Primeiro dia da Feira do Livro é hoje: uma história contada pelo Mauro da Ladeira Livros e outra

Primeiro dia da Feira do Livro é hoje: uma história contada pelo Mauro da Ladeira Livros e outra

Mauro Messina:

Arnaldo Campos, livreiro, infelizmente já falecido, um exemplo de profissional e pessoa, me contou essa história há muito há tempo:

Primeiro dia da Feira do Livro, a sineta já bateu as barracas correm contra o tempo para se organizar. Chega um senhor de aproximadamente 80 anos, fica olhando as pilhas, estende a mão e pega o Ulisses de James Joyce. Se afasta um pouco e começa a ler em frente da barraca, por aproximadamente uma hora.

No dia seguinte a situação se repete, o senhor chega no horário de abertura, pega o livro, se afasta e começa a ler em pé por uma hora.

No terceiro dia a coisa de repete, porém dessa vez o livreiro resolve intervir, oferece um banco para ele ficar mais confortável, o senhor agradece, vai embora e nunca mais retorna.

Não se sabe se o senhor ficou ofendido ou constrangido.

Eu:

Me aconteceu na Livraria Bamboletras há uma década. Todo dia, antes do cinema, eu pegava o Esculpir o Tempo, do Tarkovsky. Um dia comecei a procurar, procurar e nada. Então, a Lu Vilella me disse: “Vendi, mas vou repor”. Fiquei constrangidíssimo. Na vez seguinte, comprei o livro, claro.

Lu Vilella:

Tolinho. Podia ter terminado a leitura… Na livraria, claro.

Acho um saco a Feira do Livro. Por ser aberta e no início de novembro, costuma estar quentíssima. É uma festa de editores com dinheiro público. A falta de variedade de ofertas é incrível — chega a ser nauseante –, pois os editores preocupam-se com seus lançamentos, encalhes e olhe lá. As livrarias só se ralam, à exceção, talvez, dos sebos. Mil vezes o ambiente das pequenas e acolhedoras livrarias como a Bamboletras, Palavraria e os sebos. O sebo Ladeira Livros estará lá, na barraca de posição quase sexual 68.

Preparativos para a abertura da Feira do Livro de 2013. 30.10.2013
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Se você perdeu o debate de ontem, saiba que a Feira Além da Feira segue

Se você perdeu o debate de ontem, saiba que a Feira Além da Feira segue

Cansei de ver músicos e palestrantes saírem do palco com a impressão de que fizeram bom papel e, bem, não foi nada daquilo. Como espectador, às vezes fico com um sorriso amarelo ao ver o sem noção da coisa. Então, de forma profilática, desconfio de meu exame sobre nossa participação no Feira Além da Feira de ontem à noite na Palavraria. Mas arrisco dizer que foi bem boa. Muito boa.

Em primeiro lugar porque o ambiente foi de completa cordialidade e interesse pelo assunto. Nunca abandonamos o tema da crítica. Muito qualificado, o público poderia ter-nos fatiado e servido em bandejas, mas nos ouviu e perguntou mansamente. O carrossel que fazia o microfone passar de mão em mão funcionou bem. A Alexandra Lopes da Cunha disse que nunca tinha mediado debates, mas vá acreditar nisso. Não apenas provocou e deu espaço e oportunidades a que todos falassem, como deu seus pitacos e pode declarar seu amor a George Orwell. O debate funcionou também pelo fato dos três entrevistados terem perfis bastante diferentes. Aprendi com as meninas. Eu cheguei com meu perfil clássico antiquado, a Camila von Holdefer super atualizada e profunda conhecedora da produção literária atual — devemos ler seu blog de cabo a rabo para saber o que está acontecendo — e a Laila Ribeiro com seu enorme conhecimento da literatura de entretenimento, algo que me surpreendia a cada fala sua. 

Os bons eventos de literatura são assim mesmo, com pessoas interessadas e alta participação. O tema era “O Espaço da Crítica Literária”, essa coisa quase inexistente. Engraçado como todos nós lemos literatura brasileira, mas temos certo receio de escrever a respeito. Nossos autores costumam se ofender. Eu parti deste texto, mas sem o mimimi que me fez incluir gatinhos ornamentais, e fui até o ponto de responder uma pergunta citando os autores que mais admirava vindo do Japão, passando pela Europa Oriental, Ocidental, América do Norte, do Sul e Brasil. Ou seja, a conversa teve momentos delirantes. Foram duas horas de divertidos momentos de amor à literatura. Às 21h, a livraria tinha que fechar…

O que posso dizer? Certamente que fiquei muito feliz com esta minha segunda participação na Feira além da Feira. cuja programação completa encontra-se aqui.

As fotos abaixo são de Alexandre Alaniz. Foram publicadas 44 imagens ao todo. Meu profundo, incondicional e esperado narcisismo ditou a seleção abaixo. As legendas são realistas, pero no mucho. E, gente, agora vou para uma reunião de condomínio. Sim, será bem pior.

Jéferson Tenório fala a plateia, Alexandra sorri confiante e eu pressinto a tragédia.
Jéferson Tenório fala à plateia, Alexandra sorri confiante e eu pressinto a tragédia.
Eu começo a desfiar absurdos. A Alexandra me olha com cara de "What the fuck?".
Eu começo a desfiar absurdos. A Alexandra me olha com cara de “What the fuck?”.
Eu sigo a desfiar absurdos, agora sob o olhar irônico da Camila.
Eu continuo, agora sob o olhar irônico da Camila.
Ninguém me detém.
Nada me detém.
Sérgio Karam pergunta-se: o que eu vim fazer aqui?
Sérgio Karam fica abismado com o que digo.
A Alexandra parece estar se divertindo.
A Alexandra até parece estar se divertindo.
Mas recua.
Mas recua após uma ameaça minha.
Nelson Rego chega para animar a festa.
Nelson Rego chega para animar a festa.
Mas a festa é minha.
Mas o show é só meu. Sintam só o tédio da Camila e da Laila enquanto eu falo no samba exaltação. A Alexandra se afasta para deixar meu braço passar.
Gustavo Melo Czekster me desafia a dizer seu sobrenome.
Gustavo Melo Czekster me desafia a dizer seu sobrenome. Priscila Pasko antevê meu fracasso. Nelson Rego está super-interessado.
Eu sou imparável.
Minha algaravia desconhece limites. Presa entre as cadeiras, Camila pensa em como voltar logo para Novo Hamburgo.
Tô falando até agora.
Sem assunto, começo a cantar. Alexandra mantém as aparências.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Como o diabo gosta, de Ernani Ssó

