Em 24 de janeiro, publiquei no Face uma lista daqueles que seriam, na minha opinião, os 10 melhores romances brasileiros do século XXI.
Minha lista não é TÃO diferente da publicada neste domingo pela Folha. A ordem é alfabética.
– Budapeste, de Chico Buarque
– Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino
– Leopold, de Luís Antônio de Assis Brasil
– Minúsculos Assassinatos e Alguns Copos de Leite, de Fal Azevedo
– O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório
– O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli
– O Drible, de Sérgio Rodrigues
– Os Supridores, de José Falero
– Pornopopeia, de Reinaldo Moraes
– Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves
Uma parte significativa da grande literatura inglesa foi escrita por irlandeses — Oscar Wilde, William Butler Yeast, Bram Stoker, George Bernard Shaw, James Joyce e Samuel Beckett são um exemplo perfeito. Nenhum deles alguma vez negou a sua dívida para com Laurence Sterne, um compatriota nascido em Clonmel, condado de Tipperary, um século antes. Esta dívida não se limita exclusivamente aos autores irlandeses: o francês Denis Diderot, para escrever Jacques, o fatalista”, baseou-se na construção paródica, na rejeição das convenções narrativas e na figura do anti-herói proposta por Sterne que, aliás, foi contemporâneo de Diderot: ambos nasceram em 1713. Dostoiévski em O Idiota narra como o príncipe Mishkin conta a Yelizabeta e suas três filhas a história de uma pobre mulher humilhada em uma aldeia suíça que é literalmente retirada de Viagem Sentimental pela França e Itália, de Sterne. A sua influência também pode ser percebida em autores tão diversos como ETA Hoffmann, Victor Hugo e Charles Dickens. “Eu li Sterne. É admirável”, confessou Tolstói, e traduziu-o imediatamente para o russo; uma admiração que Goethe também não escondeu. Nietzsche considerou que “ele é o escritor mais livre de todos os tempos e o grande mestre da incompreensão… este é o seu propósito, ter razão e não estar certo ao mesmo tempo, misturar profundidade e bufonaria… É preciso render-se à sua fantasia benevolente, sempre benevolente.” Schopenhauer sustentou que os melhores romances de todos os tempos foram: Dom Quixote de La Mancha, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Julia, ou a Nova Heloísa e A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, Cavaleiro. A influência de Laurence Sterne não parou, ultrapassou línguas e continentes. Descobriremos que a escrita destemperada, cáustica e insubordinada nos textos de Julio Cortázar, José Lezama Lima e Guillermo Cabrera Infante e até Borges — a estratégia de apresentar autores e livros inexistentes como verdadeiros é típica de Sterne.
A contracapa de Tristram Shandy, que Planeta publicou em 1976, com prólogo de Víctor Sklovski e tradução de Ana María Aznar, traz uma gravura que supostamente seria o rosto de Laurence Sterne. A ironia que se percebe em seu olhar e a expressão mordaz que seus lábios refletem dão uma medida completa do personagem. Ao ver aquela gravura e ao ler seu romance, tende-se a pensar que sua biografia também poderia ser parte de uma farsa, outro truque do próprio Sterne. Porém, os dados são verdadeiros: ele nasceu em 24 de novembro de 1713, numa pequena cidade do condado de Tipperary, no sul da Irlanda. Estudou em Cambridge e em 1738, aos 25 anos, foi ordenado sacerdote da Igreja da Inglaterra. Em 1741 casou-se com Elizabeth Lumley, com quem, nas palavras de Alfonso Reyes, “não soube manter uma relação cordial”. Em 1760 obteve o vicariato de Coxwold, no norte da Inglaterra. Um ano antes, ele havia começado a publicar “Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”. Os nove livros que hoje compõem a obra foram publicados, os dois primeiros em 1759 e os restantes sete ao longo dos oito anos seguintes. Sterne morreria alguns meses depois.
Começou a escrever tarde e morreu cedo. Sua vida como escritor não durou mais que nove anos, mas foi tempo suficiente para forjar um romance que criou uma nova forma de narrar a partir da paródia. Em 1760, ele publicou Mister Yorick’s Sermons, um volume no qual compilou os excêntricos sermões que proferiu como vigário na Igreja de Coxwold. Em 1767, sob o título Cartas de Yorick para Eliza, publicou a correspondência que mantinha com sua amante Eliza Draper. Tanto para os sermões quanto para as cartas de amor, ele escolheu o nome do padre Yorick, um dos personagens de Tristram Shandy e por sua vez uma espécie de alter ego do próprio Sterne. Não é por acaso que seu nome era Yorick, como o bobo da corte que Hamlet evoca no quinto ato do drama de Shakespeare. Um mês antes de morrer, apareceu A Sentimental Journey through France and Italy, que alguns consideram ser o epílogo de Tristram Shandy.
Admirador confesso de Cervantes, Rabelais, Swift, Pope e Locke, a influência de cada um deles foi essencial para que Sterne construísse uma obra-prima que, em suas quase quinhentas páginas, antecipa muitos dos recursos narrativos da vanguarda literária de final do século 19. Século 19 e início do século 20, desde peculiaridades tipográficas: duas páginas inteiramente pretas no capítulo 36 do livro terceiro e os capítulos 18 e 19 do livro nono completamente em branco, até capítulos que consistem em uma única frase ou a prévia do monólogo interior que Joyce desenvolveria em Ulisses um século e meio depois.
Pouco depois do aparecimento dos dois primeiros livros, The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman tornou-se um sucesso, embora não para todos: o prestigiado Samuel Johnson destacou que o romance ignorava quase todas as regras gramaticais. “Senhor, você não sabe inglês”, disse ele a Sterne, e quando Sterne, sarcástico, reconheceu que era efetivamente ignorante dessa língua, Johnson, definitivamente, declarou: “nada extravagante pode durar”. Samuel Johnson é considerado o melhor crítico literário de língua inglesa de todos os tempos. É claro que mesmo os grandes críticos às vezes cometem erros.
Virginia Woolf nasceu no dia 25 de janeiro de 1882. James Joyce em 2 de fevereiro do mesmo ano. São 8 dias de diferença.
James Joyce publicou seu primeiro livro, Música de Câmara, em 1907. Woolf estreou na literatura em 1915, com The Voyage Out. São 8 anos de diferença.
A curiosidade leva a gente a lugares estranhos. Deste modo, descobrimos que, adulto, Joyce media 1,78m. E que Woolf media 1,70m. 8 centímetros de diferença.
Por justificadas razões, James Joyce escolheu o dia 16 de junho de 1904, uma quinta-feira, para a ação de Ulysses. Já Virginia Woolf marcou Mrs. Dalloway, um romance que também se passa em um dia, para uma quarta-feira também de junho, mas não nos disse dia nem ano. Talvez seja 8 dias antes ou depois do dia 16, mas já estaríamos forçando um pouco, até porque ela falou em meados do mês.
Ulysses foi publicado em 1922, Mrs. Dalloway em 1925, o que quebra de vez nossa numerologia.
Enquanto o Bloomsday é comemorado há décadas, o Dalloway`s Day é bem mais recente, o que talvez seja uma prova de tudo o que Virginia sempre disse: há a ausência da voz das mulheres.
Em fevereiro de 1922, logo após o lançamento de Ulysses, Virginia Woolf escreveu para sua irmã Vanessa, então em Paris: “Pelo amor de Deus, faça amizade com Joyce. Quero saber como ele é”. Ao que tudo indica, Vanessa fracassou em sua missão, porém, em abril, Virginia adquiriu um exemplar de Ulysses por caríssimas – na época – 4 libras. Quando fez a compra, trabalhava em um romance chamado Mrs. Dalloway em Bond Street.
Sim, Virginia leu Ulysses e escreveu em seu diário uma série de considerações que ficavam entre um decidido não gostei e o respeito. Após ler as primeiras 200 páginas, sentenciou: E Tom (T. S. Eliot), o grande Tom, acha que isso se equipara a Guerra e Paz! Parece-me um livro analfabeto e malcriado. (…) É claro que o gênio pode explodir na página 652, mas tenho minhas dúvidas.
Porém, ainda parada na página 200, ela elogiou publicamente o capítulo 6…
Após finalizar a leitura, novas críticas: Terminei Ulysses e acho que foi um erro. É genial, mas difuso e pretensioso. (…) Um escritor de primeira linha, (…) surpreendente; fazendo acrobacias. Lembrou-me o tempo todo algum colegial imaturo, cheio de inteligência e poderes, mas tão autoconsciente e egoísta que perde a cabeça, torna-se extravagante, barulhento, pouco à vontade, faz com que as pessoas gentis sintam pena dele, e as severas apenas se irritem. (…) mas como Joyce tem 40 anos, não amadurece mais. Não o li com atenção; & apenas uma vez; & é muito obscuro.
Enquanto isso, o amigo T. S. Eliot rebatia: Considero Ulysses a expressão mais importante que a era atual encontrou; é um livro ao qual todos devemos e do qual nenhum de nós poderá escapar. As palavras de Eliot se aplicam também a Virginia Woolf – não importa o quanto ela tentasse escapar de Ulysses – ela nunca conseguiu parar de pensar no romance de Joyce. Como observa Suzette Henke, Joyce era uma espécie de “duplo artístico, um aliado masculino na batalha modernista pelo realismo psicológico”.
Já Joyce não parece ter lido Virginia.
Há muitas coisas em comum entre Ulysses e Mrs. Dalloway. Ambos utilizam fluxo de consciência, referências ao passado, epifanias e histórias que se cruzam. Leopold Bloom sai de casa, trabalha, vai a um enterro, caminha pela praia, discute com um antissemita, vai a um bordel, pensa na mulher, volta, etc. Já Clarissa Dalloway flana por Londres a fim de comprar flores para um jantar que dará naquela noite, atravessa um parque, olha vitrines, volta. Notem que os verbos que cabem à Bloom são trabalhar e caminhar, já para Mrs. Dalloway são flanar e passear. Sim, há uma leveza que perpassa o livro de Woolf que é rara em Ulysses. Mas voltemos às semelhanças: ambos os livros dão espaço aos personagens que cruzam com os protagonistas e tocam em fatos bastante rotineiros assim como em outros nem tanto – a guerra no caso de Woolf e o papel da igreja na Irlanda, no caso de Joyce.
Woolf nasceu em berço de ouro e convivia com a nobreza e com os grandes personagens de sua época. Joyce foi um exilado sem recursos que teve lutar duramente pela sobrevivência e para ter sua obra reconhecida. Há outra curiosidade: o casal Leonard e Virginia Woolf tinha uma pequena editora, a Hogarth Press, e um dia eles escreveram a James Joyce a fim de rejeitar o manuscrito de Ulysses. Era muito longo, além da capacidade de sua editora, declararam os Woolf em carta. Era exatamente o tipo de declaração da qual eles teriam se ressentido e desconfiado como escritores.
Lendo Mrs. Dalloway, temos a impressão de que Woolf absorveu muito do livro de Joyce, por mais que o desgostasse.
São duas obras-primas, livros fundamentais da ficção moderna.
Os dois escritores morreram em 1941. Joyce em 13 de janeiro em Zurique e Virginia 74 dias depois, no dia 28 de março, em Lewes, próximo de Londres.
Tristram Shandy, de Laurence Sterne, publicado em nove volumes entre 1759 e 1767, tem uma reputação um tanto complicada. Junto com, talvez, Ulysses de James Joyce, é conhecido por ser um romance singularmente difícil, lido principalmente por estudantes ou entusiastas do século XVIII. Talvez o que afaste as pessoas sejam as “digressões” do romance, como o narrador do livro, Tristram, as chama. Ele se propõe a escrever uma autobiografia, mas acaba vagando, continuamente desviado por lembranças sobre seu pai Walter e tio Toby.
Sterne nega-nos a ordem narrativa em que geralmente nos baseamos para diferenciar a ficção da confusão do nosso pensamento cotidiano. Sua obra se recusa a se comportar: a história é, como diz Tristram, “digressiva e […] progressiva também, -e ao mesmo tempo”. O enredo de Tristram Shandy é o ato de construir o enredo e o excêntrico Tristram se deleita com sua criação inquieta, dizendo-nos que a obra é uma “máquina” que deve “ser mantida funcionando”. Examinando as muitas engrenagens de sua história, Tristram está confiante de que seu trabalho pode se sustentar indefinidamente, girando em torno de suas próprias possibilidades infinitas.
Desde sua primeira publicação, o romance gerou críticas e foi descrito por Edmund Burke, o grande antepassado dos românticos, como uma “série perpétua de decepções”. Essa avaliação pouco lisonjeira foi superada por Samuel Richardson, o romancista dos best-sellers do século XVIII, como Pamela e Clarissa: em uma carta ao bispo Mark Hildesley, Richardson declarou que não podia deixar de descrever os volumes de Sterne como “execráveis”. É um romance que sempre frustrou seus leitores.
Não podemos deixar de desejar, às vezes, que Tristram apenas continue com suas quebras narrativas “para lembrá-los de uma coisa – e informá-los de outra”. Tristram nos faz perceber o quanto, ao ler um romance, estamos no poder do escritor. Como seu filósofo favorito, John Locke, Tristram vê as mentes de seus leitores como “tábuas em branco” nas quais ele pode rabiscar ou escrever com precisão como quiser. Devemos concordar com as ruminações desorientadoras de nosso narrador se quisermos vivenciar sua história.
Minha própria leitura de Tristram Shandy foi um processo digressivo. Quando encontrei o romance de Sterne pela primeira vez aos dezesseis ou dezessete anos, fiquei encantado com os capítulos iniciais, nos quais Tristram nos conta, com humor irônico, como sua concepção foi interrompida quando sua mãe perguntou ao pai se ele havia se lembrado de dar corda no relógio. Fiquei perplexa, no entanto, quando a narrativa mudou de curso. Os cavalos de brinquedo abundam no romance: o tio de Tristram, Toby, é obcecado por eles. Enquanto eu lia os primeiros volumes, o enredo em si parecia um cavalo de balanço, brincando de avançar em vez de realmente chegar a algum lugar.
A experiência de tempo de Tristram está muito próxima de nossa própria realidade não estruturada; consumido por distrações, nosso narrador está à deriva em sua própria mente.
Não voltei ao romance até que ele apareceu em uma lista de leitura durante meu mestrado. Minha leitura do texto foi novamente fragmentada. Seções foram designadas para leitura por meus tutores com base, ao que parecia, apenas em seus próprios interesses e fiquei mais perplexa do que nunca. Que tipo de romance é melhor lido e discutido em pedaços? Devemos realmente lidar com os lapsos de atenção de Tristram cortando o texto e digerindo-o em partes?
Fui designado para o episódio “Le Fever”, uma sequência sobre as generosidades de Toby para com os pobres escrita no estilo sentimental que era popular na época de Sterne. Lidas separadamente, essas páginas parecem algo saído de The Man of Feeling, de Henry MacKenzie, um romance famoso quando foi lançado em 1771 por fazer seus leitores chorarem de simpatia por seu protagonista. Mas Tristram Shandy não é – como a leitura desta seção. Ao experimentar diferentes gêneros e estilos, nosso narrador está se apresentando para nós.
Tristram também está fazendo outra coisa: ele está procrastinando. Ele adia contar a história de sua vida porque está bloqueado pela seguinte preocupação: um tempo muito maior decorre enquanto ele escreve sua história de vida, leva mais tempo do que o decorrer de sua própria vida, então ele nunca poderá terminar sua autobiografia, jamais alcançara o dia de hoje. Ele lamenta o tanto tempo que leva para narrar um único dia de sua vida, “em vez de avançar […] estou apenas jogando tantos volumes para trás […] nesse ritmo, eu deveria escrever 364 vezes mais rápido. Do modo como faço, quanto mais eu escrevo, mais terei que escrever – e, consequentemente, quanto mais meus adoradores lerem, mais seus adoradores terão que ler”.
Tristram precisaria de um número infinito de dias para escrever sua autobiografia: ele precisaria, como o filósofo do século XX Bertrand Russell explicou no que chamou de “paradoxo de Tristram Shandy”, ser imortal. Além do mais, nós, leitores, estamos envolvidos no problema de Tristram: quanto mais ele escreve, mais temos para ler. Nós também somos limitados por nossa mortalidade.
