Gremista por um dia: sim, me aconteceu

Gremista por um dia: sim, me aconteceu
O vô Manuel
O vô Manuel

Eu era muito pequeno, tinha uns 4 anos. Meu avô faleceu quando eu tinha cinco. Eu adorava o velho Manuel que, hoje sei, não podia ser mais típico. Era chamado Manuel, dono de uma padaria chamada Lisboa, na Av. Azenha. Ele só seria mais típico se tivesse ficado no Rio de Janeiro. Chegara da região de Aveiro, fora primeiro estivador no porto, era brincalhão, tinha inesgotável paciência comigo e habitava um lugar cheio daquelas maravilhas às quais meus pais dificultavam o acesso — balas, refrigerantes, doces, sonhos e pães, os pães que amo até hoje.

Hoje sei o que significa a palavra que minha mãe dizia a respeito dele, a palavra terrível. Ele era mulherengo. Com enorme sucesso, fazia graça para as moças atrás do balcão. A mãe dizia que minha vó Maria era uma santa para aguentar tudo aquilo do marido.

Um dia cheguei com meu pai à padaria e ele pediu para que eu contasse a última novidade para meu avô.

— Vô, sou gremista!

Ele ficou imediatamente sério e tudo o que eu não queria era deixá-lo assim. Devia ter uns 4 anos de idade e era assustador decepcionar o velho. Logo pensei: toda nossa família é colorada, será que é muito errado ser gremista?

— Milton Luiz — eu era Milton Luiz e meu pai, Milton –, sinto-me no dever de fazer-te ver a verdade.

E, cada vez mais sério, seguiu:

— Ser do Inter em Porto Alegre e do Benfica em Lisboa é estar perto da verdade, do absoluto. O Grêmio é uma mentira.

— Mas meus amigos são gremistas fanáticos e o Grêmio ganha tudo!

Estávamos nos anos 60 e, realmente, a superioridade do Grêmio era o que nunca foi depois.

— Saltar do Inter para o Grêmio é como ir de Eça de Queiróz para Cardoso Filho.

Cardoso Filho era um parente nosso que era escritor no Rio de Janeiro. Escrevia uns livros melodramáticos, xaroposos mesmo. Meu pai saiu da padaria, rindo. Não entendi. Como meu avô parecesse cada vez mais contrafeito, eu estava em pânico, confuso, louco para correr atrás do pai, mas não ousava.

— Mas eu gosto…

— OLHA LÁ RAPAZINHO, TU NÃO SABES TER UMA CONVERSA SEM PÔR A PATA NA POÇA? Além do mais, associado ao nome Internacional, há coisas sagradas, coisas da vida, da política! O vermelho é o povo, o vermelho é a cor de quem está do nosso lado!

Era grave mesmo. Melhor recuar. Comecei a chorar. Onde estava o pai? Acontece que no dia anterior, a família do meu melhor amigo, João Batista, tinha me convencido a aderir ao Grêmio. Eram vencedores, triunfantes. Mas não podia viver como um proscrito, detestado pela própria família. E virei a casaca pela segunda vez em dois dias.

***

Com este tipo de pressão, acabei herdando do velho Manuel o amor pelo Inter e pelo Benfica. Alguns dias depois, ele me disse que havia uma coisa que unia os clubes de forma umbilical:

— A tendência à tragicomédia.

Como aquele assunto o deixava brabo e ele parava de brincar, achei melhor fingir que tinha entendido. Repetia para mim mesmo suas últimas expressões: “Somos radicalmente tragicômicos”.

Por favor, que não o sejamos hoje!

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Eu e a Márcia, minha babá, na feira

Eu e a Márcia, minha babá, na feira

No entardecer de sábado, eu estava na feira da Vasco quando um sujeito bateu no meu ombro perguntando se eu era o Milton Ribeiro. Ele se apresentou rapidamente como Jacó, filho da Márcia. Disse mais algumas coisas, mas nem precisava, pois a Márcia é a Márcia e só houve uma em minha vida. A Márcia foi a minha babá, ora. Ela é a responsável por boa parte desta peste que vos escreve. O que me surpreendeu foi o que ele disse logo a seguir: “Ela está conosco aqui na feira”.

Foto: Elena Romanov

E fui na direção daquela diminuta e respeitável senhora de 90 anos que, apoiada numa bengala, caminhava rapidamente olhando frutas e verduras. Uma onda de carinho me invadiu. Eu não a via há algumas décadas. Faz poucos anos, o mesmo Jacó tinha me ligado e eu anotei todos os dados da Márcia na última página de um livro. Pretendia visitá-la, mas… perdi o livro. Volta e meia vinha-me à mente o que ele pensaria de mim. Afinal, tinha prometido entrar em contato e simplesmente…

Minha família diz que fui uma criança agitadíssima, complicada de suportar. Porém, para a Márcia, eu sempre fui um amor, tudo o que eu fazia era maravilhoso e ela, na feira, me contou que me dava comida e depois não conseguia se alimentar, porque eu ficava na volta dela dizendo, “Dá, dá, dá” com o espírito pantagruélico de sempre.

Ela sabe muito mais de mim do que eu dela. Sei que minha mãe sempre foi só elogios para a Márcia. Repetia que eu fora uma criança privilegiada, cuidadíssima, amadíssima. Dá para notar o mesmo espelhado no filho advogado, no cuidado que tem com a mãe. E algo da Márcia certamente está presente no ser grudentinho que me tornei e na forma com que criei os guris, sempre com interesse, atenção e amor incondicionais. Como dizia, lembro de pouca coisa consistente da época de minha infância, o que sei é de ouvir minha mãe contar de sua paciência e amor. Minha mãe trabalhava muito e, sempre que reclamava de mim, a Márcia contra-argumentava a meu favor. Só ela sabia que eu era perfeito…

Não sei quantos anos ela ficou lá em casa. Depois casou, teve o Jacó. Algumas vezes ela veio nos visitar pois tornara-se amiga de minha mãe e eu sentia uma estranha necessidade de tratar muito bem aquela mulher, isto justo numa época em que ainda não dava aos adultos a contrapartida de amor e atenção que recebia. (Aprendi a fazê-lo mais tarde, ainda a tempo de fazer declarações de amor aos meus pais). Mas a Márcia sempre foi diferente. Ela tinha uma coisa tão francamente afetuosa em relação a mim que eu só podia responder da mesma forma. Eu sentia que ela me adorava e que era uma coisa muito verdadeira.

A Elena observou que as pessoas sempre se referem a meus pais como muito especiais, com emoção. Talvez eu nunca os tenha valorizado como os outros. Ao saber que minha mãe tinha falecido em 2012, a Márcia falou muito bem do casal e afirmou algo que eu já sabia: que a morte do meu pai fez um mal enorme à Maria Luiza. Quando falam bem dos meus pais, o peito aperta e começam a me vir lágrimas. Fiquei assim depois dos cinquenta. Então, quando a Márcia começou a falar deles, tive que me controlar e não sei se me saí lá muito bem.

Mas tergiverso. O que interessa é que fiquei muito feliz em vê-la bem aos 90 anos. Estava com seu filho nora e netos, recebendo deles o que me dera. Uma história feliz. Curioso, ela que me conheceu com menos cabelo do que ela e viu o mesmo acontecer novamente agora! Mas o que interessa é que tiramos uma foto juntos — ideia da Elena, realização do Jacó — e o este me escreveu no Facebook:

Puxa, eu que agradeço pelo momento de felicidade que proporcionaste para a minha mãe. Tu não imaginas o que este reencontro rendeu de conversa para ela…

(Tenho um romance quase pronto e parado há anos. Na história tem uma babá e, sim, vocês já sabem o nome dela).

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Palmeiras sem Raízes e Gatos Voadores

Palmeiras sem Raízes e Gatos Voadores

Apertado ao lado de minha mãe na poltrona marrom, eu a ouvia dizer que as árvores tinham profundas raízes e que se alimentavam da terra, da água e da luz. Ficava imaginando as raízes penetrando lentamente na terra. O que seria mais comprido – a árvore do chão até a última folha balançando ao vento ou a árvore do chão até a mais solitária raiz que tivesse penetrado, talvez inadvertidamente, mais fundo na terra? Como a raiz encontraria seu caminho sem ver nada, na escuridão onde também seríamos enterrados? E se a terra fosse muito dura? E como era aquele negócio de se alimentar de luz? Minha mãe me explicou inutilmente a fotossíntese, a produção de oxigênio durante o dia e de alguma coisa ruim à noite, mas eu, como quase não saía de casa depois que o sol se punha, não achei aquilo digno de preocupação. O que eu entendi perfeitamente foi a questão da água: quando chovia, as raízes bebiam tudo. Dava para notar porque as poças d`água não duravam muito tempo. Era óbvio que as árvores chupavam tudo.