Como o diabo gosta, de Ernani Ssó
A capa da edição da Cosac Naify
A capa da edição da Cosac Naify

Como o diabo gosta é um livro delicioso. Ele já foi O diabo a quatro em 1985 e, radicalmente revisado e ampliado pelo autor, está sendo relançado neste ano em bela edição da Cosac Naify. Merece, e não apenas por estar completando 30 anos. O que talvez não mereça é minha participação de hoje à noite no lançamento da nova edição na Palavraria, batendo um papo com Ernani Ssó. Ainda bem que pretendo falar pouco. Porém, neste momento, peço desculpas ao Ernani, pois aqui no blog quem faz os solos sou eu.

Ernani realizou uma auto-entrevista a la Glenn Gould numa crônica chamada 50 tons de vermelho.  O título é chamativo, mas é redutor. Ali, ele começa dizendo que “os resenhistas, como todo mundo nos jornais, trabalham demais, leem os livros correndo, quando leem, e escrevem a toda, sem pensar direito”, o que justifica a entrevista. Ele tem toda a razão, principalmente na necessidade de pensar, tanto que hoje acordei e fiquei matutando sobre como escrever a respeito de um livro do qual gostara muito. O problema é que é mais fácil dizer o que ele não é. Mas vamos ao que ele é.

Numa manhã, Camilo Severo tenta inspirar-se para escrever um romance. Seus pensamentos são interrompidos por lembranças desordenadas. O livro é isso, uma série de capítulos fora da ordem cronológica, às vezes escritos na primeira pessoa, às vezes não, talvez inspirado por O Jogo da Amarelinha do Cortázar que Ernani tanto ama. O livro se passa em Porto Alegre, no triângulo obtuso formado pela cidades de Ermo, Sombrio e Turvo (SC) e um pouquinho mais longe, no Farol de Santa Marta (SC), provavelmente durante o final dos anos 70, quando aquela região estava sendo recém descoberta pelos turistas, principalmente gaúchos. Para lá se dirigiam hordas de bichos-grilos a fim de alugar as casas de pescadores. Lá, ficavam tomando banho de mar e de caneca, bebendo cerveja, consumindo drogas e trepando. Era bom, participei.

Por que é mais fácil dizer o que ele não é? Pelo fato de que Como o diabo gosta ser um livro enganador: ao leitor mais superficial pode parecer uma série de descrições do desbunde, da perda do autodomínio, da loucura e das muitíssimas relações sexuais mantidas pelo narrador. Realmente, o sexo é um tema importante de um livro que se pretende meio bandalho, só que não podemos esquecer que este se apoia mais na literatura do que no sexo. O texto é excelente. Tudo aparece em seu lugar e tem ritmo. Exatas, as palavras só poderiam estar onde estão. Isto é que torna o livro uma delícia e é sempre difícil elogiar um volume dotado de tamanho potencial de prazer e que não envolve grandes e claras teses. É um livro cujas melhores metáforas vêm da musicalidade e isto confunde.

E há o humor. Como o diabo gosta é um livro engraçadíssimo, mas não é um livro de humor. A história também revela a angústia do personagem principal, presente desde o elaborado e culto “tô nem aí” de Camilo, que é refletido no desespero de algumas cenas de sexo. A repetição de alguns fatos — descritos de forma inteiramente diversa no romance — não resulta num quadro divertido, mesmo que se ria deles. Isto parece ser muito bem controlado por Ernani, que espalha pistas que formam um quadro de uma época em que, ao lado da vida no desbunde, havia uma ditadura se desmanchando.

Recomendo muito.

como_o_diabo_gosta_convite

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Na verdade, eu não gosto da Feira do Livro

Na verdade, eu não gosto da Feira do Livro
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro

Em verdade vos digo, não gosto da enjoativa oferta de livros iguais da Feira do Livro. É muito esforço para encontrar alguma coisa especial entre as carradas de livros novos, estalando, que se repetem em toda e qualquer barraca. Como disse Luís Augusto Fischer em educada crítica, a Feira da qual é patrono é do livro e não da literatura. Pior, ela é não é nem dos livreiros, trata-se de uma Feira de editoras e de distribuidoras. Presumo (ou tenho certeza) que eles mostram o que querem, o que lhes dá lucro.

Nos balaios há coisas legais, mas haja tempo para procurar! E nem vou falar da modéstia da Área Internacional, tá? Prefiro a tranquilidade e o acervo da Bamboletras ou da Palavraria.

As programações paralelas de palestras — que antes ameaçam salvar a Feira — já não são tudo aquilo. O que era fácil ficou difícil. Há poucos anos atrás, ficava muito triste por perder tanta coisa boa; indagorinha, procurando por coisas que me interessassem, fiquei bem decepcionado, apesar de que pretendo dar um pulo no CCCEV (Centro Cultural CEEE Erico Verissimo) a fim de ouvir um grupo de escritores africanos. Eles começam às 17h30 e lá vou conhecer meu amigo moçambicano Nelson Saúte. Afinal, chega de viver de e-mails, né?

P.S. — E vejam bem a decepção: apesar de anunciado, Nelson Saúte não estava presente.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Um local de Porto Alegre: a Palavraria, local para livros e convivência

Uma livraria que não é apenas um local de compra e venda | Ramiro Furquim/Sul21

Publicado originalmente neste sábado (7) no Sul21

Os três sócios da Palavraria (Vasco da Gama, 165, Bonfim, Porto Alegre, (51) 3268 4260) têm algo em comum além dos nomes. Carla Osório, Carlos Luiz da Silva e Luiz Heron da Silva eram amigos que tinham diferentes profissões. Carla era advogada; Heron, professor de português, e Carlos, bibliotecário. Mas eles queriam ter uma livraria que não fosse apenas um local de compra e venda. “Há nove anos, criamos um projeto do qual não nos afastamos até hoje”, diz Carla. Eles procuravam e não conseguiam encontrar uma livraria que fosse um lugar onde quem vendesse os livros soubesse o que estava vendendo, que soubesse conversar sobre eles e sugerir alternativas se a obra procurada não estivesse disponível. Se agregasse um café, melhor. “Boas livrarias existiam e existem, a Bamboletras, o Gustavo da Ventura e outros estão aí, mas nós queríamos não apenas o acervo e a compra interessante, mas outras coisas que tornassem o ambiente mais agradável”.

