Porto Alegre é estranha, às vezes nos oferece muitas coisas, até demasiadas; outras vezes nos deixa na mão. Ontem à noite, ao mesmo tempo, João Donato estava se apreesentando no Teatro São Pedro e a OSPA levava Bach e Mozart à Igreja das Dores. Acho que fiz uma boa escolha, mas balancei seriamente quando a violinista Elena Romanov colocou em seu Facebook belas fotos (incrivelmente feitas num celular) dos músicos ensaiando. Além disso, coisa rara nos templos porto-alegrenses, elogiou a acústica da Igreja.
Porém, fui ver o Donato. Tudo muito simples como deve ser na sala de sua casa ou como seria na nossa. Um palco de resto vazio com um piano no centro. Uma luz, vinda de cima, iluminava o instrumento e a cadeira a sua frente. Só. Então, o músico de 76 anos e excelente forma entrou no palco meio desajeitado sob seu habitual boné — bem daquele jeito que têm os tímidos quando são as estrelas — , fez uma saudação rápida, explicou a primeira música e realizou as primeiras mágicas. Iniciou com extrema simplicidade tocando valsas compostas em sua infância (uma delas para a namorada Lili, de oito anos, composta quando o autor tinha sete) e depois partiu para seu enorme repertório, digamos, adulto.
Donato tem uma trajetória curiosa. Chegou aos EUA antes do pessoal da bossa nova e rapidamente se enturmou com o pessoal do jazz — latino e americano. Foi amigo do grande Horace Silver, de Stan Kenton e parecia que ia estabelecer-se como um grande pianista de jazz. Até os anos 70, Donato compunha apenas temas instrumentais e costumava sair por aí com trios, quartetos e quintetos. Acompanhavam cantores ou formavam uma banda de jazz latino. Se não me engano, foi sei irmão quem o convenceu a procurar parceiros para colocar palavras em suas melodias. Logo, sua imaginação melódica o transformou em parceiro de João Gilberto (sim, ele escreveu letras para Donato), Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, etc.
Desta forma, agregando ou não palavras a sua arte, Donato foi parceiro de Paulo Moura a Fernanda Takai, chegando até Marcelo D2 e Black Eyed Peas… Sim, o cara é um baita instrumentista, arranjador e compositor e há trabalho para ele em qualquer lugar do mundo. O show de ontem, Solo, por exemplo, surgiu de um projeto no Japão que fazia pianistas excursionarem pelo país em apresentações solo. Donato é o cara perfeito para isso. Mas não é o cara perfeito para dizer que é. Poderia até ser um bobo arrogante, pondo na frente da gente seu currículo; porém, com absoluta simplicidade, simpatia e atenção, só diz e apresenta o que são, naquele momento, ele e sua música. OK, fiquei apaixonado…
Apesar da relação de canções constantes do programa, João de forma alguma a obedece. Ele acaba uma, ergue a cabeça, lembra de outra, conta sua história e mostra como é. Às vezes, canta. Outra coisa que me fascinou foi seu comportamento “de músico”. Ele mesmo diz “ah, essa aqui era assim, mas agora ganhou nova introdução e mudei umas coisinhas; vocês sabem que as músicas evoluem, vão mudando, né?”. Então, seu show não têm nenhuma regra e aposto que o próximo será diferente, assim como as coisas que conta.
Gosto de shows com luz de serviço e alguma improvisação. Prefiro deixar de fora o que não é música. E essas coisas com roteiro certinho e decoradinho me irritam. Vou aos teatros para ver o músico e o ser humano que mora nele. Não tenho nada a reclamar de João Donato, não me decepcionei de modo algum.