PENTAX Image

Certo dia, estava chegando em casa com meu pai e dei-me conta de que tinha que conversar tudo de novo com minha mãe. Acontece que nossa rua, a Av. João Pessoa, atravessava o Arroio Dilúvio através de uma ponte não muito bonita. Claro que eu sempre soubera que havia palmeiras sobre a ponte, mas como não dispunha de tanta informação sobre as árvores, nunca pensara no problema das raízes. Concluí que tinha que informar minha mãe que nem todas as árvores precisavam delas e que as da nossa ponte viviam apenas de luz e água.

PENTAX Image

Falei com ela. Estranho, sua reação esteve longe de ser uma admissão de seu erro. Antes ficou assustada com as palmeiras: afinal, elas poderiam cair durante uma ventania e eu e meus amigos costumávamos brincar pelas redondezas. Os adultos eram mesmo desatentos -– será que ela nunca vira as palmeiras sobre a ponte e nunca pensara no perigo? E ela morava ali desde 1951!

Mais vivas que o time do Palmeiras
Mais vivas do que o time do Palmeiras

Comentei o assunto com meus amigos, mas logo esquecemos daquelas coisas arbóreas que, comparadas com nossas novas descobertas, não tinham nenhum atrativo. Descobrimos que a ponte era uma tremenda diversão. Dava para descer por suas laterais e caminhar sob ela! A brincadeira de esconde-esconde logo mudou muito. Todos queriam se ocultar ali e, muitas vezes, vi meninos negociando se era permitido ou não se esconder debaixo da ponte. Quem estava procurando tinha pouca chance. O cara descia por um lado e nós, vendo sua sombra, fugíamos a toda velocidade, subindo pelo outro lado.

E a ponte logo despertou outras idéias: como quase todas as pontes, ela passava sobre água e nós tínhamos muitos gatos em nosso bairro. Os gatos eram aqueles bichos que arranhavam nossos cães e que tinham a fama de serem limpos e de saberem cair. Ora, a ponte sobre a água lamacenta e ainda pouco poluída – estamos falando sobre o período entre os anos de 1966 e 1970 -, serviria para que os gatos pudessem comprovar se sabiam mesmo cair e para que constatássemos em quanto tempo eles voltariam a ser os bichos limpinhos de sempre.

Acredito que nunca outra geração de gatos teve tanto medo dos meninos da avenida João Pessoa. Hoje, sou indiferente a eles — amo os cães! –, porém, naquela época, entre meus amigos, participava feliz das espetaculares caçadas àqueles animais. Encontrávamos os gatos onde estivessem, trabalhávamos arduamente por nossa diversão e pelo progresso do conhecimento humano. Havia um, bem branquinho, que ficava hesitando entre mendigar comida na frente da casa de um casal de velhos e correr o perigo de ser capturado por nós. Aos amantes dos gatos, asseguro que nunca batemos neles, nunca os maltratamos. Mesmo! Sempre os levávamos em segurança, apenas procurando escapar dos arranhões, mordidas e ouvindo com altivez aquele som ridículo que emitem com a finalidade de avisar quando estão a fim de briga.

Vista da plataforma de arremesso de gatos
Vista da plataforma de arremesso de gatos

Os vôos eram lindos. Eventualmente, caíam com certa elegância. Porém, o mais das vezes, caíam mexendo desesperadamente as pernas — como se corressem no ar — e muitas vezes entravam na água de costas, de uma forma que desnudava a mentira que nos tinham ensinado. O que valera para as raízes das árvores, passara a valer para os gatos. Eles caíam como caíam. E nadavam de uma forma muito mais feia do que os cães. Nós dávamos risadas, descansávamos um pouco e íamos procurar outros. Afinal, precisávamos de uma boa amostragem para confirmar nossas teses.

Asseguramos que nenhum animal foi maltratado ou veio a falecer durante a pesquisa. Não consideramos como tortura o estresse e a adrenalina… Éramos crianças. Os que saíam lanhados ou com rinite alérgica eram humanos. Aprecie com moderação. Se persistirem os sintomas, vá a outro blog. Este texto foi desenvolvido a partir de material reciclável.

Obs.: Nota-se, por sua baixa qualidade, que as fotos foram tiradas por mim.

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17 de abril

17 de abril

Hoje é aniversário de meu melhor amigo de infância, o João Batista. Às vezes, encontro-me com ele durante suas caminhadas com seus dois cachorros na Vasco da Gama. Conversamos. A Elena gosta dele. Diz que a gente deveria se encontrar mais e que ele é a pessoa mais calma do mundo. Não deve estar muito longe da verdade. Ele tem fala mansa, fino humor e é muito cortês, dando a impressão de que faltou alguma coisa na minha educação. Minha família morava no apartamento 11 do número 1891 da Av. João Pessoa, em Porto Alegre. A dele, no apartamento 31. Jogávamos futebol todos os dias e, quando chovia, ficávamos em torno de uma mesa de botão (futebol de mesa). Lembro bem, ele era melhor do que eu em tudo, inclusive nos estudos.

Há uma ex-amiga que também faz aniversário hoje. Um amigo deu-lhe o melhor dos apelidos: PMDB, em razão da facilidade para aderir a quem lhe der maior vantagem no momento. A atuação do partido em 2015 só atribui maior exatidão à alcunha.

17 de abril. Por essas e outras é que acho que a astrologia nada mais é do que constelações. Na verdade, quando duas estrelas parecem estar lado a lado, uma pode estar a 50 anos-luz, e outra a 500. Além disso, não vemos as estrelas como elas estão agora, mas através do tempo. Se uma se situa a 200 anos-luz, isso quer dizer que a luz observada partiu de sua fonte há duzentos anos. A rigor, ignoramos até se essa estrela ainda existe.

Então, uma figura tranquila e outra hidrófoba — sei do que falo — podem parecer estar lado a lado, mas é uma mentira. É muito perturbador ver alguém tão querido ao lado de outra detestável no céu (equivocado) de minha memória.

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Do medo do Alzheimer, de meu não-casamento com Tolstói

Do medo do Alzheimer, de meu não-casamento com Tolstói

Minha mãe teve a doença e sua possibilidade é algo que me assusta, como não? É terrível a convivência e a manutenção de uma pessoa assim. Não quero ser um peso para os outros e a Elena e meus filhos não merecem. Então, trato de exercitar o cérebro. Faço contas de cabeça, leio, busco coisas na memória a cada momento.

E ontem dormi ouvindo a Rádio da Universidade. Eu e meu pai tínhamos um jogo que durou da minha infância até sua morte. Toda a vez que ligavávamos na Rádio da UFRGS — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou supertreinado em descobrir tudo o que ouço de clássico. Só que, lamentavelmente, hoje brinco sozinho, treinando contra o Alzheimer. Ontem à noite, começou a tocar uma obra complicada de adivinhar, mas eu, após, alguns minutos, pensei ter descoberto: era o Septeto de Franz Berwald. Quando terminou, aumentei o volume do rádio, mas ninguém disse nada. Logo entrou um concerto para violino. Fiquei puto, mas logo lembrei da greve e do direito e da boa razão dos trabalhadores. Então me atirei no meio dos discos e, depois de respirar muito pó, encontrei o Berwald e pus para tocar. Ufa, tinha acertado!

Os primeiros minutos depois de acordar são confusos para mim. Não sei em que dia estou nem o que tenho que fazer. Também a tristeza me invade com muita facilidade nestes momentos. Então, viro-me para o lado a fim de ganhar aquele “chorinho” de sono que me é certamente devido. Como complemento e para ganhar ainda mais tempo de consolo, abraço-me na Elena e a aceitação do abraço vai me arrancando da tristeza e dos pensamentos sobre a inutilidade de acordar e da vida. Mas hoje, virei-me, estendi o braço e nada. Tateei. Nada. Abri os olhos. Nada. Porra, mas o que houve? Querem me enlouquecer? Cadê a Elena? Revisei a memória pensando na chegada do alemão. Ela estava em casa ontem, não viajou. Ah, e está se recuperando de uma cirurgia! Será que teve uma crise de Tolstói e está numa estação da Trensurb? Saí da cama meio tonto atrás das alpargatas, abri a porta e lá estava ela, linda, dormindo na sala. Quando me aproximei, ouvi meu querido sotaque russo. Bom dia. Dormi às vinte para as seis e não quis te acordar. Vi toda a primeira temporada de Game of Thrones. Uma maratona. 

game of thrones

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Porto Alegre e o muro: a beleza oculta e a que dói de ver

Porto Alegre e o muro: a beleza oculta e a que dói de ver

Meu amigo Carlos, um paulista que nunca tinha visitado Porto Alegre, veio trabalhar aqui por alguns dias. Foi difícil conciliar nossos horários. Porém, lá por quinta-feira, ele me telefonou para dizer que passaria também o fim-de-semana na cidade e que desejava combinar um encontro em que eu teria de explicar-lhe umas coisinhas sobre a cidade. Marcamos para conversar na sexta-feira à noite, no Bar do Beto lotado, em meio ao maior barulho.

