Após a Guerra Fria, George Orwell começa a ser reavaliado

Publicado originalmente em 25 de junho no Sul21

Há exatos 108 anos, nascia na cidade de Motihari, Bengala, região da Índia, o escritor e jornalista George Orwell (1903-1950), pseudônimo de Eric Arthur Blair. Seu pai era um funcionário da administração do império britânico. No anos seguinte, o menino Eric já estava vivendo na Inglaterra, onde estudou, apenas retornanado ao exterior em 1922, para assumir um posto na Polícia Imperial Indiana em Burma (ou Birmânia, atualmente chamada Myanmar). Em 1927, transferido para outra localidade de Burma, contraiu dengue e retornou à Inglaterra. Imitando seu ídolo Jack London, Blair começou a frequentar as favelas de Londres. Depois, segundo suas próprias palavras, passou a viver como um nativo de seu próprio país, isto é, tornou-se um mendigo.

A influência de Orwell na cultura ocidental popular e política é notável. Até hoje, quando o Brasil assiste a um programa chamado Big Brother, poucos dão-se conta de que estão citando implicitamente o onipresente Grande Irmão do romance 1984. Também o neologismo “orweliano” é utilizado em muitas línguas para significar algo contrário à liberdade. E, no Brasil, sua novela alegórica Animal`s Farm (A Revolução dos Bichos) serviu de base para Chico Buarque escrever sua “novela pecuária” Fazenda Modelo, de 1974. Sua popularidade é imensa, tanto que, somados, 1984 e A Revolução dos Bichos venderam mais cópias do que os dois livros mais vendidos de qualquer outro escritor do século XX.

A popularidade inglesa de Orwell começou antes da produção de suas obras mais conhecidas. Começou com o lançamento, em 1936, do romance Keep the aspidistra flying (no Brasil chamado incrivelmente de Mantenha o Sistema na primeira e melhor tradução e Moinhos de Vento na segunda). O livro conta a história de um grande personagem-símbolo, Gordon Comstock, um publicitário que abandona sua carreira para lutar contra o dinheiro. Na direção inversa do senso comum, Gordon procura viver a cada dia com menos dinheiro, chegando a evitar ganhá-lo. Só que ele logo conclui que o dinheiro participa de todos os aspectos e parece preencher todos os espaços da existência humana. Não adianta ser belo, inteligente, sensível ou artístico se não tiver dinheiro. O livro, escrito por um jovem e indignado Orwell, é visceral. Nenhuma surpresa para quem vivera como mendigo.

Em 1938, veio outro excelente livro, Homage to Catalonia (Lutando na Espanha no Brasil). Trata-se do relato de Orwell sobre sua participação numa milícia de tendência trotskista na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos republicanos contra Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler. Acabou por levar um tiro no pescoço. Da forma mais improvável, uma bala atravessou o órgão, saindo por trás, danificando apenas cordas vocais. Desde aquele momento, sua voz ficou sensivelmente mais aguda.

Socialista mas desencantado com o stalinismo, dedicou seus últimos anos de vida a denunciá-lo. Publicado em 1945, com mesma impressionante repercussão que teria logo depois 1984, A Revolução dos Bichos serviu para acirrar o debate ideológico em torno do comunismo real. Com sua pequena novela alegórica, Orwell acabou por dividir o mundo intelectual. Como era típico da Guerra Fria, havia os que achavam que o autor estava traindo a esquerda, o socialismo e o comunismo e, do outro lado, os pró-EUA, que tratavam de divulgar o livro como grande obra. O intento de Orwell era o de atacar a política stalinista que, segundo sua ótica, teria traído os princípios da revolução russa de 1917. O uso da obra por pessoas, entidades e governos de direita sempre foi combatida pelo autor, sem sucesso. Nos anos 70, no Brasil, o livrinho era leitura obrigatória nas escolas brasileiras.

Quatro anos depois, Orwell lançou um segundo romance que também tinha como mote o stalinismo, só que agora levado ao paroxismo. Num futuro distante, 1984, o cidadão Winston Smith decide rebelar-se contra um regime que tudo domina. Todos são governados por alguém denominado Grande Irmão, o “Big Brother”. Preso e torturado com requinte de maldades — Winston tinha fobia de ratos e, na prisão era obrigado a compartilhar uma gaiola com eles — , ele cede e, em pouco tempo, é considerado apto dentro de um programa de recondicionamento mental. Em outras palavras, de uma lavagem cerebral. Desta forma, Winston torna-se um cidadão exemplar. Trata-se, em suma, de um romance de terror. Esta segunda agressão ao stalinismo foi o final de um longo drama moral e ideológico, marcando em definitivo seu rompimento com os comunistas.

Orwell morreu em Londres, de tuberculose, aos 46 anos de idade. Em seu túmulo, há um epitálio bem simples: “Aqui jaz Eric Arthur Blair, nascido em 25 de Junho de 1903, falecido em 21 de Janeiro de 1950”. Não há qualquer referência a seu célebre pseudônimo.

Agora, longe do clima dos anos 40 e 50, sua obra começa a ser reavaliada na Inglaterra. Diversas publicações debruçaram-se sobre seus livros recentemente. Sua obra-prima volta a ser Mantenha o Sistema. A Revolução dos Bichos torna-se uma brilhante alegoria contra qualquer tipo de ditadura e seus relatos sobre Myanmar — do livro Dias na Birmânia — e a Guerra Civil Espanhola voltam a ser modelos de bom jornalismo. Orwell ainda é famoso por 1984, mas isto mude logo.

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Ontem, com João Donato no Teatro São Pedro

Porto Alegre é estranha, às vezes nos oferece muitas coisas, até demasiadas; outras vezes nos deixa na mão. Ontem à noite, ao mesmo tempo, João Donato estava se apreesentando no Teatro São Pedro e a OSPA levava Bach e Mozart à Igreja das Dores. Acho que fiz uma boa escolha, mas balancei seriamente quando a violinista Elena Romanov colocou em seu Facebook belas fotos (incrivelmente feitas num celular) dos músicos ensaiando. Além disso, coisa rara nos templos porto-alegrenses, elogiou a acústica da Igreja.

Porém, fui ver o Donato. Tudo muito simples como deve ser na sala de sua casa ou como seria na nossa. Um palco de resto vazio com um piano no centro. Uma luz, vinda de cima, iluminava o instrumento e a cadeira a sua frente. Só. Então, o músico de 76 anos e excelente forma entrou no palco meio desajeitado sob seu habitual boné — bem daquele jeito que têm os tímidos quando são as estrelas — , fez uma saudação rápida, explicou a primeira música e realizou as primeiras mágicas. Iniciou com extrema simplicidade tocando valsas compostas em sua infância (uma delas para a namorada Lili, de oito anos, composta quando o autor tinha sete) e depois partiu para seu enorme repertório, digamos, adulto.

Donato tem uma trajetória curiosa. Chegou aos EUA antes do pessoal da bossa nova e rapidamente se enturmou com o pessoal do jazz — latino e americano. Foi amigo do grande Horace Silver, de Stan Kenton e parecia que ia estabelecer-se como um grande pianista de jazz. Até os anos 70, Donato compunha apenas temas instrumentais e costumava sair por aí com trios, quartetos e quintetos. Acompanhavam cantores ou formavam uma banda de jazz latino. Se não me engano, foi sei irmão quem o convenceu a procurar parceiros para colocar palavras em suas melodias. Logo, sua imaginação melódica o transformou em parceiro de João Gilberto (sim, ele escreveu letras para Donato), Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, etc.

Desta forma, agregando ou não palavras a sua arte, Donato foi parceiro de Paulo Moura a Fernanda Takai, chegando até Marcelo D2 e Black Eyed Peas… Sim, o cara é um baita instrumentista, arranjador e compositor e há trabalho para ele em qualquer lugar do mundo. O show de ontem, Solo, por exemplo, surgiu de um projeto no Japão que fazia pianistas excursionarem pelo país em apresentações solo. Donato é o cara perfeito para isso. Mas não é o cara perfeito para dizer que é. Poderia até ser um bobo arrogante, pondo na frente da gente seu currículo; porém, com absoluta simplicidade, simpatia e atenção, só diz e apresenta o que são, naquele momento, ele e sua música. OK, fiquei apaixonado…

Apesar da relação de canções constantes do programa, João de forma alguma a obedece. Ele acaba uma, ergue a cabeça, lembra de outra, conta sua história e mostra como é. Às vezes, canta. Outra coisa que me fascinou foi seu comportamento “de músico”. Ele mesmo diz “ah, essa aqui era assim, mas agora ganhou nova introdução e mudei umas coisinhas; vocês sabem que as músicas evoluem, vão mudando, né?”. Então, seu show não têm nenhuma regra e aposto que o próximo será diferente, assim como as coisas que conta.

Gosto de shows com luz de serviço e alguma improvisação. Prefiro deixar de fora o que não é música. E essas coisas com roteiro certinho e decoradinho me irritam. Vou aos teatros para ver o músico e o ser humano que mora nele. Não tenho nada a reclamar de João Donato, não me decepcionei de modo algum.

