O livro das coisas santas, de Carlos Mota de Oliveira

Este livro me foi enviado pelo poeta e amigo Fernando Monteiro com o seguinte recado: “Vosmicê vai adorar este anticlericalíssimo livro!”. E gostei mesmo. E dei risadas ou sorri dentro dos ônibus onde o li. O livro das coisas santas (Editora Fenda, Lisboa, 1995) tem apenas 150 páginas, mas há nele 258 capítulos, um dedicado a cada Papa. Como já tivemos 265 Papas, há um pequeno capítulo para praticamente cada um deles. Os capítulos consistem de trechos escritos pelos Santos Padres, ou depoimentos ou pequenas histórias que caracterizam o Bobão da vez. Há sequências absolutamente hilariantes, absurdos difíceis de se acreditar, mas que, quando fazemos uma breve conferência nas Histórias dos Papas disponíveis na rede, ficamos sabendo que o português Carlos Mota de Oliveira não está mentindo, apenas descrevendo as ações do santo homem sob  uma perspectiva mais real. Homens como nós, há papas para todos os gostos. Austeros, sexualmente ativíssimos, violentos, assassinos, guerreiros, santos, gays como Martinho IV (1281-1285), simplesmente doidos varridos, os Papas são sempre engraçados. Como  o seríssimo Papa Paulo VI (1963-1978), ao explicar a uma alegre delegação de padres africanos que lhe chegaram de Angola para uma visita, que ser um sacerdote é não ser um chocolate. “O sacerdote, mesmo os africanos, devem ser escutados pela congregação, nunca saboreados”.

Livro ideal para dar de presente àquele seu amigo católico. Faça-o já. Há seis exemplares disponíveis na Estante Virtual. A capa é maravilhosa ao demonstrar já de cara a irresistível pedofilia dos castos homens da igreja.

O velhinho Dourado

Autran Dourado

Este texto é de 2009. Ontem, pela manhã, Autran Dourado faleceu. Fica a homenagem meio atravessada.

Ontem, cansadíssimo, liguei a TV na Globo News e dei de cara com um velhinho trêmulo que falava com alguma dificuldade. Reconheci-o imediatamente. Era o mineiro Autran Dourado (1926). Fui seu fiel leitor durante os anos 80. Este homem produziu um grande livro — Uma Vida em Segredo — e outros bastante bons, como Os Sinos da Agonia, O Risco do Bordado, Ópera dos Mortos, etc. Peguei só o final do programa. Uma pena.

Não sei se Autran Dourado ainda escreve, espero que sim. Penso que ele seja um caso único em nossa literatura. Grande estilista, não conseguiu escrever sobre temas dignos de seu talento. Era um cantor sublime cantando músicas de qualidade discutível. Os grandes livros aos quais me refiro são prodígios de escritura, mas talvez só em Uma Vida em Segredo (1964) Autran tenha acertado em tudo. Por que esta dificuldade? Não sei, só posso especular. Assim como Balzac, Autran criou um mundo. Em sua cidade ficcional, fazia seus personagens irem de livro de livro, quem era protagonista de um era periférico em outro. Há muito engenho neste tipo de construção, porém as histórias nunca vão fundo. Muitas vezes por pudor, outras talvez por supervalorizar a importância de seu virtuosismo, Autran deixa de lado a psicologia dos personagens e a descrição da provinciana sociedade do interior mineiro. Teve temas maravilhosos nas mãos, mas atirou-os pela linha de fundo.

Mesmo assim, Autran tem sua obra prima. A história de sua personagem Biela, de Uma Vida em Segredo, é muito parecida com a da criada Felicidade, de Um Coração Simples, de Flaubert. Isto não tira em nada os méritos do livro. Sua escrita estupefaciente torna-se grandiosa ao narrar a vida absolutamente sem graça e sem aspirações da órfã que é herdeira de posses, mas que parece pedir licença para viver. Biela, a moça que desejava apenas a companhia de serviçais e que só sonhava em voltar à infância perdida, é um dos maiores personagens de nossa literatura. Creiam, esta é uma indicação quentíssima.

Esta crônica curta, quase um lembrete, é uma pequena homenagem a um estranho caso de nossa literatura. Estilista genial, mas de poucas boas idéias, Autran Dourado precisaria de um roteirista para transcender suas limitações. Uma outra curiosidade é a seguinte: eu nunca conversei com ninguém sobre Autran, pois nunca mantive contato com alguém que tivesse lido um de seus livros… É inacreditável.

Os 100 anos do ícone literário A Metamorfose, de Franz Kafka

Franz Kafka, autor de A Metamorfose, que completa 100 anos em 2012

Publicado em 15 de abril de 2012 no Sul21

Em 2012, a clássica novela de Kafka, A Metamorfose, estará completando 100 anos. A marca que ela deixou na cultura ocidental é tão profunda quanto aquela deixada por 1984 de George Orwell e por pouquíssimos outros livros dos últimos séculos. E, com efeito, aqueles que leram a pequena obra de pouco mais de 30 mil palavras, dificilmente deixarão de lembrá-la e, dentre os apaixonados pela literatura ou pelo fantástico, não é raro encontrar quem saiba recitar de cor o início da novela, certamente uma das melhores e mais intrigantes aberturas da literatura de todos os tempos:

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos.

O que terá acontecido comigo?” ele pensou.

Tradução de Marcelo Backes para a L&PM

Apesar de ter sido publicada em 1915, A Metamorfose foi escrita em novembro de 1912. A quase centenária novela foi concluída em apenas 20 dias no dia 7 de dezembro de 1912, quando Kafka escreveu à sua eterna e repetida noiva Felice Bauer: “Minha pequena história está terminada”. Há outra nota muito significativa escrita por Kafka. Dois meses antes, ao finalizar O Veredicto, outra pequena novela, Kafka registrou em seu diário que havia descoberto “como tudo poderia ser dito”. A Metamorfose foi a primeira tentativa após a nota.

Felice Bauer: duas vezes noiva de Kafka, jamais casaram

Tudo é muito enigmático em se tratando de alguém tão tímido e com tão poucos amigos como Kafka, mas certamente a frase escrita tem o significado de uma iluminação e tudo o que o escritor criou a partir dali — uma notável série de romances e novelas onde podem ser listados O Foguista, Diante da Lei, A Colônia Penal, O Processo, Carta ao Pai, Um Médico Rural, O Artista da Fome, O Castelo e A Construção, dentre outros — são obras ou de primeira linha ou de conteúdo nada desprezível ou esquecível. O crítico Otto Maria Carpeaux, que emigrou para o Brasil com a ascensão do nazismo, lembra:

— Fui apresentado a Kafka em Praga. Estávamos num jantar. Disseram-me que se tratava de um gênio. Era muito magro, sabemos hoje que tinha 1,82 m e por volta de 65 quilos. Estava num canto, sozinho. Fui até ele de forma a integrá-lo na conversa geral. Quando me apresentei, entendi seu nome como Kauka, porque ele falava muito baixo. Ora, se era Kauka, não era aquele autor do qual recebera dois livros que ainda não lera. Tentei puxar conversa, mas ele não dava continuidade, respondendo apenas o mínimo. Achei que incomodava e me afastei.

Kafka com seu grande amigo Max Brod na praia

Carpeaux — um grande crítico literário, autor de uma alentada História da Literatura Ocidental em oito volumes — arrependeu-se pelo resto da vida por ter desistido tão rápido de um escritor que passou a incensar poucos anos depois. Ele ouvira errado, não era Kauka, era mesmo o Kafka dos livrinhos recebidos.  É compreensível que Carpeaux lamente a perda da oportunidade, mas não é lógico torturar-se — afinal, era o ano de 1921 e, embora a tal “iluminação” fosse de 1912 e o escritor tivesse vivido até 1924, Kafka nunca chegou a ser muito conhecido enquanto vivo. Era um escritor obscuro que publicava alguma coisa e engavetava outras. Quando morreu, pediu a um bom amigo que destruísse seus escritos não publicados. Para nossa sorte, Max Brod foi um amigo ainda melhor e o traiu, salvando para o mundo romances como O Processo e O Castelo.

Hoje, os volumes de crítica da obra de Kafka enchem estantes, mas os enigmas permanecem, mesmo em relação a A Metamorfose. Sabe-se que Kafka leu trechos da obra para Max Brod e outros de seus poucos amigos. Os biógrafos dizem que o grupo ria do grotesco das cenas. Kafka também. É possível ler Kafka em registro cômico, sem dúvida, mas é indiscutível que a leitura mais grandiosa é a que coloca o homem em desespero frente à existência. Há uma quase imperceptível camada de humor e outra de ironia, esta pouco mais espessa, perpassando seus textos, mas o efeito geral nunca pode ser descrito como alegre ou motivador. Na verdade, é um narrador imperturbável contando uma história sufocante, sem apelar para fórmulas de suspense ou terror. Gunther Andres, na página 19 de Kafka: pró e contra (os autos do processo), resume brilhantemente: “O espantoso, em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém”.

Franz Kafka com a irma Ottla, no Centro Histórico de Praga

O título A Metamorfose provavelmente se refere não somente à mudança física de Gregor Samsa – nome estruturalmente bem semelhante à Kafka, não? –, que se torna um inseto “certa manhã”, como a todas as outras mudanças decorrentes na família. Se antes da metamorfose toda a família dependia de seu trabalho como caixeiro-viajante e o apoiava e amava, com a transformação em inseto e consequente prisão no quarto, o pai é obrigado a voltar a trabalhar, a ingênua e pura irmã de 17 anos também, a mãe passa a costurar e a casa transforma-se numa hospedaria onde Gregor é mais do que dispensável, é indesejado. A transformação física de Samsa gera outra metamorfose e pode-se dizer que ele passa de parasitado a parasitário, de arrimo a peso morto e objeto de repulsa.

Kafka pedira "encarecidamente" que a figura de Gregor não fosse retratada por seu editor, a posteridade não lhe deu atenção

É estranho que Gregor acorde aquela manhã sem tentar analisar o que teria acontecido, como e por quê. A pergunta “O que terá acontecido comigo?” é isolada. Depois, ficamos sabendo de suas incomodações com a vida anterior e temos a impressão de que a atual tanto faz. Em alguns momentos da narrativa, ele parece estar vingando-se, em outros, concupiscente. O ostracismo no seio familiar, a pressão do trabalho, a necessidade de obedecer, a profunda insatisfação de estar sendo escravizado, tudo o que a novela sugere encontra repercussão na vida do autor. A história do homem tornado besouro é inteiramente realista. O problema familiar recebe uma importante observação do tradutor Marcelo Backes: “Kafka invoca seu pai, mãe e irmã quase sem o uso dos pronomes possessivos. É algo muito insistente. É raro que o narrador fale de SUA irmã, de SEU pai, de SUA mãe. Eles são, na maior parte das vezes, apenas pai, mãe e irmã, sem a afetividade do pronome possessivo e vivendo tão-só em sua condição genérica de pai, mãe e irmã”.

No clássico Conversações com Kafka (1920-1923), Gustav Janouch cita que Kafka afirmara que “A metamorfose não é uma confissão, ainda que – em certo sentido – seja uma indiscrição”. Indiscrição certamente menor do que a célebre Carta ao Pai, mas não tergiversemos.

Detalhe da adaptação para os quadrinhos de 'A metamorfose', de Franz Kafka, desenhada por Peter Kuper (Clique sobre a imagem para ampliar)

A forma como Kafka monta rapidamente os conflitos do livro também surpreende. O primeiro está no famoso primeiro parágrafo, depois há outros dois conflitos graves, construídos na mesma linguagem direta e sucinta, de exatidão quase cartorial: o momento em que Gregor é visto pela primeira vez por seus familiares — uma cena de notável realização artística de Kafka — e momento onde a irmã de Gregor, Grete Samsa, aconselha seus pais a livrarem-se do enorme inseto, pois já haviam tentado de tudo para conviver com ele. Há também a interpretadíssima agressão com a maçã, mas talvez o que deixe o leitor mais perturbado é o que subjaz desde a primeira até a última palavra: é o fato de que outro acontecimento extraordinário simplesmente não ocorre. Não há o momento de explicação para o acontecido ou do retorno ao estado normal. Na verdade, não há explicações, tudo fica aberto às interpretações, há uma aristotélica e perturbadora ausência do esquema clássico de exposição, conflito, clímax e conclusão.

Kafka pediu a seu editor que evitasse desenhar, mesmo de longe, a figura de Gregor, mas hoje temos versões de Gregor Samsa até em quadrinhos, além de filmes. Para alguns trata-se de uma barata, apesar de que os sinais indicam claramente para uma espécie de besouro. Invocamos novamente o tradutor Marcelo Backes: “Kafka o refere apenas como “rola-bosta” (besouro). Mas o que é objetivo pode ser tanto mais difuso, uma vez que Mistkäfer (rola-bosta) pode-se referir também e inclusive a uma pessoa suja e descuidada, ou tratar-se de um escaravelho qualquer, uma vez que é designação comum a insetos coleópteros, coprófagos e escarabeídeos, que em geral vivem de excrementos de mamíferos herbívoros”.

Kafka sempre dizia: “Tudo o que não é literatura me aborrece, e eu odeio até mesmo as conversações sobre literatura”. O que incluiria certamente este artigo. Ou seja, vale muito mais a pena ler a pequena e revolucionária novela.

 

Uma curiosa campanha para o incentivo à leitura, feita pela Johnson County Library em 2010

Paulo Coelho: Ulysses, de James Joyce, é "prejudicial" para a literatura (bem que eu desconfiava)

Não posso dizer que lamentei esta matéria. Ao contrário. Por admirar Jorge Luis Borges, Paul Rabbit já escreveu livros com os títulos de O Aleph e O Zahir. Acho que ele jamais escreverá sua versão de Ulysses. Que bom!

Traduzido livremente por mim, do The Guardian

Escritor brasileiro descarta clássico modernista sobre um dia da vida de Leopold Bloom. Chama-o de “puro estilo”

Paulo Coelho põe no lixo o Ulysses, de James Joyce. "Não há nada lá".