— Milton, me diz porque eu andei por todo o lado desta cidade e não vi o rio. Esta porra é um porto ou não?

— Olha, comecemos do começo, bem do começo. Parece que não somos banhados por um rio e sim por uma lagoa.

— ?!

— Pois é, na minha época de estudante, diziam que o Guaíba era um estuário, que é um tipo de foz mais larga que o normal. Mas agora virou lagoa… É que aqui deságuam vários rios que vão dar na Lagoa dos Patos…

— Não entendi nada, mas me diz porque eu não vi o rio.

— Não o procuraste direito.

— Mas eu andei pelo centro, pelo tal Mercado Público que devia estar na frente do porto e não vi nada.

— É que houve uma enchente em 1941 que inundou o centro da cidade, então construíram um enorme muro para evitar uma nova enchente, só que ela nunca ocorreu e, bem, ficamos com uma muralha que nos impede de ver do rio. Para vê-lo tem que entrar por uns portões. Dá para ver o muro do Mercado Público.

— Acho que vi. Mas como é que foi inundar a cidade se a água vai para uma lagoa que deságua no mar?

— Não sei, talvez os ventos tenham represado as águas por aqui.

— Pode ser. Mas você acha normal que construam um muro bem na frente daquele que seria potencialmente o cartão postal da cidade?

— Não, é totalmente anormal. Temos uma relação difícil com o rio.

— Lagoa.

— Sim, lagoa. Tens que ir mais longe para vê-lo, ou vê-la, desculpe.

— E o porto?
— Fica escondido atrás do muro.

— E por que o estádio Beira-rio tem este nome se fica ao lado de uma lagoa?

— Não sei. Provavelmente por ignorância e porque todo mundo chama o Guaíba de rio.
— E por que a rua principal do centro chama-se Rua da Praia, se não tem praia?

— É que havia antes, mas aí poluíram tanto que hoje só dá para olhar. É “imprópria para banhos”.

— Olhar? Com o muro na frente?

— É, já disse, é difícil de olhar, tem que caminhar um pouco.

— E as pessoas tinham que contornar o muro para tomar banho?

— Antes do muro não, né? Só depois. Mas no final da Rua da Praia não há muro.

— Ah.

— E por que todo mundo chama de Rua da Praia se o nome é Rua dos Andradas?

— Antigamente, há uns 50 anos, era Rua da Praia.

— Mas ninguém diz Andradas?
— Não, ninguém. Sabes que o nome da Av. Beira-rio é Av. Edvaldo Pereira Paiva?

— É?

— E que a Rua da Ladeira chama-se Gen. Câmara?

— Hum… Subi a ladeira. Há boas livrarias ali.

— E que o Estádio Olímpico, do Grêmio, tinha este nome devido aos Jogos Olímpicos de Porto Alegre?
— Que nunca aconteceram!

(risadas)

— E o rio, a lagoa, é bonitinha?

— Sim, muito. Tem um desenho de ilhas bem aqui na frente que é muito interessante.

— Só que não se vê.

— Sim, só se vê o desenho delas do alto de alguns edifícios..

— Vocês são uns neuróticos.

Naquele momento, passou uma morena equipada com um rosto e sorriso lindos. Meu amigo quedou-se mesmerizado.

— De onde saiu esta maravilha, Milton? Me explica isto! Estou estupefato. A beleza doeu fundo em mim. A beleza dói quando é excessiva. É injusto. É injusto para quem apenas vê sem tocá-la.

Ficou alguns segundos em recuperação.

— E as mulheres, como são?

Em 2011, foi feito um painel fotográfico de 45 metros de largura mostrando a vista que as pessoas teriam caso o muro não estivesse lá
Em 2011, foi feito um painel fotográfico de 45 metros de largura mostrando a vista que as pessoas teriam caso o muro não estivesse lá

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10 dias, 39 páginas; 1 dia, 70 páginas

10 dias, 39 páginas; 1 dia, 70 páginas

o-condenado-graham-greeneSou um cara insistente. Quando pego um livro ruim, tento ir até o fim. Sempre fiz isso. Gostaria de contrair imediatamente a Síndrome de Gambardella, personagem principal do filme A Grande Beleza. Ele dizia: “Tenho 65 anos, não posso mais perder tempo fazendo coisas que eu não quero fazer”. Pois ler sem vontade, ler achando ruim, é penoso. A gente lê e o pensamento sai por aí. A gente lê e lembra do Facebook. A gente lê e pensa na agenda, nos pagamentos. Quando avançamos duas ou três páginas, damo-nos conta de que nada se fixou na nossa mente e temos que voltar. É frustrante e burro. Chego a pensar se os 57 anos não estão queimando todos os neurônios, ou ano ao menos os destinados à leitura.

Eu estava às voltas com um traste desses até domingo. Então, ontem, olhei para minha hoje diminuta biblioteca e decidi pegar um dos confirmados. Escolhi um romance de Graham Greene, daqueles antigos. Tratava-se de uma tradução do célebre Brighton Rock — O Condenado, no Brasil. E simplesmente grudei no livro. A narrativa é elegante e inteligente. Pinkie, líder de uma gangue adolescente, quer tronar-se um mafioso na cidade inglesa de Brighton. Ele decide casar com a ingênua garçonete Rose a fim de comprar o silêncio dela sobre um assassinato que cometera. Mas há mais pessoas que sabem do fato.

Greene dividia seus livros entre os “sérios” e os “de entretenimento”. Jamais imaginaria, mas ele classificou Brighton Rock no segundo grupo. Toda aquela discussão sobre apenas acreditar no Diabo e no Inferno, caso de Pinkie, enquanto Rose também crê em Deus e no Paraíso e Ida, a perseguidora, na justiça terrena e no prazer… Tudo isso é entretenimento? Só para Greene e só em 1938. Hoje, Brighton Rock seria coisa muito séria.

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Um gênero de sacanagem no Facebook

Um gênero de sacanagem no Facebook

Alguém disse que a corrupção é como uma caixa de lenços de papel, tu puxas um e o próximo já está ali, se atirando para fora. É verdade, é descobrir a coisa e seguir o caminho do dinheiro. Tal caminho não deve ser tão complicado assim, a menos que haja um HSBC ajudando a fazer sumir a grana na Suíça. Aliás, a lista de brasileiros no HSBC será tão legal de ler quanto a do procurador Rodrigo Janot, onde dizem estar os presidentes da Câmara Federal e do Senado, Eduardo Cunha e Renan Calheiros.

As palavras em tom menor de Cunha — “Ninguém me comunicou de nada” –, sem nenhum arroubo de líder religioso, são estranhas. Ele deve estar na lista, sim.

Mas disso meus sete leitores sabem. É que eu vim trabalhar pensando nas listas de Janot e do HSBC.

.oOo.

FacebookPorém, ontem à noite, preocupei-me com outro tipo de sacanagem. Tenho visto o método utilizado por algumas pessoas para atacarem outras no Facebook. É simples. Digamos que eu queira me vingar de alguém, então vou lá e digo para meus amigos: “O fulano X disse que eu sou ruim assim. Vocês acham que ele tem razão?”. Há uma variação mais covarde que não diz quem é X. Então, os amigos procuram e acusam.

Acho de última categoria atacar alguém através da solidariedade dos amigos. É como esconder-se atrás da barra da saia de mamãe. É como chamar o irmão mais velho. Na idade adulta, é demonstração de covardia. É como gozar com o pau dos outros. Já sofri isso três vezes e detesto ver acontecer. Ontem, vi de novo, mas a vítima não era eu. Já fui vítima três vezes deste gênero de baixaria.