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É proibido gostar de Saramago

Não, ninguém é obrigado a gostar de José Saramago. Nem do escritor, nem do político, nem do homem. Porém, ele ganhou o Nobel e isso tira muita gente de seu prumo. Nosso complexo de vira-latas nos faz pensar que, quando alguém de nossa sociedade se destaca, é porque ou roubou ou foi beneficiado por quem roubou. Muitas vezes alguém que deveria ser alvo de nossa admiração é simplesmente “rebaixado” como gay…  Enfim, o bom mesmo é ser igual a todo mundo, embora a maioria aja de forma diversa, pois paradoxalmente milhares querem se destacar num BBB ou coisa pior.  O nome disso: inveja. Lembro de quantos no passado chamavam Tom Jobim de embuste… Seria apenas um epígono do jazz. Dia desses, um post laudatório sobre Oscar Niemeyer foi capaz de jogar meio mundo contra ele e suas obras. Na boa, fiquei rindo, imaginando quando aquilo ocorreria em outro país que conheça. Nunca, é coisa nossa. Já ouvi também gente dizendo que Chico Buarque é um compositor e letrista apenas regular e que só ele usaria a ridícula palavra “cabrocha”. Dificuldades com os gênios deste país? Ora, certamente.

Com o tempo e o contato com vários amigos portugueses, descobri que isto é uma herança daquele país. Há países que homenageiam seus maiores autores. Nas livrarias de Montevidéu, só dá Benedetti. Nas de Buenos Aires, o autor argentino manda (e merece). Mesmo antes do Nobel, Saramago era combatido por ganhar muitos prêmios, por falar (ser entrevistado) demais, por ser convidado (e aceitar) demais. Ah, a inveja, os ciúmes que nos corroem!

Hoje, o bom intelectual deve duvidar da profundidade e da importância de O Evangelho segundo Jesus Cristo, deve achar mais ou menoso extraordinário O Ano da Morte de Ricardo Reis, tem que ignorar Caim e afirmar que As Intermitências da Morte é um livro de gênero transversal. Gosto muito de todos eles e acrescento ainda o “detestável” Ensaio sobre a Cegueira e o “mal realizado” A Jangada de Pedra, pois seria um livro onde a coisa mais extraordinária e insuperável ocorre nos primeiros minutos de jogo, deixando o autor sem ter o que fazer no restante das páginas… Mas também há os que não gosto mesmo: acho Todos os Nomes, o célebre Levantado do Chão e a tal Viagem do elefante bem fracos. Fazer o quê?

Ou será que o ódio de alguns ao autor têm raízes geopolíticas? O cara era ateu e comunista. Como Niemeyer e Chico. Pode até ser, mas aposto mais no Complexo de Vira-Latas.

Ontem, uma pessoa que não conheço e que não é minha “amiga” no Facebook, publicou em seu perfil esta imagem.

Trata-se de uma alusão ao admirável documentário José e Pilar. O primarismo da montagem não adere a nada que foi mostrado no delicado filme, mas a “autora” cometeu um outro ato bastante desagradável. Resolveu agredir as pessoas que já declararam gostar de Saramago. Ora, todos nós sabemos que a segurança do Facebook inexiste, que a gente entra onde quer e quando quer. Os motivos disso é a vontade dos produtores do aplicativo. Eles que querem ser sedutores e mostrar as grandes qualidades (reais) do Facebook e… Dane-se a segurança. Pois a imagem acima foi marcada em todos os seus cantos como se tivessem fotos de pessoas — quem conhece o programa sabe do que estou falando. Desta forma, a cada comentário feito à imbecil imagem, todos os marcados recebiam um e-mail com o conteúdo. O título do e-mail é assim: Juliana L. comentou uma foto sua. Então eu clico sobre um endereço e encontro a imagem acima. Dã.

É uma forma bem cretina de agressão, pois a autora deve ter me encontrado na internet elogiando seu desafeto póstumo e sabia que eu ia começar a receber e-mails. Por sorte, conheço alguma coisa do Face e me retirei da imagem. Ah, elogiei também o filme! Foi meu erro…

Olha, desconfio muito de quem escolhe Saramago como um importante alvo. Há tantos, mas tantos alvos que merecem chiste que começo a achar que quem o agride com tanta inisistência é católico, direitista e morre de inveja até de quem participa do BBB. Porque nada, na obra ou no homem Saramago justifica tal vulgaridade. Leiam ou releiam o autor, vejam o filme e comparem com a imagem acima. Nada a ver.

Como disse no início é permitido não gostar de Saramago, Paulo Coelho, Shakespeare ou Thomas Mann. Mas, para fazê-lo, é mais honesto usar argumentos.

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Carioca, de Chico Buarque

Post publicado em 11 de maio de 2006.

(Antes do Chico, vamos responder à pergunta proposta no post anterior. Foi este cara.)

Sim, é um trabalho muito bem acabado e Chico agrega-se ao notável grupo de MPB da gravadora Biscoito Fino. Não há lugar melhor para ele. Mas não esperem obras-primas como as do passado. Nem é esta a intenção, creio eu. Ser dublê de escritor e compositor popular exige algumas limitações. Carioca é um trabalho clássico, agradável e bom, que só avança na inclusão de um pequeno rap na segunda melhor canção do CD, Ode aos Ratos, com melodia de Edu Lobo. De resto, é um Chico parecido com o de seu último trabalho. Um Chico que não vai tocar no rádio, mas que todas as pessoas interessadas em MPB conhecerão e assobiarão. Um CD de arranjos perfeitamente convencionais, mas com letras de qualidade superior, a gentileza habitual da casa.

Fico meio nervoso quando me deparo com um CD de apenas trinta e sete minutos de duração. Não dá vontade de comprar. Talvez acostumado com os de música erudita e jazz, acho pouco. E, na primeira audição, tomei um susto ao ouvir o dueto com Mônica Salmaso, pois sabia que aquela era a última canção do disco. Já? É demais exigir que Budapeste seja seguido por uma grande obra musical. Afinal, apesar do que dizem as mulheres, Chico é apenas um ser humano; talvez menor do que a imaginação de alguns deseja e certamente maior do que os poucos hostis querem.

O que me surpreende é a forma como os compositores de música popular envelhecem mal. Se Chico bipartiu sua carreira tornando-se um excelente escritor, sua música parece cada vez mais parida a fórceps. Em vez das composições ficarem mais fáceis e naturais, em vez da construção de uma linguagem e de um estilo, os compositores de música popular ficam, com o tempo, encalacrados. O estranho é que os compositores eruditos fazem o caminho contrário, indo paralelamente e na mesma direção do que seria uma vida ideal: sempre melhorando e evoluindo. Parece que a música popular acompanha o envelhecimento físico de seus protagonistas, enquanto que a erudita evolui plenamente com o tempo. Por quê? Talvez Tom Jobim seja daquelas exceções que sirvam – clichê dos clichês – para confirmar a regra.

(A Claudia chega por trás de mim e, em sua permanente campanha para me desacreditar junto a meus sete leitores, esclarece a questão. Diz ela que a música popular vive da emoção e a erudita da técnica. E que o fenômeno Tom Jobim é facilmente explicado por tratar-se de um autor de melodias e harmonias muito mais elaboradas do que as utilizadas pelo comum dos compositores. Claudinha complementa a questão dizendo que, com o tempo, a emoção se acomoda e a técnica se aprimora. Por que não a conheci antes? Fecho parênteses.)

Outro fato que me surpreende é a ordem das músicas. Será que é puro acaso a colocação das melhores músicas todas juntas? Ouvi o disco umas sete vezes e estou convicto que o melhor está entre as faixas de 1 a 5 e de 10 a 12, ou seja, as melhores ficam no começo e no final, para garantir uma boa primeira e última impressões. As faixas de 6 a 9 baixam o nível do trabalho e me causaram algum mau humor, com destaque para a tentativa desesperada do arranjador Luiz Cláudio Ramos de salvar a melodia de As Atrizes com uma instrumentação pesada e cinematográfica. Se isto lhe é permitido pelo tema da canção, resulta em algo difícil de se suportar sem estendermos a mão ao player em busca da próxima faixa. É difícil compreender a insistência dos arranjadores de música popular quando chamam a atenção para o que há de ruim num trabalho em vez de desviar nossa atenção com improvisos instrumentais e um contigente mais leve.

Perfeitas são as canções Outros Sonhos, Ode aos Ratos, Dura na Queda, Leve e a campeã Imagina, com a participação da grande Mônica Salmaso. A propósito, se alguém puder me explicar porque uma melodia tão etérea e sonhadora ganhou um final de touradas, faça-o.

Ou seja, o mundo não vai mudar, nem o Brasil. Guinga continuará sendo o meu número um de hoje e as rádios continuarão nos torturando com a música-tema do filme Closer, Blower´s Daughter (de Damien Rice), devidamente retorcida por Ana Carolina e “Seu” Jorge. Um desastre. Mais detalhes aqui. É isso aííííííííí…

As Canções de Carioca:

01. Subúrbio (Chico Buarque)
02. Outros Sonhos (Chico Buarque)
03. Ode aos Ratos (Edu Lobo / Chico Buarque)
04. Dura na Queda (Chico Buarque)
05. Porque Era Ela, Porque Era Eu (Chico Buarque)
06. As Atrizes (Chico Buarque)
07. Ela Faz Cinema (Chico Buarque)
08. Bolero Blues (Jorge Helder / Chico Buarque)
09. Renata Maria (Ivan Lins / Chico Buarque)
10. Leve (Carlinhos Vergueiro / Chico Buarque)
11. Sempre (Chico Buarque)
12. Imagina (Tom Jobim / Chico Buarque)

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A cantora que pensa, e mais

Não sou um cara muito atento à MPB e há poucos artistas que têm o poder de me mobilizar para ouvir seus trabalhos. Talvez sejam eles Hermeto Pascoal, Guinga, Mônica Salmaso e Chico Buarque. Posso então dizer que 2007 foi um grande ano: em 4 meses tivemos o último Guinga, Casa de Villa e agora chega esta perfeição de Mônica Salmaso, Noites de Gala, Samba na Rua.