Ulysses, de James Joyce, tem vencido enquetes e mais enquetes como o maior romance do século 20, mas, segundo Paulo Coelho, o livro é “uma idiotice”.

Antes, porém, falou de si ao jornal brasileiro Folha de S. Paulo. Coelho disse que o motivo de sua popularidade é o de ser “um escritor moderno, apesar do que dizem os críticos”. Isto não significa que seus livros sejam experimentais, acrescentou — sim, “eu sou moderno porque faço o difícil parecer fácil e então eu consigo me comunicar com o mundo inteiro”.

Os escritores se dão mal, de acordo com Coelho, quando se concentram na forma e não  no conteúdo. “Hoje em dia escritores querem impressionar outros escritores”, ele disse ao jornal. “Um dos livros que causaram maior dano foi Ulysses de James Joyce, que é puro estilo. Não há nada lá. Desmontado, Ulysses é uma idiotice”.

Os livros e romances espirituais de Coelho — cujo último, Manuscrito encontrado em Accra, passa-se na Jerusalém de 1099, prestes a ser atacada por cruzados — já venderam mais de 115 milhões de cópias em mais de 160 países. Ulysses, o romance modernista de Joyce, com 265.000 palavras sobre um dia na vida de Leopold Bloom em Dublin, foi publicado pela primeira vez com uma tiragem de 1.000 exemplares em 1922. Essas primeiras edições pode ser adquiridas hoje ao valor de R$ 320 mil e a existência do livro é comemorada todos os anos e em todo mundo no dia em 16 de Junho, data em que Bloom vagou por Dublin.

Embora Ulysses frequentemente encabece listas de melhores livros, não é raro que o critiquem. Coelho não é o primeiro a criticar obra-prima de Joyce. Roddy Doyle disse em 2004 que duvidava que as pessoas que os colocavam no topo tivessem sido realmente tocadas por ele.

P.S. — Este post só foi possível porque a Caminhante Diurno — que é também a Caminhando por fora — me indicou a matéria no The Guardian.

P.P.S. — Idelber Avelar escreve para mim no twitter, prenhe de razão: há um probleminha de tradução: “stripped down, Ulysses is a twit”. É um TUÏTE, não uma ‘idiotice’. Abraços.

Rabelais: o politicamente incorreto que distorcia o mundo a fim de dissecá-lo

Tudo começa com um descomunal banquete. A Primeira Lei de Farinatti é respeitada: “Antes faça mal que vá fora”. A recusa está fora de questão. Gargamelle, mulher de Grandgousier, mastiga tripas de boi até explodir – e come tanto que acaba por parir seus próprios intestinos. Então, com apenas dois orifícios disponíveis, as duas orelhas, dá luz ao Gargântua, pai de Pantagruel, ambos memoráveis glutões.

Gargântua (1534) e Pantagruel (1532) fizeram a fama do respeitado e erudito médico e clérigo François Rabelais (ca. 1490-1553). Ele fez do grotesco e do escatológico uma das mais originais e radicais obras humanistas do final do Renascimento. De seus livros saiu um adjetivo em língua portuguesa, pantagruélico – adj. relativo a Pantagruel, personagem caricatural de um romance de Rabelais, o qual se singulariza por ser amante da boa mesa e do bom vinho. / Abundante em comidas e bebidas. Entre a devoção e o temor a Cristo de sua época, que alternativamente explorava a elegância dos temas clássicos e mitológicos — argh! — Rabelais foi ao encontro da cultura popular e do “mau gosto” a fim de satirizar seus pares.

Há um celebérrimo estudo, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, do teórico russo Mikhail Bakhtin, que trata da influência das fontes populares nos livros mais famosos de Rabelais. Desde seu lançamento em 1965, a obra é referência para quem se dedica à história do riso e à cultura popular. Pois o riso e sua penetração merecem ser muito estudados.

A literatura chegou tarde à vida de Rabelais. Foi franciscano – o que já é bastante engraçado – e depois beneditino. Deslocou seus interesses para a ciência-irmã medicina. Tornou-se médico. A literatura veio provavelmente como forma de sustento e logo passou a ser forma de ataque. Em Pantagruel atacava o academicismo da época. E a educação de Gargântua foi esmeradíssima, ele só frequentou os escolásticos, podia recitar obras de cor e salteado, o que não evitou que se tornasse “um idiota, palerma, distraído e bobo”. O autor também era um admirador do caráter laico da Reforma Protestante. Claro que seus livros, grandes sucessos, foram proibidos.

Como todo o verdadeiro humorista, Rabelais não era um mero palhaço. Suas críiticas eram sérias. Durante o Iluminismo, houve muita discussão acerca de sua importância. Em nossos dias, além do ensaio de Bakhtin, houve outro, de Lucien Febvre que conjeturava acerca de um provável ateísmo – coisa em que não acredito. De qualquer modo, a exploração da hipérbole e a distorção do mundo foi-nos mostrada pela primeira vez sob uma forma que é usada até hoje por humoristas, escritores e compositores inteligentes (Shostakovich é um grande rabelaisiano): como uma forma de decompor e recompor o mundo, como uma forma de observar sua anatomia e dissecá-lo.

Rabelais realmente “tirava profiteroles das indulgências”. Como? Olha, há muito que pensar a respeito.

Gargântua tinha que se alimentar, pois não?

Ladrão de livros é absolvido! A evolução do Judiciário é fato indiscutível!

O excelente e atento advogado Bruno Zortea — falo muito sério ao elogiá-lo — escreve para este blogueiro a fim de de informá-lo sobre uma decisão inteligente e altamente cultural tomada por nosso brioso Poder Judiciário no dia de ontem. Porém, antes de proceder à transcrição da nota, gostaria de deixar claro que o ladrão de livros ora absolvido FERE DE MORTE a ética do ladrão politicamente correto de livros, cujo conteúdo apresentamos aqui com riqueza de detalhes. O ladrão em questão roubou livros com a intenção de revendê-los, fato que pode ser comovente se a situação econômica do ladrão for deveras lamentável, mas que não aceitamos em razão da intrusão do capitalismo em seu movimento seguinte. Ele que vá roubar carros ou joalherias, então! O roubo de livros deve ser uma atividade pura que apenas lesa as grandes livrarias. O ladrão de livros perpetra seus ilícitos por paixão e prazer literários, nunca para entrar num vulgar sistema de oferta e procura.

Abaixo a notícia publicada no site do STJ.

Antes ainda, um detalhe: esse negócio de aplicar o tal princípio da “insignificância” na absolvição é outra coisa que tem de ser alterada. Insignificante é a mãe de quem invocou este princípio para o caso!

Homem que furtou livros é absolvido pela aplicação do princípio da insignificância

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus a um homem que furtou e revendeu três livros avaliados em R$ 119, em São Paulo. Para o ministro relator do caso, Og Fernandes, a ação teve ofensividade mínima e cabe a aplicação do princípio da insignificância. O réu, que estava sob liberdade condicional por outras condenações de furto, confessou que pegou três obras de uma livraria localizada numa estação da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Os livros foram revendidos na praça da Sé por R$ 8 cada. Entre os títulos dos livros constava uma edição da série Harry Potter. Em primeira instância, o homem foi absolvido, mas o Ministério Público se mostrou inconformado e apelou. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reformou a decisão para que a ação penal pudesse continuar.

Insatisfeita, a defesa recorreu ao STJ. Pedia, por meio de habeas corpus, que a denúncia oferecida pelo MP fosse rejeitada ou o homem absolvido. Alegava atipicidade no caso e constrangimento ilegal, por não ter sido aplicado o princípio da insignificância.

Sem ofensividade

“Não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do comportamento do paciente”, afirmou o ministro Og Fernandes, reconhecendo a atipicidade da conduta. Para ele, pela aplicação do princípio da insignificância justifica-se a concessão do habeas corpus.

Para enfatizar a decisão, o relator mencionou precedente de 2004 do Supremo Tribunal Federal (STF). Na decisão, foi reconhecida a aplicação do princípio da insignificância quando quem comete a ação não oferece ofensividade ou perigo social. Ou, ainda, quando o comportamento indica “o reduzidíssimo grau de reprovabilidade” e apresenta “inexpressividade da lesão jurídica provocada” (HC 84.412/STF).

De forma unânime, a Sexta Turma do STJ concedeu habeas corpus ao homem, restabelecendo assim a decisão de primeiro grau que o absolveu.

A ferida do exílio

Por Martim Vasques da Cunha, na Rascunho.

James Joyce por Robson Vilalba

My wound tires me.
James Joyce, Exiles (Exilados)

Nascido a 2 de fevereiro de 1882 em Dublin, James Joyce sempre foi um jovem inquieto e preocupado com o fato de que a Irlanda o traía constantemente, tratando a nova geração de artistas como “a porca que devora sua prole”. Havia poucas oportunidades: sufocada pela bota inglesa, fossilizada por um catolicismo moralista, a nação era descrita por uma palavra que o próprio não hesitou em colocar na abertura do conto As irmãsparalisia.

Era a paralisia espiritual do nacionalismo pueril das peças mitológicas de W.B. Yeats e John M. Synge que alegravam o público do Abbey Theatre, ponto de encontro dos intelectuais dublinenses. A mente de Joyce, como o próprio dizia aos colegas, lhe parecia ser mais interessante do que o que acontecia no país. Absorvia o melhor de uma civilização ocidental que a Irlanda se recusava em aceitar; prodígio de intelecto e de arrogância, já criava uma teoria estética que se aproveitava de Dante, Aristóteles e Tomás de Aquino; e ficava absolutamente maníaco quando via um fato inusitado no cotidiano de Dublin, não hesitando em anotá-lo em um caderninho, para depois apelidá-lo carinhosamente de “epifania”. Dirigia-se para um lugar ainda inexplorado e a sociedade onde vivia não percebia o que acontecia nela porque estava viciada nas correntes do provincianismo.

Segundo T.S. Eliot, ser “provinciano” não significa “não possuir a cultura ou o requinte da capital”, muito menos ser “estreito no pensamento, na cultura e no credo”. É algo além — e mais trágico para a cultura de uma nação que se pretenda saudável. Refere-se “também a uma distorção de valores, à exclusão de alguns, ao exagero de outros, que resulta, não de uma falta de ampla circunscrição geográfica, mas da aplicação de padrões adquiridos dentro de uma área restrita, para a totalidade da experiência humana, que confundem o contingente com o essencial, o efêmero com o permanente. (…) É um provincianismo, não de espaço, mas de tempo (…), a propriedade da qual os mortos não partilham. [Sua ameaça] é que podemos todos, todos os povos do mundo, ser provincianos juntos; e aqueles que não estiverem satisfeitos podem apenas tornar-se eremitas”.

Joyce não chegou a se tornar um eremita. Foi além: assumiu a postura do gênio que vai contra qualquer regra da sociedade. Recusou a Igreja, não aceitou o que seus pais lhe ensinaram, muito menos os conselhos dos amigos prudentes. Encaminhava-se para “a completude e a experiência da vida” e não se importava em admitir que havia um abismo separando-o da antiga geração. Sua jornada era tão conscientemente solitária que, ao se encontrar com W.B. Yeats, fez questão de ampliar a lacuna. Conta-se que Joyce respondeu da seguinte forma a Yeats, após os dois terem se encontrado em uma reunião em que os elogios deste não encantaram o primeiro: “Nós nos encontramos tarde demais. O senhor é velho demais para que eu tenha qualquer efeito sobre o senhor”.

Joyce era ainda um escritor em formação; escrevera alguns versos, planejava alguma carreira de cantor ou de ator. Precisava de mais algumas experiências para realizar aquilo que acreditava ser a sua missão: “forjar a consciência incriada da sua raça”. Buscava a compreensão da realidade como uma unidade, como a manifestação de um divino que se imiscuía no cotidiano paralisado de Dublin. Apesar de seu Non serviam em relação à Igreja — atitude com a qual Joyce manteve uma relação ambígua por toda a vida —, é nítida a intenção de se mostrar como um artista que procura um Deus que está além do “grito na rua” em que seus compatriotas o transformaram. E ele sabia que, para forjar a tal consciência, teria de aceitar dois fatos extremos: a compreensão da morte como parte integrante da vida e o reconhecimento da condição humana como perpétuo exílio.

Espírito torturado

Esses fatos seriam o fardo nos ombros de Stephen Dedalus, o anti-herói de Retrato do artista quando jovem, romance autobiográfico que mostra James Joyce exibindo ao mundo o que aprendeu ao aplicar seu espírito às artes desconhecidas. Seu nome é uma união de duas personalidades marcantes do mundo antigo: o primeiro mártir cristão, Estevão, que, conforme nos conta Atos 7:55-60, foi apedrejado pela multidão de Jerusalém ao gritar na rua sobre a ressurreição de Cristo; e o arquiteto Dédalo, criador de construções como o labirinto que aprisionava o Minotauro, e pai de Ícaro, com quem fugiu da sua própria criação ao criar asas de cera, mas viu seu filho morrer afogado no mar por não escutar os conselhos de voar distante do sol.

Joyce não escolheu esses nomes ao acaso. Acreditava realmente que era um mártir e que a literatura era a fuga da paralisia dublinense. A figura de Stephen surgiu na adolescência e foi elaborada, em primeiro lugar, em um romance autobiográfico inacabado, Stephen hero. Ela tinha todas as qualidades e defeitos de Joyce: a petulância, o pedantismo de uma erudição que se preocupa com sua própria mente, a constante intransigência com o país, a família e os amigos. Entretanto, ao transformar Stephen hero em Retrato do artista, Joyce queria aprofundar a objetividade da consciência e, além disso, tornar Stephen mais distante de si próprio — era necessário que se tornasse um personagem e não apenas um alter ego. Retrato do Artista realiza isso com perfeição: o início é um passeio pela consciência infantil do jovem Stephen; conhecemos sua família, sua educação, seus amigos, sempre de forma indireta; pouco a pouco, o estilo se desenvolve para uma exploração de sentimentos e de emoções que se transformam em uma música das sensações. Joyce retrata o crescimento de uma mente que opta pelo exílio dentro do seu país porque a perseguição é a única forma de encontrar um sentido na vida dublinense.