Reli os comentários do segundo ataque que recebi. À noite, comentei com amigos, pois, seis meses depois, a coisa é para rir em torno de uma mesa. Fui acusado de ser uma pessoa cruel por ter escrito, neste blog, sete palavras que não eram dirigidas a ninguém, mas cujo conteúdo serviu a “meu facefriend“, sabe-se lá como. Arranjei um desafeto. Como resposta a minhas palavras, este descreveu sua fantasia, esclareceu a crueldade cometida e mandou seus amigos comentarem, sem dizer meu nome. No meio, é claro, alguém falou em mim em tornei o monstro que o autor planejara. Claro que quem mantém aqueles comentários é o responsável por eles e pode ser processado, mas quem tem saco para isso? Eu não.

O bom do Facebook é sua transitoriedade, seu caráter de palimpsesto, ou seja, seu caráter de ser “aquilo que se raspa para escrever de novo”. Uma semana depois, a acusação poderá ser encontrada através de muitos cliques. Melhor esquecer mesmo.

E ontem, vi um desses ataques. Um sujeito deixou um recado do tipo “olha só o que ele fez, olha só como ele é”. Ui.

O que isto tem a ver com a corrupção dos primeiros parágrafos? Além da baixaria, nada.

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Sete dias e sete disparates de 2015

Sete dias e sete disparates de 2015

1. Cora Rónai, de quem tinha tinha até esquecido, iniciou o ano ofendendo a presidente, mas depois desculpou-se. A filha de Paulo Rónai, este sim um grande cara, criticou até o andar desajeitado e deselegante de Dilma. Cora foi a grande estrela do feriadão de ano novo. Deve caminhar de forma ir-re-sis-tí-vel.

2. Outra estrela foi o novo governador gaúcho. O homem que não gosta de falar à imprensa suspendeu pagamentos de fornecedores por seis meses. Na verdade, acho que o gringo quer renegociar os débitos. Ao lado deste começo austero, Sartori pode sancionar aumentos para ele mesmo, seu vice, deputados e secretários. Aguardemos.

3. Anteontem, Vitório Piffero reassumiu a presidência do Inter. Ele parecia ter várias contratações na manga, mas não tinha não. Nós, os vermelhos, estamos passando opacas férias futebolísticas. Dizem que hoje o clube apresentará o lateral-direito Léo, reserva no Flamengo. Putz.

4. Kátia Abreu disse que não há latifundiários no país. Ela é Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e latifundiária.

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5. Hoje um grupo muçulmano invadiu a redação de um jornal satírico em Paris, mais exatamente do Charlie Hebdo. Matou dez pessoas. Como parte da imprensa nanica e revanchista, fiquei preocupado.

6. Ontem, o piso dos professores foi reajustado em 13,01%, passando para R$ 1.917,78. O reajuste — corretíssimo e acima da inflação — torna cada mais longínquos os sonhos de Sartori e do secretário Vieira da Cunha. Novamente, ¡no pagarán!

7. O último disparate já foi citado por este blog: é a proposta de retorno do mata-mata no Campeonato Brasileiro, articulada pelo presidente do Grêmio Romildo Bolzan Jr. Detalhe: todos os outros campeonatos no Brasil já são mata-mata e sem público.

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8. Mas ontem à tardinha tivemos uma bela notícia. Só que é pessoal, gente.

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Em Pelotas, numa noite que deveria ter sido mais longa

Em Pelotas, numa noite que deveria ter sido mais longa

Isso ocorreu na quinta-feira, 27, mas só agora deu tempo de escrever a respeito.

Eu gosto muito de Pelotas. É uma cidade mais viva e cheia de personalidade do que o normal do interior do RS. Empobreceu nas últimas décadas, mas permanece com uma vida cultural muito mais ativa do que, por exemplo, os endinheirados da serra gaúcha. O comportamento dos pelotenses também é diferente. Exemplos: lá eles não torcem prioritariamente para Inter e Grêmio e sim para Brasil e Pelotas, tendo ainda o contraponto do Farroupilha. Mais um exemplo: a vida musical da cidade é ativa, com um alto número de espetáculos e festivais — proporcionalmente ao tamanho da população e ao estado em que vivem. Como o de Festival de Jazz, recém finalizado com a presença de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos. É mole?

Só por isso já seria uma honra ser convidado para falar com os alunos de Jornalismo da UFPEL, mas havia mais. Quando cheguei à cidade, me aguardavam os professores Eduardo Silveira de Menezes acompanhado de outro professor, Ricardo Fiegenbaum, e de um cara que conhecia há quase 40 anos, e com o qual falara talvez uma vez, lá nos meus curtos e confusos tempos da Fabico. Naquela época, o Prof. Jairo Ferreira era um aluno incomum, pois era uma importante figura do DCE (presidente, senão me engano…), militando no partido com o qual eu mais simpatizava na época e em cujo candidato Lauro Hagemann votava: o PCB. Jairo era o segundo mais votado na rarefeita lista de candidatos comunistas. O reconhecimento de Jairo e o tratamento recebido na chegada à cidade foram muito estimulantes, porque vou contar uma coisa a vocês.

Eu sou um péssimo palestrante. Atrapalhado, sem técnica, às vezes nervoso, muito preocupado com o conteúdo e sempre surpreso por estarem me ouvindo, acabo por fazer resumos do que penso terem sido, horas antes, gloriosos ensaios. Mas, de vez em quando, a coisa funciona. Creio que funcionou no StudioClio com a Joana Bosak e funcionou novamente em Pelotas com o Prof. Jairo Ferreira. Ou talvez tenha sido a gentileza com que fui tratado pelo Prof. Eduardo Silveira de Menezes antes, durante e depois da palestra, ou o fato de falar para jovens, ou a proximidade do Bento Freitas. Não sei. Só sei que pela segunda vez na minha vida fiquei satisfeito com minha participação em uma palestra.

Mas sei que os méritos foram do Jairo, que sistematizava a torrente de argumentos e fatos que eu vomitava. O cara é tão bom e inteligente que tratou seguir os dados e informações que eu divulgava, buscando argumentos em sua erudição e num estudo de um aluno seu sobre a Lei de Meios, que apareceu coerente e inesperadamente na palestra improvisada. Ah, pois é: não disse o tema da palestra: era A função social do jornalismo. As possibilidades de se fazer um jornalismo comprometido com o interesse público. A ênfase era no Sul21, claro.

Depois do encontro, fomos a um espetacular restaurante. A conversa também era excelente. Comi a entrada e… Bem, quase morri lamentando para o Prof. e GPS Fábio Cruz o fato de ter que retornar a Porto Alegre no ônibus das 23h30. O prato principal foi apenas “provado” por mim, pois chegara á mesa ás 23h10… Pecado grave, deixei um copo de Patricia pela metade, imaginem! Mas o fato é que fiquei muito feliz de ter conhecido aquele grupo de pessoas e, na próxima oportunidade, se eles tiverem a coragem de me reconvidar, vou dar um jeito de comer e beber decentemente com eles.

Um idiota com o olhar perdido e o Prof. Jairo Ferreira
Um idiota com o olhar perdido e o Prof. Jairo Ferreira
Jairo Ferreira despeja coerência ao lado de um cidadão que não se encontra.
Jairo Ferreira despeja coerência ao lado de um cidadão que não se encontra.
Ele fala enquanto olha para o nada, provavelmente
Ele fala enquanto olha para o nada, provavelmente

Jairo Ferreira respondeu no Facebook:

Um belíssimo encontro com o Milton RibeiroRicardo FiegenbaumEduardo Silveira de MenezesGilmar Hermes, na faculdade de jornalismo na UFPEL.

Relatos de experiências. Para mim, discussão da lei dos meios articulada com a midiatização da sociedade. Coisa que comecei a pensar estimulado pela pesquisa do Eduardo Covalesky Dias, na UFPR, sobre as leis dos meios na Argentina. Coincidências. Estava na Argentina quando da mobilização pela lei dos meios. Isso ajudou na conversa.

Quem continua jovem é o Milton. Ideias jovens.

Inquietações juvenis. Ouvidos que não envelheceram. Olhar que não necessita de lentes para ver. Um jornalista. Seu rico relato me permitiu fazer inferências sobre a conjuntura dos meios que não tinha ainda feito.

De sobra, a novidade foi encontrar Milton falando como observador de minha adolescência militante. Não era presidente do DCE da UFRGS. Era da diretoria, responsável pela atividades culturais. Promovemos o primeiro festival da arte universitária, período da abertura. Fui presidente do DABICO, onde participei e liderei, com muitos colegas, a primeira greve por melhores condições de ensino na faculdade de jornalismo. Era do PCB, mas militava, no começo, com tendência do PC do B.

Eu, um cara que tento “botar a lógica” nisso que chamamos de comunicação, aprendi muito com o relato sobre o Sul21. Me senti envelhecido ao lado de suas preocupações típicas de um jovem jornalista.