Muita gente já fez trabalhos interpretando Chico Buarque, mas ninguém chegou a este nível. Em primeiro lugar, ao ver a relação de catorze canções, vemos que Mônica decidiu-se finalmente a enfrentar alguns riscos. Construção, música que originalmente fora insuperavelmente arranjada por Rogério Duprat para o próprio Chico, é o maior deles. Porém, se Mônica e o grupo Pau Brasil – que a acompanha em todas as faixas – não supera o original, a nova interpretação é muito boa e não deixa de lado as dissonâncias e as estranhezas que a canção exige.

Como é Mônica? Ora, é uma cantora de grande técnica e de um virtuosismo não voltado ao espetacular e sim à expressão. Tem voz belíssima, meio entubada, perfeita para as canções intimistas e inadequada às músicas “pra cima”. Sim, é um enorme elogio, mas vá ouvir o CD antes de reclamar que exagero.

Voltando ao CD. Nele há alguns achados como a desconhecida e malandríssima Logo eu e a pouco executada Você você que Chico escreveu para um neto que ainda não havia nascido e que recebe de Mônica Salmaso uma interpretação de indescritível carinho para com seu filho Theo, que se encontrava na sua barriga de sete meses à época da gravação. É arrepiante. Além das citadas, o resto do CD, sempre com o criativo acompanhamento do grupo Pau Brasil – pontuado de silêncios, acústico, presente mas sem pontificar e com um extraordinários violonista e pianista – tem seus melhores momentos em Morena dos Olhos D`Água, Ciranda da Bailarina (em extraordinário registro com bem humoradas marimbas), Partido Alto, Suburbano Coração e O Velho Francisco. Mas as outras não são nada esquecíveis.

Se você está atrás de milagres, esqueça Bento XVI e fique com Mônica Salmaso. Pode comprar hoje! Se não gostar, por favor, não me avise, pois eu ficarei muito desconfiado.

Posso contar uma história? Eu estava assistindo um show de Mônica Salmaso em Parati. Terminado o espetáculo – e foi mesmo um espetáculo -, resolvi comprar um CD dela que não tinha e entrei na fila de autógrafos. OK, eu sou um filha-da-puta e, nos cinco minutos em que fiquei na fila pensei em dizer algo muito marcante a ela, que é uma mulher comunicativa e simpaticíssima. Foram cinco minutos de considerável trabalho para meu limitado cérebro. Pensei ter encontrado a solução quando ecoei uma frase de Adoniran Barbosa que Mônica recém dividira de forma brilhante, conseguindo que sua tristeza e humor (que esqueci) ficasse longe do patético, permanecendo dentro do habitat poético que merecia. Resumi e decorei direitinho o que devia dizer e, quando entreguei-lhe o CD para a assinatura e depois de dizer meu nome, despejei meu discurso. O efeito foi monumental. Ela se levantou subitamente como se o botão de eject tivesse sido abruptamente acionado, deu a volta na mesa e lançou-se sobre mim num daqueles abraços em que a gente fica balançando como se fosse um João Bobo ou como um reencontro de velhos e íntimos amigos, separados há uma década.

— Ai, que felicidade ouvir isso. Aquele trecho é dificílimo, é o centro, o cerne da música e foi o maior trabalho entender como devia ser cantada. Fiquei anos tentando! Você é músico?

E ficamos conversando por alguns minutos, pouquíssimos para mim e longos para o resto da fila que ficou comentando quem era aquele cara que tinha alugado a Mônica… Depois lhe disse rindo que viera a Parati só para ouvi-la. Ela deu uma gargalhada:

– Ô gaúcho mentiroso. Você veio pra FLIP!

Claro, claro.

Oh, eu sei, sei que não deveria contar sem constrangimento uma história em que brilho tanto, mas, acreditem, eu ESTOU constrangido, mas é que me orgulha tanto, sabe…? 

Mas houve outro lançamento relevante. A cantora portuguesa Teresa Salgueiro, do Madredeus, reaparece muito bem, muito bem mesmo, em seu segundo trabalho solo. Ela canta 22 clássicos da MPB de todos os tempos e surpreende por várias razões. A primeira pelo fato de ela ter esquecido em algum lugar seu sotaque português. Sim, alguma coisa ficou – ninguém no Brasil canta “eu voU pra Maracangália, eu voU” – e às vezes o sotaque volta, mas, pô, o que conseguiu foi outro milagre. A segunda é que a voz de Teresa vestiu-se de profana ao abandonar inteiramente a impostação quase clássica exigida pelo grupo português, mostrando que ela pode e faz o que quer. Você imagina Teresa Salgueiro saracoteando, dançando? Bem, se imagina, deve ter uma vida interior muito tumultuada.

Aqui também temos um extraordinário grupo de músicos trabalhando em favor da música. Trata-se do Septeto de João Cristal (prazer em conhecer). O trabalho dos caras é genial. O CD de Teresa está vendendo muito na Europa, principalmente na Alemanha e entre os ibéricos. Gostaria de saber o que pensam os portugueses de sua cantora, agora com sotaque brasileiro. Penso em quando Elis Regina chegou ao Rio de Janeiro e, para horror de alguns gaúchos, começou a chiar…

Se você tiver grana para apenas um CD, compre o de Mônica. Mas se der parcelar no cartão, leve os dois. O Milton garante, apesar repelir quaisquer protestos.

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A Imagem e a Voz da Razão

Primeiro a Imagem:

Agora a Voz:

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Sentimental, de Chico Buarque, com Maria de Medeiros

Às vezes, leio por aí uns Top 5 ou Top 10 das canções de Chico Buarque. Não lembro de ter lido Sentimental dentre as muitas escolhas. Porém, eu faria questão de colocá-la numa lista minha. Profundamente original, de melodia alongada e sem estribilho, Sentimental tem uma daquelas inspiradas letras femininas de Chico, desta vez metamorfoseado numa morena clara, atraente e sentimental menina de 16 anos. Uma joia!

A interpretação da portuguesa Maria de Medeiros perde fácil para o original de Zizi Possi, mas é tão curiosa — principalmente na repetição discursiva de letra em francês — que vale a pena conferir.

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Meu caro amigo, as coisas estão melhorando

Por Daniel Cariello e Thiago Araújo, da revista Brazuca | Foto: Jorge Bispo

“Se tiver bola, eu dou a entrevista”. Essa foi a única exigência do nosso companheiro de pelada, Chico Buarque, numa caminhada entre o metrô e o campo. Uma bola. E eu acabara de informar que o dono da redonda não viria à pelada de quarta-feira. Éramos dez amantes do futebol, órfãos.



Sem saber se esse era um gol de letra dele para fugir da solicitação de seus parceiros jornalistas, ou uma última esperança, em forma de pressão, de não perder a religiosa partida, eu, que não creio, olhei para o céu e pedi a Deus: uma pelota!

Nada de enigma, oferenda ou golpe de Estado. Ele estava ali, o cálice sagrado da cultura brasileira, que sucumbiu ao ver não uma, mas duas bolas chegarem à quadra pelas mãos de Mauro Cardoso, mais conhecido como Ganso. A partir daí, nada mais alterou o meu ânimo e o da minha dupla de ataque-entrevista, Daniel Cariello. Apesar de termos jogado no time adversário do ilustre entrevistado, tomado duas goleadas consecutivas de 10 x 6 e 10 x 1, tínhamos a certeza de que ele não iria trair dois dos principais craques do Paristheama, e sua palavra seria honrada.

Mas o desafio maior não era convencer o camisa 10 do time bordeaux-mostarda parisiense a ceder duas horas de sua tarde ensolarada de sábado. O que você perguntaria ao artista ícone da resistência à ditadura, parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Morais e Caetano Veloso, escritor dos best sellers “Estorvo”, “Benjamin”, “Budapeste” e “Leite Derramado”, autor de “A banda”, “Essa moça tá diferente”, “O que será”, “Construção” e da canção de amor mais triste jamais escrita, “Pedaço de mim”?

Admirado e amado por todas as idades, estudado por universitários, defendido por Chicólatras, oráculo no Facebook, onipresente nas manifestações artísticas brasileiras – sua modéstia diria “isso é um exagero”, mas sabemos que não é –, sua reação imediata ao ser comparado a Deus foi “em primeiro lugar, não acredito em Deus. Em segundo, não acredito em mim. Essa é a única coisa que pode nos ligar. Então, pra começo de conversa, vamos tirar Deus da mesa e seguir em frente”.

Enfim, ainda não creio que entrevistamos Deus, quase sem falar de Deus. Mas foi com ele mesmo que aprendi uma lição, talvez um mandamento: acreditar em coisas inacreditáveis. (Thiago Araújo)


Você assume que não acredita em Deus, mas existem trechos nas suas músicas como “dias iguais, avareza de Deus” ou “eu, que não creio, peço a Deus”. No Brasil, é complicado não acreditar em Deus?

Eu não tenho crença. Eu fui criado na Igreja Católica, fui educado em colégio de padre. Eu simplesmente perdi a fé. Mas não faço disso uma bandeira. Eu sou ateu como o meu tipo sanguíneo é esse.

Hoje há uma volta de certos valores religiosos muito forte, acho que no mundo inteiro. O que é perigoso quando passa para posições integristas e dá lugar ao fanatismo. O Brasil talvez seja o pais mais católico do mundo, mas isso é um pouco de fachada. Conheço muitos católicos que vão à umbanda, fazem despacho. E fica essa coisa de Deus, que entra no vocabulário mais recente, que me incomoda um pouquinho. Essa coisa de “vai com Deus”, “fica com Deus”. Escuta, eu não posso ir com o diabo que me carregue? (Risos). Tem até um samba que fala algo como “é Deus pra lá, Deus pra cá – e canta – Deus já está de saco cheio” (risos).