Carla: “Há nove anos, criamos um projeto do qual não nos afastamos até hoje" | Ramiro Furquim/Sul21

A mistura de livraria com café foi desaconselhada em todas as consultas, mas o trio insistiu em colocar a livraria no mesmo ambiente do café. “Tínhamos razão nisso”. Nas livrarias convencionais só se pode levar os livros da livraria para a cafeteria se os mesmos já estiverem comprados. Na Palavraria não. Nela, o cliente pode namorar com calma os livros a fim de estabelecer uma relação antes do casamento. “O que nos interessa é deixar o cliente à vontade num ambiente agradável”, diz Heron. E se o cliente, durante a abordagem, sujar o livro de café? Bem, é o ônus. “Logo que inauguramos, um amigo nosso derrubou uma xícara cheia sobre livros de arte… Sobre vários livros… É um risco que a gente aceita correr porque as vantagens são imensas. Via de regra, nossos clientes cuidam muito bem dos livros”.

O primeiro café que Carla fez foi para Flávio Koutzii. “Eu recém estava aprendendo a fazer café expresso e me resolvi me arriscar com ele. Ele começou a bebê-lo e eu perguntei como estava. A resposta foi: ‘O café está bom, mas alguns diriam que está morno como o dia de hoje…’”.

Hoje, o café é servido quente... | Ramiro Furquim/Sul21

Heron diz que os sócios sempre quiseram estar num negócio do qual gostassem. “Há trabalhos em que tu fazes o que tens que fazer e outros em que tu consegues fazer o que gosta, sem muito ‘tarefismo’”. Atrair um público que gostasse de literatura, política e arte era algo motivador. Os clientes entenderam o espírito da coisa. “Muita gente vem aqui para conversar, para conviver num local agradável. Claro, as pessoas falam sobre qualquer assunto, mas a efervescência, a perspectiva cultural é mantida, o que torna tudo mais interessante, mesmo que se trate de assuntos comuns como o futebol ou uma nova cor de batom. Não raro se encontram escritores numa mesa, editores noutra, leitores noutra, além dos que vêm apenas tomar café e dar uma folheada nas novidades”.

Ou seja, a livraria é o suporte, o café é um local de encontro e isso faz sentido do ponto de vista antropológico, pois as pessoas se entendem melhor comendo e bebendo. Dentro deste clima, a Palavaria tornou-se um local de fomento cultural, de incentivo, de divulgação, um local onde os produtores culturais, artistas, cientistas, etc. apresentam trabalhos, expõem ideias e fazem interações com o público interessado. “Provemos a livraria de uma discussão, de uma conversa constante, programática ou não. Então, desde o projeto – procuramos uma casa de dois pisos para que pudéssemos viabilizar uma sala de aula – , previmos oficinas literárias, leituras, bate-papos e música. Mantemos um discurso cultural formal e informal”, explica Carla.

Heron: "Não raro se encontram escritores numa mesa, editores noutra, leitores noutra, além dos que vêm apenas tomar café e dar uma folhada nas novidades”. | Ramiro Furquim/Sul21

Atrás da mesa onde conversamos, há um microfone e um pequeno palco, mas a atmosfera de proximidade não é quebrada, “É uma ideia pretensiosa manter um espaço assim, ainda mais que não temos marketing profissional”.

No segundo andar da Palavraria, há uma sala que serve às duas oficinas mantidas atualmente: uma de Charles Kiefer, voltada ao romance e ao conto, e outra de Ronald Augusto, voltada à poesia. A sala também serve para seminários, cursos e está disponível para ser utilizada. Aliás, o Sul21 realizou suas primeiras reuniões e foi em parte concebido na sala da Palavraria. “Temos planos de ampliar a programação. Provocamos pessoas a ministrar cursos aqui. O público é muito variado. O perfil das turmas da manhã e da noite são diversos e a tentativa é fugir daquilo que se encontra na academia.”

“Um espaço como o nosso está na contramão da história. Não somos um oligopólio, uma megalivraria, não vamos vender eletrodomésticos… Somos uma pequena livraria de bairro, segmentada, de rua, não temos nem estacionamento. A gente privilegia as relações pessoais, o relacionamento direto, o conhecimento dos livros dos quais nossos clientes gostam. Também sugerimos presentes tendo por base o gosto do presenteado. Aqui ninguém vai levar um romance político para quem gosta de algo intimista. Pessoalmente, ter abrido a Palavraria foi muito enriquecedor do ponto de vista humano e intelectual. Aprendemos muito mais a lidar com a diversidade do que antes da livraria”, explica Carla.

Heron sublinha que há uma troca, que com o tempo os clientes também passam a indicar livros. Mas revela: “Temos a preocupação de respeitar o perfil do cliente, de não sermos invasivos. Mas valorizamos o vínculo”.

"A gente privilegia as relações pessoais, o relacionamento direto, o conhecimento dos livros dos quais nossos clientes gostam." | Ramiro Furquim/Sul21

A Palavraria também costuma apoiar os autores gaúchos e os que frequentam a livraria. Mas tampouco esta é atitude destituída de conceito. “Faz falta uma crítica confiável que possa auxiliar no julgamento de nossa contemporaneidade, que procure fazer uma síntese do que acontece em termos de ofertas culturais nesta cidade e no estado. Queremos contribuir com isso divulgando tais trabalhos. Acho que não nos cabe julgar, cabe é divulgar ao máximo os autores locais para que as coisas deixem de ser avaliadas pelas conhecidas perversões provincianas do tipo não-li-e-não-gostei. É difícil julgar o novo, mas para que a arte se desenvolva e possa ser avaliada no futuro, ela tem de ser apresentada e vendida”, afirma Heron.