Mas tudo rejuvenesce, sim, como bem diz o Milton, em Pelotas. Pelotas é uma cidade. Cidade maior. Cidade que lembra a minha infância, seis anos depois de ter nascido em Porto Alegre, com longas pescarias na Lagoa, no Canal e até na barra dos molhes em Rio Grande. Lembra meu avô negro, o Otacílio, filho de escrava alforriada, casado com minha avó Maria José, filha de um português pouco simpático. Anos depois, minha primeira esposa, minha primeira grande paixão, descendente de alemães. Dos casarios, com suas telhas portuguesas, à ditadura endurecendo em 68, com repressões aos movimentos estudantis. Lembra o sangue dos estudantes reprimidos.

Enfim, viva. Não só porque tem muitos restaurantes de qualidade, sempre ativados pelos olhares e escutas.

Mas, principalmente, porque Pelotas é onde também se vê estudantes em campanha defendendo a derrubada dos muros. Das fronteiras. Adeptos da osmose absoluta. Românticos e utópicos que me fizeram voltar feliz, mesmo que esteja, tanto tempo depois, sempre tentando entender porque somente alguns muros caíram e outros ficaram mais fortes.

Voltei mais militante pelo sucesso da experiência do Sul21. Prometi ao Milton que vou pensar nisso, tão logo minha intensa agenda acadêmica me permita fazê-lo.

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Walk On The Wild Side

Walk On The Wild Side

fazendo xixiO título da grande canção de Lou Reed talvez não tenha relação direta com meu assunto. Afinal, o livro de Nelson Algren que inspirou o filme e a canção é uma longa pergunta sobre o motivo que leva algumas pessoas sem rumo a tornarem-se mais humanas e interessantes do que os certinhos. Não vou analisar se eu e a Elena somos certinhos ou não, mas o fato é que nós fazemos algo docemente perigoso quase todas as noites. Quando é possível, a gente sai para caminhar. Simplesmente isso. E vamos aprendendo sobre a cidade.

Não chega a ser um passeio pelo lado selvagem, mas certamente é um passeio sem policiamento. O pessoal do roubo tem nos ignorado nas caminhadas pelo Bonfim e arredores. E têm razão, pois levamos apenas nossos corpos dentro de roupas mais ou menos velhas. Dia desses, fomos até o Garcias`s lá na Av. Praia de Belas, tomamos uma canja e retornamos. O Google Maps diz que foram 3 Km até lá. 6 ao todo. E fizemos tudo isso sem ver um guarda. Digo a vocês, meus queridos sete leitores, que só vi policiamento à noite em nossa cidade nos dias da Copa do Mundo. E lhes digo, quando ela está bem, não é possível impedir que a Elena saia para passear à noite. Ela adora e comecei a gostar também.

Outra coisa. A Elena passou anos andando pela cidade de carona. A vida sem carro é uma novidade para ela. E ela faz elogios à cidade. Quem nasceu aqui não a valoriza, mas ela garante que é uma bela cidade. Ao menos do ponto de vista visual, pois a parte olfativa não é muito boa. A esquina da Santo Antônio com a Irmão José Otão — sim, a Vasco muda de nome na João Telles — tem uma árvore ao lado de um ponto de táxi. A árvore serve como mictório do pessoal. Que tal colocar um banheiro químico ali, prefeito? No fim de semana, próximo ao Bar Beco, a Av. Independência também ostenta um indisfarçável cheiro de mijo. Como há enormes filas para entrar no bar, é óbvio que a garotada se alivia ali mesmo na calçada. O cheiro só fica melhor depois da chuva.

Bem, se fazer xixi a céu aberto é algo selvagem, caminhar nas ruas de Porto Alegre é mesmo Walk On The Wild Side.

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A acadêmica é a mais violenta das vaidades II

A acadêmica é a mais violenta das vaidades II

haterDia desses, lembrei muito deste post que foi muito lido em 2013. Um amigo me avisou que estou sambando errado. Explicando melhor, um acadêmico me escreveu para dizer que estou me relacionando com os acadêmicos errados. Os últimos seriam pessoas desonestas e perigosas. Explicando ainda melhor, e pegando a coisa desde meu foco, uma pessoa com a qual convivia muito antigamente e que hoje infelizmente pouco vejo, solicitou que eu me afastasse de amigos que me tratam há anos com respeito e carinho. Estranhei, né?

Tentei por panos quentes. Respondi que não tinha negócios com eles, que eram apenas agradáveis amigos de jantares e festas, que meu contato não era profissional e que minha carteira ainda não fora roubada. Tentando deixar a coisa engraçada, completei dizendo que ficava com os ovos, conforme a piada de Groucho Marx.

O sujeito vai ao psiquiatra e diz: ‘Doutor, meu irmão enlouqueceu, acha que é uma galinha.’ O médico pergunta: ‘Por que você não o interna?’ E ele responde: ‘Eu preciso dos ovos.’

A resposta veio direto na jugular. Meu amigo estava decepcionado comigo, não sabia que minha vida era tão segmentada. Foi ofensa que me atingiu só de raspão. Toda a minha vida — essa notável sucessão de erros e poucas vitórias –, demonstra que meu percurso tem um conceito, provavelmente equivocado, que o apoia. Dentro dele há boa dose de tolerância. Só me ralo por ser assim, mas vejo como mudar. A tolerância não me deixou dar grande importância ao fato, mas sei que houve uma tentativa de ofender gravemente o dono da vida “tão segmentada”. O curioso é que não pedi conselho nenhum.

O genial poeta e ensaísta Joseph Brodsky ensina que as pessoas costumam ignorar o que vem após o vaticínio “e se alguém lhe solicitar acompanhá-lo por uma jarda, vá com ele mais cem”. Ele diz que vem a humanidade. Não desisto facilmente de ninguém. Nem do conselheiro. Mas seu conselho ficará arquivado, esquecido.

Agora, que os títulos e diplomas são alucinógenos altamente nocivos, disso não tenho dúvidas. Ainda bem que os sintomas não se manifestam em todos.

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Ah, tá, vai contar pra mim que tu não é imigrante?

Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Caxias auxilia os ganeses a encaminhar documentos | Foto: Rafael Lopes/ Câmara de Vereadores de Caxias do Su
Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Caxias auxilia os ganeses a encaminhar documentos | Foto: Rafael Lopes/ Câmara de Vereadores de Caxias do Sul

Minha namorada é uma brasileira nascida em Mogilev, na Bielorrússia. Eu sou um brasileiro neto de portugueses nascidos numa pequena localidade próxima de Aveiro, em Portugal. Minha namorada chegou aqui com menos de 30 anos de idade, é altamente qualificada e logo conseguiu emprego. Depois, fez concurso para uma orquestra sinfônica, obtendo vaga. Meu avô, de formação menos sofisticada, chegou mais ou menos com a mesma idade e trabalhou como estivador em Porto Alegre. Depois, o velho Manuel abriu sua padaria, chamada Lisboa.

Nossos imigrantes adoram contar histórias fantasiosas de suas famílias. A maioria delas é absolutamente mentirosa. O pessoal veio para cá porque era pobre. Muitos passaram fome. Ninguém era nobre nem tinha ligações com a realeza. Somos quase todos imigrantes recentes. A maioria de nós, brasileiros, somos netos e bisnetos de famílias pobres europeias que estão aqui há menos de dois séculos. Se não somos descendentes de europeus, somos descendentes de escravos que chegaram antes dos primeiros por aqui.

Acho triste, acho revelador de pobreza de conhecimento de sua história familiar e do Brasil, quando alguém reclama dos haitianos, dos médicos cubanos e agora dos ganeses. Somos quase todos imigrantes. E recentes.

Além do mais, quando se torce o nariz — especialmente para os que chegam dos países citados acima — há racismo embutido. E há também o preconceito de classe. Afinal, haitianos, cubanos e ganeses são gente normalmente pobre. Assim como meus parentes, eles passavam fome no local onde nasceram ou moravam. Que coincidência, não? Se fossem brancos europeus, talvez fossem saudados como pessoas do primeiro mundo reconhecendo boas possibilidades em nosso país. Já li reportagens ufanando-se disso.

Há imigrantes que, como os haitianos, cubanos e meu avô, vieram simplesmente buscando oportunidades, mas há aqueles que vieram atender nossas necessidades de mão-de-obra. Seus fluxos migratórios atendem à demandas por força de trabalho no Brasil, onde determinadas ocupações já não são preenchidas apenas por brasileiros, como operários da construção civil, empregadas domésticas, costureiras, etc.