Você já foi em umbanda, candomblé, algo do tipo?

Já, eu sou muito curioso. A mulher jogou umas pipocas na minha cabeça, sangue, disse que eu estava cheio de encosto. Eu fui porque me falaram “vai lá que vai ser bom”. Passei também por espíritas mais ortodoxos, do tipo que encarnava um médico que me receitou um remédio para o aparelho digestivo. Aí eu fui procurar o remédio e ele não existia mais. O remédio era do tempo do médico que ele encarnava (risos).

Já tive também um bruxo de confiança, que fez coisas incríveis. Aquela música do Caetano dizia isso muito bem, “quem é ateu, e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar.” Eu vi cirurgias com gilete suja, sem a menor assepsia, e a pessoa saía curada. Estava com o joelho ferrado e saía andando. Eu fui anestesista dessa cirurgia. A anestesia era a música. O próprio Tom Jobim tocava durante as cirurgias. Eu toquei para uma dançarina que estava com problema no joelho. Ela tinha uma estreia, mas o ortopedista disse “você rompeu o menisco”. Ela estreou na semana seguinte, e na primeira fila estavam o ortopedista e o bruxo (risos).

Uma vez, estava com um problema e fui ao médico. Ele me tocou e não viu nada. Aí eu disse “olha, meu bruxo, meu feiticeiro, quando ele apertava aqui, doía”. Ele começou a dizer “mas essa coisa de feitiçaria…” e atrás dele tinha um crucifixo com o Cristo. Daí eu perguntei “como você duvida da feitiçaria, mas acredita na ressurreição de Cristo?”. Eu acho isso uma incongruência. Gosto de acreditar um pouco nisso, um pouco naquilo, porque eu vejo coisas inacreditáveis. Eu não acredito em Deus, acredito que há coisas inacreditáveis.

De vez em quando você dá uma escapada do Brasil e vem a Paris. Isso te permite respirar?

Muito mais. Eu aqui não tenho preocupação nenhuma, tomo uma distância do Brasil que me faz bem. Fico menos envolvido com coisas pequenas que acabam tomando todo o meu tempo. Aqui, eu leio o Le Monde todos os dias, e fico sabendo de questões como o Cáucaso, os enclaves da antiga União Soviética, que no Brasil passam muito batidos. O Brasil, nesse sentido, é muito provinciano, eu acho que o noticiário é cada vez mais local.

Meu pai, que era um crítico literário e jornalista, foi morar em Berlim no começo dos anos trinta. Foi lá, onde teve uma visão de historiador, de fora do país, que ele começou a escrever Raízes do Brasil, que se tornou um clássico. A possibilidade de ter esse trânsito, de ir e voltar, eu acho boa. É como você mudar de óculos, um para ver de longe e outro para ver de perto.


Nesse seu vai e vem Brasil-França, o que você traria do Brasil para a França, e vice-versa?

Eu traria pra cá um pouquinho da bagunça, da desordem. Os nossos defeitos, que acabam sendo também nossas qualidades. O tratamento informal, que gera tanta sujeira, ao mesmo tempo é uma coisa bonita de se ver. Você tem uma camaradagem com um sujeito que você não conhece. Aqui existe uma distância, uma impessoalidade que me incomoda.

Para o Brasil, eu gostaria de levar também um pouco dessa impessoalidade. Da seriedade, principalmente para as pessoas que tratam da coisa pública. Não que não exista corrupção na França.

Outra coisa que eu levaria pra lá é o sentimento de solidariedade, que existe entre os brasileiros que moram fora. Isso eu conheci no tempo que eu morava fora, e vejo muito aqui através das pessoas com as quais convivo. Eles se juntam. Como se dizia, “o brasileiro só se junta na prisão”. Os brasileiros também se juntam no exílio, na diáspora.

Falando em exílio, tem uma história curiosa de Essa moça tá diferente, a sua música mais conhecida na França.

É. A coisa de trabalho (N.R.: na Itália, onde Chico estava em exílio político, em 1968) estava só piorando e o que me salvou foi uma gravadora, a Polygram, pois minha antiga se desinteressou. A Polygram me contratou e me deu um adiantamento. E consegui ficar na Itália um pouco melhor. Mas eu tinha que gravar o disco lá. Eu gravei tudo num gravador pequenininho. Um produtor pegou essas músicas e levou para o Brasil, onde o César Camargo Mariano escreveu os arranjos. Esses arranjos chegaram de volta na Itália e eu botei minha voz em cima, sem que falasse com o César Camargo. Falar por telefone era muito complicado e caro. Então foi feito assim o disco. É um disco complicado esse.


Você acabou de citar o
Le Monde. Para nós, que trabalhamos com comunicação, sempre existiu uma crítica pesada contra os veículos de massa no Brasil. Você acha que existe um plano cruel para imbecilizar o brasileiro?

Não, não acredito em nenhuma teoria conspiratória e nem sou paranoico. Agora, aí é a questão do ovo e da galinha. Você não sabe exatamente. Os meios de comunicação vão dizer que a culpa é da população, que quer ver esses programas. Bom, a TV Globo está instalada no Brasil desde os anos 60. O fato de a Globo ser tão poderosa, isso sim eu acho nocivo. Não se trata de monopólio, não estou querendo que fechem a Globo. E a Globo levanta essa possibilidade comparando o governo Lula ao governo Chavez. Esse exagero.


Você acha que a mídia ataca o Lula injustamente?

Nem sempre é injusto, não há uma caça às bruxas. Mas há uma má vontade com o governo Lula que não existia no governo anterior.

E o que você acha da entrevista recente do Caetano Veloso, onde ele falou mal do Lula e depois acabou sendo desautorizado pela própria mãe?

Nossas mães são muito mais lulistas que nós mesmos. Mas não sou do PT, nunca fui ligado ao PT. Ligado de certa forma, sim, pois conheço o Lula mesmo antes de existir o PT, na época do movimento metalúrgico, das primeiras greves. Naquela época, nós tínhamos uma participação política muito mais firme e necessária do que hoje. Eu confesso, vou votar na Dilma porque é a candidata do Lula e eu gosto do Lula. Mas, a Dilma ou o Serra, não haveria muita diferença.

O que você tem escutado?

Eu raramente paro para ouvir música. Já estou impregnado de tanta música que eu acho que não entra mais nada. Na verdade, quando estou doente eu ouço. Inclusive ouvi o disco do Terça Feira Trio, do Fernando do Cavaco, e gostei. Nunca tinha visto ou ouvido formação assim. Tem ao mesmo tempo muita delicadeza e senso de humor.

A música francesa te influenciou de alguma maneira?

Eu ouvi muito. Nos anos 50, quando comecei a ouvir muita música, as rádios tocavam de tudo. Muita música brasileira, americana, francesa, italiana, boleros latino americanos. Minha mãe tinha loucura por Edith Piaf e não sei dizer se Piaf me influenciou. Mas ouvi muito, como ouvi Aznavour.

O que me tocou muito foi Jacques Brel. Eu tinha uma tia que morou a vida inteira em Paris. Ela me mandou um disquinho azul, um compacto duplo com Ne me quitte pas, La valse à mille temps, quatro canções. E eu ouvia aquilo adoidado. Foi pouco antes da bossa nova, que me conquistou para a música e me fez tocar violão. As letras dele ficaram marcadas para mim.

Eu encontrei o Jacques Brel depois, no Brasil. Estava gravando Carolina e ele apareceu no estúdio, junto com meu editor. Eu fiquei meio besta, não acreditei que era ele. Aí eu fui falar pra ele essa história, que eu o conhecia desde aquele disco. Ele disse “é, faz muito tempo”. Isso deve ter sido 1955 ou 56, esse disquinho dele. Eu o encontrei em 67. Depois, muito mais tarde, eu assisti a L’homme de la mancha, e um dia ele estava no café em frente ao teatro. Eu o vi sentado, olhei pra ele, ele olhou pra mim, mas fiquei sem saber se ele tinha olhado estranhamente ou se me reconheceu. Fiquei sem graça, pois não o queria chatear. Ele estava ali sozinho, não queria aborrecer. Mas ele foi uma figuraça. Eu gostava muito das canções dele. Conhecia todas.

Falando de encontros geniais, você tem uma foto com o Bob Marley. Como foi essa história?

Foi futebol. Ele foi ao Brasil quando uma gravadora chamada Ariola se estabeleceu lá e contratou uma porção de artistas brasileiros, inclusive eu, e deram uma festa de fundação. O Bob Marley foi lá. Não me lembro se houve show, não me lembro de nada. Só lembro desse futebol. Eu já tinha um campinho e disseram “vamos fazer algo lá para a gravadora”. Bater uma bola, fazer um churrasco, o Bob Marley queria jogar. E jogamos, armamos um time de brasileiros e ele com os músicos. Corriam à beça.


Vocês fumaram um baseado juntos?

Não. Dessa vez eu não fumei.


E essa sua migração para escritor, isso é encarado como um momento da sua vida, já era um objetivo?

Isso não é atual. De vinte anos pra cá eu escrevi quatro romances e não deixei de fazer música. Tenho conseguido alternar os dois fazeres, sem que um interfira no outro.

