A magia de Tristram Shandy

A magia de Tristram Shandy

Por Vicente Battista
Traduzido por este blogueiro

Laurence Sterne, por Sir Joshua Reynolds

Uma parte significativa da grande literatura inglesa foi escrita por irlandeses — Oscar Wilde, William Butler Yeast, Bram Stoker, George Bernard Shaw, James Joyce e Samuel Beckett são um exemplo perfeito. Nenhum deles alguma vez negou a sua dívida para com Laurence Sterne, um compatriota nascido em Clonmel, condado de Tipperary, um século antes. Esta dívida não se limita exclusivamente aos autores irlandeses: o francês Denis Diderot, para escrever Jacques, o fatalista”, baseou-se na construção paródica, na rejeição das convenções narrativas e na figura do anti-herói proposta por Sterne que, aliás, foi contemporâneo de Diderot: ambos nasceram em 1713. Dostoiévski em O Idiota narra como o príncipe Mishkin conta a Yelizabeta e suas três filhas a história de uma pobre mulher humilhada em uma aldeia suíça que é literalmente retirada de Viagem Sentimental pela França e Itália, de Sterne. A sua influência também pode ser percebida em autores tão diversos como ETA Hoffmann, Victor Hugo e Charles Dickens. “Eu li Sterne. É admirável”, confessou Tolstói, e traduziu-o imediatamente para o russo; uma admiração que Goethe também não escondeu. Nietzsche considerou que “ele é o escritor mais livre de todos os tempos e o grande mestre da incompreensão… este é o seu propósito, ter razão e não estar certo ao mesmo tempo, misturar profundidade e bufonaria… É preciso render-se à sua fantasia benevolente, sempre benevolente.” Schopenhauer sustentou que os melhores romances de todos os tempos foram: Dom Quixote de La Mancha, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Julia, ou a Nova Heloísa e A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, Cavaleiro. A influência de Laurence Sterne não parou, ultrapassou línguas e continentes. Descobriremos que a escrita destemperada, cáustica e insubordinada nos textos de Julio Cortázar, José Lezama Lima e Guillermo Cabrera Infante e até Borges — a estratégia de apresentar autores e livros inexistentes como verdadeiros é típica de Sterne.

A contracapa de Tristram Shandy, que Planeta publicou em 1976, com prólogo de Víctor Sklovski e tradução de Ana María Aznar, traz uma gravura que supostamente seria o rosto de Laurence Sterne. A ironia que se percebe em seu olhar e a expressão mordaz que seus lábios refletem dão uma medida completa do personagem. Ao ver aquela gravura e ao ler seu romance, tende-se a pensar que sua biografia também poderia ser parte de uma farsa, outro truque do próprio Sterne. Porém, os dados são verdadeiros: ele nasceu em 24 de novembro de 1713, numa pequena cidade do condado de Tipperary, no sul da Irlanda. Estudou em Cambridge e em 1738, aos 25 anos, foi ordenado sacerdote da Igreja da Inglaterra. Em 1741 casou-se com Elizabeth Lumley, com quem, nas palavras de Alfonso Reyes, “não soube manter uma relação cordial”. Em 1760 obteve o vicariato de Coxwold, no norte da Inglaterra. Um ano antes, ele havia começado a publicar Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”. Os nove livros que hoje compõem a obra foram publicados, os dois primeiros em 1759 e os restantes sete ao longo dos oito anos seguintes. Sterne morreria alguns meses depois.

Começou a escrever tarde e morreu cedo. Sua vida como escritor não durou mais que nove anos, mas foi tempo suficiente para forjar um romance que criou uma nova forma de narrar a partir da paródia. Em 1760, ele publicou Mister Yorick’s Sermons, um volume no qual compilou os excêntricos sermões que proferiu como vigário na Igreja de Coxwold. Em 1767, sob o título Cartas de Yorick para Eliza, publicou a correspondência que mantinha com sua amante Eliza Draper. Tanto para os sermões quanto para as cartas de amor, ele escolheu o nome do padre Yorick, um dos personagens de Tristram Shandy e por sua vez uma espécie de alter ego do próprio Sterne. Não é por acaso que seu nome era Yorick, como o bobo da corte que Hamlet evoca no quinto ato do drama de Shakespeare. Um mês antes de morrer, apareceu A Sentimental Journey through France and Italy, que alguns consideram ser o epílogo de Tristram Shandy.