Ao nos dizer que a história de sua vida está condenada desde o início, o narrador de Sterne nos nega a ilusão mais reconfortante da ficção: um caminho claro no tempo. Somos, como disse o formalista russo Viktor Shklovsky em 1929, “dominados por uma sensação de caos” quando lemos o romance. A experiência de tempo de Tristram está muito próxima de nossa própria realidade não estruturada; consumido por distrações, nosso narrador está à deriva em sua própria mente.
Peguei o romance pela terceira vez no final do verão passado, tendo me formado na universidade com apenas uma vaga ideia do que queria fazer a seguir. Com a remoção da estrutura da instituição de ensino, o tempo disparou de forma alarmante. As preocupações de Tristram sobre sua incapacidade de completar o que começou ofereciam um espelho do meu próprio estado de distração. Em minha busca por emprego, adiei a decisão sobre meus próximos passos, permitindo-me ser inundado por informações, principalmente on-line.
Percorrendo páginas aleatórias de mídia social, artigos da Wikipédia ou sites de empresas, percebi que a internet nos preparou para experimentar o tempo da mesma forma que Tristram faz. Seus algoritmos nos oferecem informações ilimitadas, alimentando-se de tudo o que chama nossa atenção para nos atrair para um labirinto personalizado. Sempre que usamos uma tela, essas tocas de coelho da Internet aguardam, permitindo-nos, clique a clique, fugir de nosso propósito original.
Minha geração, como somos constantemente lembrados, teve nosso foco arruinado pela tecnologia moderna, e o turbulento Tristram é um porta-voz de nosso estado de espírito. Seu projeto – escrever sua vida e, assim, contornar sua mortalidade – é sempre prejudicado por sua vulnerabilidade a distrações. Frustrado com a linguagem, ele recorre frequentemente a imagens, oferecendo linhas rabiscadas para representar seu progresso rebelde.
Com o objetivo de criar um enredo que seja uma “linha reta tolerável”, fortalecido por “uma dieta vegetal” e “algumas comidas frias”, Tristram resolve novamente arrumar sua narrativa. A questão, porém, é que nem Tristram nem seus leitores conseguem escapar do labirinto de pensamentos, e a melhor forma de ler este romance é não resistir às suas variadas correntes. Tristram articula a frustração de tentar se apoderar das coisas quando o chão abaixo de nós está constantemente cedendo.
Nossas vidas hoje existem em múltiplas dimensões: presente, passado e online. O romance de Sterne pode nos ajudar a entender esse emaranhado. Lendo Tristram Shandy pela terceira vez, percebi que minha frustração anterior não era uma falha em entender o livro. As digressões de Sterne são ricas e insatisfatórias em igual medida, como deve ser qualquer excesso de informação. Mas, embora vasculhar a Internet muitas vezes me deixe esgotada ou entorpecida pela variedade, o romance de Sterne revigora e oprime.
Como uma pintura com múltiplos pontos de vista, ou uma peça musical em estridente polifonia, ela atrai o leitor de volta, entrando novamente através de um novo ato de atenção. Tristram mantém sua história “em andamento” recusando-se a satisfazer seus leitores e, por isso, continua a me surpreender com sua vitalidade. Ao negar a estrutura organizada do tempo narrativo, o romance de Sterne combina com como o mundo parece para mim agora: indefinido, incerto, mas carregado de possibilidades.
Marco da moderna literatura ocidental, Ulysses, de James Joyce, completou 100 anos de publicação em 2022. E completou bem vivo. Como muitas das grandes obras de arte, o Ulysses de James Joyce tem existência para além da página impressa. Prova disso são as festas anuais, os Bloomsdays, que ocorrem a cada 16 de junho, dia em que se passa a ação do romance em 1904. Trata-se de um livro que deixa obcecadas muitas pessoas, que acabam passando boa parte de seu tempo refletindo sobre suas páginas. O livro refere-se a tantas coisas, deixando tantas pontas soltas, que puxar uma delas pode trazer um novelo de cor inesperada. Poderíamos falar do fato de Leopold Bloom ser judeu e o novelo começaria por sua briga, num bar, com um antissemita. Mas poderíamos tocar nas conexões com a Odisseia de Homero e acabaríamos certamente considerações sobre o paralelismo entre os livros; ou sobre o homem-feminino que Bloom também representa e concluiríamos que esta é uma das primeiras desconstruções do macho; ou quem sabe sobre o verdadeiro paroxismo de invenções linguísticas promovido pelo autor para falar de uma possível loucura – dele. Mas não seria melhor falarmos sobre o monólogo ultra franco e moderno de Molly Bloom – uma verdadeira DR noturna em solilóquio? Ou ainda sobre o medo que o calhamaço de Joyce causa em algumas pessoas?
“Coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças que vou manter os eruditos ocupados por séculos, discutindo sobre o que eu quis dizer. Essa é a única maneira de garantir a imortalidade.” A postura de Joyce é irreverente, mas o fato é que Ulysses intriga de verdade. Ele desconcerta a sabedoria convencional, ignora crenças, ataca lugares-comuns, desafia padrões. Muitas das emoções e ações inseridas no romance são contraditórias e inquietantes.
É curioso, apesar de toda a erudição e de todos os enigmas e quebra-cabeças, Ulysses é um romance ao qual parece faltar sutileza, ao menos na superfície. Há águas profundas, mas elas estão sob uma série de coisas que parecem pouco literárias. É um texto nada empolado e que não tem relação com a literatura praticada no século XIX. Fica fácil imaginar a surpresa que causou em 1922.
A história do livro, aquilo que ocorre nas aproximadamente 18 horas do Bloomsday, é muito simples e humano. No dia 16 de junho de 1904, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com o amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia. Leopold Bloom, vendedor, pensando em uma possível traição de Molly, sua mulher, toma café da manhã, recebe uma carta de amor endereçada ao seu alter ego, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca, responde a carta recebida, quase leva uma surra de um antissemita, masturba-se na praia observando uma garota, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim, Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de indignação, lirismo e pornografia. Fim. Isso em apenas um dia. São 18 horas e 18 capítulos, sendo que cada capítulo tem estilo próprio, cada cena faz mil referências – os tais enigmas a que Joyce se referiu acima –, principalmente à Odisseia de Homero.
Este anti-épico por excelência fala muito sobre o fracasso do casamento dos Bloom, com Leopold e Molly finalmente reconhecendo suas responsabilidades no impasse. Molly, a substituta irônica da Penélope da Odisseia de Homero, fica, como sua contraparte clássica, em casa, tendo sido privada de relações sexuais com o marido por 10 anos, 5 meses e 18 dias após a morte do filho Rudy aos 11 dias de vida. Bloom sente-se impotente e desimportante. Em parte devido ao seu conteúdo sexual, o livro de Joyce foi processado por imoralidade em vários países. Há realmente um sentimento de desafio na decisão do autor de apresentar o prazer sexual em uma obra publicada em 1922. E, de fato, os enigmas do romance criaram debates contínuos. O que será de Molly e seu amante Blazes Boylan? Leopold, como o Ulysses de Homero, colocará sua própria casa em ordem? Molly e Leopold conseguirão fazer reviver seu relacionamento moribundo? Essas perguntas podem facilmente se tornar obsessões. Este, é claro, é um resumo muito parcial de um livro que é todo um mundo.
Mas vamos puxar com cuidado a primeira das pontas. Elas parecem montar umas por cima das outras, procurando ganhar importância. Acho que os 18 estilos narrativos têm papel fundamental. Acho que o paralelismo com a Odisseia é lindo. O labirinto das referências nem se fala. Acho que o homem feminil Leopold Bloom, cujo comportamento causa até hoje tanta discussão — um homem sensível, que fazia café para a mulher com a qual não tinha mais relações sexuais, que se preocupava com os filhos, que tolerava o amante em sua cama na sua ausência, isso em 1904 –, é um tipo fundamental, claro. Ou será que as piadas grossas, os incríveis e coloridos trocadilhos, a falta de limite entre erotismo, pornografia e higiene é ainda mais central no livro? Por exemplo, na cena com Gerty MacDowell em que ele se masturba na praia, embevecido pela beleza da moça, ela vê o que ele faz (sem problemas), ele ejacula nas calças (OK), mas Joyce vai além: Bloom caminha, a coisa seca, gruda. o prepúcio fica fora do lugar, ele precisa ajeitar as coisas no púbis. Vamos por este caminho?
Também quando Molly — à noite, sempre à noite, antes de dormir, como as mulheres gostam (pedimos escusas pela joyceana fraqueza) — faz sua DR em solilóquio, num furioso fluxo de consciência, o autor não recua, usa todos os termos e diz o que até em nossos dias ainda evitamos. Esta é uma das razões pelas quais todos nós dizemos “sim, eu digo sim” à Ulysses. Tem muito sexo no romance. Ele não é nada conservador. Ele totalmente diz na cara. E o mundo parece não ter evoluído suficientemente para absorvê-lo. Enquanto não o fizer, as quase mil páginas do livro permanecerão pulando, vivas, na nossa frente.
Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enormes, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela se expõe ao leitor de uma forma muito transgressora — mas está sozinha enquanto o marido dorme ao lado — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo os pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a literatura ainda não o fazia.
Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.
E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o do monólogo de Molly, é revelada sua promiscuidade, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.
Na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.
Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, de muitíssimas de nossas ações.
Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo ao fundo, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita (e excita) Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco à existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.
Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo livro exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.
Segundo Álvaro Lins, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, ideias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos, “edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes”.
Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana.
As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à essência das coisas e à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências. Fico fascinado também pelos 18 estilos diferentes, os 18 “escritores diferentes” chamados por Joyce para escreverem o maior romance do século XX.
Desde que acorda até voltar à cama — onde sua Penélope-Molly tece enorme teia de fantasias eróticas que nunca serão do conhecimento do marido –, Leopold Bloom protagoniza um monumento de rara sutileza, difícil de penetrar, mas só quem tenta obtém chegar a suas grandes iluminações.
Voltemos ao assunto da censura. O livro foi proibidíssimo e apenas chegou a nós por milagre. Por exemplo, um episódio do livro, entregue a uma datilógrafa, chocou de tal forma seu marido que este o arremessou às chamas. Mas havia outra cópia, menos revisada, com Joyce. Durante a Primeira Guerra Mundial, um capítulo inteiro — Sereias — foi interceptado por autoridades militares que desconfiaram que aquilo era uma longa mensagem escrita em código, algo vital para o inimigo…
Suas características satíricas, viscerais e brutalmente realistas, chocaram profundamente a sensibilidade do leitor médio, decepcionado ainda pela fascinação do autor pela linguagem, pelas várias formas narrativas, pela louca musicalidade e certamente pela descontrolada potência semântica.
Sim, ainda é o mais extravagante, divertido e sujo dos livros.
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* Milton Ribeiro é escritor, jornalista e livreiro, proprietário da Livraria Bamboletras em Porto Alegre / RS.
Neste próximo sábado (18), vou moderar o Bloomsday de 2022 no Instituto Ling. Abaixo, algumas anotações.
A Casa de Cultura Mario Quintana e Instituto Ling apresentam esta edição especial do Bloomsday, comemorativa aos 100 anos da publicação de Ulysses, de James Joyce.
O Bloomsday é celebração do romance Ulysses, do irlandês James Joyce, e ocorre anualmente no dia 16 de junho, data em que ocorre a ação do romance. Há controvérsias sobre o ano em que começou a ser comemorado. Alguns indicam o ano de 1925 (três anos após o lançamento do livro); outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de Joyce. A hipótese mais aceita indica que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulysses, o célebre 16 de junho de 1904. O que sabemos é que ele hoje é comemorado não apenas em Dublin, mas no mundo inteiro, onde haja admiradores do livro.
James Joyce
Como muitas das grandes obras de arte, o Ulysses de James Joyce tem existência além da página impressa. É um romance que deixa obcecadas muitas pessoas, que podem passar boa parte de suas vidas refletindo sobre suas páginas. No entanto, muitos leitores não iniciados veem o épico de Joyce com um medo paralisante, algo que o autor não amenizou nesta carta de meados da década de 1920: “Coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças que vou manter os eruditos ocupados por séculos, discutindo sobre o que eu quis dizer. Essa é a única maneira de garantir a imortalidade.” A postura é claramente irreverente, mas o fato é que Ulysses não é fast-food. Ele desconcerta a sabedoria convencional, ignora crenças, ataca lugares-comuns, desafia padrões. Muitas das emoções e ações inseridas no romance são são contraditórias, multifacetadas e inquietantes.
A história do livro, aquilo que ocorre nas aproximadamente 18 horas do Bloomsday, é simples e humano. No dia 16 de junho de 1904, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia nas margens do rio. Leopold Bloom, vendedor, atormentado por uma possível traição de Molly, sua mulher, toma café da manhã, recebe uma carta de amor endereçada ao seu alter ego, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca, responde a carta recebida, quase leva uma surra de um anti-semita, masturba-se na praia observando uma garota, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa. Ambos urinam no jardim, Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.
Tudo isso em apenas um dia. São 18 capítulos que cobrem aproximadamente 18 horas. Cada capítulo é escrito tem estilo próprio, cada cena fazendo mil referências, principalmente à Odisseia de Homero. Não é uma epopeia do cotidiano, mas sim uma obra anti-épica. As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências.
Joyce era um criador incomparável de palavras e trocadilhos. Também foi um explorador aventureiro de como a mente funciona, de como pensamentos aleatórios podem provocar imagens por livre-associação, causando saltos ou recuos. Os pensamentos e sentimentos dos três personagens principais — Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus — muitas vezes lutam com a natureza escorregadia e incontrolável da memória. Eles são indivíduos extremamente críveis. E é por isso, apesar dos obstáculos que o autor conscientemente estabelece para seu público, que o livro é tão atraente hoje quanto era há um século. Há uma clareza escondida em Ulysses, apesar de suas muitas complexidades.
O romance é principalmente sobre o fracasso do casamento dos Bloom, com Leopold e Molly finalmente reconhecendo suas responsabilidades no impasse. Molly, a substituta irônica da Penélope da Odisseia de Homero, fica em casa como sua contraparte clássica, tendo sido privada de relações sexuais com o marido por 10 anos, 5 meses e 18 dias. Por que essa abstinência épica? Porque, após a morte de seu filho de 11 dias, Rudy, Leopold não conseguiu ou não quis fazer o que geralmente é considerado amor convencional com sua esposa.
Foto tirada em Dublin em 1904
Dublin. Poucos romances estão tão ligados ao seu cenário quanto Ulysses está. Antes da publicação do romance em 1922, a cidade, que no início de 1900 tinha uma população de pouco mais de 400.000 habitantes, fora visitada por Joyce pela última vez em 1912. Ele se exilou de propósito, ciente de que nem sua vida nem seu trabalho poderiam florescer naquele mundo reprimido, empobrecido e culpado, dominado pela Igreja Católica Romana e pelo colonialismo inglês. No entanto, mentalmente, ele nunca se ausentou da cidade de seu nascimento. Suas principais obras – Dublinenses (1914), Retrato do artista quando jovem (1916), Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939) – são todas ambientados nesse local “tão amado e sujo”.
Leopold Bloom está constantemente em movimento pela cidade, durante todo o dia e metade da noite, está sempre alerta ao seu entorno, mas na verdade ele está ciente da presença de Blazes Boylan — o homem que se tornará amante de Molly naquela tarde. Ao longo do dia retratado pelo épico, Bloom é atormentado pelo candidato aos favores amorosos de sua esposa. Blazes Boylan parece estar em toda parte. Ele conta as horas para as quatro da tarde, horário programado por Molly.
Em parte devido ao seu conteúdo sexual, o épico de Joyce foi processado por imoralidade. Há um sentimento de desafio na decisão do autor de apresentar o prazer sexual em uma obra publicada em 1922. Mas o romance não é um tratado de sensualidade sobre as alegrias e as decepções de eros.
De fato, os enigmas do romance criaram debates contínuos. O que será de Molly e Blazes Boylan? Leopold, como seu progenitor épico Ulysses, colocará sua própria casa em ordem? Molly e Leopold conseguirão fazer reviver seu relacionamento sexual moribundo? Essas perguntas podem facilmente se tornar obsessões para toda a vida.
Tal como o Natal, o Carnaval é uma festa anterior ao Cristianismo. É comemorado há pelo menos 10 mil anos. Existia no Egito, na Grécia e na Roma antigos, sempre associado à ideia de fertilidade da terra. Era quando o povo comemorava a futura boa colheita, a proximidade da primavera e a generosidade dos deuses. A festividade começou pagã e trouxe até nossos dias parte de suas características originais: os rostos pintados, as máscaras, o excesso, a extravagância e a troca de papéis.