Eu comecei a tentar escrever o meu primeiro livro porque vinha de um ano de seca. Eu não fazia música, tive a impressão que não iria mais fazer, então vamos tentar outra coisa. E foi bom, de alguma forma me alimentou. Eu terminei o livro e fiquei com vontade de voltar à musica. Fiquei com tesão, e o disco seguinte era todo uma declaração de amor à música. Começava com Paratodos, que é uma homenagem à minha genealogia musical. E tinha aquele samba (cantarola) “pensou, que eu não vinha mais, pensou”. Eu voltei pra música, era uma alegria. Agora que terminei de escrever um livro já faz um ano, minha vontade é de escrever música. Demora, é complicado. Porque você não sai de um e vai direto para outro. Você meio que esquece, tem um tempo de aprendizado e um tempo de desaprendizado, para a música não ficar contaminada pela literatura. Então eu reaprendo a tocar violão, praticamente. Eu fiquei um tempão sem tocar, mas isso é bom. Quando vem, vem fresco. É uma continuação do que estava fazendo antes. Isso é bom para as duas coisas. Para a literatura e para a música.

Tanto em Estorvo quanto em Leite derramado o leitor tem uma certa dificuldade em separar o real do imaginário. Você, como seus personagens, derrapa entre essas duas realidades?

Eu? O tempo todo, agora mesmo eu não sei se você esta aí ou se eu estou te imaginando (gargalhadas).

Completamente. Eu fico vivendo aquele personagem o tempo todo. Entrando no pensamento dele. Adquiro coisas dele. Você pode discordar, mas chega uma hora que tem que criar uma empatia ou uma simpatia. Você cria uma identificação. E alguma coisa no gene é roubado mesmo de mim, algumas situações, um certo desconforto, não saber bem se você é real, se você está vivendo ou sonhando aquilo. Por exemplo, agora que ganhamos de 10 a 1 (referência à pelada que jogamos três dias antes), eu saí da quadra e falei: “acho que eu sonhei. Não é possível que tenha acontecido” (risos).

Você é fanático por futebol?

Não sou fanático por nada. Mas eu tenho muito prazer em jogar futebol. Em assistir ao bom futebol, independentemente de ser o meu time. Quando é o meu time jogando bem, é melhor ainda, pois eu consigo torcer. Agora mesmo, no Brasil, tinha os jogos do Santos.

Mas eu vou menos aos estádios. Eu não me incomodo de andar na rua, mas quando você vai a alguns lugares, tem que estar com o cabelo penteado, tem que estar preparado para dar entrevistas. Aqui, eu estou dando a minha última (risos). Aqui, é exclusiva. Fiz pra Brazuca e mais ninguém. Eu quero ver o pessoal jogar bola. Então eu vejo na televisão. E quando não estou escrevendo, aí eu vejo bastante.


É verdade que um dia o Pelé ligou na sua casa, lamentando os escândalos políticos no Brasil, e disse “é, Chico, como diz aquela música sua: ‘se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão’”?

É verdade (risos). Eu falei “legal, Pelé, mas essa música não é minha”. O Pelé é uma grande figura. Nós gravamos um programa juntos. Brincamos muito. Conheci o Pelé quando eu fazia televisão em São Paulo, na TV Record, e me mudei para o Rio. Os artistas eram hospedados no Hotel Danúbio, em São Paulo. O mesmo onde o Santos se concentrava. Então, eu conheci o Pelé no hotel. E sempre que a gente se encontra é igual, porque eu só quero falar de futebol e ele só quer saber de música. Ele adora fazer música, adora cantar, adora compor. Por ele, o Pelé seria compositor.

E você, trocaria o seu passado de compositor por um de jogador?

Trocaria, mas por um bom jogador, que pudesse participar da Copa do Mundo. Um pacote completo. Um jogador mais ou menos, aí não.

Você ainda pretende pendurar as chuteiras aos 78 anos, como afirmou?

Não. Já prorroguei. Tava muito cedo. Agora, eu deixei em aberto. Podendo, vou até os 95 (risos).

O Niemeyer está com 102 anos e continua trabalhando. Aliás, não só trabalhando como ainda continua com uma grande fama de tarado (risos).

Ele me falou isso. Eu fui à festa dele de 90 anos e ele me disse: “o importante é trabalhar e ó (fez sinal com a mão, referente a transar)”. Aí eu falei “é mesmo?” e ele respondeu “é mesmo”.

Falando nisso, o Vinícius foi casado nove vezes. Você acha a paixão essencial para a criação?

Sem dúvida. Quando a gente começa – isso é um caso pessoal, não dá pra generalizar – faz música um pouco para arranjar mulher. E hoje em dia você inventa amor para fazer música. Se não tiver uma paixão, você inventa uma, para a partir daí ficar eufórico, ou sofrer. Aí o Vinícius disse muito bem, né? “É melhor ser alegre que ser triste… mas pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não”.

Quando eu falo que você inventa amores, você também sofre por eles. “E a moça da farmácia? Ela foi embora! Elle est partie en vacances, monsieur!”. E você não vai vê-la nunca mais. Dá uma solidão. Eu estou fazendo uma caricatura, mas essas coisas acontecem. Você se encanta com uma pessoa que você viu na televisão, daí você cria uma história e você sofre. E fica feliz e escreve músicas.

Pra finalizar. Se você fosse escrever uma carta para o seu caro amigo hoje, o que você diria?

Volta, que as coisas estão melhorando!

MAIS

A entrevista foi publicada originalmente na revista Brazuca, uma publicação bilíngue sobre cultura brasileira que circula em Paris e Bruxelas. A partir de 3 de maio, a degravação completa estará disponível no site de Brazuca. Também lá, é possível baixar em pdf, desde já, a edição completa de março-abril (inclusive com as fotos de Chico…)

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Pô, Celina, de novo?

A falta de tempo me faz resgatar uma velharia (e uma grande lição de vida…) de 11 de março de 2005.

O caso é que Celina Sjösted (35 anos), casada com o músico Ricardo Duna, autor da frase que dá título a este post, com dois filhos deste casamento e usando aliança — as revistas adoram deste detalhe — , é uma das poucas mulheres que garantidamente privaram com o mito, que teve músicas dedicadas a si, que trocou beijos e saiu vitoriosa do mar do Leblon de mãos dadas com o homem. Virou assunto nacional. A frase explica-se pelo fato de que é segunda vez que Ricardo — inteiramente deslocado do implacável papel de Ricardão — a pega com Chico. A primeira fora em 1998.

Hoje, chegando em casa, vejo uma revista estranha. Aqui só costumam entrar revistas de notícias ou culturais, mas hoje havia uma Contigo! É uma reles revistinha de fofocas de celebridades e logo vi a razão da compra feita pela Claudia: Chico estava na capa e, abaixo da foto, havia uma manchete mui benigna: “Marido quer de volta a mulher que Chico Buarque beijou”. Beijou? Só? Arrã. Não sei o que pensar sobre o assunto, abro a revista e acho a tal Celina até feínha, mas nunca se sabe — alguns feios surpreendem quando começam a se mexer ou falar. Rio ao saber que o maridão (44 anos) chama Chico (60) de “o Velho”; rio mais ao saber que o maridão deu entrevistas, sábado à tardinha, antes de apresentar seu show numa clínica geriátrica carioca. Pelo visto, o casal trabalha para a terceira idade. Quase dou gargalhadas ao saber que ele vendeu todos os seus discos para os velhinhos e para o pessoal de imprensa que foi ver sua performance. É a mais nova celebridade! Que maldade, Milton. Começo a folhear a revista e, mais à frente, leio outra frase marcante que parece ter vaga relação com o caso. Rubens Barrichelo declara: “Estou cansado de perder”.

Posso entender o fascínio que Chico exerce sobre as mulheres; afinal, parte deste fascínio é também exercido sobre mim. O cara é um gênio, é bom músico, é espetacular compositor, é escritor reconhecido, é bonito, é gentil, demonstra em sua obra conhecer as mulheres; está, pois, um passo adiante na evolução humana (não deve ter nem os dentes do siso) e foi com isto que o casal Ricardinho-Celina deparou-se. Celina viu à sua disposição o cara que está no topo da cadeia alimentar. Tremeu ao sonhar com aquele vozeirão dizendo-lhe: “Meu bem, me traz um copo d`água?”.

Eu sei. É páreo corrido. Não há como segurar. Quando o Chico quiser, será gol do Polytheama. A mulher precisa ser uma fortaleza católica para resistir — e mesmo os católicos tem de limpar a reputação no confessionário. Acho desnecessário o Ricardo ofender Chico Buarque chamando-o de velho, é patético blasfemar contra alguém que habita o Olimpo. Ele deveria falar apenas à Celina, deveria suplicar por seu retorno, explicando-lhe que a reconciliação é ecológica para alma e que ele e os filhos a perdoam e querem de volta. Faz isso, Ricardo, não seja burro. Depois, dê-lhe um longo beijo de língua bem na frente dos paparazzi. Será um momento lindo. E dê entrevistas, Ricardo, por favor; a gente precisa de assuntos deste tipo. É horrível só ouvir falar em tragédias. Quem dera trepar com a mulher do próximo, ops!, desculpem… Errata: quem dera que os problemas do país fossem a libido das celebridades e as infidelidades dos homens e das mulheres — dos outros, é claro.

A propósito, ainda há a expressão “mulher honesta” em nossa Constituição?


Se até Tom e Vinícius deitaram com Chico, por que Celina não deitaria?

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Os ateus são pessoas más?