Admirador confesso de Cervantes, Rabelais, Swift, Pope e Locke, a influência de cada um deles foi essencial para que Sterne construísse uma obra-prima que, em suas quase quinhentas páginas, antecipa muitos dos recursos narrativos da vanguarda literária de final do século 19. Século 19 e início do século 20, desde peculiaridades tipográficas: duas páginas  inteiramente pretas no capítulo 36 do livro terceiro e os capítulos 18 e 19 do livro nono completamente em branco, até capítulos que consistem em uma única frase ou a prévia do monólogo interior que Joyce desenvolveria em Ulisses um século e meio depois.

Pouco depois do aparecimento dos dois primeiros livros, The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman  tornou-se um sucesso, embora não para todos: o prestigiado Samuel Johnson destacou que o romance ignorava quase todas as regras gramaticais. “Senhor, você não sabe inglês”, disse ele a Sterne, e quando Sterne, sarcástico, reconheceu que era efetivamente ignorante dessa língua, Johnson, definitivamente, declarou: “nada extravagante pode durar”. Samuel Johnson é considerado o melhor crítico literário de língua inglesa de todos os tempos. É claro que mesmo os grandes críticos às vezes cometem erros.

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Lendo ‘O Fim’, de Karl Ove Knausgård

Lendo ‘O Fim’, de Karl Ove Knausgård

Estou lendo O Fim, de Karl Ove Knausgård. É um romanção de 1056 páginas. Estou lá pela 430. Faz umas 50 páginas que ele iniciou uma furiosa incursão ensaística. Parece que a coisa tem mais 300 páginas. Não gosto.

Se os livros de ficção trazem teses, prefiro que estas sejam demonstradas por situações e impasses. As situações podem falar e creio que são elas que mais arranham a realidade. Além disso, filosofia em excesso me chateia, não tenho muita inteligência para ela e preferiria até voltar a estudar matemática. Falo sério.

Neste momento, Knausgård afasta- se tanto da história que conta quanto Musil faz em seu calhamaço-mor O Homem Sem Qualidades. Acho que é roubar no jogo ficcional, ainda mais após Thomas Mann demonstrar como ficção, personagens e filosofia podem se entrelaçar, como os personagens podem representar ideias, como Dostô também fazia em O Idiota e Os Irmãos. Saudades de Settembrini, Naphta e Míchkin.

Mas sou um cara dedicado e vou tentar atravessar as 300 páginas sem pensar em outra coisa.

Importante: eu ADOREI os 5 primeiros volumes da hexalogia. Resolvi encrencar no último…

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Atrás do balcão da Livraria Bamboletras (IV)

Atrás do balcão da Livraria Bamboletras (IV)

Hoje, no início da tarde, chegou um cliente de uns 40 anos que jamais tinha lido Dostoiévski. Descrevi rapidamente os temas de cada um dos cinco maiores romances do russo — Os Irmãos Karamázov, O Idiota, Crime e Castigo, Os Demônios e O Adolescente. Ele empilhou todos. Perguntou sobre a tradução de Paulo Bezerra (editora 34) e eu repeti os elogios que minha mulher, russa e grande leitora, tinha feito. Depois pediu Tchékhov. Falei sobre A Dama do Cachorrinho e Enfermaria N° 6. Ele empilhou mais esses. Passou a Bulgákov. E ele acabou acrescentando O Mestre e Margarida à pilha ou montanha (mágica?). E me disse: “Agora vou ter que escolher”. Pegou mais alguma coisa que não vi, hesitou dois segundos e decidiu.

— Quer saber de uma coisa? Vou levar tudo!

Não sei se a beleza salvará o mundo, mas acho que a leitura facilitará a vida dele na crise.

Fiquei feliz por ele. Imaginem que ele vai ler aquilo tudo PELA PRIMEIRA VEZ. E graças à Bamboletras.

P.S. — Perguntamos se algum era para presente e a resposta foi “Não, nenhum”.