Em Roma, o mais belo soldado era designado para representar o deus Momo do Carnaval. Era coroado rei e permanecia três dias nesta condição. Posteriormente, passou-se a escolher o homem mais obeso da cidade para servir como símbolo da fartura e reinar por três dias. Esta troca de papéis durante o carnaval foi extensivamente analisada por Mikhail Bakhtín no clássico A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Segundo Bakhtín, o carnaval permitia a inversão da ordem estabelecida, a fuga temporária da realidade. Seria um espaço de suspensão da rotina que ofereceria aos homens um grau de liberdade não experimentado normalmente. Se Bakhtín visava descrever a Idade Média e o Renascimento com a frase anterior, também descreve o que ocorre hoje, aqui, agora.
Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval, pela sua própria natureza, existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com suas leis, isto é, as leis da liberdade.
Mikhail BAKHTÍN
28/08/2015 – PORTO ALEGRE, RS, BRASIL – Cortejo dos artistas de rua. Foto: Guilherme Santos / Sul21
O antropólogo Roberto Da Matta, em sua obra Universo do Carnaval: imagens e reflexões, traz a obra de Bakhtín ao encontro da realidade brasileira. Se não há uma inversão completa da ordem, é o momento em que os mais pobres, organizados, invadem o centro da realidade, estabelecendo um “mecanismo de liberação provisória das formalidades controladas pelo estado e pelo governo”. Durante o carnaval, há toda uma encenação em que se desmancham as subordinações – os pobres vestem ricas e escandalosas fantasias tomando o lugar da elite –, em que há outras inversões de papéis – homens travestindo-se de mulheres e vice-versa — e a celebração da abundância – de riqueza, de brilho, de música, de dança, de energia – em contraposição à rotina e à austeridade. Voltando à Bakhtín: “É a violação do que é comum e geralmente aceito; é a vida deslocada do seu curso habitual”.
Foto: Guilherme Santos / Sul21
A Igreja Católica defendeu por muitos anos que a festa surgiu a partir da implantação da Semana Santa, no século XI. A Semana Santa ou, mais exatamente, a Sexta-feira Santa, é antecedida pela Quaresma, período de 40 dias que começa exatamente na Quarta-feira de Cinzas. A Quaresma seria um longo período voltado à reflexão e onde os cristãos se recolheriam em orações e penitências a fim de preparar o espírito para a chegada do Cristo ressurreto. Mas, antes, festa total! O longo período de privações teria incentivado as festividades nos dias anteriores à Quarta-feira de Cinzas. A palavra “carnaval” estaria também relacionada à ideia dos prazeres da carne e a etimologia vem a nosso auxílio: carnaval deriva da expressão carnis valles, carnis significa “carne” em latim e valles significa “prazeres”. Então, se há a devoção a Cristo, antes há a devoção aos prazeres da carne. E não é nada de espantar a nudez das pessoas durante o período…
A passagem de uma data para outra, do Carnaval para Quaresma na Quarta-feira de Cinzas, foi tema para o grande Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569) no quadro A Luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559), onde são mostrados dois grupos frente a frente, o dos penitentes e o carnavalesco. É curioso notar que a genial gravura confronta dois grupos diversos e não uma mudança de postura das mesmas pessoas. Se há realismo no quadro do flamengo, havia dois grupos, o dos festeiros e o dos religiosos. À direita, vem o grupo de religiosos; à esquerda, o de carnavalescos.
‘A luta entre o carnaval e a Quaresma’, obra de Pieter Brueghel, O Velho.
O dia anterior ao fim do Carnaval é a Terça-feira Gorda, em francês Mardi Gras, nome do Carnaval de New Orleans.
No Brasil e em todo o mundo onde há Carnaval, são verificadas características das manifestações antigas. O que são os trios elétricos senão cortejos que carregam milhares de pessoas que cantam, dançam e bebem numa verdadeira celebração dionisíaca? O que é o desnudamento aliado à luxúria, garantindo um cenário altamente propício à liberdade sexual, senão o clima tão bem descrito em Concerto Barroco, romance histórico do cubano Alejo Carpentier que se passa na Veneza de Vivaldi (no início do século XVIII)? Tais excessos, que normalmente acabavam em grandes orgias eram condenados pela Igreja, mas arrebatavam a nobreza. Bakhtín chama de “realismo grotesco” tal conjugação de materialidade e corpo, onde as satisfações carnais (comida, bebida e sexo) têm lugar de destaque.
Foto: Guilherme Santos / Sul21
Apesar da Quaresma ser quase desconhecida e pouco sentida em nossos dias, a catarse coletiva, o exagero e os efêmeros dias de festa contínua seguem e certamente seguirão por séculos. Na “sociedade do espetáculo”, como diria Guy Debord, o Carnaval se transforma em desfiles monumentais transmitidos pela TV, onde o que se vê é ainda o exagero, a troca de papéis e as alegorias e paródias que vêm desde há 10.000 anos, quando os homens afastavam os maus espíritos de suas plantações através de máscaras. A catarse atual não ocorre depois do longo inverno do hemisfério norte, nem é causada pela perspectiva de um longo período de penitência, mas é a data estabelecida no imaginário popular como a do verdadeiro início do ano, depois da qual tudo volta ao normal, entronizando finalmente o cotidiano que reina pelo resto do ano. Muito pensadores marxistas veem o carnaval como uma válvula de escape para as tensões do cotidiano, permitida, controlada e estimulada pelos grupos dominantes a fim de, depois, manipular e reforçar a ordem vigente, mas não sejamos tão revanchistas no dia de hoje. Dioniso não ficaria feliz.
Em seu novo conto The Mom of Bold Action, publicado na próxima edição da The New Yorker, George Saunders satiriza e humaniza (qual é a diferença, se a sátira é boa?) uma mãe que, depois que seu filho é empurrado por um homem sem-teto, faz “justiça” com suas próprias mãos. Em uma entrevista com Deborah Treisman, Saunders explicou por que ele abordou tal assunto — e como contos devem evitar respostas fáceis:
A história gira em torno da questão da justiça: que punição é justa quando um homem mais velho com problemas mentais empurra uma criança? Um empurrão por um empurrão? Um golpe na rótula para impedir mais empurrões? Deixando ele ir, por simpatia com os desafios que ele enfrentou na vida?
— Certo, essas são as perguntas que eu estava querendo que a história fizesse. Acho que o trabalho de um conto pode ser o de fazer exatamente isso — fazer certas perguntas e recusar-se a respondê-las, apoiando ambos os lados para que as perguntas se tornem mais complexas. O leitor é colocado na posição de ser rejeitado quando tenta chegar a alguma conclusão moral nítida. Acho que há valor nisso. Quando leio uma história que funciona assim, vejo como rapidamente, na vida real, desligo minha mente e decido cedo demais… Acho também importante lembrar que todos os excessos vêm de algum lugar. Qualquer ato irracional ou mau que observamos provavelmente pareceu razoável, até virtuoso, para a pessoa que o fez ou cometeu… Acho que qualquer um de nós poderia se tornar tal pessoa nas condições certas (erradas). Caso contrário, a história é apenas um monte de coisas imperdoáveis sendo feitas por idiotas que não eram nada como nós. E não há para onde ir com isso.
Embora os personagens de Saunders sejam frequentemente cômicos, dogmáticos e limitados em seu pensamento, os ciclos de pensamento que os levam a agir de forma prejudicial são familiares, decorrentes de impulsos familiares e até mesmo razoáveis. “É de propósito; a fim de rejeitar uma bela conclusão moral”, como ele coloca. “O mais importante é tentar continuar a amá-los”, disse Saunders, “e uma forma de fazer isso é dar-lhes pensamentos, memórias e ações da minha própria vida”.
Annie Dillard, uma das melhores escritoras estadunidenses, é também uma de suas melhores professoras. Em How to Write An Autobiographical Novel, de Alexander Chee, Dillard aparece como uma professora generosa e estimulante que incentiva seus alunos a visualizarem seus livros nas prateleiras das livrarias. Maggie Nelson, questionada no The Rumpus, quais conselhos de redação ela dá a seus alunos com mais frequência. Kevin Barry, quando questionado sobre o melhor conselho de redação que já recebeu: “Annie Dillard disse uma vez que o único conselho de que qualquer escritor precisa é manter suas despesas gerais baixas”. Em comemoração ao seu 76º aniversário, aqui está uma coleção incompleta — mas ainda assim abrangente — de alguns dos melhores conselhos de escrita de Annie Dillard.
Escreva de acordo com seus próprios interesses idiossincráticos:
Por que você nunca encontra nada escrito sobre aquele seu pensamento idiossincrático, sobre seu fascínio por algo que ninguém mais entende? Porque depende de você. Há algo que você acha interessante, por um motivo difícil de explicar? É difícil de explicar porque você nunca leu em nenhuma página. Então aí é que você começa. Você foi feito para dar voz a isso, a seu próprio espanto.
Escreva como se estivesse morrendo. Ao mesmo tempo, suponha que você escreva para um público que consiste apenas em pacientes terminais. O que você começaria a escrever se soubesse que morreria em breve? O que você poderia dizer a um paciente moribundo que não o enfureceria com sua trivialidade?
–De “Write Till You Drop”, The New York Times , 1989
Você é o único de você… Sua perspectiva é única, neste momento. Não se preocupe em ser original… Sim, tudo foi escrito, mas também, o que você quer escrever, antes de escrever, era impossível de escrever. Caso contrário, já existiria. Você torna isso possível. Escrevendo.
–De ” Annie Dillard and the Writing Life “, conforme recontado por Alexander Chee
Encontre inspiração lendo outras pessoas:
Leia por prazer. Se você gosta de Tolstói, leia Tolstói; se você gosta de Dostoiévski, leia Dostoiévski. Force um pouco, mas não leia algo totalmente estranho à sua natureza e depois diga: “Nunca serei capaz de escrever assim”. Claro que você não vai. Leia livros que você gostaria de escrever. Se você quiser escrever literatura, leia literatura. Escreva livros que você gostaria de ler. Siga sua própria estranheza…
Quanto mais você lê, mais você escreve. Quanto melhor o material que você ler, melhor o material que você escreverá. Você pode desenvolver o gosto pela boa literatura gradualmente. Mantenha uma lista dos livros que deseja ler. Você logo aprenderá que “clássicos” são livros infinitamente interessantes. Quase todos eles. Você pode continuar a relê-los por toda a sua vida a cada dez anos, e vários outros aparecerão para você em diferentes estágios de sua vida.
–Do conselho enviado aos alunos da University of North Carolina em Chapel Hill, republicado no Image Journal
Hemingway estudou, como modelos, os romances de Knut Hamsun e Ivan Turguenev. Isaac Bashevis Singer, por acaso, também escolheu Hamsun e Turguenev como modelos. Ralph Ellison estudou Hemingway e Gertrude Stein. Thoreau amava Homer; Eudora Welty amava Tchekhov. Faulkner descreveu sua dívida para com Sherwood Anderson e Joyce; EM Forster, sua dívida para com Jane Austen e Proust. Por outro lado, se você perguntar a um poeta de 21 anos de que poesia ele gosta, ele dirá, sem corar: “Ninguém”. Ele ainda não compreendeu que os poetas gostam de poesia e os romancistas gostam de romances; ele mesmo gosta apenas do papel, de pensar em si mesmo.
–De “Write Till You Drop”, The New York Times , 1989
Na escrita, a ação é tudo:
Não use construções verbais passivas. Você pode reescrever qualquer frase.
–Do Image Journal
Como obtemos uma escrita vívida? Verbos, primeiro. Verbos precisos. Toda a ação na página, tudo o que acontece, acontece nos verbos. A voz passiva precisa de gerúndios para fazer qualquer coisa acontecer. Mas muitos gerúndios juntos na página contribuem para o zumbido. Não faça isso. Os verbos dizem ao leitor se algo aconteceu uma vez ou continuamente, o que está em movimento, o que está em repouso. Os gerúndios são preguiçosos, não tem que tomar uma decisão e logo, tudo está acontecendo ao mesmo tempo, desordem, caos. Não faça isso. Além disso, más escolhas de verbos significam advérbios. Na maioria das vezes, você não precisa deles. Ele correu rápido ou correu? Ele caminhou devagar ou ele vagueou? . . .
Os advérbios são um sinal de que você usou o verbo errado. Verbos controlam quando algo está acontecendo na mente do leitor.
–De ” Annie Dillard and the Writing Life “, conforme recontado por Alexander Chee
Em caso de dúvida, volte ao específico e concreto:
Sempre localize o leitor no tempo e no espaço repetidas vezes. Escritores iniciantes correm para os sentimentos, para as vidas interiores. Em vez disso, mantenha as aparências superficiais; acertar os cinco sentidos; dar a história da pessoa e do lugar, e a aparência da pessoa e do lugar. Use nomes e sobrenomes. Ao escrever, coloque tudo em um lugar e um tempo.
Não descreva sentimentos.
O caminho para as emoções do leitor é, estranhamente, através dos sentidos.
–Do Image Journal
Se sua escrita o confunde, investigue a parte confusa:
Examine todas as coisas intensa e implacavelmente. Sondar e pesquisar cada objeto em uma obra de arte; não o abandone, não o percorra, como se fosse compreendido, mas siga-o até que o veja no mistério de sua própria especificidade e força. Os desenhos e pinturas de Giacometti mostram sua perplexidade e persistência. Se ele não tivesse reconhecido sua perplexidade, não teria persistido.
–De “Write Till You Drop”, The New York Times , 1989
Gaste tudo agora. Não guarde suas melhores ideias para depois:
Gaste tudo, atire, jogue, perca tudo, imediatamente, sempre. Não acumule o que parece bom para um lugar posterior no livro, ou para outro livro; dê, dê tudo, dê agora. O impulso de guardar algo bom para um lugar melhor mais tarde é o sinal para gastá-lo agora. Algo mais surgirá para depois, algo melhor. Essas coisas se enchem por trás, por baixo, como água de poço. Da mesma forma, o impulso de guardar para si mesmo o que aprendeu não é apenas vergonhoso, é destrutivo. Tudo o que você não dá livre e abundantemente se perde para você.
–De “Write Till You Drop”, The New York Times , 1989
É o começo de uma obra que o escritor joga fora.
Uma pintura cobre seus rastros. Os pintores trabalham do zero. A versão mais recente de uma pintura sobrepõe as versões anteriores. Os escritores, por outro lado, trabalham da esquerda para a direita. Os capítulos descartáveis estão à esquerda. A última versão de uma obra literária começa em algum lugar no meio da obra e melhora no final. A versão mais antiga permanece fragmentada à esquerda.
Às vezes, o escritor deixa seus primeiros capítulos no lugar por gratidão; ele não pode contemplá-los ou lê-los sem sentir novamente o bendito alívio que o exaltou quando as palavras apareceram pela primeira vez — alívio por ele estar escrevendo alguma coisa. Afinal, aquele começo serviu para levá-lo aonde estava indo; certamente o leitor não precisa disso como base.
–De The Writing Life
… e, em geral, corte cruelmente:
Não use palavras extras. Uma frase é uma máquina; tem um trabalho a fazer. Uma palavra extra em uma frase é como uma peça estranha à máquina…
A unidade da obra é mais importante do que qualquer outra coisa. Essas digressões que eram tão divertidas de escrever devem desaparecer.
–Do Image Journal
Uma tarde, sob sua orientação, trouxemos nossas páginas escritas, mais tesouras e fita adesiva. Agora cortem apenas as melhores frases, [Dillard] disse. E cole-os em uma página em branco. E então, quando você tiver isso, escreva em torno deles, disse ela. Preencha o que está faltando e faça com que alcance o melhor do que você escreveu até agora.
Eu assisti enquanto as frases que não importavam sumiam.
–De ” Annie Dillard and the Writing Life “, conforme recontado por Alexander Chee
Aponte o leitor para o que é importante:
Se algo em sua narrativa ou poema for importante, dê um espaço proporcional. Quer dizer, centímetros reais. O leitor precisa gastar tempo com um assunto para se preocupar com ele. Não se intimide com suas grandes cenas; estique-as.
–Do Image Journal
Avaliar seu trabalho enquanto você escreve é inútil:
Não há uma relação proporcional, nem inversa, entre a estimativa de um escritor de uma obra em andamento e sua qualidade real. A sensação de que o trabalho é magnífico e a sensação de que é abominável são ambos mosquitos a serem repelidos, ignorados ou mortos, mas não tolerados.