Por Renato Sabbatini

Recentemente a Igreja Católica iniciou uma campanha cerrada contra o que denominou de “valores ateus” e suas supostas conseqüências (basicamente, coisas como ser a favor do aborto e do uso da camisinha e da clonagem de embriões). Um bispo brasileiro, exagerado, chegou a afirmar publicamente que “os ateus são pessoas más”, possivelmente porque muitos religiosos acreditam que a religião é a única fonte da moral. Logo…. ateus não têm moral. Mas não têm mesmo? Os ateus são em média mais imorais e maus do que os que têm religião? A evidência científica aponta que parece ser justamente o contrário… A Bíblia afirma, em Salmos 14:1, que “Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam abominação; já não há quem faça o bem”. Então serão os ateus insensatos ou tolos? Corruptos e abomináveis? Incapazes de fazer o bem? Quanto à questão das “abominações”, a evidência é incontestável. Um estudo feito em 1997 pela Federal Prison Board, dos EUA mostrou que enquanto que 75% da população carcerária americana se declara religiosa e crente em Deus, apenas 0,2% se declaram ateus ou agnósticos! (na população em geral eles já representariam cerca de 10%). O divórcio (um pecado, segundo o catolicismo, mas não segundo os protestantes) ocorre em 40% dos católicos americanos, 27% de evangélicos e apenas em 21% dos ateus… Ou seja, a crença em um pecado é inversamente proporcional à sua adoção… Além disso, não é preciso pesquisar muito na história para constatar que, em nome de valores religiosos, foram praticadas grandes mortandades, infindáveis guerras, horrendas atrocidades (como a Inquisição) e nefandos atos terroristas. Ou matar em nome de Deus não é uma constante insana da humanidade? Quem é mau, então? Numerosos estudos sociológicos têm demonstrado cabalmente que ateus, em geral, cometem menos crimes, respeitam mais as leis, e criam seus filhos com mais critérios morais e familiares do que a maioria dos que acreditam em Deus. Conclusão: não é preciso acreditar em Deus para ser moral e respeitador dos costumes e das regras sociais. Eu mesmo, por exemplo, sou agnóstico, criei meus dois filhos sem batismo, Deus ou religião, e podemos nos incluir tranquilamente entre as pessoas mais morais e sérias e praticantes do bem que eu conheço. Tolos? Veja só a lista dos “tolos” e “insensatos” que foram ou são ateus ou agnósticos: Albert Einstein, Charles Darwin, Stephen Hawking, Francis Crick, James Watson, Richard Feynman, Paul Dirac, Linus Pauling, Alfred Kinsey, Karl Popper, Carl Sagan, Edward O.Wilson, Marvin Minsky, Thomas Edison, B.F. Skinner, Marie Curie, Bertrand Russell, Noam Chomsky, Isaac Asimov, Sigmund Freud, Michel Foucault, Richard Dawkins, Steven Pinker, Daniel Dennett, Stephen Jay Gould, Steve Jobs, Thomas Jefferson, Denis Diderot, Auguste Comte, Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Karl Marx, Oscar Niemayer, George Bernard Shaw, Jorge Amado, Jorge Luis Borges, Gore Vidal, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Robert Frost, H.G. Wells, José Saramago, Salman Rushdie, Mark Twain, Arthur Clarke, Michael Crichton, Milan Kundera, Marcelo Gleiser, Drauzio Varella, Ernest Hemingway, Kurt Vonnegut Jr., Luis Buñuel, Ingmar Bergman, Charlie Chaplin, John Lennon, Woody Allen, Angelina Jolie, Jodie Foster, Marlon Brando, Christopher Reeve, Juliana Moore, Jack Nicholson, Larry King, Chico Buarque, Paulo Autran e muitos outros. A nata da nata. Quase 40% de todos os cientistas declaram não ter religião. O ateísmo é muito mais prevalente entre pessoas de maior escolaridade, intelectuais e autores, do que no resto da população. Exceção: políticos (isso deve ser o resultado da democracia, ou seja. o fenômeno de seleção pelo eleitorado religioso, ou então medo de declarar publicamente seus “valores ateus”, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez uma vez, e perdeu a eleição para prefeito de São Paulo). Não fazem o bem? Os três maiores doadores de dinheiro para causas boas e nobres, de toda a história (conjuntamente doaram mais de 70 bilhões de dólares), George Soros e Warren Buffet (financistas) e o fundador da Microsoft, Bill Gates, são ateus declarados. Meu ídolo científico, o físico alemão Albert Einstein, eleito pela revista Time como a Maior Personalidade do Século XX (e erroneamente citado como sendo religioso) escreveu uma vez sobre isso: “Se as pessoas são boas apenas porque têm medo de punições, e esperam uma recompensa, então elas formam um grupo realmente lamentável“.

E disse tudo!

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Rock and roll

Sou uma pessoa que quase só ouve música erudita mas que não vê o resto do mundo com superioridade, coisa tão comum entre meus pares… Ouvi rock somente até a adolescência e ainda tenho, em vinil, um bom acervo de “dinossauros”, o qual muitas vezes provoca ohs e uaus nos amigos de meu filho. Ele, Bernardo, hoje com 18 anos, costumava reclamar de mim por ter abandonado o rock que ainda ama e queria que eu voltasse à minha adolescência pondo só Beatles, Led Zeppelin, Deep Purple, Rolling Stones e mesmo o medonho Pink Floyd pós-Dark Side no CD player — ele é um voraz consumidor de música e ficava carente entre seus muitos amigos por não encontrar, entre eles, outros que fossem tão “cultos” musicalmente.

Eu ficava pasmo de ser tão atualizado. Afinal, Bernardo e seus amigos ouviam embevecidos as novidades do tio Milton: Quadrophenia (1973) do Who, Fragile (1972) do Yes, A Night at the Opera (1976?) do Queen, e mais uns 100 bolachões inéditos para a petizada.

A cena era assim. Em pleno 2000 e alguma coisa, Bernardo se atirava sobre meus velhos vinis e desencavava uns Alice Cooper, uns The Who (legal!), uns Queen (bom), Gentle Giant (que voz horrorosa a daquele cantor) e até Slade. Por outro lado, sou casado com uma mulher que ama as óperas, principalmente as de Mozart e Rossini, e que tem baixa tolerância aos grupos de som mais agressivo e que começa a berrar (sério!) quando pressente a iminência de Pink Floyd, pois foi traumatizada por seu irmão que ouvia The Wall cinco vezes ao dia — era deprimido, claro. (A propósito, comprei The Wall no dia em que foi lançado no Brasil e o vendi com lucro dois dias depois. Era muita adolescência). E, para piorar, ouço insistente a voz de meu pai que sempre me dizia que era importante não perder a contemporaneidade.

O único acordo possível seria o de ficar ouvindo Tom Jobim, Chico Buarque, Elis Regina, bebop e esquecer meu pai. Neste caso, todos ficariam felizes, mas o espectro se limitaria muito e estaríamos definitivamente fora das paixões de uns e outros. Ou seja, não dá.

Sou um cara de gosto musical eclético e até desejo ser tolerante, então só fecho a porta para as músicas absolutamente imbecis — ou seja, quase tudo –, além de boleros, alguns tangos cantados e reggaes, que não suporto. Por exemplo, ontem, fiquei bem feliz ouvindo com a Claudia a ópera L´Italiana in Algeri de Rossini. Porém, para aumentar a confusão sonora da casa, nos últimos dias fiz pesados esforços com roqueiros contemporâneos tais como Beck, Radiohead, Oasis e outros. Estes três são artistas ou grupos de produção muito boa e civilizada, porém… como são convencionais! Será que não há mais para onde ir? Cadê a vanguarda? Será que a indústria a sufocou?

Beck escreve as mesmas letras de gosto duvidoso que quase sempre caracterizaram o rock, mas é um grande inventor de melodias. Já o Radiohead se preocupa demais com a estrutura dos arranjos e perde a fluência. É um bom grupo que tem o problema de repetir-se ad nauseaum. O Oasis é um epígono dos Beatles e do T. Rex, mas quem se importa? Acho que a canção Cigarettes and Alcohol, do CD Definitely Maybe, é o máximo que se pode exigir de um rock — poucas vezes me deparei com uma letra que combinasse tão bem com música e interpretação.

Mas, olha, não adianta, todos eles parecem um pouco aprendizes (podemos incluir Pearl Jam aí também). Não há no horizonte nada parecido com Beatles, Stones, Led, Who, etc. E não apenas uma questão de postura, trata-se de qualidade musical mesmo. Escrevi toda esta coisa confusa porque ontem recebi o seguinte torpedo do Bernardo:

Tchê, descobri um puta álbum dos Stones, Sticky Fingers. Tu deve conhecer.

Imagina se não! Tal fato foi uma espécie de involução… (*) De resto, ele está descobrindo Charlie Mingus (Aleluia!), Ligeti (três Ave-Marias), Shostakovich (dez Pais-Nossos) e, compreensivelmente, não sabe onde botar Wynton Marsalis na história do jazz. Miles Davis sabia bem onde enfiá-lo. Mas, já que o assunto é rock, volto ao tema para finalizar: chego à conclusão de que os dinossauros ainda dominam esta área do mundo. O céu do rock está lotado de pterodáctilos.

(*) Ato falho de origem controlada.

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Leite derramado, de Chico Buarque

Leite derramado é um bom romance. Eu gosto muito de Chico Buarque, adoraria cobri-lo de elogios, mas acho que sua evolução como romancista sofreu um tropeço. Vejam bem, o romance é perfeito, bem escrito, poético, tem humor, lirismo e amargor na medida certa, utiliza inteligentemente temas já abordados em livros clássicos da literatura brasileira, ou seja, é muito bem realizado. Só há problema nele: não é relevante como Budapeste. Assemelhando-se mais a uma colagem muito bem feita, não avança como poderia, apenas mostra, mostra, mostra.

Quando comecei a ler o livro, logo pensei: “Puxa, mas isso aqui é a música O Velho Francisco em prosa!”. Fui ler as reportagens e Chico confessa ter utilizado sua canção como base para a história. Era um bom começo.

