Nega Lu – Uma Dama de Barba Malfeita ergue um brinde a uma das grandes figuras de Porto Alegre

Nega Lu – Uma Dama de Barba Malfeita ergue um brinde a uma das grandes figuras de Porto Alegre
A capa da edição da Libretos

Nega Lu – Uma Dama de Barba Malfeita é um livro de Paulo César Teixeira que reconstitui a trajetória de Luiz Airton Farias Bastos (1950/2005), homossexual negro que ganhou notoriedade na cena cultural e boêmia da capital gaúcha entre os anos 1970 e 90 como personagem irreverente e inovadora, capaz de antecipar algumas das conquistas sociais e comportamentais que só viriam a se consolidar na segunda década do século XXI.

A Nega Lu surgiu nos bancos escolares do Colégio Infante Dom Henrique, por volta de 1970, época em que Luiz Airton adota o codinome e assume publicamente sua homossexualidade. A despeito da condição de “preto, pobre e puto” (como se autodefinia, com amarga ironia), logo acha lugar na paisagem urbana ao frequentar com estilo espalhafatoso bares, vernissages, shows e concertos no Salão de Atos da UFRGS. “Aonde a gente ia, lá estava a Nega Lu”, escreveu a jornalista Tânia Carvalho. Nega Lu estudou na Aliança Francesa, aprendeu balé clássico com a russa Marina Fedossejeva, ex-bailarina do Kirov (atual Marinski, de São Petersburgo), radicada na capital gaúcha após fugir da Segunda Guerra Mundial.

Cada vez mais integrada à cena cultural, a Nega Lu se destacou nos anos 1970 como solista dos Corais da Ufrgs  e da Ospa. “Com essa voz, pode desmunhecar à vontade”, sentenciou o regente Nestor Wenholz ao aprová-la no teste vocal. O timbre grave e retumbante irá pontuar também, na década seguinte, suas performances desbocadas e dilacerantes como crooner da banda de blues Rabo de Galo.

Foto: Reprodução

Apesar disso, o palco mais apropriado ao estilo da Nega Lu sempre foi o balcão de fórmica do bar Copa 70, de onde ela puxava um coro de bêbados, marcando o ritmo com o estalar dos dedos, entoando clássicos do jazz, como Summertime, de George Gershwin, até o dia clarear. Nos anos 1990, participou das primeiras Paradas Livres promovidas pela militância gay na capital gaúcha, ao mesmo tempo em que trabalhava como garçonete do bar Doce Vício, um dos pontos mais concorridos do circuito LGBT da cidade.

Escrito a partir do depoimento de cerca de 70 pessoas, o livro aborda ainda as paixões platônicas, os romances arrebatadores e a ciranda de amores casuais da Nega Lu, além de recompor os hábitos e costumes das famílias do núcleo negro do Menino Deus, bairro em que Luiz Airton nasceu e sempre viveu. A obra agrega imagens do acervo pessoal do biografado e de ambientes artísticos e boêmios de seu tempo para oferecer ao leitor um panorama completo da trajetória desta personalidade alegre e anticonvencional, que se transformou em ícone afetivo de sucessivas gerações da capital gaúcha.

Conversei com Paulo César Teixeira, autor de Nega Lu – Uma Dama de Barba Malfeita. Paulo César é um especialista em reconstituir ambientes urbanos a partir de personagens que refletem as transformações globais e delas são protagonistas em âmbito local. Antes, Esquina Maldita, sobre o gueto boêmio de artistas, hippies e ativistas políticos de Porto Alegre nos anos 1960 e 1970, lançado pela Libretos em 2012. Publicou também Darcy Alves – Vida nas Cordas do Violão, biografia do violonista Darcy Alves (falecido em 2015), parceiro de Lupicínio Rodrigues.

Foto: Reprodução

Sul21 – Como é que surgiu a ideia de fazer o livro sobre a Nega Lu?

Paulo César Teixeira – Bom, primeiro eu a conhecia e, quando divulgava o Esquina Maldita e falava na Nega Lu era um frenesi, provocava uma reação muito grande. Ela era muito carismática, muito popular.

Sul21 – E onde tu a conheceste?