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Modesta reflexão sobre a “arte” de ver filmes

Modesta reflexão sobre a “arte” de ver filmes

Dia desses, em questão de minutos, entraram em meu esquecido Feedly duas críticas acerca do filme argentino O Cidadão Ilustre, de Gastón Duprat e Mariano Cohn. Uma tinha sido publicada domingo e outra segunda-feira. A do domingo era constrangedora. A de segunda-feira era excelente. O fato da primeira ser contrária ao filme não significa nada, há críticas devastadoras que demonstram extrema compreensão de quem viu a obra, assim como é normalíssimo vermos elogios que mal tocam sua superfície. Meus 59 anos me mandam dizer que, quem não sabe ver filmes, habitualmente não sabe ver peças de teatro, e pior, não sabe interpretar livros. Sim, o pacote parece vir instalado completo, sem personalizações, à exceção do caso da música, que merece outro post.

Ontem, apesar da chuva, caminhei bastante pela rua, e pude pensar sobre as armadilhas que os alguns autores modernos exigem de seus leitores-expectadores. Mesmo um filme aparentemente simples como Cópia Fiel, está cheio de armadilhas para serem destrinchadas por um expectador que não seria mais um mero receptor e sim um intérprete que tem de trabalhar um pouquinho para entender o filme. No caso do citado filme de Kiarostami, o quebra-cabeça começa pelo título do filme. O nome original está em italiano, Copie Conforme. Em italiano Copie significa Cópia, mas Coppie é Casal, enquanto Conforme pode ser Fiel ou Conformado. É muito mais do que um trocadilho idiota, tem tudo a ver com o filme.

Refleti principalmente sobre o cinema porque ele é a arte mais pública e comum que temos. É difícil de se encontrar com alguém que leu há pouco exatamente o livro que a gente quer comentar. Já com os filmes é simples. Como estão em cartaz, todos os meus amigos viram O Cidadão Ilustre ou Perdidos em Paris. Dá para trocar ideias. O cinema é a grande cultura pública de nosso tempo.

O problema de certa crítica é não causado pela falta de inteligência, mas antes de falta de vivência ou pura desatenção para com a coisa artística. Lembrei dos ensaios de Bakhtin sobre Dostoiévski e de como O Idiota passou a figurar automaticamente ao lado de Os Irmãos Karamázovi como meu livro preferido de Dostô — sempre acompanhado do primeiro que conheci (a primeira vez a gente nunca esquece), Crime e Castigo. Quando li o que escrevera Bakhtin, tive que voltar a O Idiota e pensar que o título referia-se a alguém como eu… Hum… Ontem, enquanto caminhava, ri sozinho ao lembrar que Marcelo Backes cometera EM LIVRO o erro de deixar por escrito que eu seria o melhor leitor não-profissional que ele conhecera. Acho que dou a impressão de ser alguém mais inteligente do que sou. Que siga assim…

Mas avancemos: considerando aquele comentarista constrangedor e pensando que praticamente todos os grandes cineastas realizam/realizaram trabalhos sobre a linguagem, gente como ele está a ponto de dizer que — para citar apenas os vivos — Sokúrov, Kusturica, von Trier, Lynch, os irmãos Cohen, Moodysson, Sorrentino, Hartley, Polanski, Vinterberg, Haneke, P. T. Anderson são ruins, pois abusam de situações que representam outras.

Não é um assunto que me faça morrer, o que escrevo é uma reflexão vagabunda que é, para mim, nada mais do que uma curiosidade. É que quando li a primeira crítica me pareceu que o cara estava decididamente em outro mundo, numa faixa própria de esquizofrenia e estupidez. Será que ver certos filmes requer alguma especialização?

O cidadao ilustre

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXI – Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXI – Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski
Capa de Os Irmãos Karamázov da Editora 34
Capa de Os Irmãos Karamázov da Editora 34

É complicado escrever uma simples resenha de todo um mundo. Pois o que Dostoiévski realiza em Os Irmãos Karamázov é exatamente o que Mahler pretendia fazer com suas sinfonias, colocar todo um mundo dentro delas. Acredito que ambos tenham conseguido.