Eulálio d’Assumpção, o protagonista, é um velho centenário que, como Brás Cubas, passa a contar sua vida ora para a enfermeira, ora para a filha, ora para sua mulher que o abandonou há mais de setenta anos… A perspectiva é a mesma do célebre defunto de Machado de Assis, pois Eulálio é um morto-vivo. A narrativa em primeira pessoa é errática como se esperaria de alguém com mais de 100 anos, privilegiando os acontecimentos mais remotos à memória recente, muito mais volátil nos velhos.

É claro que Eulálio é uma metáfora do Brasil, é claro que ele traz consigo todo o racismo e as aspirações de grandeza dos personagens da Velha República, é óbvio que ele não compreende muito do que acontece a sua volta, é evidente a relação entre Matilde e a Capitu de Machado de Assis, assim como a de Eulálio e Brás Cubas, é ululante o fato de que Chico mostra muito bem a decadência da elite brasileira do começo do século XX; então, se o livro tem todas estas qualidades, onde estão os defeitos. Ora, seu problema é ser limitado do ponto de vista ontológico. Eu sei que é pedir demais, porém, se analisarmos o que Faulkner fez nas 40 primeiras páginas de O Som e a Fúria ao penetrar na cabeça de um retardado mental, talvez possa explicar que, em minha opinião, faltou Eulálio e sobrou costumes e sociologia no mosaico de Chico, faltou psicologia e sobraram os artifícios de uma bela prosa. Às vezes, Eulálio é lógico demais e só no final do capítulo fantasia. Penso que um personagem tão confuso não poderia criar outros personagens com recortes tão claros e sucintos quanto os que consegue Eulálio, antes de voltar a seus delírios. A estratégia de Chico fica clara demais e isto implica em certa deselegância. Então, minha crítica mais dura é direcionada a um protagonista que não funciona como deveria. Sim, é grave. Não mata o livro, mas é grave.

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Em 2004, publiquei uma resenha curtíssima sobre Budapeste. meu entusiasmo era outro logo após a leitura:

Budapeste é um grande livro. Belo e engenhoso. O recurso do duplo já foi utilizado por mestres como Poe, Dostoiévski, Borges, Saramago, Philip Roth, E.T.A. Hoffman, Chamisso, etc., mas não reaparece gasto nas mãos de Chico. Aliás, Chico Buarque é músico ou escritor? Anos atrás, a resposta seria simples; hoje a pergunta não faz mais sentido. Ele é os dois, é duplo. O personagem principal, José Costa, é um talentoso ghost writer que, ao retornar de um congresso de profissionais desta área fantasmal da literatura, aterrissa inesperadamente em Budapeste por problemas no avião que o levaria ao Brasil. Hospeda-se num hotel e lá ouve a língua húngara — que é, dizem, respeitada até pelo diabo –, pela qual apaixona-se, resolvendo voltar logo que puder à Budapeste a fim de aprendê-la. A partir deste início simples, Chico parece disposto a reescrever o segundo movimento do Concerto para Orquestra de Béla Bártok, no qual os instrumentos surgem em duplas: dois fagotes, dois oboés, dois clarinetes, etc. O movimento chama-se Gioco delle coppie (Jogo das Duplas) e serve bem para caracterizar o que encontramos em Budapeste. Será meramente casual o fato de Bartók ser um compositor húngaro e ter vivido em Budapeste? Além de José Costa ser uma espécie de duplo profissional quando escreve em lugar de outros, vão aparecendo duas cidades (Rio e Budapeste), duas línguas, duas mulheres, mais duas cidades (Buda e Pest), duas crianças, e, ao final, temos mais dois livros escritos por ghost writers, um deles creditado a Zsoze Kósta. O jogo regido por Chico é de tal forma satisfatório como deleite intelectual, que torna ociosos os muxoxos deste que vos escreve, que gostaria de vê-lo gravando CDs com músicas inéditas.

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Flagrantes FLIP 2004 II – A noite que chamei Chico Buarque de bobão

Na última noite em que estaríamos na FLIP, sábado, marcamos um jantar no restaurante mais fino de Parati. Assim, faríamos uma despedida formal e provisória do grupo multiestadual, tendo como ganho secundário a chance de nos vingar de todas as refeições “mais ou menos” que fizemos na cidade.

Cheguei sozinho ao restaurante Porto. Todo mundo — incluindo meus amigos — parecia estar buscando encontros, autógrafos ou simplesmente olhar para Chico Buarque ou Paul Auster. Dois dias antes, a Claudia havia reservado uma mesa para 8 pessoas numa discreta saleta do restaurante. Posso jurar-lhes que ela falou o seguinte: marcando um jantar no melhor restaurante, no último dia e na sala mais escondida, tínhamos boas chances de cruzar com algum dos notáveis da FLIP… Assim que sentei, os donos do estabelecimento vieram falar comigo. Pensei que eles fossem comentaristas do meu blog, tal era a recepção que estava recebendo. Parecia um rei. Depois de alguns minutos, descobri o motivo real.

— Reservamos a mesa ao lado para o Chico Buarque. Talvez o Paul Auster também venha. O Chico pediu que sua presença aqui não fosse divulgada; gosta de tranqüilidade e já está a caminho.
— Sem problemas, só acho que ele vai demorar. Deve estar autografando Budapeste para uma fila que vai até o morro lá atrás.
— Não, ele não vai autografar livros hoje, está quase chegando.

Prometi formalmente que não deixaria nossas mulheres saltarem sobre ele; saltaria sozinho. A Claudia e a Stella chegaram e avisei-lhes que estaríamos na presença do semideus. Minutos depois, entra Chico Buarque acompanhado de sua filha (Sílvia?) e de amigos. Quando alguém se juntava a nós, era curioso apontar para a mesa ao lado e observar a cara de pasmo da criatura. O sangue errava de veia e se perdia, só podia. A mesma ficava balbuciando que estava atrás de um autógrafo e ele… aqui… Às vezes eu olhava rapidamente para a mesa ao lado e ficava pensando no que aquele homem já produzira e em como eu o admirava. Voltava a olhar para a frente e sentia falta de minha irmã — como ela adoraria estar naquele jantar! — e de gente como a Mônica do Crônicas e a Andréa do Literatus, que escreveram maravilhas sobre os 60 anos do músico e escritor. Veio-me também à lembrança uma frase bem prosaica de uma amiga, ouvida há muitos anos: “Meu Deus, se eu visse o Chico Buarque na rua, ele não ia nem ver de onde eu vim”. Achei graça.

O vinho que bebemos era positivamente espantoso – um Merlot argentino da Argento, penso eu – e isto fez com que ficássemos alegres, muito alegres. Bebemos muito. Calma, não aconteceu nada demais, apenas começamos a nos divertir, a contar casos e a rir muito alto. Acho que o ambiente, o vinho, a companhia aqui e ao lado, a FLIP, os livros sobre a mesa, Parati e a proximidade da despedida (provisória, repito) deixou-nos muito apressados para falar e felizes, felizes. Algo semelhante acontecia na mesa de Chico e, repentinamente, a conversa deles nos interessou.

Chico começou a elogiar Débora Secco. Em meio a gritos de seus amigos — todos falavam ao mesmo tempo — disse que ela era linda, maravilhosa, gostosa e tesuda. Onde esconder sua enorme euforia com a atriz? Os homens de sua mesa concordavam e teciam outros elogios, alguns de gênero merecidamente hardcore, enquanto as mulheres olhavam sorridentes esperando pacientemente aquela lamentável crise passar. Porém, havia uma exceção. Sua filha não parecia nada satisfeita com o que afirmava papai e, após muxoxos outros, disse no volume máximo:

– Pai, acho que você saiu direto da Idade do Lobo para a Idade do Bobo.

Todos riram, lá e aqui. Chico jogava o corpo para trás, descontrolado. E então aconteceu a piada. Ela não tem nada de engraçado, ainda mais por escrito. É uma piada de oportunidade, de bêbado, daquelas que quebram a expectativa e o leve nervosismo de estar… bem, com Chico Buarque. Enquanto ríamos do que dissera a filha, eu apontei indiferente o polegar para a mesa deles, voltei-me e disse reservadamente para nosso grupo:

– Bobão!

O curto veredito teve efeito excepcional. Foi uma explosão interminável de gargalhadas. Ainda vejo os rostos contorcidos da Eugênia, da Stella, da Laura, da Sue e da Ivone. E Chico, bobão que é, ficou olhando para nós, querendo adivinhar o motivo para tanta alegria. Era ele mesmo. Um companheiro de trabalho que acaba de ler este texto e é o melhor piadista que conheço, afirma que a piada é até engraçadinha, mas que pode tornar-se irresistível sob o efeito do vinho e da pseudo-irreverência diante da raríssima companhia de um gênio. Chico, meu guri, desculpe, a partir de agora você é nosso bobão.


Toda a vulgaridade de Débora Secco. Te perdoo por te traíres, Chico Bobão.

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Flagrantes Flip 2004 I – A noite em que Mônica Salmaso me beijou

Porque a Camila Pavanelli escreveu esta maravilha, revisei e ressuscitei esta historinha escrita há cinco anos às pressas no Aeroporto de Guarulhos, antes do embarque de volta para Porto Alegre.

Poderia iniciar estes flashes pelo jantar perfeito que a Stella nos ofereceu assim que chegamos à São Paulo. Ou seria melhor começar pela noite em que chamei Chico Buarque de “bobão” (*) ? Ou talvez por algumas das palestras? Não, prefiro começar pelo beijo que ganhei de Mônica Salmaso.

