Por meses fui recebendo, quinzenalmente, capítulo por capítulo, este livro de Arthur de Faria. A razão disso é o fato de que o Sul21 estava publicando uma coluna do autor sobre a música de Porto Alegre. (No caso de Elis, uma música de localização indefinida, cujo espaço de influência foi muito além de Porto Alegre). Como contrapartida, arcávamos com o custo irrisório da revisão. O esquema era perfeito: ganhávamos um excelente colunista e ele se motivaria a retomar um projeto que estava meio parado. Deu tudo certo. Fomos muito longe no projeto, até que a editora Arquipélago interessou-se por aquele excelente material, especialmente pelos capítulos dedicados a Elis Regina, propondo sua publicação em livro. Então, Arthur pediu-nos que retirássemos do ar esses capítulos — na verdade duzentas e cinquenta páginas de texto –, o que foi feito.
É obvio que guardo uma relação de carinho com o livro. Eu mesmo o publicava pessoalmente, até porque tinha interesse no assunto. Creio até ter feito algumas correções, coisa de erros de digitação, nada demais. Lembro do trabalhão que me dava. Cada texto vinha com umas vinte imagens e outros tantos links. Mas a gente se entendia. Na página 251, dentro dos “Agradecimentos”, Arthur escreve que foi no Sul21 que a versão final foi formatada por ele.
Terminei a leitura do livro ontem. Além de ter achado excelente, cheio de informações exclusivas, tive aquela sensação de inteireza que a leitura quinzenal jamais daria. Recomendo a quem gosta de Elis e de música. Mas se você detestar Elis e odiar música, ainda sobrará uma grande história bem contada.
Surpreendente livro de 1961. Uma extraordinária novela sobre erotismo e morte, velhice e sensualidade. Mas acho melhor colocar logo um verbo nesta resenha… Esta clássica e notável obra do Prêmio Nobel de Literatura de 1968, Yasunari Kawabata (1899-1972) adentra, com grande sensibilidade e delicadeza, o complicado e praticamente ignorado tema do erotismo na idade da impotência ou, para sermos elegantes, da busca pela felicidade após a juventude. Esta obra serviu de inspiração a Gabriel García Márquez para o seu Memória de Minhas Putas Tristes (2004), bem como para a peça de 1983 The House of Sleeping Beauties, de David Henry Hwang. Kawabata criou um estranho estabelecimento. Uma espécie de puteiro onde homens de idade avançada podem passar as noites com jovens mulheres despidas, adormecidas. Sob forte medicação, elas jamais acordam e eles podem examinar cada detalhe de seus corpos, passar-lhes a mão, apalpar seus seios, beijar seus corpos, observar seus dentes, seus ressonares, hálitos e sonhar, relembrando seus passados com mulheres. São mulheres anônimas, escolhidas pela dona da casa e os velhos nunca concretizam o ato sexual, até devido à falta de vigor físico. Eram tempos pré-Viagra e a relação quase contemplativa permite ao autor elaborar densas e poéticas metáforas a respeito da finitude e do caminhar pra a morte. Afinal, a beleza e a juventude não obtêm serem roubadas pelo velho Eguchi, protagonista da novela, mas o contato com elas é consolador e sugestivo, apesar das vontades do velho. Eguchi vai à casa em cinco noites não consecutivas e o que lhe passa pela cabeça é esplêndida e poeticamente descrito por Kawabata, assim como cada gesto e movimento das moças durante seus sonos. Um livro curioso e pervertido, de doce e indecente poesia. Tudo na medida certa, com perfeito bom gosto. Recomendo muito.
