e (2) tentou tirar-lhe qualquer autoridade moral. Afinal, ele — em louvável acesso de fraqueza — admitiu em sua autobiografia de 2006 que fora convocado aos 17 anos (1945), nos meses finais da Segunda Guerra Mundial, para a organização paramilitar nazista Waffen-SS. Foi logo ferido e libertado no final da Guerra. O restante da biografia do autor de O Tambor e Anestesia Local, desde 1945 até hoje, parece que pode ser  esquecido. Ah, houve uma terceira resposta: no domingo, o ministro do Interior israelense, Eli Yishai, anunciou que Grass seria impedido de entrar em Israel, citando uma lei israelense que permite evitar a entrada de ex-nazistas… Porém Yishai deixou claro que a decisão era relacionada mais com o poema do que com as possíveis ações do Grass adolescente de 70 anos atrás.

O poema foi publicado nos jornais “Süddeutsche Zeitung”, “La Repubblica” e “El País”. Em O que deve ser dito”, Grass pede que a Alemanha suspenda a venda de submarinos ao governo israelense e alerta para o perigo de um ataque contra o Irã. “Por que eu só digo agora que o poder nuclear de Israel ameaça a paz mundial? Porque isto deve ser dito já que amanhã pode ser tarde demais e também porque nós — suficientemente incriminados como alemães — podemos ser agora cúmplices de um crime sem precedentes”, acrescentou Grass, afirmando que o Holocausto não deve ser usado como desculpa para se calar diante da capacidade nuclear de Israel, aparentemente o único país do Oriente Médio a ter armas nucleares — suspeita que o governo nem confirma nem nega.

Angela Merkel minimizou a polêmica dizendo que, na Alemanha, os artistas têm liberdade de expressão.

.oOo.

O que Deve Ser Dito*, de Günter Grass

*Tradução livre feita pela Folha de São Paulo da versão em espanhol do poema publicado no El País. Escrito originalmente em alemão e publicado pelo diário “Süddeutsche Zeitung”.

Porque me calo há tanto tempo
Sobre o que é evidente e se empregava
Em jogos de guerra em que no fim, sobreviventes,
terminamos como notas de pé de página.

É o suposto direito a um ataque preventivo
Que poderia exterminar o povo iraniano,
Subjugado e levado a um júbilo orquestrado por um fanfarrão,
Porque em sua jurisdição suspeita-se da fabricação de uma bomba atômica.

Mas, por que me proíbo de dizer o nome
desse outro país em que há anos ainda que secretamente
Dispõe-se de um crescente potencial nuclear
Fora de controle, já que é inacessível a toda inspeção?

O silêncio generalizado sobre esse fato,
Ao qual o meu próprio silêncio se submeteu,
Me soa como uma grave mentira
e uma coação que ameaça castigar quando não se respeita;

“antissemitismo” é o nome da condenação.

Agora, no entanto, porque o meu país foi
Atingido e chamado às falas uma e outra vez
Por crimes muito particulares
Incomparáveis
rotineiramente,

Mesmo que depois qualificada como reparação,
Vai entregar a Israel outro submarino cuja especialidade
É dirigir ogivas aniquiladoras
Em direção aonde não se comprovou a existência de uma única bomba,
Embora se queira apresentar como prova o medo

Digo o que deve ser dito

Por que me calei até agora?
Porque achava que minha origem,
Marcada por um estigma indelével, me proibia de atribuir esse fato, como é evidente,
Ao país chamado Israel, ao qual estou unido e quero continuar estando.

Por que só agora digo, envelhecido e com minha última tinta: Israel, potência nuclear, coloca em perigo uma paz mundial já por si mesma alquebrada?

Porque é preciso dizer o que amanhã poderia ser tarde demais,

E porque incriminados o bastante por ser alemães poderíamos ser cúmplices

De um crime que é previsível,
tornando nossa parcela de culpa impossível de ser extinta com as desculpas de sempre

Admito: não continuo calado
porque estou farto da hipocrisia do Ocidente;
cabe esperar ainda que muitos se liberem do silêncio,
exijam ao causador desse perigo visível que renuncie ao uso da força e insistam também em que os governos de ambos países

Permitam o controle permanente e sem barreiras por uma instância internacional do potencial nuclear israelense e das instalações nucleares iranianas.

Só assim poderemos ajudar a todos israelenses e palestinos e sobretudo a todos os seres humanos que nessa região tomada pela demência vivem como inimigos lado a lado, odiando-se mutuamente, e, definitivamente, ajudar-nos também.

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De Millôr Fernandes (1923-2012), em seu livro Poemas (1999)


Chico morreram. Millôr morremos. Simples assim.

Guga Alayon

Poema para grande orquestra parada – um silêncio bem alto

Você já amou uma mulher brilhante.
Você já amou uma mulher formosa.
Você já amou uma mulher
Silenciosa?
Que fala pouco.
E bem,
E baixo,
Que não eleva a voz por raiva
Nem má educação,
Que anda com seus pés de seda
Num mundo de algodão.
Que não bate, fecha a porta,
Como quem fecha o casaco
De um filho
(Ou abre um coração)?
Que quando fala, se aproxima
Ao alcance da mão
Pra que a voz não se transforme em grito?
E que absorve o mundo
Sem re-percussão
Num olhar de preguiça
Num colchão de cortiça
Como um mata-borrão?

Mas um dia ela sai
Levando o seu silêncio
De pingüim andando solitário em
sua Antártica
(ou Antártida),
No eterno
Gelo sobre gelo
No infinito
Branco sobre branco
E dos cantos e recantos
Onde habitou calada
– entre oniausente –
Brotam aos poucos,
Os ruídos
Pisados,
Colocados embaixo do tapete
Guardados na despensa
Na gaveta mais funda
De uma vida em comum.
Os trincos falam,
A cafeteira chia,
A espreguiçadora range,
O telefone toca,
As louças tinem,
O relógio bate,
O cão ladra,
O rádio mia,
Toda a casa ressoa, reverbera
e brada
E a orquestra em pleno do teu
dia-a-dia
Ataca a algaravia
Fabril
Escondida no lençol de silêncio
Com que ela partiu.

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Lisbon Revisited (1923), de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Pois nosso amigo Arthur de Faria musicou este poema. Foi um dos grandes momentos de seu show solo do último sábado. Ele — pessoa extraordinariamente otimista, pra cima… — disse que a frase de sua vida estava no poema.

~o~

Lisbon Revisited (1923), de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Fernando Pessoa

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O Dia dos Pais, segundo Márcia Maia

De meu pai herdei a cor da pele
e um leve inclinar da cabeça
para a direita
nas fotografias.
Um jeito intenso de viver
amar e dar presentes.
Uma afabilidade cúmplice
no trato com as pessoas
além da profissão
exercida como sacerdócio.
O gostar de almôndegas
cozido e guisado
a mania de cortar toda a carne
no prato
antes de comê-la
e o incômodo de acordar
às quatro e meia
quando poderia dormir
até às dez.

Márcia Maia

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