Paulo César Teixeira – Eu a conheci no apartamento de um amigo ali na Duque de Caxias no final dos anos 70. Ele estudava história na UFRGS, eu fazia jornalismo e em seu apartamento se reuniam muitos estudantes da UFRGS e o pessoal da esquina. Para mim, que tinha 17, 18 anos aquilo foi uma pós-graduação em contracultura. Uma dessas personagens, é claro, era a Nega Lu, que era amiga de infância dele. Mas nunca fui muito próximo dela, até porque havia uma diferença de idade.

INFÂNCIA Pg. 24

Nas tardes quentes de carnaval, as famílias abastadas do Menino Deus levantavam poeira das ruas com os filhos aboletados nos capôs dos automóveis. Até 1955 sem calçamento, a Rua Almirante Gonçalves fazia parte do roteiro seguido de perto pelos moradores das casas humildes. Estes, porém, faziam sua própria festa. Da Rua Barão de Teffé, desciam blocos humorísticos e tribos carnavalescas. Airton de Souza Bastos – pai da Nega Lu –, a quem os amigos apelidaram de Mondongo, por causa do beiço grande, empunhava a bandeira da tribo Os Bororós. “Dançava muito bem, não tinha pra ninguém!”, elogia Iracema. Excitado com a agitação, o menino preto – com sandálias de couro, camiseta e fralda plástica, tudo na cor branca – pulava de alegria na calçada ao ver o pai como um dos protagonistas da folia. Do portão, atenta, a mãe vigiava os passos agitados da criança junto aos dois pés de cinamomo que enfeitavam a frente da casa. Lá pelas tantas, animava-se a enroscar serpentinas junto à cintura e em torno da cabecinha do pequeno. Pronto: estava completa a primeira fantasia da Nega Lu!

Sul21 – Ela morava no Menino Deus, não? A fama da Nega Lu começou no bairro?

Paulo César Teixeira – Ela nasceu e morreu na mesma casa, numa rua atrás do supermercado Nacional. Tudo começou lá. Então o livro não é apenas sobre a figura folclórica da bicha louca dos anos 70. Ela encarnava isso, incorporava isso e até alimentava isso. Mas eu queria ver a pessoa por trás. Por exemplo, ninguém conhecia a família dela. Sabiam que ela morava com a avó, que, aliás, passou sua vida morando com a avó, mas ninguém sabia quem era o pai, a mãe, os irmãos. Ela teve uma irmã de leite, que era vizinha de porta e que era filha de um cara importante do Carnaval de Porto Alegre, o Rubem Santos. E essa senhora, a irmã de leite, gosta de escrever, escreve poesia. E a filha dela, Marguerite, que é cantora, me mandou um e-mail uma vez: “Olha, se tu quiser fazer um livro da Nega Lu, fala com a minha mãe, ela pode te ajudar”. Essa foi minha pista.

Foto: Reprodução

Sul21 — Foi tua principal fonte para os anos de formação da Nega Lu?

Paulo César Teixeira – Sim. Essa senhora me escreveu um depoimento numa folha de almaço, escrita a mão, uma coisa linda, onda contava um monte de histórias de infância da Nega Lu. Quem era o pai, a mãe, onde morava, o que fazia quando era criança, na adolescência, nas reuniões dançantes, quando assumiu a homossexualidade. E essa senhora… irmã de leite por quê? Porque a mãe da Nega Lu, que morreu jovem de tuberculose, era uma pessoa doente, não tinha leite. Aí eu entrevistei essa senhora, a mãe de leite da Nega Lu. O livro começa contextualizando o núcleo negro do Menino Deus. Hoje, se a gente fala no bairro Menino Deus, tem uma ideia de um bairro de classe média. E lá existiu e ainda existe um núcleo de famílias negras de descendentes de escravos que se estabeleceram ali. Tem muita macumba, muito carnaval de rua, tudo isso da influência negra. Através dessa senhora, puxo a primeira parte do livro sobre os hábitos e costumes das famílias negras do Menino Deus e de onde surgiu a Nega Lu.

NA ESCOLA Pg. 41

Embora os relatos deem conta de que Luiz Airton não parecia se ofender com as brincadeiras dos colegas a respeito de seu jeito afeminado – “Ele sabia levar as situações com inteligência e respondia sempre com bom humor”, afirma, por exemplo, a professora Beatriz Figueiredo, de Biologia –, é provável que, intimamente, não fosse assim. Ao Jornal do Nuances, ele deixa evidente que, embora não reagisse, sentia-se incomodado:

Na escola, era muita repressão. A gurizada me chamava de marreca, margarida, mulherzinha e por aí afora. Eu não gostava nada, mas no meu tempo de infância não reagia às provocações.