Então você liga a TV e fica procurando um filme nestes cardápios que as emissoras à cabo oferecem atualmente. Quer um filme leve e divertido, mas fica meio perdido entre tantas comédias românticas. Acho que há várias muito boas, algumas excelentes. Hoje, vou dar a vocês duas dicas que penso serem irresistíveis. A primeira é O amor não tira férias. Duas mulheres, Cameron Diaz e Kate Winslet, vêm de grandes desilusões amorosas e acertam pela internet uma troca temporária de residências. Cameron vai para a fria Inglaterra e Kate para a ensolarada Califórnia. Tiram férias dizendo uma a outra que querem apenas calma e solidão para superarem suas crises. Mas dá tudo errado e quem aparece é o amor, claro. Afinal, trata-se de uma comédia romântica. A segunda é Hitch — Conselheiro Amoroso. No filme, Will Smith é um lendário, tecnicamente perfeito e anônimo cupido. Em troca de determinada taxa financeira, ele faz com que seus contratantes homens conquistem as mulheres de seus sonhos. Enquanto trabalha para o hilário Kevin James, um contador que se apaixonou pela socialite vivida por Amber Valetta, Hitch conhece a mulher que acredita ser a de sua vida, Sara (Eva Mendes). Apaixonado, Hitch decide conquistá-la, mas ele é muito melhor dando conselhos do que agindo em causa própria. Recomendamos.
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Então seu filho vai fazer vestibular na UFRGS e aquele livro aparece na sua frente. O nome é esquisito: Dançar Tango em Porto Alegre. Provavelmente isto aconteceu porque este livro de Sérgio Faraco é uma das leituras obrigatórias para o Vestibular da UFRGS de 2016. Quando seu filho ou filha deixar ele de lado, pegue porque é muito bom. São dezoito contos escritos por um autor que preza, antes de tudo, a palavra exata, a melhor expressão. A exigência artística de Faraco é muito alta, imaginem que ele produz uma média de apenas dois contos por ano, trabalhando e retrabalhando seus textos. Mas a leitura desses contos é fluente e o resultado é bom demais. São três os temas principais dos contos de Dançar Tango em Porto Alegre. Primeiro, o das histórias que acontecem na paisagem rural fronteiriça do Rio Grande do Sul, onde os protagonistas ficam no dilema entre manter os valores de um passado que se esvai e a aceitação da modernização. O segundo é o grupo de histórias sobre o final da infância, através das fortes experiências emocionais da adolescência e da iniciação sexual. Por último, há os contos sobre o indivíduo que, melancólico e solitário, não se adapta ao espaço urbano. Tudo isso contado por um escritor de primeiríssima linha que, ouso dizer, ocupa o posto informal de melhor escritor do sul do país. A edição da L&PM sai por R$ 21,90.
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Com cabelos brancos e alguma dificuldade com os agudos, Caetano Veloso e Gilberto Gil fizeram um tremendo show no Araújo Vianna. Para os dois artistas é simples, basta pinçar as canções mais representativas de seus vastíssimos repertórios. Somados, os dois artistas gravaram mais de 50 discos e CDs só de músicas inéditas. Com a dupla, o público pode recordar grandes sucessos que datam desde os anos 60. Mas houve um importante porém. Antes do show, muitos protestaram contra o valor das entradas. E com razão, pois os valores dos ingressos variaram entre R$ 150 — para quem aceitasse ficar em pé — e R$ 750. São preços talvez condizentes com a Europa, não com o Brasil. Para efeito de comparação, o concerto da dupla em Madri, no dia 21 de julho, tinha opções entre 130 e 215 euros, equivalentes a R$ 449 e R$ 742. Agora, depois do show, ninguém reclamou porque o que viu foi magnífico. Foram 26 canções de primeiríssima linha, quase todas de autoria dos dois amigos. Gil e Caetano mostraram-se imbatíveis nas artes do bem compor, bem cantar e melhor ainda em seduzir, mesmo que mal tenham dado boa noite ao público. E também mostraram-se, sem dúvida, imbatíveis na arte de bem envelhecer (*). A qualidade técnica do espetáculo acompanhou soberbamente os dois baianos. Quem viu, viu. Quem não viu, fica pra próxima. Se der pra ir.
Durante o velório de Mário de Andrade, Edgard Cavalheiro me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?”. Respondi: “Até a morte de Machado de Assis.”