Como o próprio Dédalo, Stephen está preso não só no labirinto onde foi jogado, mas também no que ele próprio criou — onde seu espírito está sendo torturado por pensamentos que não consegue apreender corretamente. Esta é uma observação importante porque sem ela não podemos entender Ulysses, e nos permite corrigir um grande erro que rondou a obra de Joyce: a de que ela seria uma apologia do orgulho satânico.

Sem dúvida, Stephen é um orgulhoso, e falaremos sobre isso adiante; mas é o orgulho patético do jovem que se sente mais importante do que o país onde vive. Não se trata de revolta contra a realidade ou contra Deus. A citação do nome de Stephen ao primeiro mártir cristão prova isso — apesar do Non serviam contra a Igreja que ecoa nos ouvidos. A prisão mental de Dedalus, sua planejada fuga para o exílio em Paris (que ocorre no final de Retrato) e o encontro com sua vocação artística são apenas os primeiros passos para a verdadeira intenção de Joyce, e que se revelam como uma profunda análise do artista maduro sobre o que move a pessoa determinada em criar um novo mundo dentro dos limites do exílio. Stephen sempre se deparará com a prisão da sua alma — que foi criada justamente pelo orgulho da traição.

E o orgulho da traição, se isso for possível, acontece justamente por causa da condição que chamamos de exílio. O poeta russo Joseph Brodsky, um exilado de primeira categoria, escreveu certa vez que o verdadeiro exílio nos ensina três coisas: que a condição humana é um exílio metafísico que nos põe em constante estado de tensão, seja no pensamento ou no espírito; que alguém que vive o exílio sempre será um ser voltado para o passado, para o lugar onde viveu e ao qual não pode mais retornar — como foi o caso do próprio Joyce com Dublin, em que ele dizia que, se a cidade fosse destruída por um incêndio, ela poderia ser reconstruída através de seus livros; que o exílio é, antes de tudo, uma escola de humildade.

Humildade é algo que Stephen Dedalus não possui. Durante todo o Retrato, deixa o orgulho tomar conta de suas atitudes, mesmo quando consegue uma aparente libertação após ter uma epifania em Sandycove, ao ver uma moça à beira da praia e sentir o chamado da literatura. Seu lema de sobrevivência explicita isso quando fala sobre sua ars poetica ao amigo Cranly: a de que ele construirá uma obra fundada no “silêncio, exílio e astúcia” (silence, exile and cunning). O que seria essa astúcia? Justamente a falta de humildade que fará de Stephen um mártir de seus próprios pensamentos e ações. Ou pior: o desejo alucinado de ser traído a qualquer custo, seja pelos próximos ou pelo próprio país. Vai para Paris, mas pede antes uma benção do pai, chamando-o de “velho artífice”; como alguém que gosta de esconder pistas, Joyce sugere que nem o próprio Stephen está certo da sua condição de mártir ou de rebelde. É claro que não estava. O motivo é simples: ninguém suporta ser traído ou viver numa constante suspeita de que será traído. Naquela época, nem Joyce, que cometeu o mesmo erro, sabia se estava pensando ou fazendo a coisa certa. E ele conhecia a razão: tanto Stephen Dedalus como James Joyce voltariam a Dublin para ver a lenta agonia de sua mãe.

Acerto de contas

Para a criação de um novo mundo, é necessário que o artista entre em comunhão com o mundo real onde vive e aceite as suas imperfeições, suas incertezas e, sobretudo, a sua descrença. Este talvez seja o verdadeiro tema de Ulysses, romance que lançou James Joyce ao topo da literatura mundial e que se passa em um único dia, 16 de junho de 1904, o Bloomsday. É uma continuação de Retrato do artista quando jovem porque, logo no início, nos reencontramos com Stephen Dedalus, que voltou de Paris para justamente acompanhar a morte de sua mãe.

Também acompanharemos a peregrinação de Leopold Bloom, vendedor de anúncios de descendência judaica, preocupado com várias coisas, entre elas o funeral de seu amigo Paddy Dignam, o luto mal resolvido por um filho morto prematuramente (Rudy), a sua fixação por uma amante que se comunica somente por correspondência (Martha) e, sobretudo, a possibilidade de que, enquanto anda pelas ruas de Dublin, sua esposa Molly o trai com o garanhão Blazes Boylan.

Por que Joyce escolheu o dia 16 de junho de 1904 para ser a data que marca a ação de seu livro? A razão é singela: neste mesmo dia, o jovem James Augustine Joyce saíra com sua futura companheira, Nora Barnacle, que, como o próprio diria anos depois a ela, “fez dele um homem”. Joyce estava na mesma situação de Stephen Dedalus: atormentado por dúvidas, pela culpa de ter visto a mãe agonizante e por não ter cumprido os últimos desejos dela ao se recusar a proferir a oração dos ritos finais. Além disso, o espectro do fracasso o perseguia: de nada adiantava ser um grande talento se não estava plenamente desenvolvido. O encontro com Nora marcou-o como a possibilidade de entrar em contato com o mundo e deixar para trás a solidão que sentia desde a morte da mãe; e, com isso, Joyce acreditou ter encontrado uma companheira para toda a vida, apesar das observações sarcásticas de seu pai, que afirmava que ela jamais largaria o filho, numa referência nada delicada ao seu sobrenome (Barnacle significa “carrapato”).

Portanto, Ulysses é uma das maiores cartas de amor já escritas. É também o acerto de contas de Joyce com o seu presente e com o seu passado — representados respectivamente por Leopold Bloom e Stephen Dedalus. Ambos se encontrarão nesse dia para que achem uma maneira de dar rumo a suas vidas — para que o sentido das coisas surja como se fosse algo óbvio e os faça ir para frente, nunca para trás. A presença de Nora Barnacle aparece também na figura de Molly Bloom, a esposa de Leopold, uma mulher que nos parece ser uma aranha devoradora, mas, no fim, é quem fará a unidade na existência destes dois homens dilacerados.

O acerto de contas com o passado não se dá apenas na esfera pessoal. Joyce também resolve, em seu romance, o seu próprio lugar na literatura. Para isso, cria uma estrutura romanesca baseada em três pilares: Homero, Dante e Shakespeare. O primeiro é nítido: além do título do romance, cada episódio do livro é inspirado em um canto da Odisséia, épico de Homero que conta o retorno de Ulisses, o famoso guerreiro de Tróia, à sua Ítaca. Dessa forma, Leopold Bloom seria ninguém menos que Ulisses; Stephen Dedalus seria Telêmaco, o filho de Ulisses; e Molly Bloom representaria Penélope, apesar de não ser uma esposa tão fiel assim. Na visão de Joyce, Ulysses não é apenas um romance sobre o exílio, mas um romance sobre a volta para a casa após uma longa temporada no exílio. Bloom e Dedalus são deslocados em Dublin e ambos procuram uma pátria espiritual; o tema da paternidade é recorrente: os dois buscam pais e filhos desaparecidos em suas vidas e descobrem o que procuravam ao se encontrarem quase por acaso. Entretanto, nada em Joyce é por acaso; ele aproxima a mitologia grega do cotidiano dublinense usando os artifícios mais complicados e, ao mesmo tempo, simples da literatura; usa e abusa de paralelismos no tempo e no espaço, criando uma sensação de sincronicidade em eventos aparentemente desconexos; desenvolve o fluxo de consciência não como ferramenta narrativa, mas como um modo de o leitor entrar nos segredos mais íntimos dos personagens; e, sobretudo, registra minuciosamente cada ato, cada hora, cada sensação, cada fala de qualquer personagem que seja importante em sua estrutura porque quer provar, através de seu livro, que o passado pode ser revivido no presente.

O confronto com o passado dentro do presente só será resolvido por meio da influência de Dante. Joyce quis fazer com Ulysses o que o poeta florentino fez com A divina comédia: registrar toda a experiência da civilização ocidental em um único tomo. Daí a referência enciclopédica a obras de literatura, teologia, botânica, história da arte, história universal que estão espalhadas pela narrativa, como se fosse um corpo com vida própria.

Contudo, de nada adianta essa síntese se o homem comum, representado por Leopold Bloom, não consegue se confrontar com o fantasma da morte. No episódio “Hades”, inspirado no canto homérico em que Ulisses desce aos infernos para encontrar com o espectro de seu pai, Joyce descreve a descida de Bloom ao reino subterrâneo. Bloom se dirige com alguns amigos (entre eles, o pai de Stephen, Simon Dedalus) para o funeral de Paddy Dignam, um velho conhecido da boemia dublinense. Todos se lembram da morte de algum colega, de algum ente querido; Bloom se lembra da morte de seu pai, que se matou por envenenamento, e de seu filho Rudy.

Ao ver o caixão de Dignam ser enterrado, conscientiza-se de que seu destino final não é apenas a morte, mas também o esquecimento. Mesmo qualquer espécie de oração não resolve esse problema. “Será que alguém realmente reza?”, ele se pergunta. Bloom sabe que precisa fazer algo para não cair no olvido. Mas o quê? O inferno é muito grande aos olhos de Bloom; existem muitos mortos, muitos a serem esquecidos. E então percebe que, em breve, se não fizer nada, pode ser um deles: “Quantos, meu Deus! Todos estes aqui andaram certa vez por Dublin. Mortos fiéis. Assim como vocês são agora assim certa vez fomos nós”[1]. O maior pecado de Bloom é não fazer algo da sua vida que valha a pena.

O mesmo pode se dizer de Stephen Dedalus. Joyce faz seu alter ego, ocupado por uma mente que elabora os mais complexos teoremas, incapaz de lidar com a vida como ela é, confrontar-se com o espectro de William Shakespeare. É o embate entre a antiga literatura inglesa e a nova literatura — o modo como Stephen encontrou para acordar do pesadelo chamado História. Isso é motivo para uma das cenas mais divertidas de Ulysses, quando Dedalus explica para alguns colegas o que seria sua inusitada teoria de que Shakespeare é, ao mesmo tempo, pai e filho de Hamlet.

O teorema é o seguinte: “Hamlet é Hamlet, o filho morto prematuramente do próprio Shakespeare; Shakespeare é o espectro, o marido ultrajado, o rei deposto; Anne Shakespeare, nascida Hathaway, é a rainha culpada”. Stephen faz uma mistura de pseudo-biografia, fofoca literária e delírio hermenêutico para explicar que as peças de Shakespeare não saíram de uma existência imparcial e distanciada da vida, mas sim de uma experiência traumática no conhecimento de sua própria maldade e da maldade dos outros — no caso, o suposto fato de que o jovem Shakespeare foi abusado sexualmente por sua esposa Anne, 15 anos mais velha. A tese choca os colegas de Stephen. “Mas essa intromissão na vida familiar de um grande homem”, retruca um; para eles, Anne Hathaway foi um detalhe na vida de Shakespeare, uma mulher a quem ele não deu a mínima importância, pois cedeu, em seu testamento, nada mais nada menos que “sua segunda melhor cama”. Um erro, enfim. “Bobagem!, diz Stephen rudemente. Um homem de gênio não comete erros. Seus erros são voluntários e são portais de descoberta.”

Esta apresentação é a forma de Stephen lidar com a obsessão pelo exílio e pela traição. Ele se sente culpado por ter traído sua mãe ao não cumprir seus últimos desejos e sente que foi traído pela Irlanda e por seus amigos. Mas, no fundo, também percebe que algo na sua vida saiu errado — e a culpa é exclusivamente sua. A cena na Biblioteca Nacional mostra exatamente isso. Pouco a pouco, Stephen se sente cercado por seus colegas e, quando menos se espera, se rende à imbecilidade coletiva. O clima de incompreensão e de incomunicabilidade cresce cada vez que Dedalus tenta provar sua teoria.

Stephen está muito fraco espiritualmente — o orgulho da traição já consumiu suas forças. E então vem um dos momentos mais reveladores de Ulysses, quando alguém afirma o seguinte a Dedalus:

— O senhor é uma ilusão — disse sem rodeios John Eglinton a Stephen. — O senhor nos fez percorrer todo esse caminho para nos mostrar um triângulo francês. O senhor acredita em sua própria teoria?

— Não — disse prontamente Stephen.

É neste instante que Joyce se mostra um verdadeiro Dédalo, muito superior ao seu personagem, despistando o leitor, indicando a verdadeira direção para escapar do labirinto que criou. Vários estudiosos deixam esse trecho de lado e afirmam que o próprio Joyce estava brincando com a teoria de Shakespeare. Para René Girard, este é um erro gigantesco[2]. O “não” de Stephen é o que ele fala em voz alta; contudo, algumas linhas depois, saberemos o que verdadeiramente se passa em sua alma:

Eu acredito, Ó Senhor, ajude minha descrença. Isto é, me ajude a crer ou me ajude a descrer? Quem ajuda a crer? Egomen. Quem a descrer? Um outro camarada?

A referência é ao evangelho de Marcos, capítulo 9, versículo 24. Como Joyce não brinca em serviço, é bom lermos o episódio bíblico para percebermos o que ele realmente quis dizer. Trata-se da cura do epiléptico endemoninhado em que o pai deste exclama: “Eu creio! Ajuda a minha incredulidade!” — as mesmas palavras que Stephen diz para si mesmo.

Ele se reconhece como o representante de uma mente tão paralisada quanto a Dublin que criticava. A divagação sobre Shakespeare não é uma brincadeira: é um diagnóstico do problema que atacava não só a Irlanda, mas também a Europa, como veremos em breve. O espírito da época, o zeitgeist, está mudo e surdo; a descrença de Stephen em suas teorias significa que ele também não acredita em si mesmo — o mesmo problema que ronda Leopold Bloom. E o que podem fazer?