Sul21 – Onde é que ela estudou?

Paulo César Teixeira – Ela estudou num grupo escolar, o Emílio Massot, e aí foi para o Presidente Roosevelt. Depois estudou no Infante Dom Henrique, que era nos fundos do Presidente Roosevelt. A maioria das pessoas fazia o primário no Roosevelt e o ginásio no Infante. Conheci vários colegas da Nega Lu, gente que conviveu com ela. Foi deste modo que eu consegui o perfil dela como estudante.

Sul21 – E ela já era estigmatizada?

Paulo César Teixeira – Eu entrevistei colegas, professores e a diretora. Todos dizem que ele dava a volta por cima. Tenho certeza que era uma figura querida. Então, quando foi para o curso clássico [correspondente ao Ensino Médio, só que voltado às Ciências Humanas], ele assumiu a homossexualidade e mais, assumiu o codinome de Nega Lu. Há uma entrevista dele, para o jornal Nuances nos anos 90, onde ele conta um pouco do colégio.

Foto: Reprodução

Sul21 — Ele participava de festivais de música, não?

Paulo César Teixeira – Sim, ele começou a participar dos festivais de música, porque cantava bem e estávamos bem naquela época dos festivais da Record. Os festivais estavam na moda, cada colégio tinha o seu e os vencedores disputavam uma final no Araújo Vianna. Ele se destacava. O Zé Flávio, dos Almondegas, por exemplo, conheceu a Nega Lu como cantor. Ele cantava mesmo, dava recitais à capela no pátio do colégio, durante o recreio. E vai para a noite, para a esquina maldita e transforma-se numa pessoa conhecida da cidade.

Sul21 – E ele vivia como? Como se sustentava?

Paulo César Teixeira – Bom, ele sempre viveu de biscates. A avó dele sempre segurou tudo. Segurou sempre. Eles não eram miseráveis, mas eram de uma classe média baixa. Os homens da família faziam serviços hidráulicos, o ofício passava de pai para filho. Mas ele era diferenciado. Não sei como, ele estudou francês na Aliança Francesa. Pesquisei na instituição e não existe nenhum registro dele, mas várias pessoas confirmam que ele estudou lá e falava francês muito bem. Uma hipótese é que ele teria estudado como aluno ouvinte. Outra possibilidade, é que o Tatata Pimentel o tenha auxiliado. Tatata era professor do Infante e grande amigo da Nega Lu. Ele (ou ela) tinha a noção de que, por ser negro e pobre, precisava ter cultura, conhecimento, bagagem para poder ser alguém na vida. Ele ensinou isso aos sobrinhos, filhos da irmã dele. Um deles me disse que ele ensinava que ‘’a gente mora num bairro de playboy, então, pra tu não ser rebaixado por eles, tem que aprender política, tu tem que saber música, tu tem que saber o que responder”. Ele aplicava isso para ele mesmo, tanto é que aprende francês.

PROFESSOR TATATA Pg. 41

A Nega Lu não era a única figura que escapava furtivamente ao padrão convencional de masculinidade no Infante Dom Henrique. O professor de francês e inglês Roberto Valfredo Bicca Pimentel, o Tatata Pimentel (falecido em 2012), desfilava no areal do pátio com casacos de cor lilás, antecipando o estilo irreverente com que logo se tornaria conhecido do público como apresentador de televisão. Quem sabe encorajado pelo exemplo de Tatata – nos anos seguintes, eles se tornariam amigos, frequentando juntos redutos da comunidade gay como a boate Flower’s –, Luiz Airton decidiu assumir publicamente sua homossexualidade na escola.

Sul21 — E os biscates?