Antonio Candido
Mário de Andrade (1893-1945) viveu apenas 51 anos, mas foi por mais de duas décadas uma figura central da cultura brasileira. Sua morte completou 70 anos na última quarta-feira (25), permitindo que sua obra entre em domínio público em 1º de janeiro de 2016. Em 2015, ele será o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece em julho, e receberá uma série de lançamentos.
Como dissemos, Mário foi, em seu tempo, figura central da vanguarda artística de São Paulo. Exerceu cargos públicos e foi também músico, mas ficou muito mais conhecido como poeta, ensaísta e romancista. Mário esteve pessoalmente envolvido em praticamente todas as áreas relacionadas com o movimento modernista de São Paulo. Seus ensaios cobriram grande variedade de assuntos e foram amplamente divulgados na imprensa da época. Mário foi o maior incentivador da Semana de Arte Moderna, evento ocorrido em 1922 que reformulou a literatura e as artes visuais no Brasil, tendo sido um dos integrantes do “Grupo dos Cinco” (os outros quatro foram Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade). Ninguém delineou melhor as ideias por trás da Semana do que o prefácio de seu livro de poesia Paulicéia Desvairada.
Mário de Andrade, nacionalismo e múltiplos projetos
O prefácio não fala do livro, mas sim de uma atitude geral perante a literatura. É uma espécie de manifesto poético em versos livres. Depois de fundar o “Desvairismo”, Mário afirma que luta por uma expressão nova, por uma expressão que não esteja agarrada ao passado. Outra das ideias expressas por Mário de Andrade neste Prefácio/Manifesto é que a língua portuguesa é uma opressão para a livre expressão do escritor no Brasil. Ele afirma a existência de uma “língua brasileira”, que seria das mais ricas e sonoras. Para reforçar esta ideia do brasileiro como língua, grafa propositadamente a ortografia de modo a ficar com o sotaque brasileiro. Deste modo, Mário de Andrade não apenas atava os parnasianos como era um nacionalista.
Também era contra a rima e todas as imposições externas. “A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas”. “Os portugueses dizem ir à cidade. Os brasileiros, na cidade. Eu sou brasileiro”.
Suas múltiplas atividades incluíam um meticuloso levantamento sobre a história, o povo, a cultura e especialmente a música do interior do Brasil, tanto em São Paulo quanto no Nordeste. Andrade também publicou ensaios em jornais de São Paulo, algumas vezes ilustrados por suas próprias fotografias, a respeito da vida e do folclore brasileiros. Entre as viagens, Andrade lecionava piano no Conservatório, havendo sido também aluno de estética do poeta Venceslau de Queirós, sucedendo-o como professor no Conservatório após sua morte em 1921.
Mário foi nota de Cr$ 500.000 em tempos de inflação
Em 1938, Mário de Andrade reuniu uma equipe com o objetivo de catalogar músicas do Norte e Nordeste brasileiros. Tinha como objetivo declarado “conquistar e divulgar a todo país, a cultura brasileira”. O âmbito do recém-criado — por ele, Mário — Departamento de Cultura foi bastante amplo: a investigação cultural e demográfica, além de publicações culturais.
Assim dito, dá a impressão de que estamos falando sobre o criador de um projeto de arte vitorioso — mas não é bem assim.
A capa do volume da Edições de Janeiro
Sua recém lançada biografia Eu sou trezentos – Mário de Andrade: vida e obra (Edições de Janeiro/Biblioteca Nacional), de Eduardo Jardim, mostra um homem que dedicou sua existência a um projeto artístico para vê-lo derrotado no fim da vida.
– Não à toa, ele vai ficando mais amargurado. O Mário morreu com 51 anos. Você pega as fotos dele e vê uma pessoa arrasada, um homem velho – afirma Jardim, professor aposentado do Departamento de Letras da PUC-RJ. – Os admiradores de Mário o apresentaram como um escritor consagrado, mas ele foi sacrificado pelo ponto de vista autoritário.
Depois de ser demitido do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, com o Estado Novo, Mário entra em um período de depressão. Enquanto esteve à frente do órgão, viu-se perto de concretizar seu credo modernista de uma arte social que servisse aos interesses coletivos do país. A reforma proposta por ele visava criar canais entre cultura erudita e popular, nacional e estrangeira, fundar uma arte para estabelecer vínculos comunitários.