–De The Writing Life
Não se compare ao seu amigo mais produtivo:
Faulkner escreveu As I Lay Dying em seis semanas… Algumas pessoas participam de corridas de trenós puxados por cães que duram uma semana, passam pelas Cataratas do Niágara em barris, pilotam aviões pelo Arco do Triunfo. Algumas pessoas não sentem dor no parto. Não há necessidade de considerar os extremos humanos como normas.
–De The Writing Life
Lembre-se de que a publicação é subjetiva:
A publicação não é um indicador de excelência. Isso é o mais difícil de aprender. Quando uma revista rejeita sua história ou poema, não significa que não foi “bom” o suficiente. Isso significa que a revista pensava que seus leitores em particular não precisavam daquela história ou poema. Os editores pensam nos leitores: o que isso traz para o leitor? Também existe um culto à celebridade neste país, e muitas revistas publicam apenas pessoas famosas e rejeitam trabalhos melhores de pessoas desconhecidas.
Você precisa saber essas coisas em algum lugar no fundo da sua mente e precisa esquecê-las e escrever tudo o que for escrever.
–Do Image Journal
Acima de tudo, continue trabalhando:
O talento não é suficiente… Escrever é trabalho. Qualquer um pode fazer isso, qualquer um pode aprender a fazer isso. Não é ciência de foguetes, são hábitos mentais e hábitos de trabalho. Comecei com pessoas muito mais talentosas do que eu, e elas estão mortas ou na prisão ou não estão escrevendo. A diferença entre eu e eles é que estou escrevendo.
–De ” Annie Dillard and the Writing Life “, conforme recontado por Alexander Chee
É estranho e saudável o fato de nem todos concordarem em ligar Simões à Semana Farroupilha. Boa parte dos admiradores do escritor acham que a ligação favorece muito mais o MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho) do que o escritor. Porém, o fato de haver inclusive uma Medalha Simões Lopes Neto faz com que muitos leitores preconceituosos do RS o associem ao Movimento e deixem de entrar em contato um autor muito sofisticado, que produziu grande literatura.
Sua maior obra: Contos Gauchescos
Não é à toa que Contos Gauchescos fez parte da lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS por tantos anos. Ele ficou na justa companhia de José Saramago (História do Cerco de Lisboa), Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim) e de outros. E de outros menores, deveria dizer. A lista da UFRGS não é garantia de qualidade — por exemplo, lá não estão Erico nem Dyonélio –, mas serve como comprovação de que o pequeno volume de 19 contos narrados por Blau Nunes está bem vivo.
Contos Gauchescos (1912) é o segundo e de longe o mais importante livro de João Simões Lopes Neto (1865-1916), que também escreveu Cancioneiro Guasca (1910), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914). O autor viveu 51 anos e publicou apenas quatro livros. Talvez sejam muitos, se considerarmos a colorida vida do autor.
Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, na estância da Graça, filho de uma tradicional família da região, proprietária de muitas terras. Aos treze anos, foi para o Rio de Janeiro a fim de estudar no famoso Colégio Abílio. Retornando ao Rio Grande do Sul, fixou-se para sempre em Pelotas, então uma cidade rica para os padrões gaúchos. Cerca de cinquenta charqueadas formavam a base de sua economia. Porém, engana-se quem pensa que Simões andava de bombacha. Seus hábitos eram urbanos e as histórias contadas nos Contos Gauchescos eram baseadas em reminiscências, histórias de infância e, bem, a verdade ficcional as indica como de autoria de Blau Nunes, não? A epígrafe da obra deixa isto muito claro: À memória de pai. Saudade. Mas voltemos ao autor.
Sua vida em Pelotas não foi nada monótona. Abriu primeiro uma fábrica de vidro e uma destilaria. Não deram certo. Depois criou a Diabo, uma fábrica de cigarros cujo nome gerou protestos da igreja local. Seu empreendedorismo levou-o ainda a montar uma empresa para torrar e moer café e a desenvolver uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Fundou também uma mineradora. Nada deu muito certo para o sonhador e inventivo João, que foi também professor e tabelião e que, ao fim e ao cabo, apenas sobreviveria como jornalista em Pelotas, conseguindo com dificuldades publicar seus livros e folhetins, assim como montar suas peças teatrais e operetas. Este faz-tudo faleceu em total pobreza.
Casa onde residiu Simões Lopes Neto em Pelotas. Hoje abriga o Instituto João Simões Lopes Neto (Rua Dom Pedro II, 810)
Blau Nunes
A primeira edição de Contos Gauchescos foi publicada em 1912. Se o ano é este, a data exata da publicação parece ter sido perdida. Na primeira página do volume é feita a apresentação do vaqueano Blau Nunes, que o autor afirma ter sido seu guia numa longa viagem pelo interior do Rio Grande do Sul.
PATRÍCIO, apresento-te Blau, o vaqueano. Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana, molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei entre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus…
(…)
Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.
(…)
Querido digno velho!
Saudoso Blau!
Patrício, escuta-o.
Capa da edição pocket da L&PM
Após esta apresentação — de pouco mais de duas páginas na edição pocket da L&PM — , está pronto o cenário para os 19 contos (ou “causos”) que o narrador Blau Nunes contará a seu patrício. Blau é o protagonista de algumas histórias, em outras é um assistente interessado que banha os fatos de intensa subjetividade. E aqui chegamos ao que o livro apresenta de mais original: o trabalho de linguagem de Simões Lopes Neto. Os contos são “falados”, são “causos” contados por Blau e a linguagem acaba por ser uma representação da fala popular misturada a uma inflexão erudita — certamente a de Simões — , transformando-se numa terceira forma de expressão. Numa belíssima terceira forma de expressão. Sabemos que o leitor do Sul21 já está pensando em Guimarães Rosa e tem toda a razão. Rosa confessou que seu texto tinha muito da influência de Simões. O gaúcho abriu as portas para as grandes criações do autor de Grande Sertão: Veredas e esta afirmativa não é a do ufanismo vazio que procura gaúchos em navios adernados, mas uma manifestação de consistente orgulho.
E, assim como nos livros de Rosa, a linguagem de Simões Lopes Neto talvez soe estranha à princípio, apesar de que o estranhamento é muito menor do que aquele com que se depara o leitor do mineiro. Se lá Rosa cria palavras utilizando seu enciclopédico conhecimento etimológico, se lá utiliza-se até de línguas eslavas; aqui Simões transforma o sotaque da região onde nasceu. Há os adágios populares, há os muitos gauchismos do campo e da cidade e há as expressões típicas da fronteira, recheadas de espanholismos. A memória de Blau Nunes é a memória geral do pampa narrando os acontecimentos principais de sua história que, em mosaico, formam uma visão subjetiva da região e de sua gente. Era 1912, não havia regionalismo, estávamos a 10 anos da Semana de Arte Moderna e 4 anos após o falecimento e Machado de Assis. Estamos, pois, falando da literatura de um pioneiro.
Ilustração de uma edição de Contos Gauchescos
Mas Simões Lopes Neto não trabalha apenas a linguagem, é um escritor que sabe criar constante subtexto. Ou seja, há as palavras, mas há um grande contador de histórias trabalhando-as, jogando informações subjacentes que reforçam ou contradizem o que está sendo contado. Isto pode ser sentido no pequeno conto O negro Bonifácio e no tristíssimo No Manantial — segundo e terceiro contos da coleção. A propósito, no CD Ramilonga, Vitor Ramil fez uma homenagem a No Manantial. A frase que é dita no início da canção é a primeira do conto e a que a encerra — Vancê está vendo bem, agora? — está próxima ao final do conto. É uma justa homenagem. Talvez No Manantial seja o melhor conto escrito por autor gaúcho até o surgimento de Sergio Faraco. Apenas em 1937, com a publicação de Sem rumo e Porteira fechada (1944), de Cyro Martins, e de O Tempo e o Vento (Erico Verissimo, 1949), a literatura do RS produziria outras grandes figuras ficcionais vindas do interior gaúcho. Dizia Tolstói: Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia. E Blau Nunes, na condição de narrador e protagonista dos Contos Gauchescos, é um gaúcho de qualquer latitude.
Marcelo Spalding, em excelente artigo análogo a este, finaliza citando a definição de Italo Calvino para o que seria um clássico. De seu artigo, roubamos duas frases de Calvino que, a nosso ver, cabem tão adequadamente a Contos Gauchescos que não há razão para não citá-las. Segundo Calvino, um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente os repele para longe. Mais: clássicos seriam livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos se revelam novos, inesperados, inéditos.
Estou lendo O Fim, de Karl Ove Knausgård. É um romanção de 1056 páginas. Estou lá pela 430. Faz umas 50 páginas que ele iniciou uma furiosa incursão ensaística. Parece que a coisa tem mais 300 páginas. Não gosto.
Se os livros de ficção trazem teses, prefiro que estas sejam demonstradas por situações e impasses. As situações podem falar e creio que são elas que mais arranham a realidade. Além disso, filosofia em excesso me chateia, não tenho muita inteligência para ela e preferiria até voltar a estudar matemática. Falo sério.
Neste momento, Knausgård afasta- se tanto da história que conta quanto Musil faz em seu calhamaço-mor O Homem Sem Qualidades. Acho que é roubar no jogo ficcional, ainda mais após Thomas Mann demonstrar como ficção, personagens e filosofia podem se entrelaçar, como os personagens podem representar ideias, como Dostô também fazia em O Idiota e Os Irmãos. Saudades de Settembrini, Naphta e Míchkin.
Mas sou um cara dedicado e vou tentar atravessar as 300 páginas sem pensar em outra coisa.
Importante: eu ADOREI os 5 primeiros volumes da hexalogia. Resolvi encrencar no último…
Road book gaúcho, mas não gaudério | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Cora e Julia foram mais do que simples amigas durante a faculdade. A relação foi subitamente interrompida pela partida de Julia para Montreal. Tempos depois, Cora também foi ao exterior a fim de estudar moda em Paris. Certo dia, Cora liga seu computador e lá está um “Oi, tudo bem?, há quanto tempo” de Julia. Cora responde e logo está passeando pelo quarto de Julia através do Skype. Numa das cenas mais belas de Todos nós adorávamos caubóis, Julia caminha pelo apartamento, mostrando à Cora suas coisas e a neve de Montreal. Entre outras coisas, ela mostra, através da janela, o semáforo da esquina, que passa do vermelho para o verde, permitindo aos carros se moverem entre as árvores secas da cidade.
Elas combinam o reencontro. Pretendem fazer a viagem sempre adiada pelo interior do Rio Grande do Sul. A viagem seria feita sem planejamento, apenas com um mapa levando-as de uma cidade a outra. As duas trazem bagagens e expectativas distintas. Cora viera para assistir o nascimento do irmão — seu pai recém casara com uma jovem de sua idade, algo que Cora parece aprovar com reservas –, enquanto Julia parece estar ambivalente em relação ao namorado estrangeiro. O que uma espera da outra?
Enquanto isso, vagam sem objetivos pelo interior gaúcho. Um interior que não aparece da forma gaudéria, alegre e hospitaleira das histórias do 20 de setembro. Não que apareça hostil, apenas mostra-se estranho, sem pontos de contato com a urbanidade das moças. Mesmo que Julia tenha nascido em Soledade, elas são e estão de fora.
Após Pó de Parede e Sinuca embaixo d`água, o excelente Todos nós amávamos caubóis é o terceiro livro publicado pela porto-alegrense Carol Bensimon. Ela falou ao Sul21 no bar Tuim, tradicional local da Gen. Câmara. Por algum motivo, o formalismo habitual das entrevistas foi logo abandonado, tanto que a primeira interrogação foi desferida por Carol e não pelo entrevistador, o que transformou tudo numa agradável conversa.
Road book gaúcho, mas não gaudério | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: A ideia de falar contigo surgiu quando Todos nós adorávamos caubóis chega a Antônio Prado. Mais exatamente quando Cora e Julia saem da cidade e vão até aquela estátua, a dos caras que introduziram a bateria na música gauchesca.
Os Irmãos Bertussi incorporaram a bateria ao baile gaúcho
Carol Bensimon: Não é que outro dia um cara no Facebook me compartilha uma foto com o monumento, botando: “Ah, a Carol fez uma bela homenagem” e daí os caras da música gaudéria começaram a comentar. Mas a ideia da entrevista veio dali por quê?
Sul21: Porque a literatura e o jornalismo gaúcho não costuma ser irônico. A tua referência não é especialmente ácida, mas também não é nada laudatória. Naquela cena tu achas graça da estátua, isso está na cara. Mas comecei a entrevista respondendo uma pergunta tua…
Carol Bensimon: Sim, a personagem faz gracinha com a história da bateria na música gaudéria. Meus personagens têm claramente uma visão urbana que estranha o interior, disso eu não tenho dúvida. Um jornal do Recife escreveu algo sobre “uma visão muito elitizada, uma visão muito burguesa”, me acusou de estar tripudiando sobre aquelas pessoas. Não é nada disso, mas é óbvio que minhas personagens são essencialmente urbanas, sentem-se mais ligadas e melhor numa grande capital do mundo do que propriamente no interior do seu estado. Trabalhei esses estranhamentos. Acho que, excetuando-se o romance histórico, a literatura das últimas décadas não está olhando muito pro interior.
“As pessoas do interior não estão interessadas em ‘serem do interior'”| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Na verdade, eu andei lendo Assim na Terra, do Metz. Ele fala de forma muito poética do homem do campo, é uma viagem de toda a vida sobre um cavalo, por assim dizer. O teu livro contrasta muito neste aspecto. Há a estátua, depois tu falas de toda a energia posta na customização de carros, da baixa qualidade dos vinhos brasileiros, de Cambará — “onde as pessoas caminham entorpecidas” –, do deserto de Minas de Camaquã, há a briga entre a Julia e o irmão fazendeiro.
Carol Bensimon: Uma coisa que descobri, quando me dispus a fazer essas viagens é que, na verdade, as pessoas destas cidades do interior não estão muito interessadas em “serem do interior”. Seu ideal é o de se afastar da aura de bucolismo. Para elas, quanto mais urbanas elas parecerem, melhor. Por exemplo, as casas históricas de Antônio Prado… Lá, houve uma grande polêmica que não está no livro. Nos anos 90, aquelas casas foram tombadas. São casas de madeiras enormes, bem típicas. As pessoas não queriam mantê-las. Teve gente que botou fogo na própria casa. O mesmo não aconteceu há pouco em Santo Ângelo? Queriam tombar várias casas e as pessoas estavam revoltadíssimas. O pessoal não tem muita consciência histórica. Querem derrubar e “modernizar” tudo.
Sul21: Acabam destruindo também uma possibilidade de turismo.
Carol Bensimon: Sim, a maioria das cidades é feia. São piores que Porto Alegre. Porto Alegre pelo menos é em parte arborizada. Essas cidades médias, como Santa Maria, não tem uma grande identidade visual.
Sul21: Qual é teu grau de interesse em urbanismo? Tu me escreveste no Facebook que estava lendo apenas livros de urbanismo.
Carol Bensimon: É uma coisa pessoal. Tanto que apareceu no meu primeiro livro (Pó de parede, 2008). Não urbanismo, mas arquitetura. Todos os contos eram centrados em coisas arquitetônicas. Meu interesse mais em cidades deve ter vindo da minha experiência em Paris. Lá há um pensamento, um planejamento que está ausente no Brasil.
“As memórias de cada capítulo estão relacionadas com acontecimentos presentes” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Vamos voltar ao livro. A questão da estrutura.
Carol Bensimon: A estrutura é mais ou menos linear. É a viagem, mas dentro disso tem rememorações o tempo todo. Acho que é um pouco do meu estilo. Eu queria que ficasse essa coisa para a frente e para trás. Não estou inventando nada de novo. É mais ou menos como funciona a memória, apesar de não ser como um fluxo de consciência. Vou montando.
Sul21: Como um mosaico?
Carol Bensimon: Tu achas que funcionou como um mosaico? Onde tudo fecha?
Sul21: Não é que feche. É um livro construído com cuidado. Eu queria saber se tu organizas a colocação dos mosaicos ou se tu os joga por livre-associação.
Carol Bensimon: Via de regra, as memórias de cada capítulo estão relacionadas com os acontecimentos presentes. Mas algumas coisas foram por tentativa e erro. Por exemplo, onde colocar a parte do pensionato? A festa à fantasia também foi uma cena que eu não sabia muito bem em que ponto ela deveria ser revelada.
“Acho que o livro tem um quê de esperança” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: E Thelma e Louise?