Paulo César Teixeira – Ela só teve dois empregos com carteira em toda vida. O primeiro deles como cantora de coral. Ela ficou uns oito anos no coral, até o final dos anos 70, e aquilo era uma grana importante para ela, de pouco mais que um salário mínimo. Ao mesmo tempo, ela foi estudar balé clássico com a Marina Fedossejeva. Tem até fotos com ele bem esbelto, dançando. A Marina não cobrava o curso de homens que fossem dançar com ela. Naquela época, o preconceito era muito grande, então ela não cobrava porque precisava deles. As escolas de dança de Porto Alegre disputavam a tapa os homens, porque havia poucos. A turma da Marina fazia espetáculos todo final de ano no Salão de Atos da UFRGS e a Nega Lu participou de alguns deles, mas alguns alunos e ex-colegas me disseram que a russa era racista e tinha uma má vontade muito grande com a Nega. Só o aguentava porque precisava. Outros dizem que não, que ela não era assim. Mas por que a Nega Lu não seguiu carreira no balé clássico se dizem que ela era maravilhosa, que dançava muito bem? Bem, nesta questão ela se dizia uma vítima do racismo.

Foto: Reprodução

TESTE VOCAL Pg. 83

Em março de 1971, Luiz Airton compareceu ao Instituto de Artes, local de testes e ensaios do Coral da UFRGS. Quando o viram chegar, alguns rapazes se dirigiram ao regente Nestor Wennholz:

Maestro, tem um sujeito aí que deseja cantar com a gente, mas é muito desmunhecado, vai ser um desastre, disse o porta-voz dos incomodados.

Deixa comigo, vou fazer um teste bem difícil, respondeu Nestor, achando graça da situação.

Inesperadamente, o rapaz afeminado saiu-se muito bem ao repetir os sons mais graves do piano. Em seguida, o maestro acelerou a melodia para que ele reprisasse as frases musicais, o que o candidato fez com precisão e desenvoltura. “Agora, vou fazer o teste final”, anunciou Nestor. E largou a nota mais aguda de tenor, que a Nega Lu ricocheteou com naturalidade. O regente virou-se para os moços que antes haviam feito troça e agora, boquiabertos, espiavam pela porta entreaberta da sala:

Aprovado. Com essa voz, pode desmunhecar à vontade.

Foto: Reprodução

Sul21 — E tinha a bebida.

Paulo César Teixeira – Certamente, quem conhecia a Nega Lu sabia que ela bebia muito, não tinha cuidado com o corpo. Ela ficava bebendo até 5 da manhã. Como é que ia ter físico para dançar balé? Então, nos anos, 70 é isso. Ela era bailarina, cantora de coral e frequenta a Esquina Maldita. Nos anos 80, quando acaba o coral, ela vai ser cantora de blues numa banda chamada O Rabo de Galo. E, durante três anos, foi a estrela da banda e fez horrores. Brigava, apaixonou-se por um músico e queria casar com ele. Se ela não gostava de alguém na plateia, xingava. Era uma pessoa difícil e adorável, que não se ajudava. Depois do Rabo de Galo, ela vai dar aulas de dança e etiqueta na escola do Carlos La Porta, que é outro capítulo do livro. Ele se diz o primeiro manequim masculino no Rio Grande do Sul. Desfilou com a Yeda Maria Vargas, foi galã de rádio teatro na Farroupilha. Depois foi pra São Paulo, trabalhou numas novelas da TV Tupi e voltou pra Porto Alegre a fim de fundar uma escola de modelos aqui na Rua da Praia.

BALCÃO DE FÓRMICA Pg. 50

Certa vez, a Nega Lu beijou a boca de um namorado dentro do Alaska, o que enfureceu o dono do bar, Alfredo Ribeiro, habitualmente um sujeito calmo, que mal saía de trás do caixa, mas que naquela noite apanhou a garrafa de cerveja mais próxima com a intenção de estourá-la na cabeça de Luiz Airton. Foi impedido pela esposa Diaci: “Tu vais estragar a tua vida por causa deste louco?”. Após o incidente, a Nega Lu evitou botar os pés no Alaska durante algum tempo. Em contrapartida, no Copa 70, ela se sentia em casa, principalmente depois que o proprietário Carlos Rocha abaixava a cortina de metal, por volta de três horas da madrugada. Ela, então, subia no balcão de fórmica para cantar Summertime, clássico de George Gershwin, carro-chefe do repertório que improvisava para fãs e clientes retardatários até quase o nascer do sol.

Sul21 — Aulas de etiqueta?