E, se o visitante quiser arranjar uma discussão civilizada na Palavraria, basta rebaixar gratuitamente um autor novo. “Deixemos que a história julgue se é bom ou não. Temos que tornar os autores lidos a fim de possam construir uma história. Nós colocamos o escritor desconhecido ao lado de Tolstói. Não nos damos autoridade para retirar um autor novo da vitrine”.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Belos acervos ou Where the fuck are these books?

Passei pela Saraiva da Rua da Praia e subi a Ladeira. Passei também pela Ladeira Livros, Nova Roma, Beco dos Livros e Estação Cultura. Cinco livrarias. Perguntei sobre cinco livros relativamente novos. As respostas:

1. Uma duas, de Eliane Brum (livro de 2011): não tinha.
2. Um livro por dia, de Jeremy Mercer (2007): não tinha.
3. Hitch-22, de Christopher Hitchens (2011): não tinha.
4. Cartas a um jovem contestador, de Christopher Hitchens (2006): não tinha.
5. Graciliano : Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos (2011): não tinha.
6. Ribamar, de José Castello (2010): não tinha.
7. Anna Kariênina, de Leon Tolstói (2005), edição da Cosac & Naify: não tinha.

Claro que se fosse caminhasse 18 quadras até a Palavraria ou 8 até a Bamboletras, encontraria todos ou quase. Mas como ficam os mortais que não têm livrarias próximas de qualidade média? Conclusão: melhor esquecer e comprar na internet mesmo.

(À tardinha, pretendo passar na Saraiva de um grande shopping para fazer o mesmo teste. É caminho de casa. Informo depois o resultado).

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Charles Kiefer, o incendiário tranquilo

Charles Kiefer diz que gostaria de ser um homem calmo como foi seu avô. Porém, após conhecê-lo, fica difícil imaginar alguém mais mais tranquilo que o escritor. Kiefer recebeu o Sul21 em seu gabinete na PUCRS e a impressão que tivemos é a de que poderíamos ter conversado muito mais do que a uma hora e quarenta minutos que está resumida a seguir.

Nascido em Três de Maio, no noroeste do Rio Grande do Sul, Kiefer tem 30 livros publicados, foi oito vezes finalista do Prêmio Jabuti – ganhou três -, dá aulas na universidade, comanda oficinas literárias, fundou uma associação de incentivo à leitura e guarda na gaveta mais de um livro quase pronto para publicação. Toda essa atividade parece natural ao sorridente professor.

Suas notas biográficas apontam que nasceu em 1958 e que estreou na ficção em 1982, com Caminhando na chuva, novela que já está na 20ª edição e vendeu 100 mil exemplares. Sairá uma nova edição em 2012, comemorativa aos 30 anos de lançamento do livro, pela editora Leya. Porém, logo abaixo saberemos que Caminhando é seu quarto livro e que os anteriores são comprados e queimados pelo próprio autor.

“A literatura não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Há algumas décadas atrás, o escritor era considerado o reflexo ou uma espécie de reserva moral da sociedade, uma figura importante, ouvida sobre vários assuntos de sua época. Hoje ele foi deslocado deste papel. Qual é, atualmente, o papel do escritor na sociedade?

Charles Kiefer – Boa pergunta, hoje dei uma aula sobre isso. Discutimos sobre o realismo e a função social do escritor. Mas eu começaria a responder falando sobre um livro que eu adoro, chamado Era uma Vez a Literatura, de José Hildebrando Dacanal, no qual ele diz que numa sociedade iletrada, onde a base social são analfabetos ou semiletrados, o escritor vira gigante, pois ele domina um código oculto. Então, numa sociedade de baixo nível cultural, a literatura toma um papel fundamental, assim como nas sociedades recém-formadas. Quando tu não tens um conceito de nação, a literatura é quem faz o papel de construtora da identidade nacional. No Conesul, se não existisse o romance de Ricardo Güiraldes, Don Segundo Sombra, essa imagem do gaúcho que temos hoje não existiria. A literatura está por trás disso. Ela é quem trouxe a imagem que chamamos, na teoria, de mitopoética, que acaba reproduzida pela população.

Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio.

Sul21 – Isso numa sociedade rebaixada.

Charles Kiefer – Sim, daí vem um negócio chamado democracia… Podem falar o que quiserem do Lula, mas ele fez a maior distribuição de renda da história do país. E tudo sem guerra, numa revolução social feita em silêncio. Por exemplo, aqui na PUCRS, 40% dos meus alunos vêm do Prouni, são bolsistas e alunos maravilhosos, pois sabem que aquela é a única chance deles, e a agarram com tudo. Enfim, o que está acontecendo é que nós estamos entrando para o que antigamente a gente chamava de concerto das nações. Antes a gente tocava um bumbo lá no fundo e de forma desafinada, agora somos primeiro violino, dando tom para o resto da orquestra. A literatura ainda tem um espaço num contexto destes? Não. E sim, ao mesmo tempo. Ela não tem mais esse espaço formador da sociedade, mas ela é um relicário, é a coisa mais bonita que a língua pode reproduzir, e é esse papel que ela tem nas sociedades desenvolvidas. Ela conserva e reproduz beleza artística, assim como o cinema, o teatro, a música, a pintura. Aquela coisa do “doutô” da literatura, que é letrado e superior, acabou, não há mais distinção. Agora nós temos um papel de ator coadjuvante. E a outra coisa que aconteceu foi a internet. O conhecimento, que antes era um feudo, está distribuído, o poder está distribuído. Com a internet cada vez mais barata, tu escreves o teu texto, tu fazes o teu jornal. Essa disseminação da informação, essa democratização, tem consequências ainda desconhecidas, muito interessantes, como as que houve nos países do norte da África e na Espanha.

“Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Vários ensaístas reclamam que nas últimas décadas houve uma decadência geral na qualidade artística, tu concordas?

Charles Kiefer – Isso é uma baita bobagem. Nós não enxergamos as coisas maravilhosas que estão feitas pois quem as está realizando são nossos vizinhos, nosso amigos, colegas, contemporâneos. Quando a gente tiver distanciamento crítico a gente vai ver a qualidade de muitas coisas. Talvez estejamos vivendo uma nova Renascença. Leio textos fantásticos até em sala de aula.

Sul21 – E os grandes temas estão mantidos?

Charles Kiefer – Amor, dinheiro, poder, guerra e paz?

Sul21 – Eu diria morte, também, e deus.