A vida fará com que ambos se encontrem no final da tarde, em uma maternidade onde um amigo em comum será pai. Não simpatizam no início; mas, após uma bebedeira (o típico modo irlandês de resolver os problemas) na mesma maternidade, resolvem ir a um bordel. Lá, se deparam com uma vida noturna que desperta os seus maiores pesadelos e suas maiores culpas; Bloom se encontra com o espectro de seu falecido filho, e Dedalus, enfim, enfrenta a sua mãe. O desespero é tamanho que Stephen quebra o candelabro do bordel com sua bengala e provoca uma grande confusão com as prostitutas e a polícia local; será Bloom quem o salvará afirmando ser seu responsável. Juntos, vão embora, rumo à casa de Bloom, na Eccles Street número 7. Estão bêbados, mas descobrem uma comunhão inusitada. Comem uns sanduíches na cozinha e, logo depois, se despedem. Bloom sobe as escadas e se deita na cama, ao lado de sua esposa. E então ocorre o gran finale do livro: o monólogo de Molly Bloom, mais de 40 páginas sem pontuação, dedicado a uma personagem que parecia ser marginal ao enredo, mas é a única que resume a completude da vida ao aceitar tudo com um vertiginoso “sim!”.

O “sim” de Molly é também o “sim” de James Joyce. É ele o Egomen para quem Stephen pede ajuda no seu momento de descrença. Apesar de Molly ser uma adúltera, Joyce coloca na sua boca a fundação de um novo mundo onde a vida é o motor propulsor, nunca a morte. No fim, após uma longa odisséia dentro do exílio, descobre-se que é nele que se encontra a unidade e a completude das coisas. Ulysses pode ser um livro de leitura difícil (e é), mas sua dificuldade esconde as pistas de uma delicadeza humana inegável. O encontro entre Stephen Dedalus, Leopold e Molly Bloom é a prova de que, antes de tudo, para não cairmos no esquecimento, temos de ter consciência do nosso próprio valor. Sem isso, não temos como empreender nossa missão, seja como o casal Bloom, para recuperar um matrimônio perdido, ou como o jovem Stephen que, após o dia 16 de junho de 1904, se transformará em James Joyce e tirará do exílio a lição necessária para escrever Ulysses.

Em guerra

Contudo, este mesmo exílio deixou uma ferida que não tinha como ser curada. Há um preço muito alto a ser pago quando o homem de gênio se dedica aos seus erros como portais de descoberta. Dezesseis anos depois do lançamento de Ulysses, Joyce lançaria a pedra final de seu novo mundo, Finnegans wake. É um livro que implode e explode a língua inglesa em uma série de trocadilhos que desafia a lógica e se baseia somente no som; não há mais um enredo, mas sim várias histórias que desaguam em uma única História que vive em eterno retorno; o mundo não é apenas composto de epifanias; é, na verdade, uma gigantesca epifania que se transforma em alucinação sobre a qual a mente do seu autor parece não ter mais controle.

E não tinha mesmo. Ele escrevia Finnegans wake quando estava no auge de sua força literária e também em um dos seus períodos mais turbulentos, quando a filha favorita, Lucia, foi diagnosticada esquizofrênica. Foi Carl Gustav Jung quem analisou a moça a pedido do pai e este se escandalizou com a avaliação. Acreditava que ela também era um gênio. Jung apenas respondeu: “Vocês nadam no mesmo oceano; contudo, se o senhor nada, ela já se afogou”.

O oceano do exílio destruiu as forças do velho Joyce, mas lhe deixou a humildade necessária para saber qual foi o valor da sua empreitada. No final de Ulysses, fez questão de colocar os lugares e as datas em que o livro foi escrito: “Trieste – Zurique – Paris, 1914-1922”. Ele escreveu o seu épico sobre a comunhão humana na mesma época em que a Europa travava a Primeira Guerra Mundial; nunca precisou ir às trincheiras porque tinha a sua própria guerra particular, uma guerra contra não só o provincianismo de sua terra como também contra o provincianismo do ser humano. Estava tão exaurido que podia se dar ao luxo de fazer a seguinte piada, como inventou Tom Stoppard na peça Travesties, quando Joyce se encontra com um soldado veterano da Primeira Guerra: “O que o senhor fez na Grande Guerra, Sr. Joyce?”, pergunta o soldado; e escuta a seguinte resposta: “Eu escrevi Ulysses. E você — o que fez?”.

James Joyce morreu no dia 13 de janeiro de 1941, de úlcera perfurada. Sua máscara mortuária, exibida no James Joyce Centre, em Dublin, mostra que não teve uma morte fácil. Foi enterrado em Zurique, de onde escapava dos tumultos da Segunda Guerra Mundial junto com sua família. Seu túmulo, segundo Richard Ellmann, biógrafo do escritor, “é simples e de classe média. Já que Joyce não gostava de flores, colocaram uma folhagem verde. Uma coroa verde no funeral trazia uma lira tramada com o emblema da Irlanda. A Irlanda não teve nenhuma outra participação no funeral”. Já Nora Barnacle Joyce morreria dez anos depois, em 10 de abril de 1951, também em Zurique, num convento. E quanto a Lucia Joyce, talvez tenha sido a única com lucidez ao definir quem era o pai quando soube de sua morte, antes de ela mesma morrer em um sanatório no dia 12 de dezembro de 1984: “O que é que aquele idiota está fazendo debaixo da terra?”, disse ela. “Quando vai se resolver a sair? Ele está nos vigiando o tempo todo.”

E talvez esteja mesmo. Joyce sofreu como poucos a ferida do exílio — mas foi também um dos poucos que enfrentou com determinação a paralisia espiritual que quase o vitimou. Há alguma forma de escapar disso? Provavelmente não, uma vez que “a arte é uma mistura de ambíguo e de inefável; seu mistério nunca passa da lápide e é tanto ou mais brutal que ela”. Cumpre a quem fica que reconheça a vigilância de Joyce, crie novos mundos a partir da imperfeição deste e acabe com as elegias que nos paralisam, pois, como diria o poeta, “há um país que é preciso pôr abaixo”.


[1] Todas as citações de Ulysses em português vêm da tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, lançada pela editora Objetiva (depois, Alfaguara) em 2005.

[2] Cf. o capítulo “Triângulos franceses” no Shakespeare de James Joyce, págs. 475 – 498, in: Shakespeare — O teatro da inveja, publicado pela Editora É em 2010.

Aos 90, "Ulysses" ganha terceira tradução no país

Retirado do Conteúdo Livre.

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Obra de Joyce entra em domínio público junto com nova versão de clássico 

Trabalho de Caetano Galindo revigora mística do romance, tido como o maior do séc. 20, mas considerado “difícil” 

FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO

Há clássicos literários reverenciados, outros populares. E há os que, embora muito reverenciados, são muito pouco lidos. Este parece ser o caso de “Ulysses”.

Apontado em diversas enquetes com críticos como o principal romance do século 20, o livro maior do irlandês James Joyce (1882-1941) é uma provocação ao leitor. É enorme (mais de 800 páginas), experimental e vertiginoso.

Surge agora mais uma chance para os brasileiros de enfrentá-lo: a nova tradução ao português de Caetano W. Galindo, com coordenação de Paulo Henriques Britto e edição de André Conti, para o selo Penguin-Companhia, a terceira disponível no país, que acaba de chegar às livrarias.

As diferenças para os trabalhos de Antônio Houaiss, de 1966, e de Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, começam no título. Galindo é o primeiro a adotar a grafia original em latim, “Ulysses”, com “y” no lugar do “i” aportuguesado de Houaiss e Bernardina (leia na pág. E7).

O volume traz uma nota do tradutor, na qual ele promete para breve um guia de leitura do romance, e uma introdução do professor irlandês Declan Kiberd.

Kiberd relembra como Virginia Woolf — que nasceu e morreu nos mesmos anos de Joyce e cuja obra, como a dele, entra agora em domínio público — rejeitou “Ulysses” à época do lançamento, o definindo como a obra “de um estudante nauseado espremendo suas espinhas”.

Kiberd também refaz a trajetória tortuosa do romance, censurado e processado por obscenidade e publicado em Paris, em 1922 (completa 90 anos e seu criador, 130).

A obra de Joyce narra um dia na vida de Leopold Bloom -um agente publicitário dublinense, anti-herói baseado no Ulisses da “Odisseia” de Homero, casado com Molly Bloom, sua Penélope infiel-, e de seu amigo Stephen Dedalus, correspondente de Telêmaco e alter ego de Joyce.

O ano é 1904, o dia é 16 de junho, o mesmo em que hoje ocorre o Bloomsday, celebração anual do clássico.

Seria prosaico assim, se ao mesmo tempo “Ulysses” não tivesse revolucionado a forma tradicional do romance, criando novas ortografia e sintaxe e imprimindo à narrativa um fluxo verbal alucinado, que leva ao limite o chamado monólogo interior.

Convulsionou a literatura a ponto de virar anedota, como relata o escritor Daniel Galera ao lembrar que sua história com o livro começou aos 12 anos, quando o pai dele “apontou para aquele tijolo no alto da estante e disse”:

“Tá vendo aquele livro? Tem uma frase de 50 páginas que fica contando o pensamento de uma pessoa”. Referia-se ao monólogo de Molly Bloom, o trecho final de “Ulysses”.

Segundo Galera, aquilo instalou nele “um fascínio imediato pelo volume”, que só viria a ler quando adulto.

Outra vítima da mística de “Ulysses” foi o escritor Joca Terron, que paquerou por anos uma edição do livro na estante do pai, sem coragem para encará-la. Quando o fez, leu só um terço, até que o pai tomou de volta o exemplar.

A jornalista e colunista da Folha Barbara Gancia diz ter lido “Ulysses” “na marra”, porque fazia parte do seu currículo escolar.

“Ou melhor, não li. Ninguém ‘lê’ ‘Ulysses’, estuda-se o livro parágrafo por parágrafo. É tão complicado e cheio de referências que talvez seja uma boa ideia usá-lo como aposto na leitura de ‘Retrato do Artista Quando Jovem’, a obra que o precede e é um pouco mais amigável.”

Discorda dela o professor e crítico Alcir Pécora, para quem “em termos de prosa inglesa, apenas [Laurence] Sterne e [Joseph] Conrad planam nas mesmas alturas” que o Joyce de “Ulysses”.

O escritor e tradutor Daniel Pellizzari, que como Pécora leu e adorou, considera que, mesmo sendo “importantíssimo na história da literatura”, “Ulysses” não é um livro essencial, “do tipo que se diria que ‘todos precisam ler'”.

Para quem quer enfrentar, o escritor Nelson de Oliveira sugere: “Esqueça as notas de rodapé [eliminadas na nova tradução] e os mapas de leitura. Entre desarmado no labirinto”. Fã do livro, o artista plástico Nuno Ramos aconselha que “quando ficar chato, pule -quem sabe para voltar depois. Vale a pena”.

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Crítica / Romance 

Versão resolve mais satisfatoriamente multiplicidade estética do texto joyceano
SERÁ ESTA NOSSA TRADUÇÃO DEFINITIVA DE “ULYSSES”? NÃO, ISSO NÃO EXISTE: CADA RECRIAÇÃO É OBRA AUTÔNOMA
MARCELO TÁPIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jovial, o velho gigante James Joyce ressurge luzente em nosso horizonte literário. Com nova voz, resultante de dez anos de labor, veste-se sóbrio, à imagem da edição da Penguin em língua inglesa: sem notas e com a densa introdução de Declan Kiberd.

Isto, segundo o tradutor Caetano Galindo, para apresentar o “Ulysses” “como o que ele deve sempre ser”: “um romance, talvez o maior romance de todos, e não um quebra-cabeça exemplar”.

Um convite à simples leitura desse complexo e divertido livro, desprovido de um sumário de seus capítulos.
Conheci trechos da versão de Galindo, lidos, ao longo dos anos, no Bloomsday de São Paulo. E testemunho, com base neles, a busca do tradutor pelo aprimoramento de suas soluções.

Se, antes, Cunningham perguntava, na carruagem que conduziria Bloom e companheiros ao enterro de Dignam, “Estamos todos aqui agora?”, ele passa a dizer “Já está todo mundo aqui?”. Tanto faria? Não. Por trás das escolhas, há questões difíceis a resolver, como a grande variedade de registros da prosa joyciana, que transita do tom mais coloquial ao mais “literário” ou ao mais inusitado.

Pode-se ver o “Ulysses” como um colossal poema: sua tradução será re-criação do intrincado sistema de relações construído pelo criador do périplo de Bloom.

No início do capítulo “Gado do Sol” (relativo ao episódio das vacas do deus Hélio, na “Odisseia”), Galindo mostra ter encontrado (como em muitos outros casos) uma solução plena para “Send us, bright one, light one, Hornhorn, quickening and wombfruit”: “Dai-nos, leve, luzente, Hornhorn, fertilidade e frútero”. Parece fácil? Se sim, esta será uma qualidade do bem resolvido.

Nesse capítulo, passado na maternidade -em que Joyce imita estilos literários e esboça a história da língua inglesa-, Galindo colhe um dos frutos mais atraentes de seu esforço, ao valer-se de recursos como o arcaísmo e o tom vulgar para recriar a diversidade linguístico-estilística:

“Daquela casa A. Horne é senhor. Setenta litros ele i mantém por que as madres na sua hora delas i venham parir e dar à luz crias sãs como o anjo de Deus a Maria disse”; “Dormiu aonde ontonte? […] Lá onde o Juda perdeu as bota e achou uns trapo véio”…

Será esta nossa tradução definitiva de “Ulysses”? Não, isso não existe: cada recriação é obra autônoma, embora interaja com o original e as demais traduções dele. A que ora nos chega tem a vantagem (e a desvantagem) da anterioridade de dois notáveis trabalhos: o de Antônio Houaiss, pioneiro, e o de Bernardina Pinheiro, de 2005.

Esta versão resolve mais satisfatoriamente a multiplicidade estética do texto de Joyce: não incorre no criticado “rebuscamento” geral da primeira ou no resultado explicativo e “normalizador” da segunda, que dilui a polifonia joyciana.

Mas muitas soluções de Houaiss continuam as mais instigantes, e o texto de Bernardina permanecerá como fonte de leitura mais corrente, associada a notas utilíssimas. Opções que se somam para compor a inesgotável pluralidade de “Ulysses”.
 