Paulo César Teixeira – Sim, o La Porta convidou a Nega Lu para ser professora de dança e boas maneiras. Eu entrevistei uma aluna dele e ela me disse que ele ensinava como comer, como cruzar as pernas, etc. Ele ficou lá de 80 a 98, até fechar a escola. Mas sem carteira assinada. Sobrevivia desta forma. Depois que ele sai do La Porta, vem a última fase profissional dele, que é como garçonete do Doce Vício, um bar GLS que tinha ali perto do Colégio Militar, na Vieira de Castro, onde hoje tem um pub. Ela era garçonete, atendia no balcão, era barman, e porteira… É o segundo emprego dela com carteira assinada. Mas aí começam os problemas de saúde.

Foto: Reprodução

A DANÇA DA DEGOLA Pg. 152

Habituada a exibir seus dotes artísticos, a Nega Lu protagonizou uma das cenas mais hilárias do Doce Vício ao subir numa mesa para oferecer à plateia um show particular de dança. Ela própria contou depois aos amigos o que se sucedeu:

Gente, as pessoas gritavam “Lu! Lu! Lu!”. Eu achei que estava arrasando. Lá pelas tantas, me dei conta de que gritavam para me avisar que a pá do ventilador de teto estava quase me degolando.

Sul21 – Como é que ela se vestia?

Paulo César Teixeira – Ela se vestia como homem. Bem, na banda da Saldanha se vestia de mulher. Mas normalmente se vestia como homem. No Doce Vício, ela começa a dormir sentada. É demitida. O final é triste. A avó morre e ela passa a pedir dinheiro emprestado para comprar remédios. Vira batuqueira. Muito dizem que era uma forma de ganhar um dinheiro. Era cardíaca e obesa. Outros dizem que morreu de aids. Sua irmã me deu o telefone do médico dela. Fui falar com o cara, um infectologista, especialista em aids. Recebi toda a ficha médica. A causa mortis foi um edema agudo do pulmão, mas o médico afirmou que foi por consequência de problemas cardíacos. Ela mal conseguia andar. Porém, quando foi internada por causa do coração, fizeram o exame de HIV e deu negativo. E ela andava pelo corredor da Santa Casa dizendo aos conhecidos que ‘’Quem dá por amor não pega aids’’.

Foto: Reprodução

Sul21 — E os amores?

Paulo César Teixeira — Ele era um cara extremamente volúvel, um caçador noturno. Teve amores platônicos. Ele era apaixonadíssimo pelo Leo Ferlauto, depois pelo Careca da Silva. Mas nunca chegou a morar junto com ninguém, sempre morou com a avó. Ele namorava um alemão que era um agrônomo. Ele queria levar a Nega Lu para a Alemanha e ela não quis por causa da vó, que já estava velha. Também foi convidada a morar no Rio de Janeiro nos anos 80, tinha acertado um teste numa escola de balé, mas também desistiu por causa da avó.

PÚBERES RAPAZES Pg. 125

Nunca pairou dúvida de que Luiz Airton fosse um homossexual absolutamente convicto – “Você nasceu no corpo errado”, disse-lhe uma amiga de infância, e ele acreditou piamente –, mas essa constatação não diminui a complexidade da questão. Mary Mezzari assegura que a Nega Lu também se relacionou com mulheres: “Apesar de ser bicha mesmo, não bissexual, a Nega iniciou sexualmente muita gente, inclusive algumas garotas. Mas, naquela época, na hora do pega pra capar, rolava qualquer negócio”. Outro mito a ser desfeito é o de que, nas relações sexuais com homens, exercia um papel exclusivamente passivo. “As pessoas se enganavam com ela. Na hora do sexo, era muito ativa”, comenta Lucrécia. Uma das lendas que a cercam – citada por Lineu Cotrim – dá conta de que, imediatamente após desvirginar púberes rapazes, ela ritualisticamente soltava o bordão:

Vai, agora és mulher!

E a Ospa finalmente tem uma Casa

E a Ospa finalmente tem uma Casa
Foto: Maí Yandara / Ospa
Foto: Maí Yandara / Ospa

No último sábado, fui assistir ao concerto inaugural da Casa da Música da Ospa. Fiquei muito impressionado com o belo resultado obtido em tão pouco tempo. O que nos salta aos olhos e aos ouvidos de cara: a sala é muito bonita, o local é adequado, as cadeiras e o colorido das madeiras lembram a Sala São Paulo e o teto baixo parece ter sido bem resolvido do ponto de vista acústico. Talvez apenas os instrumentos de madeira tenham sofrido um pouco com a cortina de cordas logo à frente.