Charles Kiefer – Sim, sim, mas eu gosto de colocar as coisas em duplas dialéticas, amor e ódio, vida e morte, guerra e paz, fé e ciência. Acho que os grandes temas estão presentes desde o início do tempos, senão não interessa. Apenas mudou a abordagem.

Sul21 – E é curioso como a literatura dialoga com o restante das artes. Se tu melhoras o nível da leitura, melhoras todo o resto em termos culturais, a música, o cinema, o debate político, a visão de mundo…

Charles Kiefer –– … até o cabelo, a roupa, a arte muda totalmente uma pessoa.

Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno.

Sul21 — Voltando à questão dos grandes temas, a literatura busca novos temas, ou ela usa mesmos do passado?

Charles Kiefer – Eu escrevi um livro todo sobre isso, A Poética do Conto: de Poe a Borges – um passeio pelo gênero. O último cara na civilização ocidental que acrescentou coisas novas ao imaginário popular foi Edgar Allan Poe. Isso em 1840, 1849… naquela década. Olha só o que o Poe inventou literariamente: ele inventou o romance policial, o alienígena, as viagens espaciais, inventou também o romance psicológico, dedutivo. A única coisa que ele não inventou é toda essa comunicação de internet. Ele quase chegou a criar isso, num conto dele, de um jogador de xadrez automático.

Sul21 – O Autômato Jogador de Xadrez.

Charles Kiefer – Exato! Ali já é um computador. Ele poderia ter ido adiante e inventando algum sistema eletrônico que resolvia o negócio. Se, como diz o Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, Poe inventou o homem moderno. Entretanto ele não é um grande escritor, as histórias dele são mecânicas, os personagens são maníacos, muito neuróticos, o amor é pouco natural, não há nele seres humanos verdadeiros, há obsessões, ele abriu o caminho para Stephen King, Lovecraft.

“Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 Como funciona o projeto Associação Jovem Leitor?

Charles Kiefer – Nós temos muitos escritores, está faltando é leitores. A AJL é uma entidade civil, pública. Eu e os meus alunos fazemos projetos de leitura, criamos bibliotecas e doamos livros para crianças e jovens das comunidades menos aquinhoadas. Temos vários tipos de projetos para atender várias necessidades. Aproveitei o momento em que era patrono da Feira do Livro para dar maior visibilidade ao projeto.

Sul21 – Como foi montado?

Charles Kiefer – Eu fui para os Estados Unidos há anos atrás e vi as tais Gideon Bibles, umas bibliazinhas pequenas onde estava escrito take it, coloquei no bolso e pensei “que coisa legal”. E dentro estava escrito que aquilo era resultado da decisão de alguns ricos empresários cristãos que distribuíam bíblias de graça. E pensei “por que não fazer isso com literatura?”. Eu estava sempre com essa ideia de ficar um dia rico, e quando estava hospitalizado – passei dezessete dias sem nada para fazer -, fiquei pensando, lendo, e constatei que grande parte do PIB do Estado passava pela minha sala de aula nos ensinos particulares. Há gente riquíssima estudando e pensei “por que não reunir todo esse pessoal para fazer algo? Vamos fazer uma associação”. E então mandei um e-mail para os meus alunos e a coisa explodiu. Agora temos CGC, eu fui o primeiro presidente, agora é o Ayala Aguiar. Trabalhamos em parceria com a Câmara Riograndense do Livro. Há muita gente que conseguiu vencer e ganhar dinheiro na vida sem grande instrução. Há muitos alunos de mais idade e bom poder aquisitivo em oficinas minhas, eles notam que estão atrás do resto dos alunos e me pedem indicações de livros, de coisas para preencherem estas lacunas e vencer o atraso. Eles conseguem e sabem o quanto é importante o complemento cultural.

Sul21 – Teu primeiro livro foi escrito aos 17 anos. Soube que tu desejas jogar fora todos os exemplares, queimar se possível…

Charles Kiefer – Verdade, eu compro nas livrarias e queimo. E é pior, porque são três livros, na verdade: O Lírio do Vale, Vozes Negras e Os Caminhantes Malditos. Me arrependo de tê-los publicado. Mas é lógico que não posso tirar o primeiro degrau da escada. Eu era jovem, imaturo, o peso da emoção naqueles livros era infinitamente maior que o da razão. Com essa idade você é só sentimento. E, enfim, depois veio Caminhando na Chuva, que é o primeiro livro do escritor, enquanto os outros são livros do adolescente. Ele é na verdade meu quarto livro, mas a própria editora colocou-o como o primeiro.

Sul21 – Caminhando na Chuva é um grande livro.

Charles Kiefer – Com 53 anos eu posso olhar para trás e achar interessante, mas na época eu nem percebia. (risos) Quando eu tinha 22 anos, morava ali na Avenida Pará, em Porto Alegre, em cima de um açougue, num lugar horrível, e daí eu pensei que minha adolescência estava acabando e que nunca mais teria aqueles sentimentos e emoções. Eu estava vendo novas coisas surgindo em mim, sabia que estava mudando; foi então que decidi, é agora ou nunca, ou registro isto ou nunca mais vou ter a oportunidade. Sentei e escrevi o livro em 17 dias. Quando eu comecei a escrever, queria fazer um memorial de adolescente, sob o ponto de vista de alguém que está saindo dessa fase mas ainda está nela. Por isso tem aquele ar de autenticidade, eu consegui o equilíbrio. O Dacanal me disse uma vez que o meu último livro bom foi Valsa para Bruno Stein, “depois tu só escreveste porcaria”. Talvez ele tenha razão pois acho que agora eu me volto muito para o lado da razão, não deixo tanto a emoção extravasar, apesar de ter feito coisas meio loucas como O Escorpião da Sexta-feira.

“Vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Onde tu colocas a questão da razão e da emoção no excelente Quem Faz Gemer a Terra?