MARCELO TÁPIA, poeta, é doutor em teoria literária pela USP, diretor da Casa Guilherme de Almeida e co-organizador do Bloomsday em São Paulo
 
ULYSSES
AUTOR James Joyce
TRADUÇÃO Caetano W. Galindo
EDITORA Penguin-Companhia
QUANTO R$ 47 (1.112 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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“Clássico de Joyce é pura e simples diversão”

Caetano Galindo, tradutor da nova versão, rejeita fama de “livro chato” e diz que obra tem “todo tipo de tosqueira” 

Iniciado há dez anos, o trabalho do professor universitário ressaltou os aspectos lúdicos e coloridos do romance 

MARCO RODRIGO ALMEIDA
DE SÃO PAULO

O lançamento da nova versão de “Ulysses” encerra uma jornada iniciada há dez anos por Caetano Galindo, 38, professor da Universidade Federal do Paraná.
À Folha, ele explica as escolhas que nortearam a tradução, contesta a fama de o livro ser chato e comenta a dificuldade em achar a “voz” da personagem Molly.
 
Folha – Qual o principal diferencial da sua tradução?
Caetano Galindo – O objetivo era tentar liberar mais plenamente o potencial lúdico do “Ulysses”, um livro extremamente colorido, variado, corajoso e descarado.
 
Em que capítulo ou trecho isso fica mais evidente?
No “Gado do Sol”, que é todo ele uma série de pastiches de textos de momentos diferentes da história da literatura e da língua inglesa.
A nossa tradução é, até onde eu saiba, a primeira a responder na mesma moeda de Joyce, buscando caso a caso as referências e os estilos de dezenas de autores e períodos da história da língua portuguesa.
 
O que você acha das traduções feitas por Antônio Houaiss (1966) e Bernardina da Silveira Pinheiro (2005)?
São dois monumentos da tradução brasileira, mas as nossas entradas são fundamentalmente diferentes.
O que me incomodava mais na tradução de Houaiss, que é mais que adequada ao seu momento histórico, era um certo achatamento de diversidades e coloridos. Foi nesse polo oposto que eu mirei desde o início, para tornar o “Ulysses” mais romanesco, mais vário e múltiplo.
 
As duas traduções anteriores grafaram o título como “Ulisses”, com “i”. Por que a sua é com “y”, como em inglês?
A gente [André Conti, editor do livro, e eu] simplesmente percebeu que sempre tinha se referido assim ao livro. E, de repente, a gente achou que fazia sentido manter assim. Para marcar uma fidelidade? Para marcar uma diferença? Eu realmente acho que não sei, mas ficou lindão na capa!
 
Muita gente acha o livro chato.
É claro que o livro é difícil, é complexo mesmo. Mas, se você estiver disposto a colocar ali o esforço que o livro pede, a recompensa é pura e simples diversão. O livro tem piada de peido, tem todo tipo de imoralidade e tosqueira. Tem bobagem a dar com o pau. Como disse Samuel Johnson [escritor inglês], só acha o “Ulysses” chato quem acha a vida chata.
 
E como foi traduzir o célebre monólogo final de Molly?
Molly é um problema na medida em que ela é a maior bênção do livro. A literatura brasileira tem uma dificuldade histórica em lidar com a oralidade de uma maneira não estilizada, não idealizada. É muito foda achar a “voz” da Molly. Hoje estou contente com a minha Molly.

Folha de S.Paulo
12/05/2012 

Variações em torno de um raro romance

Por Donaldo Schüler
O Estado de S.Paulo

Os leitores de James Joyce no Brasil estão em festa. Apareceu uma terceira tradução do Ulisses. O romance de Joyce teve o privilégio de encontrar tradutores qualificados. Antônio Houaiss, além de crítico literário e tradutor, foi um dos melhores conhecedores da língua portuguesa, mérito atestado pelo substancioso dicionário que nos deixou. Bernardina da Silveira Pinheiro é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro com estudos no exterior centrados em Joyce. E agora aparece Caetano W. Galindo – professor de Universidade Federal do Paraná, doutor em Letras – com a tradução de Ulisses. Caetano prefere Ulysses. Uso a tradução de Houaiss desde o momento em que ela apareceu, leio ainda a primeira edição, a de 1966. Interessei-me pela tradução de Bernardina (2005) e agora (2012), para comemorar a tradução de Caetano, sou convidado a me pronunciar sobre todas. As três têm méritos. Tradução literal não há. Tradução, para ser boa, terá que ser criativa. A criatividade muda de tradutor para tradutor. Aplausos merecem os editores e os leitores brasileiros que correspondem positivamente ao desafio de um texto exigente. Grande literatura sem grandes leitores não há. Leitores nossos prestigiaram Vieira, Machado, Euclides, Clarice, Rosa, João Cabral… E agora incorporamos Joyce, abrasileirado pelas traduções.

Caetano, querendo que o romance seja lido como romance, expressa reservas a notas que desviem do texto. Caetano não recusa recursos que facilitem a compreensão. Como usá-los fica por conta das preferências de cada um. Visto que Joyce abala a tradição narrativa inaugurada por Homero, salientar peculiaridades ampara a decisão de enfrentar procedimentos originais. Os que nos aproximamos de Homero, Sófocles, Dante, Shakespeare acolhemos os que apontam caminhos. Textos sobre textos ampliam acessos. Caetano dedicou anos à tradução de Ulisses. Quantas horas lhe consumiram estudos sobre Ulisses? Livros construídos sobre livros erguem o edifício da produção literária. Úteis são as notas que Bernardina oferece depois de concluir a tradução. A editora Penguin decidiu socorrer os leitores brasileiros com uma introdução de mais de 70 páginas, feita por Declan Kiberd. Isso ainda é introdução ou já é um livro que leva a outro livro? Se a editora nos tivesse dado a oportunidade de ver brasileiros nesse espaço, teríamos tido a oportunidade de averiguar a recepção de Joyce no Brasil. Por que não o próprio Caetano? A brevíssima informação a que se limita sobre a composição de palavras fica aquém do cuidado com que aborda invenções joycianas.

Kiberd nos dá um Joyce pacifista. Pessoalmente, prefiro o Joyce guerreiro, oswaldianamente antropofágico, o Joyce do Deus-guerra (he war) do Finnegans Wake, o Joyce do conflito de palavras e de ideias, o Joyce que, ao escrever inglês, implode a língua do dominador, a língua do império britânico. Aliás, o primeiro capítulo de Ulisses nos arrasta a uma batalha ferida dentro de uma fortaleza, a Torre Martello, em Dublin, construída em princípios do século 19 para resistir a uma temida invasão napoleônica que nunca se realizou. Combatem três jovens: Buck Mulligan e Stephen Dedalus, dois irlandeses em luta interna, além de Haines, um oxfordiano, representante do imperialismo inglês, armado de carabina no pesadelo de Stephen. Buck Mulligan, brincando com o seu próprio nome, diz: “Tripping and sunny like the buck himself.” Houaiss: “Ágil e ensolarado como um cabrito mesmo.” Bernardina: “Saltitante e radioso como o próprio cervo.” Caetano: “Ágil e radiante como um buque de guerra.” Caetano, afastando-se do significado de buck (macho de homens ou animais) fica mais próximo do jogo de palavras proposto por Joyce. Se ele decidisse, em vez de “buque de guerra”, “bucke de guerra”, teria incorporado o nome da personagem, expediente que nos levaria a muitas associações: macho, bode, sátiro, sacerdote, demônio…

Buck Mulligan denuncia o amigo Stephen Dedalus de matricídio, crime dos mais graves para um tragedista como Ésquilo. Buck Mulligan estende um espelho a Stephen. O incriminado, ao contemplar-se, vê a imagem de um dogsbody. Houaiss, para traduzir dogsbody, inventa canicarcaça. Por quê? Dogsbody em inglês é expressão coloquial. Bernardina opta pela tradução literal, corpo de cão. Mas há uma sutileza. Joyce cria atmosfera sagrada. Buck Mulligan – sátiro, sacerdote satânico -, pararodiando a missa, abençoa a paisagem. A missa negra faz alusão ao godsbody, o corpo de Deus em que, no ritual católico, a hóstia consagrada se transforma em corpo de Deus. Ao observar as linhas do seu rosto no espelho, pergunta Stephen: “Quem escolheu esta cara para mim? Este dogsbody, que devo libertar dos vermes? It (o espelho) pergunta-me também.” Stephen conversa com o espelho. O espelho inverte god (deus) em dog (cão). Caetano percebendo o jogo oferece a tradução irmãodasalmas. Lance arguto! A invenção de Caetano evoca o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, musicado por Chico Buarque de Holanda. Cabral designa “irmão das almas”, cada um dos dois que conduzem Severino ao último repouso. Acontece que as três traduções prendem Stephen na morte. Isso é joyciano? Joyce cultiva concepção circular do universo, passagem da morte para a vida e da vida para a morte. Se não quisermos recorrer ao gesto humilhante de dizer em nota de pé de página que o inglês tem recursos que faltam ao português, temos que achar outra saída. Enfrentei o problema na tradução de Finnegans Wake, pág. 276. Se eu dissesse, que meu cachorro se chama Sued, ninguém me olharia espantado. Pois sued inverte especularmente deus. Proposta: “Quem escolheu esta cara para mim? Esta cara de suedcão, roída de vermes. Esta é também a pergunta desta coisa.”

Momentos depois, numa clara alusão a Shakespeare, aparece a sombra da mãe, Stephen a enfrenta assombrado: “No mother. Let me be and let me live.” Caetano: “Não mãe. Deixe-me estar e deixe-me viver.” Prefiro a tradução de Houaiss: “Não, mãe. Deixa-me ser e deixa-me viver.” Stephen roga o direito permanente de ser (autônomo, inventor, escritor). Bernardina entende que Stephen pede tranquilidade: “Não, mãe! Me deixe em paz me deixe viver.” Traduções nos fazem pensar.

No segundo capítulo, Stephen Dedalus, professor de história, termina a aula com uma charada que ele próprio inventou: The cock crew/ The Sky was blue:/ The bells in heaven /Where striking eleven,/ Tis time for this poor soul./ To go to heaven. Tradução de Caetano: “O galo cantou,/ O céu azulou, E os sinos de bronze /Bateram as onze./ É hora do incréu/ Seguir para o céu.”

O que teria levado Caetano de “pour soul” a “incréu”? “Incréu” rima com “céu”. Já sabia Drummond que nem sempre rima exprime solução. Ao que se sabe incréus não sobem aos céus, o destino é dantescamente outro. Improvisemos outra proposta: “É tempo dessa pobre alma/ Buscar o céu com calma.”

O texto da charada deve corresponder à solução. Caetano: ” – A raposa enterrando a avó embaixo de um azinheiro.” Nossa perplexidade diante da tradução de Caetano é maior do que a dos alunos confrontados com a resposta de Stephen: “The fox burying his grandmother under the holybush.” Ora, tudo leva a crer que Stephen armou a charada com experiências pessoais. Neste caso, a raposa (o intelectual) é ele. Pela altercação do primeiro capítulo, Stephen leva na consciência a morte da mãe. Na charada, grandmother não é avó, grandmother é a grandemãe (Igreja, Inglaterra). Stephen roga que sua mãezinha piedosa e poderosa repouse no céu para que ele possa viver em paz e levar a vida de artista (Dedalus) a bom termo. Stephen empenha-se em enterrar a grande mãe para que suma a sombra que o atormenta. A solução de Stephen a sua própria charada ecoa na resposta dada a Deasy, o diretor da escola, momentos depois: “A história é um pesadelo do qual tento despertar.” A história é a mãe, a grande mãe com a qual Stephen está em conflito do princípio ao fim.

Traduzir é difícil. Traduzir Joyce representa dificuldade dobrada. Antes de ousar uma quarta tradução, convém revisar as existentes, inquestionavelmente boas. O que é bom pode ser ainda melhor.

A lista dos 100 livros melhores livros de literatura de José Mindlin

Alain-Fournier (1886-1914)

A lista dos 100 livros de José Midlin contém as idiossincrasias de qualquer lista, mas gostaria de considerar que a presença de O Grande Meaulnes (1913) tenha sido produto de longa reflexão… (Se isso fosse uma série norte-americana, talvez ouvíssemos risadas). Afinal, achei estranha a presença da boa Adélia Prado na segunda colocação e espero que o terceiro lugar não seja também uma excentricidade. Digo isso porque o único livrinho de Alain-Fournier — que li lá pelos anos 70 — , pareceu-me na época uma delicadíssima e perfeita obra-prima.

Lembro de pouca coisa do conteúdo. O que lembro mesmo é de minha felicidade ao lê-lo. A Wikipedia diz:

Le Grand Meaulnes é o único romance do escritor francês Alain-Fournier, que morreu pouco depois, em 1914, na Primeira Guerra Mundial. No livro, François Seurel, aos 15 anos, narra a história de seu relacionamento com o amigo Augustin Meaulnes, de 17 anos, que procura por seu amor perdido. Impulsivo, imprudente e heróico, Meaulnes encarna o romantismo ideal, a busca para o inalcançável e o misterioso mundo entre infância e idade adulta. No Brasil, tanto o livro quanto o filme por ele inspirado receberam o nome de O Bosque das Ilusões Perdidas, em Portugal o livro intitula-se O Grande Meaulnes. François, o narrador do livro, é o filho do Sr. Seurel, um diretor de escola em uma aldeia de Sologne, uma região de lagos e florestas arenosas. Depois de chegar à escola, seu amigo Augustin Meaulnes, que vem de uma família pobre, logo desaparece. Quando ele retorna, relata ter ido à uma festa a fantasia incrível e mágica, onde conheceu a garota de seus sonhos, Yvonne de Galais, e passa a procurá-la romântica e insistentemente.