Há vários planos de leitura do livro. Pode-se ler os Karamázov como um romance de suspense — quem matou o velho Fiódor? –, ou filosófico — o capítulo do Grande Inquisidor, Deus, os problemas morais –, ou psicológico — o parricídio, os vários conflitos, o duplo de Ivan e Smerdiakóv, as várias interpretações dos pensamentos dos personagens. E, céus, deve haver outro planos de leitura para este tremendo romance. Mas vou tentar um mínimo de organização.

A ideia de criar este drama ocorreu a Dostoiévski em 1874, mas o leitmotiv foi-lhe dado ao acaso, cerca de trinta anos antes. Quando preso na Sibéria, Dostoiévski tinha um colega chamado Ilinski, Dmitri Ilinski. Alegre, fanfarrão, sempre despreocupado, ele negava ter sido o autor do crime pelo qual estava na prisão: Ilinski teria assassinado o próprio pai, Nikolai. A história é a seguinte: numa pequena cidade russa, pai e filho se detestavam, brigavam publicamente, não sentavam na mesma mesa, etc. Para piorar, o filho bebia e estava sempre metido em discussões e lutas físicas, além de ser perdulário. Devia para meia cidade e era detestado. Para piorar, o amigo de Dostô tinha avisado a todos na cidade que mataria o pai na primeira chance que tivesse. O pai chamava-lhe de facínora, não lhe dava mais dinheiro e fazia de conta que ele não existia. Um dia apareceu morto, assassinado, mas Dmitri negava o crime, apesar de tudo o que dissera antes. Dostoiévski logo saiu da prisão em episódio bem conhecido. Acreditando na inocência de Dmitri, o escritor ficou com a história trabalhando em sua cabeça. Quinze anos depois, descobriu-se o verdadeiro assassino e Dmitri Ilinski foi libertado. Durante todo este tempo Dostoiévski mantivera-se informado. A inspiração é claríssima, tanto que nos primeiros manuscritos do romance, Karamázov é chamado várias vezes de Ilinski. O escritor pediu que o erro fosse corrigido.

O conflito pai x filho é explorado sob diversas formas no romance. Se o centro do romance é o amor e ódio entre o velho Fiódor e o filho mais velho, também há conflitos mais silenciosos entre o velho e Ivan (o segundo filho) e entre o velho e o suposto filho bastardo Smerdiakóv. Lendo-se os romances anteriores de Dostô, vê-se que as personalidades de todos vinham sendo formadas há tempo. É fácil ver paralelos na natureza dos personagens de diferentes obras do autor: o terceiro filho Aliocha Karamázov e Grúchenka com o príncipe Míchkin e Nastácia Filippovna (de O Idiota), Ivan Karamazov com Raskolnikov (de Crime e Castigo), o starietz Zossima com Tikhon (de Os Demônios).

Apesar da indiscutível qualidade de todos os grande romances de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov tem uma grandiosidade inalcançável. É um enorme painel russo, psicológico e político, trabalho maior da vida de um escritor genial. Com vida própria — separadas do autor — ali estão suas memórias de infância ligadas às reflexões e experiências dos últimos anos. As imagens dos irmãos Dmitri, Ivan e Aliócha — assim como a do bastardo Smerdiákov, espécie de duplo de Ivan — talvez simbolizem diferentes estágios de desenvolvimento espiritual do autor. O romance tem uma estrutura complexa, multidimensional, de gênero difícil de definir. São eventos que ocorrem em apenas duas semanas, mas nesse curto espaço de tempo se encaixam tantas histórias, disputas, conflitos e confrontos ideológicos, que estas seriam suficientes para vários romances de suspense, obras filosóficas, crônicas familiares ou dramas domésticos.

Há duas longas e compreensíveis interrupções na narrativa. A primeira serve para que Dostoiévski (ou Ivan) escreva aquele que talvez seja o melhor capítulo da literatura de todos os tempos. Trata-se do momento em que Ivan, num bar, narra para Aliócha a Parábola do Grande Inquisidor. Jesus retorna à Terra, mas o Grande Inquisidor, na pessoa de um velho bispo de 90 anos, argumenta que sua vinda é inútil e que agora ele só atrapalharia a Igreja. E condena-o à fogueira. (Este resumo chega a ser uma gozação, tal a riqueza do texto). O segundo serve para que Aliócha conte a história de seu mentor Zossima.