Charles Kiefer – Ah, esse livro foi muito repensado, eu passei uns seis meses pensando “de que ângulo vou partir para contar essa história?”. Eu vi aquela briga do Olívio (Dutra, na época prefeito de Porto Alegre) enfrentando baionetas, eu vi tudo ao vivo, e quando cheguei em casa a imprensa já estava transformando todos em marginais, era tudo uma mexicanada zapatista e eu me enfureci, um furor santo, e decidi escrever o livro. O fato de eu ser de Três de Maio também me feriu, pois vi parentes e amigos sendo considerados selvagens, como se viessem do interior para matar e destruir a civilização ocidental. Então, quando eu fiz o recorte, vi que tinha o problema do foco narrativo e pensei muito. Até que chegou o momento em que concluí que tinha que contar do ponto de vista do colono. E eu precisava expressar isso numa linguagem ou do colono ou minha, mas escolhi um meio termo, pois ele está preso, o fato aconteceu cinco anos antes e ele recebeu muitas visitas, até de jornalistas, e contou tanto a história, tantas vezes, que o discurso já está polido. Foi o modelo estrutural ideológico que desenvolvi para conseguir equilibrar a visão do personagem com a minha sem errar muito.

Foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. Já eram ladrões de terras e viraram monstros assassinos.

Sul21 – Lembro dos jornais no dia seguinte. A morte de um brigadiano foi tratada como “massacre”. Era um caso difícil, havia um corpo e os jornais apareciam cheios de argumentos para não dar nenhuma dimensão humana ao sofrimento dos colonos. Parecia que o mundo burguês ia acabar pelas mãos do MST.

Charles Kiefer – O acontecimento foi grave, claro. Mas foi feita uma tremenda injustiça contra os seres humanos que formavam o Movimento dos Sem Terra. A imprensa já os tinha transformado em ladrões de terra. Viraram monstros assassinos. Indignado com isso, escrevi o livro. Até hoje essa pecha segue associada ao MST. O fato é que eles enfrentam o setor mais conservador da sociedade, então parece adequado qualificá-los como sua antítese, o que não é verdade. O livro é um relato muito autêntico.

Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra.

Sul21 – E o colono veio morar na Avenida Pará… Tu eras um menino pobre de Três de Maio que ouvia Bach, Mozart e Beethoven.

Charles Kiefer – Eu era muito na minha, não visitava muito os outros, tinha poucos amigos. Eu tinha uma relação ruim com a minha terra. É complicado… Eu era pobre, estudava numa escola de crianças ricas, pois minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos para mim. Eu não tinha dinheiro para comprar sequer comida no recreio, levava um pãozinho de milho com melado que abria para comer. Era a piada da escola. Eu tinha que ir comer bem afastado num campo de futebol para ficar em paz.

“Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz ‘Não vai lá porque ele está lendo'” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Bullying?

Charles Kiefer – Eu acho que sim, eles implicavam com um blusão de lã que eu tinha, eles pegavam no meu pé, eu coloco isso no Caminhando na Chuva. Era um blusão que eu tinha ganhado da minha mãe e usava ano após ano, era o que ela tinha conseguido me dar, enfim. Mas nada disso me influenciou muito, o que realmente tem peso são meus avós, meu avô paterno era um grande leitor e ainda era músico. Lembro de quando era criança, eu sentado no colo do meu avô, ele contando as histórias do Charles De Coster, como As Aventuras de Till Eulenspiegel. Esse autor ninguém conhecia aqui no Brasil. Meu avô era violinista também, chegou a tocar numa orquestra em Cachoeira do Sul, ele e um irmão dele. Eles casaram com duas mulheres irmãs e foram viver no mesmo terreno, mas as mulheres brigaram, e um dia o irmão do meu avô, de madrugada, bateu com o facão na porta gritando “vem pra fora se tu é homem”. Meu avô, que era muito calmo – era o homem que eu gostaria de ser e não sou – , me contou que, se pegasse o facão e saísse, seria um morto ou um assassino. Então ele não saiu, mas fez as trouxas dele para ir embora para sempre com a mulher. Naquela madrugada, estava saindo um comboio de carroções, como no faroeste, de pessoas indo para a serra. Ele já tinha sido convidado para ir mas não aceitou, daí mudou de ideia e colocou a mulher, os dois filhos, e foi embora, durante dezoito dias no meio do mato até chegar em Três de Maio. Havia três localidades, uma perto da outra – Consolata, Vista Alegre e Caravaggio –, formadas de minifúndios. Mas, enfim, a influência mitopoética que mais me influenciou foi quando eu descobri, numa análise em divã, a imagem do meu bisavô. Lembrei das vezes que fui correndo para um homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, e daí, quando desejo ir para o colo dele, minha avó me segura e diz “Não vai lá porque ele está lendo”. Aquilo era um misto de sentimentos, de ciúmes do livro, da magia daquele negócio. Ele tinha aquela caixinha mágica, eu ficava esperando que dobrasse aquele monte de papéis, fechasse a caixa, para então ficar livre para ir lá no colo dele. E ele contava, abria a caixinha e mostrava o que estava dentro. Eu lembro disto, do louco desejo de conhecer aquilo, por isso já estava lendo aos três anos. Ele gostava muito do que se chama Bildungsroman.

Pois esse meu bisavô era um assassino. Ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e virou Losekann. Quando chegou aqui viveu a vida do outro.

Sul21 – O romance de formação de origem alemã.

Charles Kiefer – Sim, ele lia bons livros e é uma figura mítica para mim, ele era de uma leva de alemães que foram para a Rússia, e se deram muito mal por lá, ficaram miseráveis e tiveram que migrar. E bem, há um crime na minha família, que foi o que originou meu primeiro romance que vou ter de reescrever logo. Pois esse meu bisavô era um assassino. Numa viagem de navio, uma mulher que tinha um jovem marido se apaixonou por outro homem, ele. E ele matou o outro e jogou o corpo no mar, pegou os documentos, e meu bisavô, que era qualquer coisa, virou Losekann, quando chegou aqui, viveu a vida do outro. Claro, não havia foto nos documentos, ninguém o conhecia, não deve ter sido difícil mudar de identidade.

Sul21 – Que história fantástica.

Charles Kiefer – Eu precisava escrever um romance sobre isso, né? Não podia ignorar. A minha bisavó, quando estava para morrer, livrou-se da angústia chamando toda a família ao pé da cama, e contou para seus filhos que o pai deles era um assassino. Ela até falou o nome real dele mas ninguém anotou, ninguém teve coragem. Eu até procurei, mas ninguém lembrava.

“As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Uma família alemã de sangue quente essa… Mas eu li no teu blog um texto reclamando que teus livros passaram para a Record e tu achaste que ia aumentar muito as vendas, mas não foi o que ocorreu.