Será que é tão bom mesmo? O livro tem existência quase secreta no Brasil. Li uma edição portuguesa do livro. A brasileira veio depois. O livro é extraordinariamente romântico, mas é tão bem escrito que nos convence. Era só isso. Fiquei feliz de revê-lo…

A lista de Mindlin:

1 – As mil e uma noites –
2 – Bagagem – Adélia Prado
3 – O Grande Meaulnes – Alain-Fournier
4 – A peste – Albert Camus
5 – Os três mosqueteiros – Alexandre Dumas
6 – A ilha dos pinguins – Anatole France
7 – Formação da Literatura Brasileira – Antonio Cândido
8 – Sermões – Antonio Vieira
9 – Comédia Humana – Balzac
10 – A Torre do Orgulho – Barbara Tuchman
11 – As Flores do Mal – Baudelaire
12 – Teatro – Beaumarchais
13 – Adolfo – Benjamin Constant
14 – Teatro – Bernard Shaw
15 – Decameron – Boccacio
16 – Poesia – Carlos Drummond de Andrade
17 – Memórias – Casanova
18 – Poesias – Castro Alves
19 – Poesias – Cecília Meirelles
20 – Grandes Esperanças – Charles Dickens
21 – Romances e contos – Chekov
22 – O Amanuense Belmiro – Cyro dos Anjos
23 – Robinson Crusoe – Daniel Defoe
24 – Jacques, o fatalista – Diderot
25 – Crime e Castigo – Dostoievski
26 – Os Maias – Eça de Queiróz
27 – Poesia – Elizabeth Barrett Browning
28 – Poesia – Emily Dickinson
29 – O Morro dos Ventos Uivantes – Emily Brönte
30 – O Tempo e o Vento – Érico Veríssimo
31 – Teatro – Ésquilo
32 – Teatro – Eurípedes
33 – Poesia – Fernando Pessoa
34 – Tom Jones – Fielding
35 – O Processo – Franz Kafka
36 – Cem anos de Solidão – Gabriel García Marquez
37 – Casa Grande e Senzala – Gilberto Freyre
38 – Romances – Gogol
39 – Poesia Completa – Gonçalves Dias
40 – Vidas Secas – Graciliano Ramos
41 – Poemas – Gregório de Mattos
42 – Grande Sertão Veredas – Guimarães Rosa
43 – Educação Sentimental – Gustave Flaubert
44 – Contos – Guy de Maupassant
45 – Minha Vida de Menina – Helena Morley
46 – O Lobo da Estepe – Herman Hesse
47 – Odisseia/Ilíada – Homero
48 – Comédia Humana – Honoré de Balzac
49 – Orgulho e Preconceito – Jane Austen
50 – Confissões – Jean Jacques Rousseau
51 – Poesia Completa – João Cabral de Mello Neto
52 – A Morte e a Morte de Quincas Berro D´agua – Jorge Amado
53 – A Biblioteca de Babel – Jorge Luis Borges
54 – O Guarani – Jose de Alencar
55 – Menino de Engenho- Jose Lins do Rego
56- Memorial do Convento – José Saramago
57 – Lord Jim – Joseph Conrad
58 – Rayuela – Julio Cortazar
59 – Contos e Novelas – La Fontaine
60 – Triste Fim de Policarpo Quaresma – Lima Barreto
61 – Os Lusíadas – Luís de Camões
62 – Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
63 – Memórias de Um Sargento de Milícias – Manoel Antonio de Almeida
64 – Gramática Expositiva do Chão – Manoel de Barros
65 – Poesia Completa – Manuel Bandeira
66 – Em Busca do Tempo Perdido – Marcel Proust
67 – Macunaíma – Mario de Andrade
68 – Teatro – Marivaux
69 – Dom Quixote – Miguel de Cervantes
70 – Teatro – Moliere
71 – Ensaios – Montaigne
72 – Cartas Persas – Montesquieu
73 – A Carta Escarlate – Nathaniel Hawthorne
74 – Poesias – Olavo Bilac
75 – Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde
76 – Serafim Ponte Grande – Oswald de Andrade
77 – Poemas – Paul Eluard
78 – Poemas – Paul Verlaine
79 – Retrato do Brasil – Paulo Prado
80 – As Memórias – Pedro Nava
81 – Diálogos – Platão
82 – O Quinze – Rachel de Queiroz
83 – O Ateneu – Raul Pompéia
84 – Poesia – Rimbaud
85 – Raízes do Brasil – Sergio Buarque de Hollanda
86 – Teatro – Sófocles
87 – O vermelho e o negro – Stendhal
88 – Tristram Shandy – Sterne
89 – Gulliver – Swift
90 – A Montanha Mágica – Thomas Mann
91 – Guerra e Paz – Tolstoi
92 – Romances – Turguenev
93 – Conversa na Catedral – Vargas Llosa
94 – Poemas – Vicente de Carvalho
95 – Os Miseráveis – Victor Hugo
96 – Poesia – Vinicius de Moraes
97 – Eneida – Virgílio
98 – Orlando – Virginia Woolf
99 – Romances – Voltaire
100 – Teatro – William Shakespeare

Final do jogo de ontem: A volta do parafuso 7 x 6 Mrs. Dalloway

Foi um jogo muito bom, com argumentações surpreendentes (e inteligentes) da plateia, que participou bastante. Ao final, James e sua prosa cheia de armadilhas acabou vencendo no detalhe. Com escritores muito bons jogando no ataque, saíram muitos gols. A conversa com a Nikelen fluiu natural e eu, de estomago vazio, tive que diminuir a frequência de minhas idas ao copo de Coruja. Era necessária 100% de atenção ao papo. Tendo lido os livros há pouco, acho que visitamos o que há de mais importante em ambos e, como tomei contato com um bom número de críticos, sei que tivemos tempo de ser originais, reverentes, desrespeitosos e, é claro, pessoais. E, bem, ter a Nikelen como partner foi uma dilícia, viu Farinatti? Sentimos tua falta, mas fazer o quê? Alguém tem que cuidar das crianças enquanto a gente se diverte.


Lewis Carroll, o matemático e fotógrafo gago que inventou Alice

Lewis Carroll (ou Charles Dodgson), autor do fascinante, louco e engenhoso Alice no país das maravilhas

Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll, nasceu na Inglaterra em 27 de janeiro de 1832 e morreu em 14 de janeiro de 1898. Além de escritor, Carroll foi matemático, lógico, pastor anglicano e fotógrafo; além de obras de ficção e poesia, escreveu tratados matemáticos, livros de lógica, adivinhações e jogos; mas sua celebridade póstuma foi garantida por Alice no país das maravilhas (Alice in Wonderland), publicado pela primeira vez em 1865. Trata-se de um dos mais fascinantes, loucos e engenhosos livros já escritos. Há uma continuação – chamada Através do espelho e o que Alice encontrou lá (Through the Looking-Glass and What Alice Found There) – , que passou a ser rotineiramente publicada na parte final do volume de Alice.

Quando era professor de matemática e lógica na Universidade de Oxford, Carroll conheceu Henry Liddell. Liddell chegara à Oxford no mesmo ano que Dodgson, em 1856, trazendo consigo sua jovem família, os quais viriam a ter grande influência na vida e na carreira do autor. Dodgson tornou-se logo íntimo da esposa de Liddell, Lorina, e de seus filhos, principalmente das três irmãs Lorina, Edith e Alice Liddell, fonte de inspiração para a Alice do livro.

Embora as informações sejam escassas – os diários de Dodgson do período entre os anos de 1858 a 1862 foram perdidos – , os biográfos garantem que, no começo da década de 1860, Dogdson tinha o hábito de levar as crianças – primeiro o menino, Harry, e mais tarde também as três meninas — em passeios de barco a remo até Nuneham Courtenay ou Godstow.

A primeira edição de Alice

Foi numa destas expedições que, em 4 de julho de 1862, Dodgson criou o esboço da história de Alice. Tendo-a inventado no barco e contado de improviso para as crianças, ouviu Alice Liddell implorar para que a pusesse por escrito. Depois de mais de dois anos, em novembro de 1864, Dodgson presenteou Alice com um manuscrito, ilustrado pelo próprio autor, chamado Alice’s Adventures Under Ground ou As Aventuras de Alice sob a Terra. O manuscrito foi parar nos escritórios da editora Macmillan, que o aprovou imediatamente. Após alterarem o titulo para Alice among the fairies (Alice entre as fadas) e depois para Alice’s Golden Hour (A hora maravilhosa de Alice), finalmente chegaram a Alice in Wonderland (Alice no País das Maravilhas) e a autoria passou a um certo Lewis Carroll, pseudônimo que Dodgson costumava utilizar em seus escritos literários. As ilustrações de Carroll foram substituídas pelas de um profissional e, por sugestão do escritor Henry Kingsley, Alice foi publicado sem especificar se era destinado a adultos ou crianças.

A primeira adaptação de Alice no país das maravilhas para o cinema foi produzido no longínquo ano de 1903…

Uma das principais características de Alice no país das maravilhas é a de permitir tanto a abordagem infantil quanto a adulta. Tudo começa quando Alice, uma menina curiosa, mas cansada de sua vida monótona, vai atrás de um apressado Coelho Branco, caindo em um mundo diferente, divertido e nonsense. Lá, conhece personagens como os irmãos gêmeos Tweedledee e Tweedledum, o Gato Risonho, a Lagarta, toma chá com a Lebre Maluca e o Chapeleiro Louco e participa de um jogo de cróquete com a Rainha de Copas. Alice é mais uma espectadora surpresa das coisas que acontecem ao seu redor e seu encantamento efetivamente parece ser o de uma criança absolutamente desconcertada e feliz. Há grande literatura envolvida, muitas reviravoltas, jogos, propostas, experimentalismo e uma criatividade incontrável e wit. Após anos sendo parcialmente traduzido no Brasil como livro infantil — houve edições parciais de até 10 páginas! — , Alice só ganhou sua verdadeira grandiosidade quando foi traduzido, em 1980, pelo poeta Sebastião Uchoa Leite.

A edição da Summus com a tradução de Sebastião Uchoa Leite

Quem lê esta versão, nota não apenas as analogias e trocadilhos geniais, mas a fina ironia de perpassa o relato e principalmente um surpreendente sequência de situações que representam fatos da própria infância de Alice e da de todos nós ou, tal como explica Lenir Fátima de Castro, da UFF (Universidade Federal Fluminense), que representam “imagens mentais das várias situações vividas pela menina Alice — os diversos apuros, as diversas dificuldades”. Segundo ela, “os maiores atrativos são o ‘logos fantástico’, o nonsense e a capacidade que o autor tem de imprimir ao texto um encadeamento por imagens e sensações”. Além do mais, há um elaborado trabalho de linguagem que, assim como a simbologia, permanecera inapreensível ao leitor brasileiro antes da tradução de Leite.

No século XIX, a história foi um sucesso instantâneo e desde então consta entre os mais importantes textos da literatura universal. A obra tem sido objeto de filmes, histórias em quadrinhos e álbuns de colecionar, mas também tem sido lida e estudada por muitos adultos.

Outra Alice produzida para o cinema, esta de Walt Disney (1951):

O enorme sucesso comercial do livro mudou a vida de Dodgson em muitos aspectos. A fama de seu alter ego Lewis Carroll logo se espalhou ao redor do mundo e ele viu-se soterrado por cartas de fãs e atenções muitas vezes indesejadas. Por exemplo, a Rainha Vitória gostou tanto que sugeriu que o livro seguinte de Carroll fosse dedicado a ela. Carroll negou o fato, apesar das muitas testemunhas. A verdade é que seu próximo livro, um volume acadêmico de matemática intitulado Tratado Elementar sobre Determinantes, foi dedicado à Rainha. Um livro de matemática talvez não fosse exatamente o que ela desejasse…

A Alice mais recente, de Tim Burton:

No final de 1871, Carroll publicou uma sequência – Alice através do Espelho e o que encontrou lá. As cores menos vivas desta continuação provavelmente reflitam as mudanças na vida de Carroll. A morte de seu pai, em 1868, mergulhou-o numa depressão que durou alguns anos.

Lewis Carroll: dificuldades para pronunciar o próprio sobrenome

Charles Dodgson

Charles Dodgson foi um homem alto, surdo de um ouvido e “hesitante”. “Hesitação” era o sucedâneo utilizado por Dodgson para referir-se à sua gagueira. A gagueira de Dodgson era peculiar. Há a crença de que gaguejava somente na companhia dos adultos e seria fluente com crianças. Porém, logo após sua morte, seus biógrafos informaram que havia crianças que lembravam da gagueira e adultos que mal a perceberam. Dodgson parece ter sido o mais consciente dela, tanto que teria se autocaricaturizado como o Dodo de Alice, referência à própria dificuldade para pronunciar o sobrenome.

Não deixa de ser estranho que o gago Dodgson cantasse e se apresentasse para plateias em ambiente familiares, tendo sido um apreciado narrador de histórias. Também era ótimo em mímica e em responder charadas. Dizia que a chave para uma boa história era ter sempre em mente surpreender as pessoas.

As tais fotografias

Alice Liddell, a inspiração para o livro | Foto: Lewis Carroll

Carroll também foi fotógrafo amador e colecionava imagens de meninas entre 8 e 12 anos de idade. A nossos olhos, as fotografias parecem o mesmo que pareceram a Vladimir Nabokov, autor de Lolita e criador do personagem-narrador Humbert Humbert:

Eu sempre o chamo de Lewis Carroll Carroll porque ele foi o primeiro Humbert Humbert. Você viu as fotografias dele com as meninas? Ele fazia acertos com as tias e mães para fotografar as crianças. Mas nunca foi acusado, exceto por uma menina que escreveu sobre ele quando já era velha.

Vladimir Nabokov em entrevista para a Vogue em dezembro de 1966

O que se dizia na época era que, quando tinha oportunidade, gostava de desenhar ou fotografar meninas seminuas, com a permissão e presença de suas mães. “Se eu tivesse a criança mais linda do mundo para desenhar e fotografar”, escreveu, “e descobrisse nela um ligeiro acanhamento (por mais ligeiro e facilmente superável que fosse) de ser retratada nua, eu sentia ser um dever solene para com Deus abandonar por completo a solicitação”.