A ação principal do romance está na relação entre o velho Fiódor e Dmitri. O whodunit é “Quem matou o velho Fiódor?”. E todos são desvairados, desesperados e negligentes com a verdade e a moral. Todos os personagens parecem meio loucos. A família Karamázov é apaixonada e violenta. O pai Fiódor e Dmitri amam a mesma mulher. Dmitri acha que o pai lhe deve a herança da mãe. Ambos são lascivos, rivais e imprevisíveis. Dmitri é um paradoxo. Incapaz de se controlar, tem grande dignidade pessoal e é cheio de justificativas. Ao contrário de seu pai, um cínico, Mítia visa os mais altos ideais. É dotado daquela tal alma russa que o leva a picos e a abismos como um ioiô. Dmitri Karamázov briga e cita Schiller. Quando preso sob a acusação de assassinato, pensa no sofrimento dos outros e chora.

Ivan não é nada disso. Inteligente e profundo, é um filósofo centrado nos problemas mais irreconciliáveis ​​da existência humana: a natureza de Deus e a ideia de permissão. Intelectual ateu, parece ter dentro de si um conflito permanente entre liberdade e autoridade. O Grande Inquisidor não está relacionado com a trama principal da novela. No entanto, sai de Ivan esta que é a parte mais importante do ponto de vista das ideias contidas no livro.

Aliócha é supostamente o herói do romance. Vivia num mosteiro, mas foi mandado para o mundo. Profundamente religioso, tudo compreende e passa o livro correndo de um lado para outro, tentando conciliar todos. Sem ele, o livro não existiria. É um personagem meio picaresco — vai de um lugar a outro e é uma espécie de informante de todas as tramas paralelas do livro. Acaba conseguindo conciliar apenas um grupo de crianças no belo final do romance.

Uma questão central na abordagem do romance é notar que as ideias do autor estão muito bem escondidas. As célebres citações que o livro contém foram todas rejeitadas por Dostoiévski ainda em vida. Quando lhe atribuíram algumas citações, Dostô respondeu simplesmente que não as assumiria: “Não sou eu quem diz isso, é Ivan. A linguagem é dele, o estilo é dele, o pathos é dele e não meu. Além disso, ele é muito jovem”.

No mundo criado por Dostoiévski, a Rússia e o mundo aparecem como se fossem o reino dos Karamázov. A noção da complexidade e da desorganização das relações talvez nunca tenha ficado tão clara como neste romance. Ninguém é confiável. A maldade pode explodir a qualquer momento. Todos dizem meias verdades por meio de mentiras. Os atos de uns são conduzidos pelos pensamentos de outros. A espiritualidade cristã é invocada a cada momento, mas sucumbe às necessidades tirânicas de felicidade terrestre, à sensualidade e ao álcool.

Numa frase, não dá para não ler.

P.S. — A tradução de Paulo Bezerra é incontornável. Se hoje você ler outra edição em português, não estará tão próximo do original.

(Livro comprado na Ladeira Livros).

Dostoiévski em 1876
Dostoiévski em 1876

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Böll e a Net fugitiva

Mais de 30 anos após a primeira leitura, estou relendo um livro que adoro. Trata-se de uma obra menor que sempre figuraria nas minhas listas de “dez mais”. No final dos anos 70, li Opiniones de un payaso, de Heinrich Böll, e agora leio Pontos de Vista de um Palhaço (Estação Liberdade, 2008). Após reler obras que se revelaram decepcionantes, não sobrevivendo à segunda abordagem — quem era eu naquela época para incensar essa merda? — , o livro de Böll reafirma suas notáveis qualidades e me surpreende, pois agora sei que eu lembrava de pouca coisa dele.

Escreveria mais, porém agora tenho que trabalhar. Acontece que o Net Virtua da minha casa anda muito arisco, com muitos problemas e escrevo os posts em casa. Não obstante, digo a vocês que apenas um livro sobreviveu bem a uma segunda leitura: O Idiota, de Dostoiévski. E agpra o grande católico (sim, até isso existe) vem unir-se a Dostô.