Charles Kiefer – É, é uma coisa meio lamurienta mesmo. O ponto principal é o fato de que quem vendia x exemplares por ano, hoje vende muito menos, e isso é para todos. Com a internet, o pessoal lê menos livros, mas veja como são as coisas: eu publiquei aquele ensaio Para ser escritor e em menos de 40 dias o livro esgotou a primeira edição. Já está na 2ª ou 3ª e circula em oito países. Mas ele não é ficção. Há uma estatística da Associação Mundial do Livro que revela que a ficção está caindo 20% ao ano nas últimas duas décadas. Para isso acho que há uma explicação psicanalítica, psicológica. Hoje em dia, as novas mídias já nos suprem completamente a necessidade de ficção. Na internet você vê filmes em poucos cliques, dentre tantas outras coisas. Há milhares de textos, interesses, estímulos. Por que você vai então ler? Além disso, há problemas de distribuição. As grandes editoras têm uma política de o escritor ter de vender um determinado número de exemplares para eles te tornarem top da editora, para elas investirem de fato em ti. Elas tem uma curva de equilíbrio que tem de ser atingida em tantos dias, e se isso não acontece você fica meio de lado. Elas também não ajudam a tua performance pois não fazem reposição. E bem, aumentou geometricamente o número de autores no mercado, e eu até contribuí com isso através de minhas oficinas. Somando-se a isso o problema de distribuição e a internet, a venda vai lá embaixo. Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros. Eu já até fiz uma coisa louca com a Editora Leya. Eu não cobro direito autoral adiantado. Nunca sei se vou morrer ou não, não quero ficar com conta para pagar. Então, depois de três meses eles me apresentam a primeira prestação de contas. É um dinheiro efetivo que entra. Pela Record, eu recebi já por 3 mil exemplares de uma edição e estou em dívida, pois eu só vendi 6 exemplares no último trimestre. O livro, que é de contos, está em débito com eles, vou demorar uns 50 anos para pagar. Meu novo livro está pronto, Dia de Matar Porco, mas eu preciso revisar, fechar bem ele, e falei para minha editora fazer um contrato para daqui dois anos e sem adiantamento.

Hoje em dia tenho certamente mais leitores dos meus blogs do que dos meus livros.

Sul21 – Me diz como foi tua experiência como secretário municipal de Cultura e secretário adjunto?

Charles Kiefer – Não quero falar disso… o que passou passou.

Sul21 – Foi tão ruim?

Charles Kiefer – Foi bem ruim, mas… Aconteceu uma coisa maravilhosa, que foi minha filha Sofia. Acabei me envolvendo de fato com a Marta nessa época porque a política nos ajudou, a gente estava sempre se encontrando. Casamos e tivemos a Sofia. Foi o que de melhor me trouxe a política…. o resto é resto and the rest is silence (risos).

Sul21 – Tu tens três Prêmios Jabutis, né?

Charles Kiefer – Sim, e fui oito vezes finalista. Perdi até para o Chico Buarque…

Sul21 -Tu perdeste para Budapeste ou para Estorvo?

Charles Kiefer – Foi um estorvo na minha vida. (risos) Olha, talvez tu me perguntes sobre o caso Edney x Chico…

“Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura” Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – É óbvio.

Charles Kiefer – Ser jurado de prêmio é muito complicado. Eu dou um prêmio, o Prêmio Sofia de Literatura, dou 3 mil reais para o primeiro lugar, e mais 3 mil reais para o primeiro lugar dos alunos. Eu contrato especialistas em literatura para dar um dos prêmios, e os próprios colegas dão o outro. Esse ano aconteceu algo incrível: os especialistas deram seus prêmios e os alunos deram exatamente a mesma coisa, só que na ordem inversa… Isso mostra que cada pessoa lê um livro diferente.

Sul21 – Com quais livros tu ganhaste o Jabuti?

Charles Kiefer –Com o O Pêndulo do Relógio, Um outro Olhar e Antologia Pessoal.

Daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso.

Sul21 –Bem, vamos falar das tuas oficinas, há alunos épicos que estão há 18, 19 anos contigo.

Charles Kiefer –Engraçado né? Isso começou quando eu estava em Iowa, nos Estados Unidos, convidado pelo governo americano para o International Writing Program. Lá, além de frequentar algumas aulas na universidade, a gente fez um grupo de escritores latino-americanos e alguns asiáticos e europeus. Nos reuníamos nas quintas à noite, no salão de festas de nosso prédio, para apresentar textos uns aos outros. A gente contratava uma moça alemã para nos traduzir, o  Marcelo Carneiro da Cunha também traduziu vários contos meus também. Mas olha… eu gastei cerca de 51 mil dólares lá, um dinheiro nada meu, o governo americano pagava todo o transporte e estadia. Quando a gente quisesse viajar era só ligar para Washington – talvez por isso estejam tão mal hoje… E eu ainda trouxe dos EUA um dinheiro suficiente para comprar um apartamentinho ali na Santo Antônio onde eu coloco minhas quinquilharias, é meu escritório. Mas enfim, daí eu me dei conta de que uma coisa que funcionava maravilhosamente bem eram as oficinas literárias, os workshops. Então pensei em ganhar um extra e abrir um curso. Foi na Casa de Cultura Mário Quintana. Daí, no dia que cheguei para a primeira aula, a Simone Schmidt, que era chefe do departamento de literatura da Biblioteca Lucília Minssen, me disse que teríamos que cancelar: tinha apenas três inscritos. Eles não poderiam me pagar o cachê. Então eu decidi fazer de graça para respeitar o trio. Se Mozart fez concerto para apenas um em Paris, por que o Charles Kiefer não daria aula para três? Hoje eu tenho sete turmas particulares, dou aula aqui de noite (na PUCRS), de manhã na Palavraria, e tenho 1400 pessoas em lista de espera. Tem gente há oito anos esperando uma vaga. Eu desmanchei os dois grupos de sábado pois vou dar aula aqui também, e ali estava o Reginaldo Pujol Filho, que participava há 17 anos.

Sul21 – Eu sou um cético em relação às oficinas…

Charles Kiefer – Como o Dacanal…

Sul21 – Ele tem um livro contra as oficinas. Quais seriam os teus argumentos a favor então?