É claro que era uma noite especial, nervosa e muito emocionante. Afinal, após várias décadas difíceis de nomadismo, a orquestra finalmente teria uma sede própria. A sequência de discursos e leituras foi massacrante — duraram mais de uma hora –, houve muito estresse nos últimos dias e horas a fim de finalizar a obra, chovia forte lá fora, o público de Marchezan City chegava lentamente, tudo atrasou, a orquestra esfriou e o concerto não foi lá essas coisas, mas jamais deixaria de dar todos os descontos citados.

Foto: Maí Yandara / Ospa
Foto: Maí Yandara / Ospa

Imaginem que não havia ingressos disponíveis, só que a chuva era tal que muita gente optou por permanecer em casa. Creio que a lotação não ultrapassou os 80% da capacidade do teatro de 1100 pessoas. Soube que o segundo concerto (o de domingo)  teve resultado artístico muito melhor, além de um público mais entusiasmado e afeito à música, diferente das autoridades, jornalistas e penetras indiferentes de sábado.

O programa não era do meu agrado, apesar de coerente. Uma obra de Arthur Barbosa, Mba’epu Porãcujo tema era a formação musical do sul da América, a ultra norte-americana Rhapsody in Blue, de George Gershwin com o excelente pianista Cristian Budu, e a Sinfonia Nº 9, Novo Mundo de Dvořák, mistura de música checa com uma tentativa de fazer música norte-americana em 1893. Ou seja, não era uma coisa de louco, mas tem gente que ama este repertório.

Foto: Maí Yandara / Ospa
Foto: Maí Yandara / Ospa

Só que ontem nada disso interessava. Afinal, estávamos dentro de uma raríssima construção de nosso estado feita exclusivamente para a cultura. Há quantos anos não se fazia uma obra dessas para o setor patinho feio do Estado? Além da sala de concertos, haverá camarins, café, salas de estudos, saguão, entre outros espaços. Tudo para a música. É claro que faltam ainda algumas coisas, porém a sala já é superior a tudo o que há disponível para a orquestra em Porto Alegre. E para o público também.

A Ospa, o diretor artístico (e herói) Evandro Matté — principal líder desta odisseia –, o superintendente da Ospa Rogério Beidacki e o engenheiro acústico Marcos Abreu estão de merecidíssimos parabéns. Nós também.

A construção, que é a primeira Sala Sinfônica de Porto Alegre, produzirá muita felicidade. A Casa está de pé e será um dos principais pontos de cultura de nosso combalido Rio Grande.

No último sábado, vimos a barbárie dar um passo atrás.

Foto: Augusto Maurer
As cadeiras | Foto: Augusto Maurer
Foto: Augusto Maurer
O teto | Foto: Augusto Maurer

Nós sabemos onde esteve Barbara Hannigan na última sexta-feira à noite

Nós sabemos onde esteve Barbara Hannigan na última sexta-feira à noite

HANNIGAN1-superJumboBarbara Hannigan é uma conhecida personagem deste blog. Já a mostramos escrevendo, regendo, cantando e atuando. Já postamos três de seus discos no PQP Bach, mas o que ela fez anteontem em Lyon foi algo novamente digno do furacão de afinação, timbre, presença e talento que ela é. Dá vontade de gritar “Parem as máquinas!” a fim de que todos possam vê-la em ação. Ela regeu e cantou Girl Crazy Suite (sobre I Got Rhythm, de George Gershwin) e tudo foi registrado em vídeo. Este foi visto mais de 370 mil vezes e está no ar há pouco mais de 24h. Com vocês, Barbara Hannigan:

Mas temos mais. Neste Tiny Desk Concert, promovido pela npr music, ela canta primeiro Empfängnis (Concepção), de Alexander Zemlinsky, depois a belíssima Licht in der Nacht (Luz na Noite), de Alma Mahler, Nur wer die Sehnsucht kennt (Apenas um sabe dos anseios), de Hugo Wolf, e finaliza com Schenk mir deinen goldenen Kamm (Dê-me seu pente dourado (?)), de Arnold Schoenberg.  O pianista é seu velho — em todos os sentidos — colaborador Reinbert de Leeuw.

Infatigável na divulgação da música erudita e óperas dos séculos XX e XXI, Hannigan emprestou sua voz a estreias mundiais de mais de 80 peças. A voz é simplesmente linda — cintilante e amanteigada em todos os registros, com notas altas cristalinas que emergem do ar carregadas de emoção. Não acreditam? É só ouvir.