Carol Bensimon: Quando eu estava escrevendo o livro, li uma obra teórica sobre road movies. O livro é Driving Visions, de David Laderman. Ele fala que essas narrativas de estrada foram inauguradas com On the road, de Kerouac. Mas aí o cinema se apropriou do gênero. São analisados vários filmes divididos por décadas e vai mostrando como o gênero muda. O fato é que raramente as mulheres protagonizam esse tipo de narrativa. Thelma e Louise é quase inaugural nesse sentido. Mas fico muito intrigada com o final do filme. Dá pra fazer uma leitura feminista e também o contrário. E vários desses filmes acabam em morte. Eu tinha preocupação em não fazer um final assim.
Sul21: Mas não é um livro alegre, na minha opinião.
Carol Bensimon: Não sei. Acho que ele tem um quê de esperança. Tem a coisa da viagem, do movimento e da ideia de liberdade. Acho luminoso. Mas, também concordo, lá tem uma coisa melancólica: a questão de que a viagem acontece com anos de atraso.
” Quando escrevi, não existia ‘Azul é a cor mais quente’ | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Sim, há muita coisa fora do lugar. A hora escolhida para a viagem não é adequada, segundo a família. Quando Julia encontra sua família é um horror completo. Mas me fala sobre isso aqui na página 19. “Era como se você passasse meses cogitando pintar o cabelo de azul, e de repente percebesse que tanto tempo cogitando, analisando, imaginando, tinha acabado por satisfazer por completo seu desejo de rebeldia”. Tu já tinhas visto Azul é a cor mais quente quando escrevesses isso?
Carol Bensimon: (risadas) Hoje eu pensei nisso. Quando escrevi, não existia o Azul cor mais quente. O filme apareceu em maio em Cannes. Ele ganhou o festival, li a história e fiquei muito empolgada para ver o filme. Mas nessa época eu já tinha terminado o livro. Então é casual. Pura coincidência. Mas mesmo se não tivesse isso do Azul, já daria pra fazer uma certa conexão com o filme. Eu achei muito universal, me identifiquei. Se tu não tiveres preconceito, é uma história de amor. Por exemplo, aquela cena das duas no café, a tentativa de reconciliação. Aquilo é foda. E quem nunca vivenciou uma cena daquelas? Tu vais lá com a pessoa e suplicas mesmo.
Sul21: Onde entra, na tua opinião, a questão da militância gay?
Carol Bensimon: Não sei se ele entra na militância gay. Eu acho que ele entra mais na experiência particular de quem vai pegar o livro e se identificar com aquilo em termos de sexualidade feminina ambígua. Acho que a gente está num momento posterior a isso, desse rótulo de literatura “gay”. Talvez fosse um escândalo lançar o livro há 10, 15 anos. Eu tenho uma pequena lista de filmes onde duas gurias se envolvem. Pequena lista de três. (risadas). Tem um filme argentino chamado El niño pez, de Lucia Puenzo. Ela também fez aquele filme que se chama XXY. Nos dois filmes, ela trabalha essa questão da sexualidade, de gênero. Depois tem um filme ótimo, francês, chamado Lírios d’água, de Céline Sciamma. É um universo curioso porque são duas meninas que fazem nado sincronizado e uma delas está meio em negação e a outra sofre.
“Ela fala num determinado momento que talvez se sinta mais atraída por meninas supostamente heterossexuais do que por lésbicas, e isso cria um certo problema” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Queria que tu comentasses a frase: “Minha atração pelo sexo feminino era uma doce aventura e ao mesmo tempo uma condenação ao mais claustrofóbico dos universos”.
Carol Bensimon: Vamos lá. Acho que a personagem vê o exercício de seu lado gay como uma certa transgressão. Ao mesmo tempo há uma limitação, prisão, sei lá como diz, um universo claustrofóbico. Ela fala num determinado momento que talvez se sinta mais atraída por meninas supostamente heterossexuais do que por lésbicas, e isso cria um certo problema. Ela fala nisso. Ela queria ter uma chance com qualquer pessoa que encontrasse na rua. Com a frase, ela também se refere à questão familiar. Não chega a ser o drama do livro, mas a família não encara os fatos. O livro fala mais das questões mal resolvidas entre Cora e Julia. Em nenhum momento a Cora chega a confrontar a Julia. Nem no passado, nem na viagem. Não há do tipo ”Tá! O que é isso que a gente tá tendo?”. Mantém-se uma ambiguidade que tem o seu lado aventureiro e seu lado angustiante.
Sul21: Tu falaste numa sexualidade mais fluida que seria uma característica de nosso tempo. Tu achas que esse tipo de sexualidade fluída pode ocorrer entre homens, assim como ocorre entre mulheres?
Carol Bensimon: Não, é mais difícil. Porque o papel está mais delimitado no gênero masculino. É uma coisa cultural. As gurias experimentam. Namorar uma guria e daqui dois ou três anos ela estar casada, com filhos… Ninguém vai achar isso tão estranho assim. Com caras não acontece isso. É uma coisa cultural, simplesmente. Dia desses, assisti a um documentário francês sobre bissexualidade. A maioria das entrevistas eram feitas na França, e aí já temos uma dimensão totalmente diferente, por exemplo, da bissexualidade masculina, até porque vários caras que participavam eram pessoas do ramo das artes e se declaravam bissexuais. Eram figuras públicas e tal. Certamente isso ainda não chegou ao Brasil. A noção de masculinidade varia de país para país. O francês pode parecer efeminado e ser hétero.
Sul21: Há preconceito das lésbicas contra as bi?
Carol Bensimon: Sim, bá, total. A gente tem essa sigla LGBT e, nos anos 90, lembra que era só GLS? O B está ali só como uma letra. Acho que há um preconceito forte dentro da comunidade, em vários sentidos. Primeiro, parece que os bissexuais são meio que “traidores” do ponto de vista das feministas. Então podem ser mais ainda entre as lésbicas feministas. Que mais posso dizer sobre isso? Há também este rótulo de promiscuidade… Vários gays e lésbicas acham que bissexuais são gays enrustidos que não saíram do armário.
Sul21: Há meninas que ficam com gurias em festas, mas se dizem hétero…
Carol Bensimon: Aí acho que entra outro fator que é muito contemporâneo, que é a coisa das gurias ficarem para chamar atenção dos homens. Aí é muito confuso. Há diferenças sobre como são vistas as mulheres bi e os homens bi. O senso comum acha legais mulheres bi – tem a ver com a pornografia. Parece que as mulheres estão fazendo um espetáculo pros caras. São como nos filmes pornô. As mulheres ficam se pegando, mas só enquanto o cara não chega pra comer. É sempre uma questão de preliminares. A meninas a que tu te referiste são chamadas pelo termo heteroflexíveis. A pessoa se considera hétero mas as vezes ela fica com o mesmo gênero. Então, várias dessas meninas das festas podem ser heteroflexíveis, mas não se consideram assim.
Sul21: Evidentemente, o nome da narradora, Cora, é uma brincadeira com teu nome, né? Coloca o L e muda o lugar da vogal e chegamos à Carol.
Carol Bensimon: Não, não foi de propósito. É sério.
Sul21: Tu vais querer me vender essa??
Carol Bensimon: É que se eu contar a história de verdade vai ser pior ainda.
Sul21: Vai ter que contar!!!
O mistério do nome Cora… | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Carol Bensimon: Em off só, realmente não tem nada a ver.
(…)
Sul21: Tu me falaste, também em off, que tinha algum plano pro livro de virar mini-série ou filme.
Carol Bensimon: Eu vendi os direitos. Eu vendi para a RT Features do Rodrigo Teixeira. Ele compra bastante coisas contemporâneas. Ele comprou o Sinuca embaixo d`água.
Sul21: Não o Caubóis?
Carol Bensimon: O Caubóis também. Mas primeiro ele comprou o Sinuca. Ele comprou Caubóis antes do livro ser escrito.
Sul21: Isso tem tempo de validade?
Carol Bensimon: Se não me engano é um contrato de dez anos. É um pouco angustiante, porque não sei se virar mesmo filme. As pessoas dizem que daria um puta filme. É difícil saber quando vai sair. O Sinuca ainda não saiu. Mas tu viu o book trailer?
Sul21: Não.
Carol Bensimon: Sério?
Sul21: Eu vi só o book trailer do livro do Marcelo Backes, O último minuto, muito bom.
Carol Bensimon: Tu tens que ver. É incomparável, é uma coisa muito foda que a Liliana Sulzbach fez. É um filme. É um trailer de filme. E vê-lo deu ainda mais vontade de ver em filme. Até porque não sei até quando aqueles lugares vão durar.
Sul21: Como é que é Minas de Camaquã? O que é aquilo? É abandonado? Tipo a Paraty de antes dos anos 70?
Carol Bensimon: A comparação não é muito válida. Era uma cidade de mineração que tinha vivia da exploração de cobre desde o século 19, com os belgas.
“A impressão que eu tenho é que todas as cidades do interior seriam daquele jeito se elas não tivessem se descontrolado completamente em termos de planejamento urbano, sabe?” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Onde fica isso?
Carol Bensimon: Entre Bagé e Caçapava. O Baby Pignatari era o dono das minas da Companhia Brasileira do Cobre (CBC). Eles construíram essa cidade pros mineiros e pras pessoas que trabalhavam. Então foi uma cidade planejada. Toda ela é circular, as ruas são circulares. Então num primeiro raio tu tens as casas dos engenheiros, depois as dos mineiros, etc. As casas vão ficando mais simples. Acho que a população era maior do que a de Caçapava. Lá tinha cinema, Caçapava não. E então acabou o cobre. Quebrou a Companhia. Daí, nos anos 2000, houve um leilão e eles venderam aquelas casas por um preço ridículo, 500 reais cada uma. Então essas casas voltaram a ser ocupadas como casas de fim de semana das pessoas que moram em Caçapava ou Bagé.
Sul21: Mas tem alguma coisa de atrativo lá?
Carol Bensimon: Sim. São aproximadamente 500 habitantes. A impressão que eu tenho é que todas as cidades do interior seriam daquele jeito se elas não tivessem se descontrolado completamente em termos de planejamento urbano, sabe? O local tem uma aura, uma personalidade. Irei novamente para Minas de Camaquã agora no final de janeiro.
Sul21: Como é que tu descobriste?
Carol Bensimon: Uns amigos me falaram. Porque ali perto tem umas formações rochosas que chamam de guaritas. Eles começaram a falar desse lugar. E daí eu conheci uma leitora de Caçapava que entrou em contato comigo e quando eu falei das Minas ela disse que a família dela tinha casa lá e que poderíamos fazer uma visita. Foi a primeira vez. No book trailer, fomos pra lá. Tu me perguntaste sobre os atrativos. O atrativo é a paisagem que é muito massa, tem lugares pra subir. Há o rio Camaquã que passa ali e tem toda essa estrutura abandonada. As casas têm certa manutenção, mas os prédios da mineração estão bem detonados.
“Antes tu mostrava pra mãe, pro namorado, pro irmão. Nesse sentido as oficinas são importantes” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: E os OVNIs de lá…?
Carol Bensimon: Ah, sim, tem a sede do projeto Portal lá.
Sul21: Tem mesmo?
Carol Bensimon: Sim. É enorme. Pavilhões.
Sul21: Tu conversaste com os caras?
Carol Bensimon: Não. Nunca vi ninguém lá.
Sul21: Mudando utra vez de assunto, me diz uma coisa, o que tu achas das oficinas literárias? Tu participaste da oficina literária do Assis Brasil, tu achas que ela acrescentou algo pra ti?
Carol Bensimon: É sempre meio que clichê essa resposta, sabe? Porque encurtou caminhos talvez. Indicou leituras, apresentou teorias. Eu poderia ter intuído tudo, mas talvez demorasse mais tempo assim. E, depois, talvez o mais importante seja a troca com o Assis e com os colegas, porque chega um momento em que uma pessoa escreve um conto e todos têm que analisar aquele conto. A aula inteira debatendo. Antes disso tu mostrava pra mãe, pro namorado, pro irmão. Nesse sentido é importante.
“Um cara me detonou da Folha de São Paulo. Falou que era previsível” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21: Como tem sido a repercussão do livro?
Carol Bensimon: Não sei se tu conheces o Skoob, aquela rede social? Às vezes entro pra olhar. Primeiro tem uma discrepância absurda entre o número de homens e mulheres que estão lendo o livro. Mulheres são mais de 80%. Se pegar meus outros livros, é mais equilibrado. E tem esses blogs com resenhas. Blogs sobre livros, muitos de fantasia. Eles leem o livro e gostam, é curioso. Mas um cara me detonou da Folha de São Paulo. Falou que era previsível. Tudo bem.
Sul21: Eu fico surpreso de alguém achar previsível, porque o previsível é quando tu provocas um conflito e dá um final esperado. Não é o caso do teu livro. E esse negócio da música no livro? Tu usas como recurso expressivo ou o quê? A Cora num momento diz “que as músicas gaudérias estão tão longe dela quanto a música celta, batuques aborígenes “.
Carol Bensimon: Eu acho que eu uso a música um pouco como frustração, porque eu queria que o livro tivesse trilha sonora. Então cito uma série de músicas. Inclusive dou opiniões do tipo: “essa música abre o melhor disco do Led Zeppelin”. Tem um pouco a ver com o processo criativo. Eu postei uma playlist no Facebook e fez um tremendo sucesso, não sei por quê.
Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, criador de Juó
A artograffia muderna é una maniera de scrivê, chi a gêntil scrive uguali come dice.
Juó Bananére
Hoje, se poucos sabem quem foi Juó Bananére, o que dizer de sua obra magna La Divina Increnca? Porém, durante as primeiras décadas do século XX, Juó foi um dos nomes mais famosos da imprensa paulistana e brasileira. Ele foi um personagem fictício, imigrante italiano criado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933), e que era assunto tanto nas feiras e ruas quanto nos salões da alta sociedade.
Formado em engenharia pela Escola Politécnica da USP, alto e elegante, Alexandre em nada correspondia à imagem de Bananére que o caricaturista Voltolino imortalizou: um sujeito de meia-idade, baixo, gordo e maltrapilho. Bananére escrevia textos que parodiavam o sotaque da grande colônia italiana de São Paulo. Como quase todo imigrante, os italianos recém-chegados eram obrigados a aceitar quaisquer trabalhos. Um deles era o de puxar carroças de frutas para vendê-las. Daí o pseudônimo: um João Bananeiro qualquer virou Juó Bananére. Ele era o autor de versos como estes:
Migna terra tê parmeras,
Che ganta inzima o sabiá.
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.
A abobora celestia tambê,
Chi tê lá na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Chi non tê na Ingraterra.
O leitor certamente reconhecerá neles uma paródia ao poema Canção do exílio de Gonçalves Dias. Além de brincar com poemas famosos, Juó escrevia os também os seus próprios, além de crônicas satíricas que narravam a vida dos imigrantes e faziam piadas com figuras da época, como os presidentes Venceslau Brás, Hermes da Fonseca, o jurista Ruy Barbosa e muitos outros. Também há paródias inspiradas em romances de Machado de Assis, mantendo sempre a mistura dos idiomas italiano e português.
Por mais de 20 anos, Juó se fez presente nos meios culturais e jornalísticos paulistas. Eterno Gandidato á Gademia Baolista de Letras, ele, infelizmente, nunca obteve uma cadeira para si, apesar dos imensos e macarrônicos elogios que fazia a si mesmo.
Nomes ilustres não lhe pouparam elogios. Oswald de Andrade referiu-se a ele como “o mestre da sátira no Brasil”. O escritor Antônio de Alcântara Machado não deixou por menos: o personagem teria sido “o melhor cronista” de São Paulo.
Apesar de não ter ascendência italiana, Alexandre apaixonou-se pela cultura surgida nos bairros operários que se expandiram na capital paulista, como Brás, Barra Funda, Belenzinho, Mooca e Bexiga — bairro de Adoniran Barbosa, que adorava e deixou-se influenciar por Juó –, após a grande onda imigratória que fez com que a população da cidade passasse rapidamente de 130 mil habitantes em 1895 a 580 mil em 1920. Metade destes habitantes consistiam de imigrantes estrangeiros e outro quarto de seus filhos já nascidos no Brasil.
Como jornalista, Alexandre escrevia artigos para o jornal O Estado de S. Paulo e, em outubro de 1911, começou a assinar uma coluna na revista semanal O Pirralho, um periódico literário, político e de humor recém lançado por Oswald de Andrade. É lá que ele passa a usar o pseudônimo Juó Bananère. O novo jornal tinha uma proposta pré-modernista, movimento literário precursor do Modernismo.