A imigração é um fenômeno mundial, assim como a exploração das fragilidades dos imigrantes. Assim, devem ser protegidos e auxiliados. O fato da maioria de nossos antepassados ter sido explorada quando aqui chegou é mais um motivo para tratarmos bem os que, agora, chegam em busca de sustento para construir nosso país. Esse papo crescente de ajudar os brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, do está ruim sem vocês, pior com vocês, é de uma tolice vergonhosa. Ainda vindo de quem não suporta o Bolsa-Família…

Não penso que o velho Manuel tenha vindo para o Brasil a fim de roubar o emprego de algum brasileiro que chegou um pouco antes. Não gostaria de pensar que ele sofreu preconceito. Então, tratemos os ganeses como seres humanos que estão fazendo agora o que nossos ascendentes fizeram há pouco tempo, tá? Não é gente inferior, não. É gente necessitada, apenas.

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Sim, vou torcer para o Chile, e daí?

Sim, vou torcer para o Chile, e daí?

Sim, eu sou brasileiro e me preocupo com o Brasil mais do que a maioria de nós, acho. Não que tenha passado noites em claro após as vaias pouco gentis dirigidas à Dilma, não que tenha me indignado muito durante a AP 470 — o mensalão –, mas fico feliz com o fato de sermos a sétima maior economia do mundo, com nossa recém adquirida e pouco testada estabilidade, com o reconhecimento do mundo, etc. e infeliz com nosso Complexo de Vira-Latas, com o Fator Previdenciário e com a baixíssima qualidade de nossa educação. Ou seja, sou um brasileiro normal, daqueles que se ufanam de forma contida. Por exemplo, vou ao exterior e gosto de dizer que sou brasileiro; fico no Brasil e não me sinto inferior por ter nascido nessa terra.

O patriotismo é o último refúgio do canalha.
Original: Patriotism is the last refuge of a scoundrel.

Samuel Johnson. Fonte: The Life of Samuel Johnson, de James Boswell (1791)

Mas tem uma coisa: não me peçam para torcer para a Seleção Brasileira. Isso eu não faço. O Ricardo Teixeira, o Marín e a CBF não me representam e há anos sinto-me liberado para torcer para qualquer outro time. (Notem: escrevi “time”, não país). Vejam bem, não sou ingênuo a ponto de achar que uma derrota vai mexer na eleição, na estrutura do futebol do país ou na política de uma forma geral, nada disso. Apenas, repito, sinto-me liberado.

O mundo jamais será tranquilo enquanto não se extinguir o patriotismo da raça humana.
Original: You’ll never have a quiet world till you knock the patriotism out of the human race.

Bernard Shaw. Fonte: “Heartbreak house: Great Catherine, and playlets of the war”, Volume 7 (1919)

Torci contra o Brasil em 1974, preferia a Holanda. Torci a favor em 1978, pois não queria ver a Argentina campeã. Novamente torci a favor em 1982, tudo pela beleza do futebol. Torci contra em 1986, era Argentina e Maradona, como no? Não lembro o que fiz em 1990, mas, em 1994, só torci para o Brasil na final. Não vou citar todas as Copas, mas na de 2002, vejam só, fui brasileiro.

Eu também já fui brasileiro
Moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.
(…)

Carlos Drummond de Andrade. Também já fui brasileiro. Fonte: Alguma Poesia (1930)

Agora eu ligo a TV e vejo Ronaldo Nazário ao lado de Galvão Bueno. Ouço o narrador torcer loucamente e ver coisas sobrenaturais que justificam qualquer erro de arbitragem. Como posso me agregar àquilo? Por outro lado, vejo um time de um pequeno país, com um jogador brilhante que joga no meu Internacional de Porto Alegre (Aránguiz), com um esquema de jogo que varia de jogo para jogo e que nunca deixa o centroavante isolado (3-5-2, 3-4-3 e 4-3-3), bem, aí eu me apaixono, entende?

Patriotismo é a convicção de que o país da gente é superior a todos os demais, simplesmente porque ali nascemos.
Original: Patriotism is your conviction that this country is superior to all other countries because you were born in it.

Bernard Shaw. Fonte: “The Public: A journal of democracy”, Volume 13 (1910)

Sim, sábado, vou torcer para o Chile, e daí? Depois, talvez torça para a Holanda ou outro. Comigo não funciona esse troço rodrigueano da “Pátria de Chuteiras”. E eu desafio meus sete leitores a dizerem que trocariam um campeonato de seus times pelo hexacampeonato do Brasil. Eu não trocaria nem o Gauchão deste ano com suas duas vitórias sobre o Grêmio.

Charles Aránguiz
Charles Aránguiz

A única coisa que me dá orgulho nacionalista nesta Copa é que somos excelentes anfitriões e vai dar tudo certo em termos de organização. Sim, sei que construção, no Brasil, é sinônimo de corrupção, mas sou assim mesmo, confusamente volúvel.

Sou Internacional e Benfica. De resto, no futebol, sou coisa nenhuma. (Aliás, sou é a líder estudantil e deputada chilena Camila Vallejo).

Camila Vallejo
Camila Vallejo

E nada tenho contra quem torcerá a favor. Por que teria?

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Muito além da tréplica

Muito além da tréplica
O grande zagueiro Elias Figueroa
O grande zagueiro Elias Figueroa

É sabido que desconhecidos, ao tentarem uma conversação, costumam introduzir, como que tateando o novo terreno, um assunto neutro, algo como a previsão do tempo. É sabido também que, logo após a tréplica, a conversa derivará para qualquer outro tema mais interessante. Só em Porto Alegre é diferente. Não há aqui assunto mais fundamental do que a previsão do tempo. Somos uma cidade de meteorólogos amadores. Sempre foi assim. Mesmo antes do efeito estufa, nosso clima já era imprevisível e existia uma real preocupação com ele. Portanto, se você vier para cá, saiba que o tempo é um grande assunto.

Também somos uma cidade pouco beneficiada pela natureza. Então, ufanamo-nos de possuir o mais belo pôr-do-sol do mundo, de sermos a cidade de melhor qualidade de vida do país, o povo que mais consome livros por habitante e de termos as mais belas mulheres. O último é o único fato comprovável, os outros dois devem ser mentirosos. Da mistura dos casais açorianos que a fundaram, dos portugueses que organizaram o mercado do porto, dos alemães que fundaram o odioso Grêmio, dos simpáticos sapateiros italianos que criaram o amado Internacional, dos negros que o jogaram melhor e das etnias que vieram depois, nasceu este ser único: a mulher porto-alegrense.

Só quem nos visita sabe como são as mulheres daqui. Nossa cidade e a de Passo Fundo, no interior do estado, são as recordistas de casamentos desfeitos no Brasil, fato estatístico que deixa as esposas perturbadas, agressivas ou vingativas, as solteiras confiantes, as “liberais” satisfeitas e os homens um pouco mais bocós. As estatísticas também apontam outro fato sublime: aqui, elas estão em maioria.

Os acontecimentos da vida privada das pessoas comuns normalmente carecem de confirmação, suas intimidades não costumam ir para os jornais, mesmo assim, já o das celebridades… Vou dar-lhes um pequeno exemplo dos problemas que Porto Alegre pode provocar. Certa vez, veio para o Inter um grande jogador: o zagueiro chileno Elias Figueroa. Ele chegou e já no aeroporto declamou Neruda. Imaginem um jogador bonito, alto, forte, moreno, com a cabeleira rebelde dos anos 70 e entonação estudada, dedicando um poema de amor à esposa Marcela, a seu lado, dentro o aeroporto, cercado por repórteres. Era um grande jogador e um publicitário, sem dúvida. No dia seguinte, os jornais estampavam as fotos do chileno e todos puderam ver de quem se tratavam, um e outro: Figueroa era um adônis, já Marcela era uma moça simpática. Porém, morando aqui, seria preciso muito mais para que o zagueiro mantivesse inexpugnável sua fidelidade. Rapidamente, ele tornou-se um símbolo tanto do Inter bicampeão brasileiro, como das mulheres que gritavam seu nome. Inabalável na defesa de seu clube, a resistência de Figueroa às porto-alegrenses foi pouco a pouco tornando-se mais sorridente. Primeiro, o chileno respondia com aceninhos às fãs, depois passou a dar autógrafos perguntando carinhosamente o nome das mulheres e alongando os diálogos muito além da tréplica. Neste período feliz, declamava poesias de amor nas rádios, mas agora sem dedicatórias à Marcela. Sabíamos, claro, que logo ocorreria o inevitável: ele acabou por focar sua atenção numa misteriosa mulher que o esperava dentro de um automóvel após os treinos.