Os nus infantis foram destruídos ou devolvidos aos pais das crianças| Foto: Lewis Carroll

Por temor que estas imagens de crianças desnudas criassem embaraços para as meninas mais tarde, Carroll pediu que, após a sua morte, fossem destruídas ou devolvidas às crianças ou aos pais delas. As fotos eram presumidas como perdidas, mas, desde então, surgiram seis imagens. Na verdade, a atenção de Carroll como fotógrafo foca-se tanto em suas imagens de meninas como em estudos de homens, mulheres, crianças do sexo masculino e paisagens, assim como esqueletos, bonecas, cães, estátuas e árvores.

Após 24 anos, em 1880, Carroll deixou subitamente a fotografia. Menos de 1000 imagens sobreviveram ao tempo e à destruição deliberada. Ele afirmou que parou de tirá-las porque manter o trabalho no estúdio era difícil (ele usava o processo de revelação com colódio líquido) e os fotógrafos comerciais (que começaram a utilizar o processo de chapas secas na década de 1870) tiravam fotos com maior rapidez.

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Uma galeria de fotos de Lewis Carroll (pesquisa de Ramiro Furquim):

Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Alice Liddell | Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll
Foto: Lewis Carroll

Um local de Porto Alegre: a Palavraria, local para livros e convivência

Uma livraria que não é apenas um local de compra e venda | Ramiro Furquim/Sul21

Publicado originalmente neste sábado (7) no Sul21

Os três sócios da Palavraria (Vasco da Gama, 165, Bonfim, Porto Alegre, (51) 3268 4260) têm algo em comum além dos nomes. Carla Osório, Carlos Luiz da Silva e Luiz Heron da Silva eram amigos que tinham diferentes profissões. Carla era advogada; Heron, professor de português, e Carlos, bibliotecário. Mas eles queriam ter uma livraria que não fosse apenas um local de compra e venda. “Há nove anos, criamos um projeto do qual não nos afastamos até hoje”, diz Carla. Eles procuravam e não conseguiam encontrar uma livraria que fosse um lugar onde quem vendesse os livros soubesse o que estava vendendo, que soubesse conversar sobre eles e sugerir alternativas se a obra procurada não estivesse disponível. Se agregasse um café, melhor. “Boas livrarias existiam e existem, a Bamboletras, o Gustavo da Ventura e outros estão aí, mas nós queríamos não apenas o acervo e a compra interessante, mas outras coisas que tornassem o ambiente mais agradável”.

Carla: “Há nove anos, criamos um projeto do qual não nos afastamos até hoje" | Ramiro Furquim/Sul21

A mistura de livraria com café foi desaconselhada em todas as consultas, mas o trio insistiu em colocar a livraria no mesmo ambiente do café. “Tínhamos razão nisso”. Nas livrarias convencionais só se pode levar os livros da livraria para a cafeteria se os mesmos já estiverem comprados. Na Palavraria não. Nela, o cliente pode namorar com calma os livros a fim de estabelecer uma relação antes do casamento. “O que nos interessa é deixar o cliente à vontade num ambiente agradável”, diz Heron. E se o cliente, durante a abordagem, sujar o livro de café? Bem, é o ônus. “Logo que inauguramos, um amigo nosso derrubou uma xícara cheia sobre livros de arte… Sobre vários livros… É um risco que a gente aceita correr porque as vantagens são imensas. Via de regra, nossos clientes cuidam muito bem dos livros”.

O primeiro café que Carla fez foi para Flávio Koutzii. “Eu recém estava aprendendo a fazer café expresso e me resolvi me arriscar com ele. Ele começou a bebê-lo e eu perguntei como estava. A resposta foi: ‘O café está bom, mas alguns diriam que está morno como o dia de hoje…’”.

Hoje, o café é servido quente... | Ramiro Furquim/Sul21

Heron diz que os sócios sempre quiseram estar num negócio do qual gostassem. “Há trabalhos em que tu fazes o que tens que fazer e outros em que tu consegues fazer o que gosta, sem muito ‘tarefismo’”. Atrair um público que gostasse de literatura, política e arte era algo motivador. Os clientes entenderam o espírito da coisa. “Muita gente vem aqui para conversar, para conviver num local agradável. Claro, as pessoas falam sobre qualquer assunto, mas a efervescência, a perspectiva cultural é mantida, o que torna tudo mais interessante, mesmo que se trate de assuntos comuns como o futebol ou uma nova cor de batom. Não raro se encontram escritores numa mesa, editores noutra, leitores noutra, além dos que vêm apenas tomar café e dar uma folheada nas novidades”.

Ou seja, a livraria é o suporte, o café é um local de encontro e isso faz sentido do ponto de vista antropológico, pois as pessoas se entendem melhor comendo e bebendo. Dentro deste clima, a Palavaria tornou-se um local de fomento cultural, de incentivo, de divulgação, um local onde os produtores culturais, artistas, cientistas, etc. apresentam trabalhos, expõem ideias e fazem interações com o público interessado. “Provemos a livraria de uma discussão, de uma conversa constante, programática ou não. Então, desde o projeto – procuramos uma casa de dois pisos para que pudéssemos viabilizar uma sala de aula – , previmos oficinas literárias, leituras, bate-papos e música. Mantemos um discurso cultural formal e informal”, explica Carla.

Heron: "Não raro se encontram escritores numa mesa, editores noutra, leitores noutra, além dos que vêm apenas tomar café e dar uma folhada nas novidades”. | Ramiro Furquim/Sul21

Atrás da mesa onde conversamos, há um microfone e um pequeno palco, mas a atmosfera de proximidade não é quebrada, “É uma ideia pretensiosa manter um espaço assim, ainda mais que não temos marketing profissional”.

No segundo andar da Palavraria, há uma sala que serve às duas oficinas mantidas atualmente: uma de Charles Kiefer, voltada ao romance e ao conto, e outra de Ronald Augusto, voltada à poesia. A sala também serve para seminários, cursos e está disponível para ser utilizada. Aliás, o Sul21 realizou suas primeiras reuniões e foi em parte concebido na sala da Palavraria. “Temos planos de ampliar a programação. Provocamos pessoas a ministrar cursos aqui. O público é muito variado. O perfil das turmas da manhã e da noite são diversos e a tentativa é fugir daquilo que se encontra na academia.”

“Um espaço como o nosso está na contramão da história. Não somos um oligopólio, uma megalivraria, não vamos vender eletrodomésticos… Somos uma pequena livraria de bairro, segmentada, de rua, não temos nem estacionamento. A gente privilegia as relações pessoais, o relacionamento direto, o conhecimento dos livros dos quais nossos clientes gostam. Também sugerimos presentes tendo por base o gosto do presenteado. Aqui ninguém vai levar um romance político para quem gosta de algo intimista. Pessoalmente, ter abrido a Palavraria foi muito enriquecedor do ponto de vista humano e intelectual. Aprendemos muito mais a lidar com a diversidade do que antes da livraria”, explica Carla.

Heron sublinha que há uma troca, que com o tempo os clientes também passam a indicar livros. Mas revela: “Temos a preocupação de respeitar o perfil do cliente, de não sermos invasivos. Mas valorizamos o vínculo”.

"A gente privilegia as relações pessoais, o relacionamento direto, o conhecimento dos livros dos quais nossos clientes gostam." | Ramiro Furquim/Sul21

A Palavraria também costuma apoiar os autores gaúchos e os que frequentam a livraria. Mas tampouco esta é atitude destituída de conceito. “Faz falta uma crítica confiável que possa auxiliar no julgamento de nossa contemporaneidade, que procure fazer uma síntese do que acontece em termos de ofertas culturais nesta cidade e no estado. Queremos contribuir com isso divulgando tais trabalhos. Acho que não nos cabe julgar, cabe é divulgar ao máximo os autores locais para que as coisas deixem de ser avaliadas pelas conhecidas perversões provincianas do tipo não-li-e-não-gostei. É difícil julgar o novo, mas para que a arte se desenvolva e possa ser avaliada no futuro, ela tem de ser apresentada e vendida”, afirma Heron.

E, se o visitante quiser arranjar uma discussão civilizada na Palavraria, basta rebaixar gratuitamente um autor novo. “Deixemos que a história julgue se é bom ou não. Temos que tornar os autores lidos a fim de possam construir uma história. Nós colocamos o escritor desconhecido ao lado de Tolstói. Não nos damos autoridade para retirar um autor novo da vitrine”.

A bela Sylvia Beach Whitman existe, se mexe e até fala

Coisa típica de mulher. Depois de toda a babação por este post, uma das leitoras do grupo dos sete visitantes deste blog veio, de forma secreta e insidiosa, me perguntar pelo GTalk se ela seria mesmo bonita, inteligente, sexy e irresistível ou apenas… fotogênica. Típico. A leitora segurou a pergunta por algum tempo — só conseguiu ser traiçoeira e vingativa após quatro dias. Tocado pela preocupação dela, o editor do blog foi à caça de filmes que mostrassem Sylvia em formato “mais tridimensional”, com voz e, fundamentalmente, se mexendo. A vitória do editor do blog está plasmada abaixo.

(Interlúdio: a Nikelen Witter me mandou hoje este link sobre a Shakespeare and Company. Nele, mais filmes, mas agora sobre papai George, que aparece rapidamente, e seus livros).

O primeiro filme (abaixo) é o melhor deles em termos cinematográficos e… enfim.

Este aqui é totalmente amador, mas é um bom passeio pela livraria, mostra Notre Dame do outro lado da rua e serve como introdução para…

… uma longa entrevista bastante improvisada.

Aqui temos uma conversinha na porta da livraria…

Aqui sobre a Sylvia Beach de quem herdou o nome…

Aqui sobre projetos futuros…

 

Sabedoria?

Fiquei até triste já que costumo ler as introduções e até (pasmem!) dou uma olhada, apenas uma passada de olhos, pelos rodapés. Agora, quando o rodapé invade outra página, nunca leio. Questão de princípios. Não aceito a falta de classe do sujeito que não consegue inserir citações com elegância em seu próprio texto. Já os rodapés de traduções podem ser muito interessantes, úteis e divertidos, principalmente se forem de Marcelo Backes e ainda mais se forem as do livro Vidas Novas,de Ingo Schulze.

Roubado daqui.

Belos acervos ou Where the fuck are these books?

Passei pela Saraiva da Rua da Praia e subi a Ladeira. Passei também pela Ladeira Livros, Nova Roma, Beco dos Livros e Estação Cultura. Cinco livrarias. Perguntei sobre cinco livros relativamente novos. As respostas:

1. Uma duas, de Eliane Brum (livro de 2011): não tinha.
2. Um livro por dia, de Jeremy Mercer (2007): não tinha.
3. Hitch-22, de Christopher Hitchens (2011): não tinha.
4. Cartas a um jovem contestador, de Christopher Hitchens (2006): não tinha.
5. Graciliano : Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos (2011): não tinha.
6. Ribamar, de José Castello (2010): não tinha.
7. Anna Kariênina, de Leon Tolstói (2005), edição da Cosac & Naify: não tinha.

Claro que se fosse caminhasse 18 quadras até a Palavraria ou 8 até a Bamboletras, encontraria todos ou quase. Mas como ficam os mortais que não têm livrarias próximas de qualidade média? Conclusão: melhor esquecer e comprar na internet mesmo.

(À tardinha, pretendo passar na Saraiva de um grande shopping para fazer o mesmo teste. É caminho de casa. Informo depois o resultado).

Paris: Shakespeare and Company ou Morre George Whitman

Foto: Milton Ribeiro

Publicado com os devidos cortes — feitos por mim mesmo — no Sul21 na última segunda-feira. Copio aqui só para acrescentar algumas fotos mesmo.

Num fim de semana onde os obituários estiveram cheios de celebridades — Christopher Hitchens, Cesária Évora, Sérgio Britto, o Santos, Joãosinho Trinta, Václav Havel, Kim Jong-il — a morte de George Whitman passou quase em branco. Whitman, dono da mítica livraria Shakespeare & Company, localizada na margem esquerda do Sena, em Paris, morreu aos 98 anos em seu apartamento. Ele sofrera um derrame em outubro, mas recusou-se a ficar no hospital, exigindo ser levado para casa, que fica no andar de cima da livraria.

Fazer uma referência a uma livraria de Paris que só vende romances e ensaios literários em inglês pode parecer produto do mais puro elitismo, mas não pensamos ser o caso.

A livraria foi aberta em 1951 e — além de ser um extraordinário sebo e livraria — serve de abrigo a escritores em início de carreira para que tenham teto e/ou trabalho até que terminem seus livros. Lá também ocorrem chás literários e encontros com autores, quaisquer autores.

Whitman nasceu nos Estados Unidos em 1913, Viveu parte da infância na China. Mudou-se para Paris em 1948. Segundo ele, na época, uma bicicleta e um gato eram suas únicas posses. Em 1951, abriu a livraria Le Mistral, rebatizando-a como Shakespeare & Company em 1964, em homenagem a Sylvia Beach, proprietária da Shakespeare & Company original, responsável, por exemplo, pela primeira edição de Ulisses, de James Joyce. Quando falecera, em 1962, Sylvia Beach deixara para Whitman os direitos de uso do nome e livros.

James_Joyce com Sylvia Beach na Shakespeare & Co original (Paris, 1920)
Uma das estantes da livraria que fazem referência a Sylvia Beach | Foto: Milton Ribeiro

Imediatamente famosa no meio literário, a loja virou ponto de encontro de escritores como Arthur Miller, James Baldwin, Samuel Beckett, Anaïs Nin, Lawrence Durrel, William Burroughs, Gregory Corso, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e rota turística para os apaixonados pela literatura. No andar de cima da livraria vivia não apenas Whitman e família, mas diversos candidatos a escritores. Reza a lenda que, desde 1964, lá dormiram mais de 40 mil pessoas diferentes entre os livros. O pagamento pela hospedagem era escrever, ler e varrer a livraria. Alguns também atendiam no balcão e na cozinha. Outra lenda diz que Whitman aconselhava a saída de autores que estavam lá há mais de ano…

Whitman viva de acordo com o lema retirado de um poema de W. B. Yeats e que está pintado numa das paredes internas –“Não seja inóspito para estranhos pois eles são anjos disfarçados.”” (tradução de Débora Birck). Durante o final de semana, velas, flores e romances foram depositados na porta da Shakespeare, fechada pelo luto. Bilhetes de homenagens foram colados com agradecimentos e elogios.