Após a morte de Alexandre, o personagem Juó Bananère ficou esquecido por décadas, sendo eventualmente lembrado pela coletânea La Divina Increnca. Atualmente, reeditados, seus textos têm sido objeto de estudos de historiadores, críticos e teóricos da literatura.
Poema publicado na revista O Pirralho. Criação de Oswald de Andrade. Poema de Juó Bananére
Apesar das colunas nos jornais, a principal obra de Juó foi mesmo o livro La Divina Increnca, paródia de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, editado pela primeira vez em 1915 e reeditado em 1924, 1966 e 1993. Atualmente a editora Livronovo está procurando viabilizar uma nova edição através de financiamento coletivo.
Juo Bananére
Com efeito, críticos consagrados, como Otto Maria Carpeaux, atribuíram a ele o papel de precursor do modernismo. A inventividade linguística do personagem seria o equivalente tupiniquim às ousadias de James Joyce e ao movimento dadaísta europeu. O professor Carlos Eduardo Capela, de teoria literária da Universidade Federal de Santa Catarina e autor da obra Juó Bananére — Irrisor, Irrisório (2009, Nankin Editorial/Edusp, 538 páginas), não encara as comparações como piadas, mas acredita que tais teses sejam absurdas.
“Há coisas em comum, como o humor. Mas o modernismo é um movimento literário, articulado, tem um manifesto. Já o Bananére é um piadista, nunca quis ser nada além disso. O espaço dele é o efêmero, a coisa pequena, o cotidiano.” Mais apropriado, acredita ele, é enxergar em Alexandre/ Bananére um rico caso de testemunho histórico e de criação de um personagem.
“Ele confronta um ambiente intelectual conservador e projeta, por via paródia, o desclassificado, os tipos marginais. Hoje se fala muito em dar voz às minorias, mas ele já fazia isso há quase cem anos.”
Sua coluna em O Pirralho chamava-se O diário do Abax’o Piques. Abaixo Piques era o nome da atual Ladeira da Memória, local tombado em 1974 na cidade de São Paulo. Mais tarde, após romper com Oswald de Andrade, Alexandre fundou o Diário do Abax’o Piques — Diario Semanale di Grande Impurtanza, em associação com o ilustrador Voltolino (1884 – 1926). Nele, Juó se intitulava poeta, barbieri i giurnaliste e, em sua logomarca, estava escrito Lasciate ogni speranza.
Lasciate ogni speranza, voi che entrate (“Deixai qualquer esperança, vós que entrais”) é o famoso verso que se encontra na porta de entrada do Inferno, a primeira parte de La Divina Commedia, a obra-prima de Dante, da literatura italiana e da cultura da Idade Média.
O jornal caracterizava-se por apresentar temas essencialmente políticos, discutidos em tom satírico, por meio de uma linguagem humorística escrachada. O periódico apresentava duas seções fixas Taka – Shumbo Shimbum e um “sumplemento” esportivo – Sport que finalizava cada edição. Os colaboradores usavam pseudônimos para assinar suas colaborações. Ali, Juó Bananére registrava uma linguagem própria à mesclagem cultural que gerou paulistano.
Tal como aconteceu com o Barão de Itararé e seu inventor Aparício Torelly, o Juó Bananére inventado por Alexandre Marcondes Machado acabou por reinventar seu inventor como escritor. Hoje, pode-se dizer que existe Juó Bananére e não Alexandre Marcondes Machado. Juó, com seu italiano de imigrante pobre em São Paulo, aparecia como uma voz viva e afrontosa dos despossuídos do país.
A principal fonte de inspiração de Alexandre Machado estava nas ruas, e era para essas mesmas ruas que retornava a obra pronta, de enorme sucesso, tendo em vista as repercussões em textos de outros autores e relatos de pesquisadores. Está mais do que hora de recuperarmos Bananére como parte de nossa história literária.
Então, agora vamos fazer o elogio de alguns dos contos do livro.
Manual da Faxineira traz 43 dos 78 contos que Lucia Berlin escreveu. Ela é concisa porque é precisa, é brutal porque trata do horrível da vida e é desiludida (no sentido de realista), mas nunca ao ponto de tornar-se melancólica. E há sempre o humor, que sempre parece garantir que há alguma coisa de divertida para além do horror.
“Não me importo de dizer coisas horríveis, desde que possa torná-las engraçadas”, diz a narradora do conto Silêncio. Serve para todo o livro.
A propósito, Silêncio é um dos melhores contos da coleção. A ação ocorre em El Paso, enquanto o pai da menina protagonista está na guerra. A mãe é uma alcoolista que pune a filha injustamente. O avô é abusador. Já o tio é outro alcoolista, mas é delicado e relaciona-se bem com a menina Lucia. Certo dia, ela apanha da mãe sem justificativa e passa a não falar mais. Mas ela conversa com o tio amigo, que só de vê-la descobre que cinta para a escoliose está apertada e tem que ser trocada. Depois o tio comete um grande erro — na rua, durante uma bebedeira, sem relação direta com a menina — sobre o qual é necessário também silenciar. Ele foge. Quando li o conto pela segunda vez, ele me pareceu quase um ensaio sobre a culpa e a delicadeza, a irritação e a vergonha. O final é uma paulada. Eles se reencontram anos depois:
“Conversamos sobre a vida, contamos piadas. Nenhum dos dois sequer mencionou El Paso. Claro que, a essa altura, eu já tinha percebido todas as razões de ele não ter parado o caminhão naquele dia, porque a essa altura eu era alcoólatra”. (p. 419)
O conto Manual da Faxineira é pura diversão triste. É uma montanha de fragmentos curiosos e engraçados sobre ser faxineira, sem explicar os motivos que levaram uma pessoa tão culta àquela situação:
“Mostre a eles que você faz um serviço completo. No primeiro dia, ponha todos os móveis de volta no lugar errado… dez a vinte centímetros mais para um lado, ou virados em outra direção. Quando tirar o pó, inverta a posição dos gatos siameses. Ponha a cremeira à esquerda do açucareiro. Troque as escovas de dentes de lugar”. (p. 47)
Ela explica isso querendo dizer que nem precisa limpar muito, é só mostrar que tudo foi mexido.
O esplêndido Desgarrados é ambientado em uma espécie de colônia para dependentes químicos e alcoolistas. É um projeto piloto de reabilitação, ironicamente chamado de “La vida”. Fica no meio do deserto, isolado, onde os internos, após receberem as doses matinais de metadona, realizam trabalhos compulsórios. O cenário é hostil, brutal em todos os sentidos, os companheiros de reclusão da narradora são figuras tristes, desgarradas, como indica o título. E mesmo assim, em meio a tudo que há de inóspito, há a lua, e a capacidade da narradora de ver uma brecha na rudeza ao redor.
A lua é vista refletida nos olhos amarelos de um cão. Nada importa muito, sabe? Quer dizer, nada importa de verdade. Mas aí, às vezes, só por um segundo, é como se você recebesse uma graça, a crença de que aquilo importa muito. (p. 221)
Outro trecho potente está em Mordidas de tigre. Quando uma jovem de dezenove anos, com um filho de um ano, grávida do segundo e abandonada pelo marido, se vê em uma clínica clandestina de aborto, rodeada por mulheres constrangidas e amedrontadas. Ela então percebe que não quer realizar o aborto, que por mais ingratas que as perspectivas sejam, ela, o filho e o bebê por vir podem ser uma família. Não é algum otimismo pueril, é o horror transfigurado, é a beleza possível da vida, que não exclui o trágico, que se trata mais de uma tomada de posição subjetiva perante o adverso, a tristeza, a solidão.
Muito diferente é Mijito (contração de Mi hijito) uma narrativa pungente de uma mexicana cujo marido é preso. Ela está grávida, não sabe falar inglês e, na verdade, mal sabe pensar. As narradoras são uma atendente de clínica médica, supõe-se que a própria Lucia novamente, e a mãe. O filho nasce, lhe aparece uma hérnia e deve ser operado. A mãe trabalha para amigos do marido preso, fazendo serviços eventuais. Eles as detestam, à mãe e à criança. A mãe não consegue ir às consultas porque tem compromissos ou perde caronas. Também não consegue deixar seu bebê em jejum para a operação. Onde está o humor em toda esta desgraça? Na rotina da clínica, que vê tudo acontecer sob olhos mais ou menos calmos. Um conto de horror absoluto contado em ritmo de dança.
Como ela consegue dar um jeito de misturar humor e horror de uma forma que nos deixa perplexos?
Em outros contos, por exemplo: a jovem que assiste o médico introduzir o mecanismo para realizar abortos descreve o procedimento:
“… empurrando lentamente o tubo lá para dentro, como quem recheia um peru”. (p. 101)
Ou a idosa que observa um funcionário que mede o banheiro para trocar o ladrilho:
“Aquela sua catinga era como uma madeleine para mim, trazendo de volta vovô e Tio John, para começar”. (p. 475)
Ora, comparar a madeleine de Proust com o odor de um homem velho e gordo demais para realizar o serviço pelo qual ela o contratou, e o poder desse cheiro de levar a narradora de volta à infância… É esse o tipo de transformação que Berlin cria.
Ou em Amigos, quando ela pensa que está ajudando — e se sacrificando um pouco por — um casal solitário de velhos e ouve o seguinte diálogo:
— Ela nunca se atrasou antes Talvez ela não venha.
— Ah, ela vem sim… essas manhãs significam tanto para ela.
— Coitada, tão sozinha. Ela precisa de nós. Na verdade, somos a única família que ela tem.
— Ela com certeza adora minhas histórias. Droga. Não estou conseguindo pensar em nenhuma história para contar pra ela hoje.
— Alguma coisa vai acabar te ocorrendo… (p. 191)
É difícil pensar que ela, a escritora, fosse tímida, mas aparentemente ela poderia ser. O belo romance de Quero ver aquele seu sorriso — onde um apaixonado casal sempre bêbado atrai um advogado caro para defender a mulher acusada de uma agressão a policiais e que acaba seduzido pelo estilo de vida deles, no mais longo e um dos melhores contos do livro — e as histórias hospitalares de Meu Jockey, Caderno de notas do setor de emergência, Temps Perdu não apontam para uma pessoa retraída.
Porém, há um vídeo que sobreviveu de uma leitura em Oakland em 1984, e ela não parece nada à vontade. Um amigo disse que “Era como se ela tivesse medo de errar, medo de agir como uma alcoólatra: cair, vomitar bobagens, agir como uma louca”.
Pois bem, há vários contos sobre alcoolismo. Um ansioso e trágico é Incontrolável, onde a personagem principal espera que o supermercado abra às 6h da manhã para que ela possa comprar o álcool salvador. Ela estava trêmula e hiperventilando. Se não tomasse logo algo entraria em delirium tremens. O filho fica com as chaves do carro e a carteira de motorista por segurança. A tranquilidade da casa faz enorme contraste com a abstinência.
Há o cômico 502. Bêbada, ela deixa o carro estacionado em ponto morto e vai dormir em casa. Bem, o carro acaba descendo a rua quando o carro de frente desencosta. Ele vai longe até bater num prédio, mas não machuca ninguém. Os bêbados amigos dela, todos eles negros que costumam beber dentro de um caro abandonado e sem motor da rua, a defendem junto à autoridade policial. Como é que ela vai ser multada se estava dormindo em casa???
“Se você não está dirigindo, não pode ser multado por dirigir embriagado”. (p. 456)
Depois, quando conseguiu se recuperar, seguia avaliando cidades pelo nível de dificuldade para arranjar bebidas.
Ela deixa de beber depois dos 50 anos de idade enquanto cuida da irmã mais nova que morreu de câncer na Cidade do México. Em várias histórias — Espere um instante, Mamãe, Dor — os últimos meses da vida de Sally são contados de várias maneiras, em situações sempre diferentes e complementares.
Em seus relatos há enfermeiras, professoras, faxineiras que oferecem interessantes conselhos — “Pegue tudo que sua patroa te dê e agradeça. Pode deixar no ônibus, entre os bancos –, e também há muitas garrafas de uísque, bebedeiras, vícios, viagens para o México, uma avó que pede que seus netos se afastem dela como se fossem cachorros. As histórias acontecem em centros de desintoxicação, hospitais, casas de família.
Em suas explorações da memória pessoal, Berlin tem um controle nada trêmulo de suas narrativas. As conclusões não são nada reconfortantes: quanto mais velhos ficamos, mais nossas lembranças se tornam catálogos de perdas. Parentes morrem, relacionamentos se desfazem. “As partes boas são tão difíceis de lidar quanto as ruins”, conclui uma das personagens.
Já falei sobre isso, mas vamos de novo. A última história que Berlin escreveu, B.F. e eu, é sobre uma mulher idosa em um trailer, amarrada a um tanque de oxigênio, tentando conseguir um faz-tudo para colocar ladrilhos novos em seu banheiro, acaba recebendo um senhor tão velho e quase tão enfisêmico quanto ela para fazer o serviço. O conto tem uma conclusão apropriadamente não sentimental. Como já dissemos, o ladrilheiro faz com que ela invoque Proust, como outra história que se chama Temps Perdu.
[B. F.] era um homem enorme, alto, muito gordo e muito velho. Mesmo enquanto ele ainda estava do lado de fora, tentando recuperar o fôlego, eu já estava sentindo o cheiro dele. Tabaco e lã suja, suor fedorento de alcoólatra. Gostei dele de cara. […] Fiquei vendo B. F. medir o banheiro durante um tempo, depois fui me sentar na cozinha. Continuei sentindo o cheiro dele de lá. Aquela sua catinga era uma madeleine para mim, trazendo de volta vovô [o dentista alcoolista e arrancador de dentes] e o Tio John [aquele que fugiu do atropelamento], para começar. (p. 475)
Como vemos, assim como na grande obra circular de Proust, em Lucia Berlin o fim se torna um caminho de volta ao início. E, por falar em fim, acho que, assim, chegamos ao nosso final, desejando termos dado a vocês uma boa ideia do que é esta grande escritora.
Primeiro, eu vi Manual da Faxineira em sua edição portuguesa de 2016, chamada Manual para Mulheres de Limpeza. O livro fora lançado em 2015 nos EUA.
11 anos após sua morte, Lucia ganhava enorme reconhecimento e levava quase todos os prêmios de Melhor Livro do Ano nos EUA e Reino Unido.
Manual chegou ao Brasil em 2017. Mas voltando à edição portuguesa, foi com alguma irritação que li na orelha a frase “Lucia Berlin talvez seja a melhor escritora de todos os tempos”. Pô! É claro que isto afasta os leitores pelo exagero e vazio de significado. Não comprei o livro.
Quando li a edição brasileira da Cia. das Letras, a frase portuguesa seguia me irritando pela banalidade. Afinal, há tanta coisa diferente para se dizer sobre o livro, Lucia é tão diversa e original que a única coisa que aproveitei daquela orelha foi a de saber que a autora preferia ouvir seu nome à maneira da América espanhola: “Lu-ssí-a”, em vez da pronúncia anglo-saxônica ou italiana.
Compreendo, porém, o entusiasmo que a escrita de Berlin causa. Durante e após a leitura, parece que somos forçados a falar sobre o que estamos lendo e em nosso discurso brotam frases desbragadamente elogiosas. Igualmente, quando lemos os dois textos finais do livro, dos ensaístas Lydia Davis e Stephen Emerson, notamos suas dificuldades na escolha dos adjetivos.
Personagens
A tentação é grande de falar mais das aventuras e desventuras da autora do que de seus contos. O que seria uma grande injustiça porque, como escritora, ela consegue muito. Conta boas histórias, tem humor e encanta o leitor. Sério, sua escrita sem floreios desliza diante de nossos olhos com a fluência de uma conversa entre amigos. Os personagens são quase sempre seres atrapalhados que vão tropeçando em suas fraquezas, mas — e aí chegamos ao crucial — a autora não os ridiculariza, não tem pena deles, não dramatiza suas desgraças. No fundo, todo mundo é igual — ela parece nos dizer — seja o índio bêbado de Albuquerque, a beldade que sonha com Hollywood, a grávida que conta o que viu na clínica de abortos, a mãe que se apaixona pelo amigo do filho, a alcoólatra que sai de madrugada para comprar uísque antes que as crianças acordem, a mulher negra e bem-sucedida que trata com desdém a faxineira.