Mas antes quero saudar a FLIP. Foi uma longa sessão de oxigenação, gentileza e bom humor. Havia eletricidade no ar. As palestras de Sérgio Sant`Anna + Luiz Vilela, a de Miguel Sousa Tavares (conhecido em Portugal por MST), a Oficina com Milton Hatoum e a palestra de Chico + Paul Auster foram esplêndidas. Conheci pessoalmente muitos blogueiros. Porém, perdi a chance de conhecer meu querido amigo Guiu Lamenha, cujo blog acabou em setembro. Falamo-nos ao telefone e nosso encontro deu errado por culpa minha.

Bom, vamos ao beijo de que tanto me orgulho. Descobrimos que Mônica Salmaso faria um recital com Paulo Bellinati na noite de quinta-feira, às 23h. O local seria o pequeno Paraty Café. Depois de um rápido jantar, fomos para lá. O local estava lotado, cheio, cheíssimo. Havia apenas duas mesas livres; uma para o grupo de Caetano Veloso, outra para o de Arnaldo Antunes. Não havia o que fazer. Porém, na porta estava o tradicional aglomerado de chorões suplicando ao porteiro:

— Não tem um lugarzinho? Nada? Nenhum? Fico em qualquer canto…
— Não! Agora só entrarão convidados da FLIP.

Dei umas voltas por ali com a Claudia, enquanto a Stella desistia e ia às compras. Estávamos quase conformados quando vi que o grupo de suplicantes da porta era encabeçado agora por 3 belas moças. Era nossa chance. Obviamente, aquelas entrariam depois de seduzirem o porteiro — ele já estava todo risonho… — e, quando elas entrassem, eu daria um jeito de entrar junto. Peguei a Claudia pela mão e fomos passando entre as pessoas até a porta. Estava num dilema, pois minha intenção era a de entabular conversação com uma das três moças, a mais bonita, a da frente, mas estava junto com a Claudia, que pode tornar-se ciumenta. Acho que ela entendeu meu plano e comecei a conversar com a desconhecida. A conversação com ela era tão fácil quanto observá-la e, pela forma com que o porteiro já estava seduzido por seus lábios vermelhos e carnudos, era iminente nosso ingresso. Ela suplicava para entrar. Entramos os cinco juntos, enquanto as moças davam abaninhos para o terrível e incorruptível Cérbero (que nos dizia todo feliz para ficarmos bem quietinhos em pé no balcão…).

Lá dentro, pedi para a Claudia falar com um carioca que tinha — não sei como — dois lugares livres em sua mesa. Ela se vingaria de mim e obteria importante ganho secundário. Ela começou dizendo que tínhamos vindo de longe, de Porto Alegre, aquele papo. Ele, outro risonho, perguntou para que time ela torcia e ela lhe respondeu que era gremista. Ele replicou bestamente dizendo que “detestava” colorados… Então ela, de forma muito temerária, declarou que seu marido era colorado e me apresentou ao homem. Ele deu uma risada dando-me os parabéns pela goleada que seu Botafogo tinha imposto ao meu Inter e nos cedeu o lugar. É claro que ficamos todos amigos. A cariocada é sensacional — todo mundo ali era amigo e o que todo mundo queria era a Mônica! Já instalado, telefonei para a Stella.

— Stella, eu e a Claudia estamos aqui dentro.
— Como é que é? Me esperem que eu já vou entrar!

Três minutos depois, sinto alguém tocando meu ombro. Era a Stella e, atrás dela, toda uma cambada. Com sua autoridade natural de psicanalista “holandesa e voadora” que tudo sabe, com seus 1,80m de altura, tinha dito ao porteiro:

— Estamos com o grupo de Milton Ribeiro. Ele nos está aguardando aí dentro.
— Estejam à vontade, senhoras. Entrem, por favor.

Disse-me ela que havia muitos Famosos Alguéns na cidade e que, afinal, eu era o famoso blogueiro Milton Ribeiro!

O recital começou. Meu Deus, toda a malandragem utilizada ganhou um sentido consistente. Que cantora, como ela cresce no palco, como fica bonita, que intérprete! Sem dúvida, é a maior cantora brasileira. Ficamos hipnotizados pela hora e meia daquele recital perfeito. Soubemos depois que servirá de base para um CD da Biscoito Fino.

Após o bis, resolvi comprar o único CD da Mônica que não possuía. Fiquei na fila de autógrafos e, quando chegou minha vez, achei muito longos os segundos ao pé da deusa. Fiquei angustiado, ela não parava de escrever a dedicatória no CD. Então, comecei a falar sobre os contrastes de sua maravilhosa interpretação de “Véspera de Natal” de Adoniran Barbosa, sobre o show, sobre determinada frase que começava pateticamente feliz e terminava pesadamente triste e como ela conseguira nos passar isso, etc. Na verdade, não lembro bem o que disse sobre a música de Adoniran (só lembro que estava inspirado, meus 7 leitores, muito inspirado), mas sei que ela parou, levantou os olhos lentamente para mim, abriu um sorrisão que quase me fez dobrar os joelhos e se dependurou no meu pescoço, dizendo “Você notou? Que lindinho que você é!”. Só depois do beijo estalado na bochecha e de muita conversa é que a musa acabou a dedicatória. Até agora estou nas nuvens.

(*) Esclarecimento Importante: Sábado, em Parati, nós jantamos numa mesa ao lado daquela em que estava Chico Buarque e seus amigos. Eu o chamei de “bobão” em resposta a uma observação feita em voz altíssima por sua filha. Só que minha resposta foi dada em voz baixíssima, só para nossa mesa. Quem sou eu para ofender Chico, mesmo que de brincadeira? No próximo post conto esta história de cabo a rabo, certo?

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Chico Buarque

Tinha 9 anos quando meu pai trouxe para casa o recém-lançado vinil “Chico Buarque de Hollanda”. Na capa, duas fotos de Chico – uma sorridente e outra sério – sobre fundo azul contínuo. Ali havia “A Banda”, “Olê Olá”, “Pedro Pedreiro”, “Você Não Ouviu”, “Tem Mais Samba”, “A Rita”, “Juca” e mais 5 músicas. Tal como os discos dos Beatles que ouvia com minha irmã, era um vinil de que se podia ouvir todas as canções. Não havia nada de segunda linha. Depois, continuamos a acompanhar a carreira de Chico comprando cada um de seus discos, até os italianos. Como muitos brasileiros, posso cantar muitíssimas músicas dele; faz parte da vida e da memória de nosso país e, quando meu pai faleceu, uma das poucas coisas que fiz questão de pegar foi este vinil.

Dia desses, vi numa comunidade do orkut pessoas escolhendo suas letras preferidas de Chico. É complicado — a audição ou leitura da obra de Chico mais parece antologia de grande autor do que obras completas –, são muitas letras notáveis e cada um só podia escolher três. A escolha passa necessariamente por nossas preferências pessoais e pelas idiossincrasias de cada um… Bem, eu meti a colher escolhendo “Eu te amo”, “Flor da Idade” e “Moto-contínuo”.

Depois, deitado em busca de sono, decidi que gostava mais da letra de “Moto-contínuo”. Em primeiro lugar por causa da perfeita combinação com a música de Edu Lobo, em segundo lugar por ser uma música sobre um assunto raro: a fé do homem e a fé no homem. Quem chamou minha atenção para esta letra foi meu amigo Alejandro Borche Casalas, pois, quando a ouvi pela primeira vez no vinil “Almanaque”, fiquei tão hipnotizado pela música de Edu que deixei de lado a letra, que pareceu-me confusamente dedicada a alguma musa de Chico… Engano crasso. Alejandro, num final de noite de 1982, perguntou-nos: sobre o que fala esta música? Não lembro de minha resposta nem das dos amigos. Lembro que ninguém disse que era sobre a fé. Como Alejandro é uruguaio, esclareceu-nos: é sobre a fê; disse assim mesmo: fê.

“Eu te amo” é uma escolha lírica e “Flor da Idade” é sua antítese; talvez seja a música mais sacana de Chico. Sacana no sentido de sacanagem mesmo.

Abaixo, transcrevo as letras de minhas preferidas para meus 7 leitores. Vocês concordam? Discordam?

Moto-Contínuo

Um homem pode ir ao fundo do fundo do fundo se for por você
Um homem pode tapar os buracos do mundo se for por você
Pode inventar qualquer mundo, como um vagabundo se for por você
Basta sonhar com você

Homem também pode amar e abraçar e afagar seu ofício
Porque vai habitar o edifício que fez pra você
E no aconchego da pele na pele, da carne na carne
Entender que o homem foi feito direito
Do jeito que é feito o prazer

Homem constrói sete usinas usando a energia
Que vem de você
Homem conduz a alegria que sai das turbinas
De volta a você
E cria o moto-contínuo da noite pro dia se for por você

E quando o homem já está de partida
Da curva da vida ele vê
Que o seu caminho não foi um caminho sozinho porque

Sabe que o homem vai fundo e vai fundo e vai fundo
se for por você.

Eu te amo

Ah, se já perdemos a noção da hora,
Se juntos já jogamos tudo fora,
Me conta agora como hei de partir?

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios,
Rompi com o mundo, queimei meus navios,
Me diz pra onde é que inda posso ir…

Se nós, nas travessuras das noites eternas,
Já confundimos tanto as nossas pernas,
Diz com que pernas eu devo seguir…

Se entornaste a nossa sorte pelo chão,
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu…

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu…

Como, se nos amamos feito dois pagãos,
Teus seios inda estão nas minhas mãos,
Me explica com que cara eu vou sair?

Não, acho que estás te fazendo de tonta,
Te dei meus olhos pra tomares conta,
Agora conta como hei de partir…

Flor da Idade

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor
Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixa um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor
Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha

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