Ospa com programa jazzístico, poético e zombeteiro

Ospa com programa jazzístico, poético e zombeteiro
Cristina Capparelli mandou bem e sobreviveu
Cristina Capparelli mandou bem e sobreviveu ao concerto que “matou” Gershwin

Com o tempo, a gente vai aprendendo. Os concertos regidos por Manfredo Schmiedt obedecem à seguinte lei de formação: são bem trabalhados, minuciosos, seguros, além de ousados e equilibrados. Não foi diferente ontem. A Ospa rendeu muito frente a boa parte da comunidade musical de Porto Alegre, lá presente para saudar a pianista Cristina Capparelli, solista do Concerto em Fá, de George Gershwin.

O programa começou com Evocação de Augusto Meyer, peça do crasso porto-alegrense Armando Albuquerque, amigo de Meyer, o bom poeta e melhor ensaísta que colocou o mulato Machado de Assis no lugar onde está merecidamente até hoje, ou seja, no Olimpo das letras nacionais. Albuquerque é grande compositor. Tenho seus discos Mosso e Uma ideia de café — títulos sujeitos às flutuações de uma memória vagabunda — e afirmo que são boníssimos. Evocação é um peça curta e muito interessante, com a surpresa de vermos o pianista André Carrara arranhando bastante bem um acordeon durante um solo com a percussão. O diálogo poético entre Meyer e Albuquerque foi um início promissor de concerto.

Não tem problema, ele sabia disso. O norte-americano George Gershwin tinha uma cultura musical limitada, mas era um imenso melodista. Escreveu centenas de canções, sendo uma espécie de Schubert com seus mais de 500 lieder negros. Certo preconceito dos representantes da alta cultura de sua época hesitava em considerá-lo “erudito”. Não foi o caso do grande Maurice Ravel, admirador da música e da fortuna de Gershwin. Há muitas piadas a respeito. Ora, o Concerto em Fá é bem conhecido. Foi uma encomenda da Filarmônica de Nova Iorque, estreada pelo próprio compositor ao piano em 3 de dezembro de 1925 no Carnegie Hall em Nova Iorque. O curioso é que, em fevereiro de 1937, Gershwin tocava o Concerto Em Fá com a Filarmônica de Los Angeles quando sofreu um desmaio. Levado ao hospital, recebeu o diagnóstico de tumor cerebral. Morreu cinco meses depois, aos 39 anos, no auge.

Porém, Cristina Capparelli saiu caminhando após o concerto — não foi necessária a intervenção dos maqueiros — e espero que esteja tão bem quanto esteve como solista. Excelente interpretação do concerto de Gershwin. Gostei muito de todos na interpretação do segundo movimento (Adagio — Andante com moto). Os sopros soaram tristes, dignos de uma big band de Duke Ellington, com destaque para o trompetista Tiago Linck, secundados pelo trio de clarinete, flauta e trompa, pilotados por Augusto Maurer, Klaus Volkmann e Israel Oliveira.

A diversão da noite veio por conta de Jacques Ibert e seu Divertissement. Raros “Divertimentos” são tão alegres e zombeteiros quanto este. Para orquestra reduzida, tem início agitado e atlético ao estilo do melhor Hindemith, boa escrita para sopros — e os atuais sopros da Ospa sempre respondem bem às demandas mais complicadas –, citações da Marcha Nupcial, a tangos e tem no coração uma incrível valsinha, bem burlesca, além de um solo anárquico, talvez inspirado no Bloco de Lutas, a cargo de André Carrara. Mais um show dos sopros numa música tão boa e feliz que nem parece francesa.

A Sinfonietta Prima de Ernani Aguiar, finalizou com dignidade o belíssimo programa. Depois de um severo primeiro movimento, temos um lastimoso Lento assai, seguido de uma magoada Marcha-rancho que vai desembocar num Finale daqueles que parecem formar uma mola nas cadeiras de parte da plateia, o que leva algumas pessoas a imediatamente erguerem-se e aplaudirem. E foi feito para isso mesmo.

Então, quem foi à Reitoria da Ufrgs não se arrependeu.

O célebre gaiteiro André Carrara -- pão de queijo e carne de sol.
O célebre gaiteiro André Carrara — pão de queijo e carne de sol | Foto: Augusto Maurer