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Dostoiévski, de novo

Um pedido do Pedro, através de comentário:

Caro Milton, Conhecedor de Dostoiévski como és, dê essa dica para nós, pequenos mortais, que ainda não o leram por inteiro: há algum tradutor melhor que o outro, alguma edição mais nobre, ou tudo dá no mesmo? Gracias!

Pedro, farei de tudo para manter, nas próximas linhas, este falso conhecimento que me atribuis. Na verdade, li todas as obras de Dostô quando era jovem. Nasci em 1957 e devo tê-las lido nos anos 70. Na época, não havia edições saindo e até era complicado encontrar os livros do autor russo. Tanto que, após ler Os Irmãos Karamazov numa edição da Abril Cultural (Imortais da Literatura, Vol. 1) bati muita perna pelos sebos a fim de encontrar os outros livros. Um dia, recebi um telefonena de um sebo, mais exatamente da Livraria Aurora, avisando que tinham recebido a coleção completa das obras de Dostoiévski da José Olympio. Hoje sei que não era NADA COMPLETA, porém era vendida como se fosse e eu acreditei. Supliquei à minha mãe por uma grana, fui lá e arrematei a coisa. Como busquei de ônibus, fiz duas doloridas viagens para buscá-los. Era bonitos, vermelhos, de capa dura, um show.

E eram o que havia de melhor. Imagine: os tradutores eram Rachel de Queiróz, Ledo Ivo, Brito Broca, etc. Todos os livros vnham com esplêndidos prefácios de gente como Otto Maria Carpeaux e Wilson Martins. Posso te dizer que comi e amei aqueles livros, comi-os como se fossem o melhor Dostô possível, mas não eram. O que tinha de bom eram os prefácios…

Lá pelos anos 80, começaram a aparacer novas traduções, totalmente diferentes. A explicação era incrível. As traduções antigas, aquelas da José Olympio, eram feitas a partir de outras traduções, francesas, feitas no início do século XX. Soube que os tradutores franceses da época não eram nada respeitosos e que açucaravam expressões e até criavam algumas frases facilitadoras. Ou seja, eles adaptavam Dostô para o gosto do leitor francês, aparavam as arestas, retiravam espinhos, deixavam-no … beletrista! Caraglio! Comecei a ler exclusivamente as traduções de Boris Schnaiderman para Tchékhov e Dostô (logo vi que eram muito superiores às segunda mão) e, nos anos 90, a abençoada Editora 34 resolveu montar um time de tradutores para retraduzir todo o Dostoiévski. Antes, aqui e ali, já aparecera o verdadeiro Dostô: nos anos 80, Moacir Werneck traduziu O Jogador e O Eterno Marido direto do russo. O resultado foi um autor muito mais direto e sem firulas. Muito melhor, limpo e impactante, certamente. Fiquei desconfiado… Mas acho que a revelação do verdadeiro Dostô veio com Paulo Bezerra na Editora 34. Digo com a maior tranquilidade que quem leu O Idiota e Crime e Castigo nas traduções antigas, leu outros livros. Dizem meus olhos e minha mente que estes romanções só foram verdadeiramente traduzidos há pouco. As novas versões são Dostô, por mais que Brito Broca tenha feito milagres com sua versão francesa.

Então, meu caro Pedro, a solução é comprar a Coleção da 34 ou outras traduções diretas. Acho que posso pôr minha mão no fogo por Moacir Werneck e Paulo Bezerra. Se não faço outras indicações de tradutores é por não ser o especialista que pensas que sou. Mais: creio que a Coleção Dostoiévski da Editora 34 foi realizada com tanto interesse,  respeito e amor por Dostô que eu a colocaria em primeiro lugar.

Completando este texto meio desorganizado, te afirmo que O Idiota só se tornou a obra-prima quase insuperável que é hoje para mim após a leitura da tradução de Bezerra. A tradução da José Olympio tem todos os méritos associados ao pioneirismo e às parcas possibilidades dos anos 50, mas vão me desculpar, os dois Idiotas não têm nada a ver um com outro. Toda a transcedência e o valor altamente filosófico da obra perdeu-se na passagem para o francês ou para o português. Tanto assim, que li O Idiota da 34 como se fosse totalmente inédito.