Aquilo foi demais para Marcela. Pegou os dois filhos do casal e, encastelada no Chile, avisou ao presidente do Inter que seu marido voltaria para a casa no final do ano. Ela exigia seu retorno por motivos “de família”. O fato era motivo de piadas entre os torcedores do Grêmio e de temor entre nós, os do Inter. Neste ínterim, o futebol do chileno vicejava luxuriante. Ele agregara românticos dribles a seu futebol de resultados e era mais e mais amado pela torcida que comemorava, apesar de receosa da possível vingança de Marcela. E ela veio. Foram reuniões e mais reuniões para tentar demover Dom Elias, mas ele, como bom católico, rescindiu seu contrato com o clube no final de 1976. Perdeu muito dinheiro. O homem que enfrentava os mais perigosos atacantes voltou para a casa feito um cachorrinho. Como é uma das glórias do clube, visita até hoje Porto Alegre, sempre vigiado pela onipresente, modesta e simpática Marcela. Em 1977, quase fomos para segunda divisão. Tudo por culpa da mulher do carro.

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Balzaquianas e Kafkianos

Balzaquianas e Kafkianos
Balzac, escultura de Rodin | Foto: Milton Ribeiro
Balzac, escultura de Rodin | Foto: Milton Ribeiro

A Mulher de 30 Anos é um dos piores livros de Honoré de Balzac. Certamente, é o pior que li. Logo ele, um minucioso criador de personagens e tramas, escreveu um história frouxa, desarticulada e meio sem pé nem cabeça. Devia estar apressado e premido por dívidas, o que frequentemente lhe acontecia. Poderia citar uma dúzia de excelentes romances perfeitos de Balzac, mas este é de matar. Apesar disto, seu belo título inspirou-nos a criar o termo “balzaquiana” no Brasil. Esta palavra, que só existe em nosso país, serve para caracterizar as mulheres na faixa dos 30 anos, como no título da obra. Na época de Balzac e mesmo depois, a idade de 30 anos era um turning point decisivo para as mulheres: ou estavam caindo fora do mercado casamenteiro para tornarem-se tias — tolerados fracassos sociais, bem entendido — ou, se estivessem vivendo casamentos infelizes, estavam perplexas ante o irremediável, como a personagem de Balzac. Isto excita nossa imaginação, mas…

Dos 17 volumes das obras de Balzac editadas e reeditadas pela Globo (com traduções impecáveis de gente como Mário Quintana, Paulo Rónai, etc.), li uns 12. Posso dizer que as balzaquianas são a exceção da obra de Balzac. As verdadeiras balzaquianas — as que estão nos romances — são as jovenzinhas e as tias velhas, nunca as mulheres de 30 anos. Nossa confusão criou uma expressão culta e… equivocada, pura fantasia sobre o nome de um livro. O autor não deu maior atenção aos problemas das trintonas.

kafka metamorfosePorém, além das mulheres balzaquianas, existem as situações kafkianas. Este não chega a ser um equívoco, mas reduz a obra de Kafka. Cada vez que alguém está numa situação que não compreende, passa a vivenciar uma “situação kafkiana”. Concordo que parte da obra de nosso homem de Praga seja dedicada a problemas de natureza insolúvel, e incompreensível, mas e o resto? O fato literário mais típico e perturbador da obra de Kafka é a revolucionária e insistente utilização da parábola. Esta sim é kafkiana. São parábolas pesadas, porém não são assim tão incompreensíveis. Segundo o dicionário Aurélio, um dos significados da palavra parábola é o de ser uma “Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior”. Não é a descrição perfeita de um Franz Kafka menos kafkiano?

Acho que as fotos do autor também contribuem para a confusão. Quase sempre sério com suas orelhas de abano, ele parecia um solitário atrapalhado com a vida. Porém, na verdade, tratava-se de um namorador habitué dos cafés de sua bela cidade. Sua característica mais estranha era a de não conseguir criar se o ambiente não fosse 100% silencioso, o que não é tão incomum. Assim sendo, ele acabou criando sua grande obra dentro de uma pequena casa dentro do Castelo de Praga onde sua irmã morava. Quem conhece Praga, sabe que kafkiano mesmo é o cara subir aquela escadaria interminável todos os dias após o trabalho. Ali sim, ele podia escrever.

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Com o assassino nos ouvidos

Com o assassino nos ouvidos

Passarinho que dorme com morcego acorda de cabeça para baixo.
Provérbio português

Quem leu Cortázar direitinho sabe quem é Gesualdo da Venosa, casualmente o sujeito aí à esquerda. Aquele pessoal da Renascença não era mole. Passei grande parte da quarta e quinta-feira com os fones ligados, ouvindo Gesualdo, um sujeito nascido em 1566 que merecia ser conhecido por sua música e não apenas por ter cometido um espetacular assassinato.

O príncipe Gesualdo — pois ele era um príncipe — casou-se aos 26 anos com sua prima, Maria d`Avalos. Foram alguns anos de um casamento feliz — provavelmente só na opinião do marido — e Maria começou um caso com Fabrizio Carafa, Duque de Andria. Com raras (e mui honrosas) exceções, o corno é o último a saber; ou seja, toda cidade sabia, menos o proprietário das frondosas peças. Talvez fosse esperado que, ao descobrir com quem sua Maria se deitava, o Príncipe da Venosa tivesse uma reação blasé, mais ou menos como um francês do século XIX… Nada disso! Gesualdo deve ter pensado que “Corno que sabe e consente, bem age quem lhe acrescente…”, e tratou de vingar-se. Vamos ver o que fez Gesualdo.

Num belo dia de outono, ele preparou algo que lhe servisse como aquecimento: uma caçada com amigos. Nada melhor que um pouco de sangue para alguém quem traz um desejo de morte na alma. Então, em meio à caçada, Gesu resolveu ver como andavam as coisas em casa, digo, no Palazzo San Severo. Severo? Severíssimo! Testemunhas disseram que Gesualdo pediu que os empregados segurassem Fabrizio, dando-lhe um lugar confortável onde pudesse ver o primeiro ato da cena. Então, dedicou-se à mulher, enfiando-lhe a espada diversas vezes em locais, digamos, não fatais. Como Maria custasse a morrer, ele berrava “Ainda não?, Ainda não?” e seguia perfurando a pobre adúltera. Na segunda parte, ministrou tratamento semelhante a Fabrizio, com resultado análogo. Contudo, antes, fez o Duque de Andria trajar um vestido de noite de Maria. As roupas de Fabrizio foram encontradas limpas e sem marcas de violência.

Completou a obra deixando os corpos bem na frente de seu castelo, de forma a mostrar como se faz à cidade de Nápoles. A atitude criminosa e sanguinária foi cantada em versos por Tasso e admirada em toda a Europa. Virou tema de ópera, poemas e peças teatrais.

Mas voltemos ao caso. Vocês estão pensando que ele foi preso, não? Nada disso, os nobres nunca eram presos; havia para eles uma pizza institucionalizada. Porém (ah, porém…), um outro nobre podia vingar-se dele numa boa. Após o crime, Gesualdo arranjou outra mulher e isolou-se, compondo sua maravilhosa (mesmo!) obra musical. Aquele aristocrático napolitano só foi reconhecido nos primeiros anos do século XX. Tinha uma linguagem avançada que incluía dissonâncias, progressões harmônicas, ritmos contrastantes, passagens diatônicas, cromatismo, etc. Stravinsky erigiu-lhe um monumento musical — o Monumentum pro Gesualdo (1960) –, Julio Cortázar dedicou-lhe com conto; Anatole France, um romance (Le puits de Sainte-Claire); e Aldous Huxley várias páginas de seu As Portas da Percepção (The Doors of Perception).

Só que eu escrevi um “ah, porém” ao estilo de Paulinho da Viola. O motivo é que, vinte anos depois da morte da mãe, o segundo filho do casal Gesualdo e Maria d`Avalos resolveu vingar-se, matando o pai que assassinara sua mãe quando era bebê. A vingança é um prato que se come frio e, com mais esta morte, pegamos um dos pingos do sangue de Gesualdo a fim de colocamos um ponto final a este post.

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O caso Woody Allen: abuso não se relativiza, mas há que provar

O caso Woody Allen: abuso não se relativiza, mas há que provar

Provavelmente, as acusações de abuso que feitas a Woody Allen sejam mesmo verdadeiras, que o diga seu casamento. Abuso é uma coisa que não pode ser relativizada — é uma violência inaudita, é crime e ponto. Não me venham com papos de que o(a) menor estava pedindo e outras explicações, etc. A responsabilidade é sempre do adulto. Não posso afirmar com certeza, é claro, mas apostaria que Allen é um escroto do gênero abusador.