Em seus tempos de alcoolismo pesado, Lucia trabalhou como faxineira mesmo tendo diploma universitário. “As faxineiras mais antigas nem sempre me aceitam com muita facilidade. E é difícil arranjar serviços de faxina também, porque eu sou ‘instruída’. Só que eu não tenho conseguido de jeito nenhum arranjar outro tipo de trabalho.” É Lucia falando através da personagem principal do conto que dá nome ao livro.
Virtuosismos
Já falei sobre o primeiro conto do livro, aquele em que ela narra fatos ocorridos em duas lavanderias separadas tanto geográfica quando temporalmente, então falemos de outro conto, Ponto de vista.
Nesta história, que poderíamos chamar de experimental, a narradora confessa sobre o personagem que está criando: “…O que eu espero conseguir fazer é, por meio da utilização de detalhes intrincados, tornar essa mulher tão verossímil que você não tenha como deixar de se compadecer dela.” Ela consegue isso com aparente facilidade. Mais: ela nos dá duas opções de parágrafo para abordar a personagem, uma boa e outra ante a qual o leitor reagiria com um “Ah, tenha a santa paciência”. (pág. 66 e 67 da edição brasileira).
Neste conto inacreditavelmente original e elegante, há mais duplicidades, há comparações entre a atual assistente de um consultório médico e sua antecessora, a narradora. Mas não pensem que isso resulte numa leitura complexa, é tudo muito claro. Em dado momento a narradora diz que jamais adotaria a postura de sua personagem frente a um médico, que aquilo é um erro, mas que sua personagem faz refeições modestas e solitárias usando “belíssimos talheres italianos de inox”, assim como ela, a narradora, conta fazer.
Nas últimas linhas, a confusão entre a narradora-assistente e sua personagem é total. Tanto que, após descrever o personagem solitário observando alguém na rua, o narrador diz: “Eu me apoio no peitoril frio da janela e fico observando o homem.”. E já não sabemos quem é o “eu”. Repito: toda esta complexidade vem muito clara e distinta para o leitor, que fica pensando no quanto nossas histórias pessoais se alteram quando em contato com diferentes personagens.
Essas confusões propositais reforçam a impressão de que a escrita de Lucia é, mais do que ficção, memória escrita ao sabor do fluxo de consciência. Como se ela arrancasse páginas de seu diário e as publicasse isoladamente, oferecendo-as para nós, leitores, como histórias curtas. Contribui para esta impressão o fato de que o mesmo personagem ressurge em diferentes fases da vida. A jovem que vive com um músico em um conto é também a mãe que abriga os filhos em uma manhã gelada de Nova York e que, madura, cuidará da irmã à beira da morte? A mulher que descreve a clínica de reabilitação é a mesma que esquece de frear o carro estacionado em uma subida para pavor e graça de seus amigos, alcoolistas como ela? Certamente.
Mais: Lucia tem o costume de usar poucas linhas e frases curtas e diretas para nos contextualizar. Rapidamente, ficamos conhecendo o local onde estamos e também o gênero de pessoa que está a falar conosco. Às vezes, ela nos dá o contexto em frases sem verbo. Um exemplo com verbos:
“O ônibus está atrasado. Carros passam. Gente rica dentro de carro nunca olha para as pessoas na rua. Gente pobre sempre olha… na verdade, às vezes parece que elas estão só passeando, olhando para as pessoas na rua. Eu já fiz isso. Gente pobre espera muito. Em postos de previdência social, filas de desempregados, lavanderias, cabines telefônicas, prontos-socorros, prisões, etc.” (p. 40)
Ou seja, apesar de não perder tempo com descrições de ambientes, ela é muito eficiente nisso, é uma escritora atenta a todos os pormenores e que sabe a importância deles para caracterizar um lugar, uma pessoa e uma vida.
Em Tremoços-de-flor-azul, Berlin declara diretamente a um professor de filosofia, cujo último livro acabou de traduzir, e que se entusiasma a falar com ela sobre Heidegger, Wittgenstein, Derrida e Chomsky:
Desculpe. Eu sou poeta. Lido com o específico. Fico perdida no abstrato. Eu simplesmente não tenho a bagagem para discutir essas coisas com você” (p. 276)
E é com o específico, o particular, que nos deparamos em cada conto e em cada descrição concreta, precisa, detalhada. Esta afirmação, dirigida ao professor de filosofia, é uma declaração da autora acerca daquilo que faz sua escrita. Não há abstração. Todos os contos são Berlin a falar da sua vida, quer ela se chame Maria, Carlotta, Loretta, Dottie, Adele, quer os seus filhos se chamem Nick ou Ben, ou o seu marido ou amante seja Jesse, Rex ou Mel. É sempre a voz e o carácter de Berlin, os lugares onde sabemos que viveu, as pessoas que conheceu, seus parentes, o alcoolismo, as situações pelas quais passou, etc. Ninguém sente sono lendo as histórias, que têm viradas a cada momento. Claro que ela tem maiores preocupações com a estrutura, a técnica, e menos com ser exatamente fiel à realidade. Tudo o que ela narra pode ter sido sua vida, mas nossas histórias jamais nascem prontas para virar bons contos.
Do humor
A violência das situações descritas na maioria dos contos, de natureza física e emocional, é contrabalançada pelo humor que Berlin introduz no relato desses acontecimentos. Não há como não rirmos alto quando, após termos assistido detalhadamente à extração a sangue frio de cada dente da boca do avô de Berlin, realizada por ele mesmo e pela própria Lucia, ainda criança, em Dr. H. A. Moynihan, nos deparamos com este cenário:
Eu queria pegar uns saquinhos de chá; meu avô costumava fazer os pacientes morderem saquinhos de chá para estancar o sangramento. (…) A toalha de papel que eu tinha posto na boca do meu avô estava encharcada de sangue agora. Joguei-a no chão, enfiei um punhado de saquinhos de chá na boca dele e apertei os maxilares um contra o outro. Gritei. Sem dente nenhum, o rosto dele parecia uma caveira, ossos brancos em cima do pescoço ensanguentado. Um monstro medonho, um bule de chá que ganhou vida, com etiquetas amarelas e pretas de chá Lipton penduradas como enfeites de Carnaval. (p. 21)
E mais à frente, há o conto Sex Appeal, de humor rasgado. A prima linda resolve ir a Hollywood. Como acha que tem peitos pequenos, usa um sutiã com enchimento. Pega um avião para ir à Califórnia e, quando este ganha altura, o sutiã explode na cabine despressurizada. Mas não é por isso que ela retorna. Depois, há um baile na cidade no qual estará presente um famoso alguém. A prima vai acompanhada da menina Lucia, então com dez anos. No baile, a prima atrai o famoso homenageado com seu irresistível sex appeal. Mas vai ao banheiro e então fica claro que o cara desejava era a menininha Lucia. Tudo isso é contado de forma hilariante e leve, mesmo que o assunto seja pedofilia.
O humor não é um esforço para mitigar os eventos dolorosos ou sensações de perturbação e solidão – é um sintoma do modo como Berlin observa as pessoas, os lugares e as situações. Apesar do carácter sombrio de alguns contos, apesar mesmo de Berlin confessar, no final de Mamãe, que não tem compaixão nenhuma pela mãe já falecida, não há qualquer resquício de ressentimento ou raiva nas histórias.
Nascimentos, mortes, abortos, violações, traições, alcoolismo, abandono, reencontros, faz tudo parte de uma vida que é sempre vista afirmativamente, em tudo aquilo que a compõe. Em Boba de chorar, Carlotta almoça com Basil no dia de aniversário dela. Estão ambos nos seus cinquenta anos. Ele é apaixonado por ela desde a adolescência, mas foi preterido em favor de outro rapaz, e não é difícil perceber por quê:
«Você e Hilda costumam ir para o litoral?”, perguntei.
«Como alguém conseguiria, depois de frequentar a costa do Chile? Não vou, há sempre muitas hordas de americanos. Eu acho o Pacífico mexicano entediante.»
«Basil, como você pode achar um oceano entediante?»
«O que você acha entediante?»
«Na verdade, nada. Eu nunca fiquei entediada.» (p. 292)
Nem ela, nem nós, quando lemos estas histórias. Mas é mais do que não sentirmos aborrecimento: é sentirmo-nos a viver com ela da maneira como ela vive, chegando até a desejar estar numa prisão no meio do deserto de Albuquerque, pela forma como isso é descrito. Afirmar isto, admita-se, não está longe de classificar a sua escrita de “colorida” ou “vibrante”. A dificuldade de falar de Lucia Berlin reside precisamente em percebermos que a escrita é tecnicamente perfeita e que a tentativa de explicar a experiência da leitura resultará sempre insatisfatória.
Ser comparada a escritores como Raymond Carver ou Tchékhov é um elogio e sinal do talento de Berlin, mas ela é única. Mais do que qualificá-la, entre aspas, “como a melhor escritora de todos os tempos”, o que importa dizer é que ela foi uma escritora de raras virtudes e que, tão importante quanto o talento de Berlin para os detalhes precisos e cortantes, é o que ela deixa de fora.
Existem mestres do parágrafo e mestres da frase; Lucia Berlin é a mestra do fragmento. Suas fotografias de momentos e sua habilidade narrativa faz com que a leitura avance sem resistências, alta velocidade. A história parece que se impulsiona para a frente, sem deixar de ser inteligente ou terrível.
Conhecer a biografia de Lucia Berlin não é fundamental para entender seus contos, mas a relação entre vida x ficção faz com que quase consideremos sua obra como autoficção. “Eu exagero muito e confundo ficção e realidade, mas nunca minto” é uma frase importante que a própria autora proferiu a respeito de seus contos. Seu filho Mark disse que ela escreveu histórias verdadeiras, não exatamente autobiográficas, mas muito próximas de situações vivenciadas. Suas histórias — muitas vezes duríssimas — era o que, incrivelmente, ela contava para fazer seus filhos dormirem e algumas delas chegaram à contos que ela digitava na máquina de escrever até altas horas da noite, ao lado de uma garrafa de whisky que desaparecia rapidamente. Sim, com as pequenas alterações de praxe — nomes, locais, talvez exageros –, ela retirava de sua própria vida o material para os contos. E muitas vezes sem alterações. Por exemplo, a irmã Sally está em vários de seus contos e, bem, sua irmã chamava-se Sally e os acontecimentos que a cercam nos relatos “ficcionais” de Berlin são exatamente os mesmos da biografia da irmã. Esta era mais nova e morreu de câncer na Cidade do México, na vida real e nos contos, etc.
Lucia Berlin teve uma vida surpreendente, quase inacreditável, com muitas mudanças de situação, profissões e cidades, além do alcoolismo como o qual conviveu por décadas. Teve muitos casos amorosos. Parece que os homens apaixonavam-se facilmente por ela, o que não é muito difícil de entender. Foi uma mulher muito bonita, com algo de uma versão em tamanho maior de Elizabeth Taylor no formato do rosto e nos olhos azuis-gelo. Também foi uma professora muito querida por seus alunos, o que é claro sinal de boa expressão, simpatia e talento. Com isso, quero caracterizar uma mulher que devia ser pessoalmente fascinante.
Albuquerque, Novo México, 1954, aos 18 anos
Ela nasceu Lucia Brown em 1936, no Alasca, e morreu em 2004 no dia de seu próprio aniversário, aos 68 anos, distinção que divide com Shakespeare. A família logo se mudou. Seu pai era Engenheiro de Minas e os primeiros anos da escritora foram vividos em campos de mineração nos estados de Idaho, Kentucky e Montana. Em 1941, quando a futura escritora tinha 5 anos, o pai de Lucia partiu para a guerra e sua mãe mudou-se com ela e sua irmã mais nova para El Paso, no Texas, bem na fronteira com o México, onde seu avô era um conhecido dentista. O dentista aparece depois nos contos, claro.
Sim, a segunda história do livro é sobre o avô e é dantesca. Conta como ele arrancou os próprios dentes para colocar em si mesmo uma dentadura que seria sua obra-prima, a réplica perfeita de seus dentes. Ele seria o melhor dentista de El Paso. Detalhe: nas janelas de seu consultório, estava gravado “Dr. H. A. Moynihan. Eu não trabalho para negros”.
Aos 10 anos, Lucia teve a primeira crise de escoliose — como ela diz em vários contos, sua coluna vertebral tinha a forma de um S. Esta foi uma condição dolorosa que a acompanhou por toda a vida e que muitas vezes lhe exigiu o uso de cintas de aço. Aliás, na terceira história do livro, Estrelas e Santos, a escoliose é central. Ela sofria bullying por ser muito alta, meio torta, por usar um aparelho ortopédico nas costas e por responder a todas as perguntas da professora até calar-se para sempre, ao menos naquele colégio, em razão de um fato. Mas chega de spoilers. Só lhes digo que o final de Estrelas e Santos é abrupto e inesquecível.
Logo após voltar da guerra, o pai de Berlin levou a família para Santiago do Chile, onde ele passara a ocupar um importante cargo numa multinacional mineradora. Em Santiago, Lucia embarcou numa existência glamurosa, rica e extravagante. Lá, frequentava muitas festas. Imaginem que seu primeiro cigarro foi aceso pelo príncipe Ali Khan, do Paquistão — que foi vice-presidente da ONU e que casou com Rita Hayworth.
Lucia Berlin (direita) em 1949, ela tinha 13 anos
No Chile, ela terminou a formação escolar, enquanto servia como a anfitriã perfeita para as reuniões dos amigos de seu pai. Depois. a língua espanhola apareceu em muitos de seus contos e ela amava o México, assim como a postura mais liberal das pessoas da América espanhola. Sim, no conto Boa e Má, há um retrato de uma professora comunista que levava a jovem personagem principal para trabalhar para a população pobre durante os finais de semana. A professora queria causar algum desconforto a ela e fazer a cooptação da jovem privilegiada para a causa. Não deu muito certo e não por culpa de nenhuma das duas. Estou evitando spoilers.
Aos 18 anos, em 1954, ela se matriculou na Universidade do Novo México, em Albuquerque (EUA). Logo casou e teve dois filhos. Durante a gravidez do segundo filho, o marido se foi. Berlin completou sua graduação e casou-se com o pianista de jazz Race Newton em 1958 (22 anos). Suas primeiras histórias apareceram sob o nome de Lucia Newton. No ano seguinte, eles e as crianças se mudaram para um loft em Nova York.
Em 1961 (25), Lucia teve um caso com um amigo de Newton, Buddy Berlin, e o novo casal acabou viajando para o México. Berlin tornou-se o terceiro marido dela. Ele era carismático e rico. E bebia muito. Durante os anos 1962-65, mais dois filhos nasceram.
Preciso dizer que todos estes casamentos e filhos estão em suas histórias?
Em 1967, quando Lucia tinha 31 anos, os Berlin se divorciaram. Na época, Lucia estava fazendo um mestrado na Universidade do Novo México. Ela nunca casou novamente.
Os anos de 1971 a 94, isto é, entre os 35 e 58 anos de idade, foram passados em Berkeley e Oakland, na Califórnia. Berlin trabalhou como professora do ensino médio, telefonista, recepcionista de hospital, faxineira e assistente de clínica médica, enquanto escrevia, criava seus quatro filhos e bebia, bebia e bebia. Em 94, venceu o alcoolismo após passar boa parte de 91 e 92 na casa da irmã, na Cidade do México, onde esta estava morrendo de câncer. A mãe morreu em 1986, num provável suicídio.
Em 1994, Edward Dorn levou Berlin para a Universidade do Colorado, e ela passou os seis anos seguintes em Boulder como escritora visitante e, finalmente, professora associada. Neste cargo, ela se tornou incrivelmente popular e amada pelos alunos. Em seu segundo ano, ela recebeu um prêmio da universidade por excelência em ensino.
Os amigos diziam que Lucia Berlin tinha lido tudo e todos e podia falar sobre isso com grande humor e paixão. Fazendo uma interrupção nada a ver, digo que ela acreditava que o mundo de Jane Austen “era tão duro quanto um alcoólatra em um quarto de motel em uma história de Raymond Carver”. Concordo com ela.
Fechando o parêntese, digo que o conteúdo autobiográfico das histórias de Berlin não prejudica a vivacidade de sua narrativa nem a astúcia da escritora. Um fino humor mina a feiura de algumas das situações retratadas. Berlin é assim: escreve coisas que a maioria dos autores ficaria envergonhada de compartilhar, depois recosta-se calmamente enquanto rimos e nos diz “Essas coisas… Bem, elas aconteceram comigo”.