Dostoiévski não é nada romântico, nada. É um escritor bem mais duro do que fazem crer as antigas traduções. Porém — e agora falo a todos — , se não houver grana e você encontrar uma das antigas traduções que têm reaparecido ainda hoje a preços módicos, compre do mesmo jeito. Um mau Dostô é superior a quase tudo que haverá em torno.

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Dostoiévski ou Tolstói?

Ontem, um comentarista, que se identificou apenas como Pedro, me provocou com esta pergunta clássica. Começo respondendo que não acho lógica uma comparação entre seres humanos e romancistas tão diferentes entre si — seja nas posturas, seja nas vivências de cada um — , ao mesmo tempo que sei que nada é mais lógico do que comparar dois contemporâneos importantíssimos, como hoje fazemos com Saramago e Lobo Antunes, por exemplo. Outra mania que desejo evitar é o elogio de um para desvalorizar o outro. Este gênero de mau elogio fica melhor em jornais de província. Eu posso gostar de Drummond e João Cabral e, se elogiar este, não estarei menoscabando aquele. Talvez as pessoas gostem de comparar os dois russos pelo amor de ambos aos grandes painéis. Seus romances eram tudo: psicológicos, sociais, filosóficos, picarescos, metafísicos (no caso de Dostô) e tão grandes que empurraram as fronteiras dos gêneros para poderem se acomodar dentro delas.

Gosto de ambos por motivos muito diferentes. Tolstói talvez seja o maior de todos os narradores clássicos — por que não recebeu o Nobel se faleceu em 1910, hein? Seus romances são perfeitos, têm ritmo, excelente prosa, envolvem. Se o tivesse de comparar com alguém, seria com Turguênev ou com certa parte da obra de Tchékhov. A Morte de Ivan Illich não seria uma antecipação de Thomas Mann? Em minha opinião, sua grande obra é Anna Kariênina, além dos contos e novelas. Guerra e Paz é uma obra-prima, mas aquele epílogo semi-ensaístico é um saco, atrapalha todo o livro. Porém, enquanto Tolstói chegava ao ápice da forma clássica, Dostoiévki já sinalizava que aquilo estava ultrapassado.

Sim, notem a diferença fundamental de foco narrativo utilizado pelo dois canônicos russos. Tolstói era o típico narrador onisciente que, apesar de detalhista, não era capaz de abandonar sua posição aristocrática, o senso comum de sua época e o certo e errado da concepção cristã do mundo. Já Dostô, quando comparado a Tolstói, parece um alucinado. O narrador de Dostoiévski localizava-se sob a pele dos personagens, saltando de um para outro, deixando-se reger de tal forma por suas lógicas (ou loucuras) que fazia sumir o narrador-julgador. Não se sabe muito bem quem representa Dostoiévski em seus livros. Ele é cada personagem e o livro parece andar por si.

Tolstói tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados. O acabamento era fundamental para clássicos como ele e Mann. E Tolstói não tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados, pois livros como Crime e Castigo e O Idiota são sôfregos, nervosos e tão viscerais que, sob o filtro de Tolstói, se transformariam em outra coisa. Quem pensa em acabamento quando quer descobrir quem matou o velho Fiódor? E quem criticaria o acabamento absolutamente impecável da Parábola do Grande Inquisidor — apenas para me referir a dois temas de Os Irmãos Karamázov? Ora, Dostoiévski não estava preocupado com o acabamento porque as regras vigentes da beleza literária o atrapalhavam; porém, quando precisou, fez uso delas brilhantemente. Na verdade, uma das últimas preocupações que temos ao ler Dostoiévski é com o acabamento. Os personagens de Tolstói sofrem com dignidade, os de Dostô berram e se escabelam. Não obstante, o horror metafísico que cresce de O Idiota não fica nada a dever ao de Ivan Illich, até pelo contrário.

Enquanto Guerra e Paz é um panorama, Os Irmãos Karamázov aponta para o fim de uma era, como Dostô já fizera em Os Demônios. Tolstói é um burguês, Dostô pensa num apocalipse. Céus, são muito diferentes. E muito bons.

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