Estas questões são muito complicadas. Aqui e ali, ouço relatos do gênero “fui abusada(o)” desde que me conheço por gente. Todos feitos por adultos. Sabe-se que a criança abusada raramente acusa. A maioria sente-se impotente para fazê-lo, até porque muitas vezes trata-se de alguém conhecido ou muito próximo. Na maioria das vezes, o abusador é uma pessoa normal, até mesmo querida pelas crianças e pelos adolescentes. A vítima tem a impressão de estar errada, de ser ela o problema e poucos casos são denunciados no momento em que ocorrem. Parece algo auto-imune.

Hoje, Allen tem 78 e Dylan 28.
Hoje, Allen tem 78 e Dylan 28.

Tive a sorte de ter passado longe de tudo isso, mas, como dizia, ouvi relatos dolorosos e verdadeiríssimos e outros que são realmente difíceis de acreditar. Na verdade, não acredito em apenas um. A pessoa tinha o vício de ser vítima em todas as situações e só anos depois dei-me conta de que as circunstâncias narradas eram absolutamente impossíveis, dado o ano a que “o conto” remetia. (Havia uma situação-chave cujo contexto simplesmente não existia no final da década de 70, início dos 80…). Mas a narradora parecia acreditar inteiramente no que dizia e chorava enquanto falava. O filme A Caça mostra que a questão do abuso tem de ser comprovada, que não basta apenas a acusação.

Tais complicações também existem na família Allen-Farrow: a loucura não está ausente nela. Acho que Mia Farrow não cabe em nenhum modelo de normalidade e guarda enorme ódio a Allen. Mas é mãe da vítima, que fora adotada pelo casal. Também acho que Allen não cabe no citado modelo, mas nunca foi a um tribunal se explicar, né? Ele apenas nega o fato como “falso e vergonhoso”. Apesar do que suponho, nada do que dizem dele foi provado. O que se sabe é que Dylan diz que houve um episódio horrível e nós sabemos que era uma casa de malucos. Então, o linchamento de seu nome é meio irresponsável, não?

Depois, quando eu digo que o mundo é complexo…

Tenho a cabeça aberta sobre sexo. Eu não estou acima de qualquer suspeita, quando muito, estou abaixo delas. Digo, se eu fosse pego num ninho de amor com 15 garotas de 12 anos de idade amanhã, as pessoas iam pensar: é, eu sempre soube disso a respeito dele.

Woody Allen, na revista People em 1976.

.oOo.

Saiu agora no Uol (05/02/2014, 15h30) o que reproduzo abaixo:

Filho de Allen e Farrow defende o pai e diz que mãe o fez odiá-lo por anos

Moses Farrow, filho adotivo de Woody Allen e Mia Farrow, se pronunciou a respeito das declarações de sua irmã Dylan, que, em carta aberta ao “New York Times”, acusou o pai de ter abusado sexualmente dela quando ela tinha sete anos de idade. Em entrevista à revista “People”, Moses defendeu Allen e culpou a mãe por toda a situação.

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Além de feia, a palavra “empoderamento” é confusa

Além de feia, a palavra “empoderamento” é confusa

Eu não gosto desta palavra. Em primeiro lugar porque é feia — tem um som horrível e o verbo empoderar é de matar –; em segundo lugar por ter um significado difuso e estar sendo aplicada nos mais diversos campos militantes, políticos e até psicológicos, de forma sempre a aceitar uma nova ilação. É um gênero diferente da famosa palavra-valise de Carroll (junção de duas palavras em uma). É uma palavra que serve a muitas funções e distorções. Veio de empowerment e sua definição fica próxima de “autonomia” ou da possibilidade das pessoas ou grupos poderem decidir sobre seus próprios destinos. Não surpreende que seja uma das palavras preferidas do feminismo e dos movimentos afro. É claro que eu apoio ambos os movimentos, apesar da palavrinha.

Além de servir aos campos progressistas, serve aos conservadores. A direita a utiliza quando fala em fortalecer a área privada, retirando programas públicos de assistência, deixando para as comunidades a resolução de seus problemas. Enquanto isso, a esquerda fala em bolsa-família para empoderar os populações desfavorecidas, dando-lhes poder de compra e cidadania — não seria o caso de utilizar algo mais próximo de “igualdade”? Ou seja, a direita quer empoderá-los deixando-os autônomos, autogestionados e a esquerda quer empoderá-los assistindo-os. Neste caso, empoderar demonstra toda a sua inexatidão semântica, além de ser uma palavra feia pacas.

Para complicar, os administradores falam em empoderamento organizacional, de forma a que as decisões tornem-se mais coletivas, tipo democracia corintiana. E os psicólogos em empoderamento identitário…, o qual seria um reforço na auto-estima do paciente.

Acho também a palavra poder, origem do neologismo, bastante antipática. Consultando o dicionário, vemos que poder (do latim potere) é, literalmente, o direito de deliberar, agir e mandar. Além disso, dependendo do contexto, é a faculdade de exercer a autoridade ou a posse de domínio, influência, dinheiro ou força. A sociologia define poder, geralmente, como a habilidade de impor a sua vontade sobre os outros, mesmo se estes resistirem.

Este é um texto daqueles bem inúteis, pois penso que a palavra disseminou-se e só posso mesmo espernear. Vou ter que me acostumar a ouvir e ler “empoderamento” por aí, mesmo que deteste a palavra.

empoderamento

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2013, ano das gratuidades e das mudanças

2013, ano das gratuidades e das mudanças

Para mim foi um ano de acontecimentos gigantescos: enormes decepções, enormes dúvidas, enormes decisões, enormes responsabilidades, enormes bizarrices, enormes mudanças, enormes surpresas, enormes tristezas e enormes alegrias.
Agradeço à vida por este ano e vou pedir ao bondoso Papai Noel só uma coisa para o ano de 2014: por favor, menos. Se for possível, claro.
Feliz Natal e um ótimo 2014 para todos! Abraços!

Elena Romanov em seu Facebook

Este é o melhor resumo de 2013 também para mim, que convivi boa parte dele — infelizmente bem menos da metade — com Elena. Do ponto de vista pessoal, acrescentaria “enorme gratuidade” imediatamente após as decepções, pois houve muito disso. Com a palavra, não quero dizer que tenha sido um ano em que não paguei nada, muito pelo contrário. Uso gratuidade no sentido daquilo que não é justificado, do que é natural e espontâneo em outrem, do que é gratuito na acepção de infundado.

Mas não reclamo do ano. Afinal, todos os amigos e minha pequena família estão aí alive and kicking; o trabalho idem e a saúde surpreende após um ano tão maluco. Em junho e outubro parecia que ia me dar um piripaque, mas até o colesterol, no meu caso sempre nas nuvens, apareceu no mês passado em inéditos 169. (Obrigado, seu Lípitor!)

E 2013 foi o ano da felicidade minimalista. Nada grandiosa, nada estável, mas muito satisfatória até aqui. Tanto assim que vamos fazendo planos. Li hoje uma frase incrivelmente verdadeira e aparentemente nada a ver com o que escrevo: a de que só agora estamos aprendendo a ser contemporâneos de James Joyce. Estamos chegando cada vez mais perto dele e um dia alcançaremos e entenderemos o sublime, genial, neologista, poliestilista e desbocado autor de Ulysses. O fato acontece casual ou inexoravelmente à medida que o tempo passa. No passado, lembram?, alcançamos os últimos quartetos de Beethoven, que dizia com toda a razão a seus críticos: “No futuro, entenderão”. No meu caso, 2013 foi o ano em que aprendi muito a meu respeito — mais do que a respeito de outros. E mudei um pouco. Na base da porrada, me parabenizei por alguns méritos e quase me destruí identificando defeitos. Acho que fiquei mais silencioso, mais amante da lentidão. De alguma forma muito secreta, me aproximei alguns centímetros não sei do quê. Mas é assim mesmo, a gente vai mudando de forma contínua e imperceptível, só que as crises catalisam as alterações, mesmo que não garantam rumos. Então, sejamos lentos na vida e nos passeios de fim de tarde pela Redenção, certo, Elena?

De tudo isso, a única tristeza absoluta é a de ver menos a Bárbara, mas a gente dará um jeito, imagina se não.

Joyce examina meu raciocínio sem entender porque me referi a ele.
Joyce examina meu raciocínio sem entender porque me referi a ele.

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