Hoje, há prateleiras em torno da citação | Foto: Blog Hipsters & Company

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A Shakespeare and Company é o sonho do bibliófilo. Os livros — normalmente revelantes ou raros — podem ser vistos em toda parte: nas paredes, no meio da loja, nas escadas, em todo canto, sobrando pouco espaço para a circulação. Para completar, no espaço atulhado ainda há alguns locais com cadeiras e bancos para leitura. Também há um piano, sobre o qual pode ser lido um cartaz sugerindo que se toque apenas música erudita ou jazz. Os outros cartazes pedem para que os leitores nunca, jamais sejam perturbados, fato que faz com que o som da livraria seja um complicado contraponto de passos e sussurros. Na escada para o andar de cima, só uma pessoa passa de cada vez. Na verdade, a mais famosa livraria do mundo é apenas um pequeno caos onde se vende livros bem escolhidos, onde há cadeiras confortáveis e onde há a promessa de solidariedade. Nada de mega-ultra-hiper. O teto não é pintado há anos e é difícil imaginar como poderia sê-lo sem a retirada dos volumes. A atmosfera é tão acolhedora que o visitante tem a fantasia de que o conhecimento que está nos livros, sob alguma forma misteriosa, entra-lhe pelos poros quando está na livraria.

A livraria, que já era administrada pela filha de George, Sylvia Beach Whitman, seguirá ativa.

O que há bem na frente da Shakespeare? Ora, a Catedral de Notre Dame, mas, para alguns, há dúvidas sobre quem é mais catedral. Abaixo, mais fotos da livraria de Whitman:

A entrada principal
A porta auxiliar da livraria
O grande homenageado | Foto: Milton Ribeiro
Uma das vitrines que dá para a Catedral de Notre Dame
O caos interno | Foto: Blog Hipsters & Company
Sylvia Beach Whitman e seu pai, George
Do lado direito, vê-se uma nesguinha de porta. É onde morava George Whitman no segundo andar da Shakespeare and Co.
Eu estou fotografando a epígrafe de Daniel Martin, do grande John Fowles
A epígrafe de Gramsci | Foto: Milton Ribeiro
O Dario diz que os livros têm o poder de me deixar quieto. Sei lá, eu SOU quieto!
A localização da Shakespeare em relação à capelinha medieval de Notre Dame
Comparar Notre Dame com a Shakespeare… Piada, né?
Sylvia, a filha. 30 anos. Bonita, não?

Anotações parciais e não revistas para o jogo entre As Cidades Invisíveis e Ficções

No próximo sábado, dia 12, às 16h, serei um dos árbitros do jogo de fundo (?) da série Coliseu, entre As cidades invisíveis (Le città invisibili, 1972), de Italo Calvino (Santiago de las Vegas, Cuba, 1923 – Siena, Itália, 1985) e Ficções (Ficciones, 1944), de Jorge Luis Borges (Buenos Aires, Argentina, 1899 – Genebra, Suíça, 1986). O evento dar-se-á na Sala Pasárgada da Feira do Livro de Porto Alegre.

Acabo de reler ambos os livros e o verdadeiramente estranho é que comecei a traçar paralelos entre eles, coisa que supunha impossível. São muito diferentes, mas, lidos um logo após o outro, transparecem algumas semelhanças. Não que interesse, claro.

Escolhi para mostrar aqui a capa de uma edição portuguesa que estampa A Torre de Babel, de Pieter Brueghel, o Velho… Bem, é apenas uma pequena brincadeira que os leitores de Borges logo entenderão. Nesta leitura, realizada com muitas interrupções, o livro de Calvino me pareceu melhor do que na primeira vez, anos atrás. Se naquela oportunidade fiquei um pouco cansado pelo fato de cada um dos 55 relatos de pouco mais de uma página descreverem sempre uma nova cidade, desta vez não ocorreu nada disso. Mas antes devo explicar rapidamente do que trata As Cidades Invisíveis. No livro de Calvino, Marco Polo conta a Kublai Kan, imperador dos tártaros, sobre as cidades que conheceu no caminho para o Oriente. São 55 retratos de cidades obviamente inventadas, todas com nomes de mulheres. As narrativas são de beleza poética impar, tanto que me fizeram lembrar Baudelaire e seus Pequenos Poemas em Prosa. As narrativas são fantásticas e delicadas, com o autor as classificando em 11 grupos, As cidades e a memória, As cidades e o desejo, As cidades e os símbolos, As cidades delgadas, As cidades e as trocas, As cidades e os olhos, As cidades e o nome, As cidades e os mortos, As cidades e o céu, As cidades contínuas e As Cidades ocultas. As breves descrições (ou poemas descritivos) são aqui e ali intercaladas por diálogos entre Marco Polo e Kublai Khan. Mas Polo não descreve as cidades fisicamente, antes as humaniza e, de certa forma, as ama.

Marco Polo (1254–1324), célebre mercador, embaixador e explorador, foi um dos primeiros ocidentais a percorrerem a Rota da Seda. O relato de suas viagens pelo Oriente, foi durante muito tempo uma das poucas fontes de informação sobre a Ásia no Ocidente. Meu pai me obrigou ler o livro As Viagens de Marco Polo quando eu tinha menos de dez anos. Lembro que foi uma péssima experiência. Ainda há dúvidas se Marco Polo fez realmente tudo o que disse ter feito ou se simplesmente narrou histórias que ouviu de outros viajantes. Calvino não tem nenhuma intenção de verossimilhança e seu estilo tem toques de surrealismo. A figura do imperador Kublai Khan parece representar os limites do poder. Por mais territórios que domine, nunca dominará ou conhecerá tudo e todos. Por outro lado, Marco Polo não prescinde do sonho e da imaginação em suas descrições. Neste ponto, ele parece uma Sherazade não ameaçada, deixando fascinantes e mágicas suas cidades que, mais que locais de domicílio com esta ou aquela característica física, são locais surpreendentes, cheios de símbolos e sonhos.

Se em As Cidades Invisíveis há grandes ligações temáticas e de estilo entre as histórias, o mesmo não se pode dizer de Ficções, que é um livro de contos divididos em duas partes — O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941) e Artifícios (1944) — onde o próprio autor, em dois curiosos prólogos, destrói qualquer ilusão de unidade.

O problema de Ficções é que… é que… é que… é um livro que parece ter sido feito não apenas para leitores, mas para aquele determinado gênero de leitores preocupados com o fazer literário. Enormemente influenciado por Macedonio Fernández, o brilhante autor do Museu do Romance da Eterna, Borges nos mostra não apenas um portal de novas possibilidades, como a demonstração das mesmas. Tendo sido, até os anos 30, ensaísta e crítico, Borges passa a fazer ficções de leituras imaginárias. Os textos que antes provocavam seus comentários agora são imaginados. Mas isto é uma redução, pois não apenas de comentários sobre livros e mundos fictícios se fazem os contos de Ficções. Há grandes personagens — na maioria das vezes leitores — e belíssimas representações de outras camadas da realidade. Por exemplo, A Loteria de Babilônia pode receber as mais variadas interpretações — na minha opinião, por exemplo, ela representa a igreja. Há a representação do infinito em A Biblioteca de Babel e a da insônia em Funes, o Memorioso. Há uma notável argumentação sobre a forma moderna de ler textos em Pierre Menard, autor do Quixote — onde Borges nos demonstra como um mesmo trecho do Quixote pode ser lido de duas formas inteiramente diferentes. E há crimes, labirintos, violência, homens que formam outros homens em imaginações.

E, quando lemos tudo isso, parece-nos que tínhamos lido em algum lugar aquilo antes. Ou que vimos no cinema, sei lá. Pois não é culpa nossa estarmos abraçando o ícone. Pois a criação de Borges, vinda de Macedonio e lida por centenas de outros escritores desaguou em Italo Calvino, em Roberto Bolaño, em Georges Perec, em Sebald, em Vila-Matas. Pois ler Borges é como ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven ou os Concerto de Brandenburgo de Bach. É como ler as peças de Shakespeare e achar que o que se lê é um emaranhado de citações e situações conhecidas ligadas por um enredo. Parece que conhecemos tudo, ou que o texto que lemos já estava pré-instalado em nossa memória e sensibilidade, mas não se enganem, meus amigos, mesmo isso saiu de Borges.

Charlles Campos escreveu:

Ficções é uma obra fundadora. Não só na literatura hispânica, mas mundial. Semana passada mesmo li Claudio Magris, um borgeano treinado e muito afiado. Pode-se colocar Ficções entre as maiores realizações do século passado. Já o Cidades fica diminuído, apesar de ser ótimo; mas a base de comparação nos faz cair no pecado da relativização, e vermos o Cidade como uma obra entre tantas, que não gerou escola, não difundiu tanta influência, não é citada de forma tão enfática como os contos do argentino.

E o Farinatti respondeu:

Mas que clássico é esse! Dois dos meus favoritos. Veja lá o que vai fazer, hein Seu Ribeiro. Sei que não poderiam estar em mãos melhores mas… PqP como comparar esses dois livros infinitos, esses dois universos? Dois mundos criados por escritores cerebrais, de estilo igualmente despojado… Se o critério fosse a ideologia, seria fácil decidir. Mas, sendo a arte. Sei lá… O Sul, Funes, As Ruínas Circulares, Pierre Menard… Contra todas aquelas cidades-mulheres do Calvino.
Eu preguei os últimos parágrafos de As Cidades Invisíveis no meu mural. Ele é meu breviário político. Leio todos os dias… Ah… sei lá… surtei completamente com essa!

E o Vinícius matou a charada:

Uma ideia para próxima feira: Naked Girls Reading. Podia rolar no sábado. Confiamos em você, Milton.

Vamo pro jogo? É hoje o Sport Club Literatura de agosto (com o resultado)

Sempre na terceira terça do mês, é hoje, no StudioClio, às 19h30, a hora e a vez de mais uma sessão lúdica-desportiva-literária do Sport Club Literatura. Resenhistas apresentam, avaliam e confrontam obras ao vivo, no palco do instituto.

Pelada da noite (preliminar):

Leite derramado (2009), de Chico Buarque (1944)

5 X 1

Se eu fechar os olhos agora (2009), de Edney Silvestre (1964)

(Pô, pelada polêmica essa aí, não?)

Com Luiz Paulo Faccioli e Marcelo Frizon.

Clássico da noite (Série Coliseu):

Feliz ano novo (1975), de Rubem Fonseca (1925)

3 X 4

O vampiro de Curitiba (1965), de Dalton Trevisan (1925)

Com Alexandre Rodrigues e Pedro Gonzaga.

É hoje, 16 de agosto, terça-feira, das 19h30 às 21h.

R$ 15,00 (arquibancada) – plateia
R$ 20,00 (camarote) – mesas

24 Letras por Segundo — Aguardo vocês amanhã (4), no GNC Moinhos

Tive o privilégio de ter sido convidado para integrar o time deste curioso livro. A ideia é simples. Cada um de nós deveria criar um conto dentro do estilo de um diretor de cinema que fosse de nossa preferência. De cara eu escolhi Bergman, mas me pediram para me limitar aos vivos. Optei primeiro por Kusturica, porém rapidamente enviei outro e-mail perguntando se alguém já havia reservado Polanski. Tinha certeza que não o “ganharia”, mas o polaquinho tarado caiu no meu colo.

A história nasceu de um comentário-conto do Marcos Nunes, feito aqui no blog. Usei duas ou três fases dele, as iniciais; depois a coisa torna-se incontrolavelmente outra. Tive preocupação em citar vários filmes de Roman Polanski e isso foi o que me deu mais trabalho, juntar tudo sem quebras, deixando algum estranhamento pelo caminho. O ambiente era para ser o de O Inquilino (1976), filme que vi nos anos 70 e nunca mais… É o meu preferido dentre a filmografia do diretor. Trouxe alguma coisa da notória vida pessoal do cineasta — como não? — mas lembro de ter citado de passagem O Inquilino, O Bebê de Rosemary, Lua de fel, Chinatown, Frantic e Repulsa ao Sexo, além de passar por Sharon Tate e Charles Manson. Relendo hoje o texto, acho que poderia ter enviado ao Rodrigo Rosp a versão ampliada, mas lembro que me deixei seduzir pela alta velocidade da versão mais curta. Enfim.


Abaixo copio o post e as imagens do Samir Machado de Machado (<— VALE MUITO UMA VISITA E ESTE BLOG GENIAL)  a respeito do livro, que ficou muito bonito. Clique nas imagens para ampliá-las.

24 Letras por Segundo
Autores
: vários
Design da capa
: Samir Machado de Machado
Projeto gráfico interno
: Guilherme Smee
Editora
: Não Editora

O novo livro da Não Editora, a ser lançado na primeira semana de agosto, é uma coletânea de dezessete autores (este que aqui escreve incluso) em que cada conto é escrito ao estilo de um cineasta da preferência do autor.

A maior dificuldade encontrada na elaboração do projeto foi encontrar um ponto do qual se pudesse criar algo original a partir de um tema não só batido, como cheio de referências óbvias – pipoca, poltronas de cinema, rolos de filme, claquetes, todos os objetos pertencentes ao imaginário do cinema já foram suficientemente explorados em inúmeras propostas.

A solução encontrada veio quase por acaso: ocorre que, para toda uma geração, a experiência cinéfila se deu menos pela sala de cinema e mais pelo videocassete, para o qual há uma gama de referências pouco exploradas, do universo de uma locadora de VHS – as etiquetas de categoria, os rasgos na capa, os logos de som MONO e advertências de direito autoral, que nos levaram no sentido de fazer uma capa como se fosse uma caixa de VHS.

A idéia acabou explorada também no projeto gráfico do miolo, criado pelo Guilherme Smee: chuviscos, quadros de ajuste de imagem, pedidos para rebobinar a fita, páginas de abertura para cada conto simulando a tela de abertura de um filme ao estilo do diretor trabalho em questão, além de “fichas” reunindo informações do autor e do diretor homenageado que remetem às antigas fichas de video que algumas locadoras colavam no verso das caixinhas.