Agora vamos falar sobre o livro Manual da Faxineira.
Para abordar uma contista tão rica e surpreendente como Lucia Berlin, vamos fazer antes uma rápida excursão à origem do conto e a sua definição, se é que podemos defini-lo.
Determinar o que exatamente separa um conto de formatos ficcionais mais longos é problemático. A definição clássica foi dada por Poe e é bem simples: “O conto é aquilo que pode ser lido em uma sessão de leitura ou, digamos, em uma sentada”. A interpretação disto pode ser problemática hoje em dia, porque talvez, nos nossos dias, a duração de “uma sentada” possa ser mais curta do que era na época de Poe…
Então, os contos têm tamanhos vagamente definidos. Mas há pessoas que demarcam os gêneros literários em termos de contagem de palavras, como se a diferença entre uma crônica, um conto, uma novela ou um romance pudesse ser definida pelo número de palavras. Eu acho que as definições devem partir do contexto, mas tem gente que insiste em contar palavras e que diz que um conto deve ter menos de 7.500 delas.
Histórias mais longas que não podem ser chamadas de romances são às vezes consideradas “novelas”, que são normalmente publicadas como os contos, em coleções dentro de um só volume ou em pequenos livros com só uma delas.
Mas como o conto surgiu?
Vamos a uma brevíssima história. Os precursores do conto foram as lendas, os contos populares, os de fadas, as fábulas e as anedotas. Claro que estas histórias curtas existiam principalmente na forma oral e assim iam sendo transmitidas de uma geração para outra. Um grande número destes contos é encontrado na literatura antiga, desde os épicos indianos como o Ramayana e o Mahabharata até os épicos homéricos, como a Ilíada e a Odisseia. As 1001 Noites, compiladas pela primeira vez provavelmente no século VIII, também é um repositório de contos folclóricos do Oriente Médio.
Na Europa, a tradição oral de contar histórias passou para o papel no início do século XIV, principalmente com os Contos de Canterbury, de Chaucer, e o Decamerão, de Boccaccio. Ambos os livros são compostos de contos individuais — que variam de histórias de humor rasgado até ficções literárias mais elaboradas — inseridos em uma narrativa mais ampla, aliás como já eram As 1001 Noites.
Na década de 1690, os contos de fadas tradicionais começaram a ser publicados por Charles Perrault. Logo depois, apareceu a primeira tradução moderna para o francês de As 1001 Noites, a qual teria enorme influência nos contos europeus.
As primeiras coleções de contos, próximas do que hoje se conhece, apareceram entre 1810 e 1830 em vários países ao mesmo tempo. Foi o momento em que o conto começou a abandonar a necessidade de passar uma mensagem, uma moral. Notem, por exemplo, que o livro de contos de Cervantes, escrito em 1613, chama-se Novelas Exemplares.
Então veio a virada de Poe
Edgar Allan Poe (1809-1849)
O grande transformador do conto foi Edgar Allan Poe. Ele criou o conto psicológico, o de terror e deu um passo gigantesco na direção do que seria a literatura policial, que depois adquiriu enorme prestígio e tradição. Mas o principal é que ele iniciou a fase em que o contista narra duas histórias ao mesmo tempo. Não há mais uma moral, mas há uma segunda história subterrânea que vai sendo contada sob a superfície. Esta segunda história não é explicitada. A segunda história contada está escondida sob a primeira, que é a que você lê.
Esta tese não é minha, é do brilhante escritor argentino Ricardo Piglia: ele assegura que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em saber cifrar a segunda história nos interstícios da primeira. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de forma elíptica e fragmentária. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta nos salta aos olhos. Às vezes, o que parece supérfluo para uma história é fundamental para a outra.
Vou dar um exemplo para que fique mais claro. Acho que todos conhecem o conto Missa do Galo, de Machado de Assis, um dos contos mais perfeitos que conheço. A história da superfície mostra o narrador, Nogueira, relembrando uma noite da sua juventude e a conversa que teve com uma mulher mais velha, D. Conceição. Ironicamente, mestre Machado inicia o conto com a seguinte frase: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Esta história é tão, mas tão perfeita, que o narrador nos confessa logo de cara que não entendeu a segunda história. E ele passa a nos encher de detalhes e diálogos. Vemos claramente, sob nossos olhos, o desenrolar da segunda história, contada muito aos pedaços e sutilmente, a de como vive D. Conceição, a de como seu marido a abandona em casa, a de sua falta de afeto, os motivos que ela tinha para tentar seduzir o menino.
Outra coisa é a maestria de Machado. Ele não apenas demonstra tudo isso, como fica claro o momento em que D. Conceição para de tentar, pois, certamente pouco conhecedora da arte da sedução, ela erra a mão e deixa passar o momento. E Machado nos demonstra tudo isso sem frases como “Conceição cansou e desistiu do menino”.
Depois, Joyce inverteu este modelo. Em Dublinenses, parece que a história 2 comenta a 1, às vezes a ataca ou duvida dela.
Lucia Berlin usa e abusa destes artifícios e de outros. Por exemplo, no conto que abre Manual da Faxineira, Lavanderia Angel`s, ela conta duas histórias de superfície. Ambas acontecem dentro de lavanderias self-services, dessas de moedas, uma em Nova York e outra em Albuquerque, no Novo México. As duas histórias estão separadas não somente geográfica como temporalmente. E ambas contam uma terceira história, a da própria autora, mãe de 4 filhos antes dos 30 anos, sempre lavando muita roupa, sempre devaneando muito e causando problemas, como o que ela causa ao apertar botões e reprogramar máquinas que estão lavando as roupas de outrem. Uma mulher inteligente, muito bonita, mas que parece um tanto inadequada ao mundo.
Agora, somos obrigados a falar da biografia de Lucia Berlin porque ela sempre escreveu sobre si mesma.
(continua com uma pequena biografia de Lucia Berlin)
Da coluna de JOSÉ ANDRÉS ROJO, no El País Traduzido livremente por este criado de vocês
Muito foi dito sobre a oportunidade que o confinamento nos proporcionou de reencontrar livros e filmes, ver séries. Falamos também das chances para começar a desenhar ou escrever, para contar coisas, para ouvi-las. Ficamos em casa para ajudar a conter o contágio da doença, e acontece que, entre quatro paredes, havia muitas possibilidades. Nestes momentos em que não se sabe o que finalmente acontecerá e que a suspensão da normalidade mais uma vez valorizou o tempo e, portanto, as histórias, recordamos que Charles Dickens foi um dos mais capazes de contá-las. E este ano está sendo lembrado que ele morreu em 1870, há 150 anos.
E ele tem algo a nos dizer neste momento, as aventuras de seus personagens são interessantes, ele oferece alguma lição, seus assuntos ainda preocupam as pessoas de hoje? Há um momento em um de seus livros em que um de seus personagens deixa cair um chapéu. E este começa a escapar, empurrado por um vento “sutil e brincalhão”. “Existem poucos momentos na vida de um homem”, escreve Dickens, “onde ele experimenta um sofrimento mais grotesco do que quando persegue seu próprio chapéu”. Esse homem é o Sr. Pickwick, fundador de um clube selecionado ao qual outros membros ilustres se juntam a fim de contarem suas aventuras e registrar suas viagens e investigações, suas observações e conjecturas sobre o mundo. E essa autoridade imponente de um clube tão especial sofre esse revés no meio de uma multidão que observava algumas práticas militares. As tropas aparecem em perfeita formação, a banda militar se interrompe para tocar, os cavalos movem suas caudas de um lado para o outro, há uma sucessão interminável de guerreiros de farda vermelha e calças brancas, os soldados se preparam para executar suas exibições de tiros e manobras. E Pickwick está na primeira fila, para não perder nada, e seu chapéu voa.
Dickens estava escrevendo suas histórias em capítulos, o público as esperava, lia e comemorava. Ele contou o que estava acontecendo com os curiosos membros do clube Pickwick, mas também contou histórias tristes de órfãos que viviam terríveis circunstâncias na Londres vitoriana. Casas apertadas e pobreza, mas também mansões e luxo, grandes ambições e esperanças, caminhos truncados, renúncias generosas e manobras repugnantes de exploradores sem escrúpulos. Dickens era um mestre a contar as mais diversas histórias. Você conhece George Silverman`s Explanation, nada mais do que algumas páginas em que ele conta a vida de uma criança que vê seus pais morrerem em um porão infectado e que depois renuncia à mulher que ama?
Onde exatamente estamos agora? Mais perto do homem que sofre ao levar a mulher que ama para os braços de outro ou do pobre diabo que é forçado a se fazer de bobo enquanto corre atrás do chapéu? Certamente de ambos os lados, no caso menor e no que parece maior. As histórias valem a pena e são melhores se forem contadas por alguém tão bom e engraçado como Dickens.
Charles Dickens (7 de fevereiro de 1812 – 9 de junho de 1870)
Em 1928, já sofrendo as restrições impostas pelo regime stalinista, Mikhail Bulgákov começou a escrever sobre o dia em que satã e sua comitiva chegaram em Moscou e a deixaram de cabeça para baixo. A história, concluída postumamente doze anos depois e intitulada O Mestre e Margarida, só chegou ao público 40 anos depois daquela primeira linha. O longo tempo para finalizar o livro está relacionado às dificuldades que Bulgákov enfrentou.
Além da pressão econômica e política promovida pelo Estado soviético, o escritor foi diagnosticado com neurosclerose hipertônica e perdeu quase todos os movimentos e a visão. Até sua morte, o escritor ditou ajustes e correções para sua terceira esposa, Ielena Serguêievna, que finalizou a obra. Publicado pela primeira vez na revista Moscou em duas edições, em 1966 e 1967, a edição teve cerca de 14 mil palavras censuradas.
Ao longo dos anos, os originais foram submetidos a diversos especialistas e muitas versões do livro coexistiram. Na tentativa de unificá-los, a pesquisadora Ielena Kolycheva promoveu um extenso estudo para chegar a uma versão mais próxima da vontade de Bulgákov, utilizando seus manuscritos e duas versões em circulação. Foi o estabelecimento do texto gerado na conclusão da pesquisa, publicado em 2014, que a Editora 34 utilizou como base para a tradução do livro, lançado em 2017.
O Mestre e Margarida é considerada a grande obra-prima de Bulgákov porque seu estilo, procedimentos artísticos e críticas sobre o regime soviético estão em plena forma. O próprio escritor sentia isso. Segundo o relato da viúva, quando estava morrendo o escritor disse: “Talvez isso esteja certo. O que poderia eu escrever depois de O Mestre?”.
Em suas obras, Bulgákov utilizou a sátira, o sarcasmo e a ironia como armas políticas. Escrevia contra a nova política econômica (NEP), contra o burocratismo, contra o discurso oficial e sua influência no homo sovieticus. Em seus livros, a história contemporânea e sua autobiografia aparecem como fortes elementos, mas revestidos por uma forte dose de fantasia.
Bulgákov nasceu em Kiev, atual capital da Ucrânia, onde estudou e se formou em medicina. Antes de começar a escrever, começou uma carreira médica no serviço militar na primeira guerra. Sua relação com o regime soviético sempre foi conflituosa e, na Guerra Civil, lutou ao lado dos Brancos. Em 1920, Mikhail largou o exército e começou seu trabalho como escritor na imprensa, publicando folhetins e reportagens já com seu tom sarcástico. Pouco tempo depois, arriscou-se na escrita de novelas e contos.
Na metade da década, quando já estava consolidado no círculo literário russo, começou a ter o mesmo tratamento que era destinado aos outros dissidentes, como seu amigo Evguênii Zamiátin, autor de Nós. Gradualmente deslocado para fora da cena literária numa espécie de ostracismo, passou por dificuldades econômicas e perseguição política. Em 1926, seus diários e novelas foram apreendidas, a crítica começou a execrá-lo e ele declarou que estava em uma “morte em vida”. Foi dentro desse contexto que, em 1930, escreveu uma carta para Stálin solicitando sua ida ao estrangeiro. A correspondência foi respondida por um telefonema do próprio Josef Stálin que, além de garantir que não havia nenhuma perseguição ao escritor, declarou sua admiração pela peça O dia dos Turbin e lhe garantiu um emprego no Teatro de Arte de Moscou.
No entanto, a passagem pelo teatro foi conturbada e a censura continuou. Nesse período, diversos textos do escritor foram apreendidos e devolvidos tempos depois. Com medo, Bulgákov queimou esses manuscritos. Anos depois descobriu-se que o Estado havia feito cópias de seus escritos e arquivado tudo num dossiê sobre o escritor. Dentro de O Mestre e Margarida, tal contexto e experiência de vida se tornam mais uma das diversas referências espalhadas pela narrativa, assim como seu conhecimento musical e literário, sua vida nos teatros e o cotidiano dos soviéticos.
A narrativa do romance nos guia conforme satã, representado pela figura do prof. Woland, chega em Moscou com seu séquito — a vampira Hella, um gato que fala e anda em duas patas chamado Behemoth, um ruivo pequeno e bronco com um canino de fora chamado Azazello e seu escudeiro alto e desengonçado, chamado de Koroviév ou de Fagote — e instaura o caos gradualmente.
Sua primeira aparição é no Lago do Patriota, interferindo na discussão entre um poeta, Ivan Nikoláievitch, e um editor de revista, Mikhail Berlioz. Ambos discutem o texto encomendado que, segundo o desejo do editor, deveria defender a existência de Jesus como um absurdo ao invés de caracterizá-lo como uma personagem histórica desmistificada. Woland interrompe a conversa, questionando a certeza de Berlioz sobre a inexistência de Jesus e de quaisquer forças superiores.
Essa conversa entre os três sujeitos introduz uma narrativa secundária que permeará toda a história: o julgamento de Jesus por Pôncio Pilatos — em um primeiro momento, contada por Woland em frente ao lago, mas que se revelará como o livro escrito pelo Mestre, personagem que dá nome ao romance.
Esses capítulos iniciais servem como ponto de entrada para a descrição de uma sociedade controladora e paranoica, deixam a atitude covarde de Pilatos em pé de igualdade com o cotidiano dos cidadãos nos tempos stalinistas e apresenta a ideia de um ateísmo militante presente naquele tempo na Rússia. Nesse contexto, com tantas certezas de que Deus não existe, o diabo se torna a força motriz possível para os russos.
Fáustico
O Fausto, de Goethe, e mais ainda sua adaptação operística por Gounod, aparecem como fortes inspirações para a inversão de realidade que critica a sociedade por meio do escárnio, tão presente nas obras de Bulgákov. O Mefistófeles do original é bem diferente do criado por Bulgákov. Ele não faz pactos pela alma de ninguém, não se torna servo. Sua intenção é ser servido e realizar o baile anual de primavera no submundo, tendo como pré-requisito uma anfitriã aleatória chamada Margarida.
O livro se mostra mais carnavalesco do que infernal, mesclando o bem e o mal, o humano e o divino. A epígrafe do livro, também retirada do Fausto de Goethe, insinua a mistura entre as duas faces opostas: “— Pois bem, quem és então?/ — Sou parte da Energia que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria”. É por meio desse poder “diabólico” que Bulgákov trata da arte e do amor, e de como libertá-los de suas amarras.
Sobre a arte, Bulgákov traz dois criadores incompreendidos, o poeta Ivan Nikoláievitch e o Mestre, dentro de um contexto em que a literatura era subordinada às forças oficiais, onde os escritores eram assim considerados pelo seu credenciamento no Estado e não pela qualidade do que escreviam. Como dito no próprio livro, tais “artistas” estavam mais preocupados com suas férias no campo do que com o desenvolvimento estético.
No entanto, apesar da realidade perversa, a verdadeira literatura se mostra forte e resistente, simbolizada pelo trabalho do Mestre. A frase “os manuscritos não ardem”, repetida ao longo da narrativa, dialoga com a vida de Bulgákov. Além dos manuscritos apreendidos pelo Estado que queimou posteriormente, também tentou queimar o rascunho de O Mestre e Margarida, impedido pela esposa. Dentro do romance, o Mestre também queima os manuscritos de seu livro em uma fornalha, mas as forças diabólicas de Woland o recuperam.
Por fim, no campo do amor, Margarida aparece como uma força celestial, um poder feminino necessário na criatividade masculina. Além disso, a personagem se relaciona com as mulheres do Fausto de Goethe, a terceira esposa de Bulgákov, Ielena Serguêievna, e ao amor incondicional da doutrina ortodoxa na Rússia.