Charles Kiefer – Uma vez, um professor que me entrevistava fez uma pergunta mais ou menos assim. Daí eu brinquei com ele e disse que todo o ovo nasce para ser galo ou galinha, mas se o ovo não for galado não vai ser nada além de um ovo. Todo mundo nasce para ser escritor, basta ter as condições para isso, condições culturais, sociais para ser galado do ponto de vista da literatura. Bem, eu estou participando da equipe que está montando o Curso de Mestrado e Doutorado de Escrita Criativa. Pela primeira vez na América Latina haverá um curso assim, com cadeiras específicas, de estudo de cinema, teatro, literatura, poesia. Olha, é um curso integral, fascinante.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Tudo em doses homeopáticas, até a cerveja

Há noites em que nada acontece e há outras em que tudo acontece no mesmo horário. Ontem, eu receberia uma pessoa aqui em casa às 19h, neste horário começaria um debate sobre a ficção de gênero na Palavraria. Meu compromisso caseiro acabou logo e corri para o debate. Nossa, estava ótimo — em outra faixa, pude comprovar meio constrangido a popularidade deste espaço…, algumas pessoas quase fizeram tietagem, fiquei feliz demais, imagina se não? — , o Xerxenesky, o Samir e o Carlos André Moreira conhecem literatura, são bem-humorados e sabem se expressar, o que nem sempre ocorre com escritores. Só que eu tinha prometido ir ao concerto da OSPA com minha mulher, o qual começaria às 20h30. Saímos (sumimos) à francesa e chegamos am cima da hora na OSPA. Credo, a primeira noite dedicada aos 200 anos de nascimento de Schumann absurdamente chata, realizada por músicos sem o menor tesão. Salvou-se a Sinfonia Nº 4 na segunda parte do Concerto, mas eu estava com uma fome de anteontem e só pensava no jantar com o Branco e a Jussara, muito mais legais do que aquilo que acontecia no palco.

Resultado: chegamos em casa muito tarde para uma terça-feira e a cerveja Bluehead foi a culpada de eu começar o dia de hoje com uma hora de atraso. Ah, por falar em musica, deixo-vos com duas resenhas alucinadas de P.Q.P. Bach, do blog erudito de mesmo nome, ambas publicadas nesta semana.

J. S. Bach (1685-1750): Bach Attributions

Por uma dessas coisas inexplicáveis, a obra para órgão de Bach está fora de moda. Algumas pessoas acham que o som do órgão é tão irritante quanto os padres pedófilos de Ratzinger — o qual parece preferir sexo com crianças do que entre adultos — , mas é bem no órgão que Bach realiza suas maiores experimentações. (Ah, acharam que eu ia fazer uma piada com o órgão sequiçual, né?) Mas retornemos ao que interessa: o que há de peças amalucadas na Orgelwerke é uma grandeza! E eu gosto. Muito! Este CD é sensacional por diversas razões.

(1) O organista é do caralho (ou do órgão, como queiram);
(2) O repertório, apesar de evitar os experimentalismos, está longe dos lugares-comuns;
(3) A produção da Hyperion é fodal;
(4) O CD está fora de catálogo até em Marte e
(5) Fique tranquilo, você não terá de ouvir a Toccata e Fuga em Ré Menor de novo.

E ah, vocês sabem como era a nossa família. Vinte filhos e aquele entra e sai de alunos, todos interpretando peças de sua preferência e criando outras. Então, alguns historiadores de ejaculação precoce pegaram tudo isso e disseram que era de Johann Sebastian, mas nem sempre era… Neste disco há peças de vários Bachs, de outros agregados que tentavam comer minhas irmãs e de todo o tipo de gente que queria a cerveja de meu pai. Havia por lá um certo Ratz que só se interessava pelos meninos e meninas de menos de dez anos… Bem, era uma zona e até isso se reflete neste baita CD.

CD IM-PER-DÍ-VEL !!!! (como diria o véio Ratz observando um pré-púbere)

Béla Bartók (1881-1945): Sonata for Solo Violin / Leoš Janáček (1854-1928): Violin Sonata / Claude Debussy (1862-1918): Violin Sonata / Serguei Prokofiev (1891-1953): Violin Sonata Nros 1 e 2 / Igor Fyodorovich Stravinsky (1882-1971): Divertimento

Viktoria Mullova é um das preferências absolutas deste filho de Bach, que também a acha bonita, apesar da notícia que FDP Bach me passou: ela agora estaria jogando em nosso time, disputando as moças. Como provavelmente não iria comê-la mesmo, tanto faz. Mas a sonoridade desta moscovita é coisa de louco.

A peça de Bartók é uma peça de Bartók, isto, é, é esplêndida e o mantém entre os 3 maiores Bs da música erudita, os quais permanecem como os maiores mesmo quando se usa todas as outras letras do alfabeto. Quem são os três? Ora, Bach, Brahms, Beethoven e Bartók.

A peça de Janáček é igualmente sensacional. Música bem eslava, sanguínea e cheia de surpresas e belas melodias, combinando perfeitamente com Bartók.

Depois a gente brocha. Debussy… Debussy… Debbie…, o que dizer? Claude, apesar do tremendo esforço que fez para movimentar-se no primeiro movimento, é um gordo. Portanto, é meio estático. Para piorar, é também extático. Bem, hoje faz um lindo dia e dizem que é o Dia do Beijo, o que significa que eu deveria ir para a rua ver o que consigo. (Mas, olha, foi das melhores coisas que já ouvi do gordo Debbie).

Prokofiev! Ah, Serguei é outro papo. Já de cara ele mostra quão fodão é naquele tranquilo Andante assai e no furioso Allegro brusco que o segue. Sem dúvida, é um cara que valoriza o contraste… Nós também detestamos o total flat, a gente gosta tanto dos mares piscininha quanto das descidas vertiginosas; afinal, os acidentes geográficos é o que faz a beleza da paisagem, né? As duas Sonatas de Prokofiev são notáveis.

Stravinsky… Sei que meus pares aqui no blog são admiradores do anão russo e adoro provocar, só que não dá, o cara é bão demais, raramente erra. Será que o gordo Debbie escreveu alguma coisa chamada “Divertimento”? Ele se divertia com o quê?

IM-PER-DÍ-VEL !!!!

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!