Com a demissão — acompanhada de acusações de corrupção –, Mário mudou-se para o Rio, onde entregou-se à bebida, permanecendo afastado de amigos queridos que moravam na cidade, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Nomeado por Gustavo Capanema, passou a ocupar cargos menores no Ministério da Educação e Cultura, que seriam incompatíveis com quem já tivera centralidade na vida cultural do país. Mesmo assim, ele ajudou a fundar as bases do que hoje é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E sua visão de conservação do patrimônio cultural é usada até hoje.
— O Capanema quebra o Mário de Andrade. Bota ele no Rio como um zé ninguém, um funcionário que tinha que bater ponto. Você imagina um intelectual da estatura dele batendo ponto? No meio do Estado Novo, ele tinha um projeto antiautoritário, de inclusão – afirma Jardim.
O trabalho de Eduardo Jardim não analisa a sexualidade de Mário, a qual sempre teria intimidado seus biógrafos. A família o trata como “solteirão assexuado, dedicado exclusivamente ao trabalho”, mas Moacir Werneck de Castro, Mário de Andrade – Exílio no Rio, foi o primeiro a tratá-lo como homossexual. Tal fato não altera sua obra, mas até hoje há um surpreendente pudor em torno do assunto.
Ele foi o autor de dois romances: Amar, verbo intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). O primeiro causou um escândalo na época, uma vez que descreve a iniciação sexual de um adolescente com uma mulher madura, uma alemã contratada pelo pai do jovem. O segundo, desde sua primeira edição, é apresentado pelo autor como uma rapsódia, e não como romance. É considerado um dos romances capitais da literatura brasileira.
A fonte principal para Macunaíma vem do trabalho etnográfico do alemão Koch-Grünberg, conforme relata o próprio autor. Koch-Grünberg, no livro Von Roraima zum Orinoco, recolheu lendas e histórias dos índios taulipangues e arecunás, da Venezuela e Amazônia brasileira. A partir desses materiais, Andrade criou o que ele chamou rapsódia, termo ligado a tradição oral da literatura. O protagonista, Macunaíma, é chamado de “o herói sem nenhum caráter”. A frase característica do personagem é “Ai, que preguiça!”. Como na língua indígena o som “aique” significa “preguiça”, Macunaíma seria duplamente preguiçoso. A parte inicial da obra assim o caracteriza: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.”
Mas estamos perdendo tempo. Há um belo texto Antonio Candido — publicado no livro Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta: Mário de Andrade visto por seus contemporâneos (Nova Fronteira) — que dá uma noção muito mais rica de Mário de Andrade do que aquela poderíamos ambicionar.
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O Mário que eu conheci Antonio Candido
Acho que tomei conhecimento da obra de Mário de Andrade na antologia renovadora de Estêvão Cruz, adotada pelo meu professor de Português na 3ª série do curso secundário no Ginásio Municipal de Poços de Caldas. O primeiro livro dele que li deve ter sido Primeiro andar, comprado na excelente livraria da cidade, Vida Social, que além dos clássicos e das novidades, além de obras em francês e inglês, tinha essa coisa rara: alguns livros dos modernistas, sempre editados em pequenas tiragens e muito mal distribuídos. Foi a única livraria em toda a minha vida onde vi Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, cuja edição quase secreta foi de 500 exemplares. Em 1938, já em São Paulo, li Macunaíma. Em 1939 e 1940 li os outros livros de Mário.
Só em 1940 vim a conhecê-lo pessoalmente, numa visita que lhe fizemos Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes e eu. A partir dali tivemos relações cordiais mas meio cerimoniosas, embora nos víssemos com certa frequência, inclusive porque São Paulo era menor, com pouco mais de um milhão de habitantes e toda a gente se cruzava nas poucas exposições, livrarias e espetáculos.
No fim de 1942 comecei a namorar sua prima Gilda de Moraes Rocha. Ele sempre morou com a mãe, D. Mariquinha, e uma tia solteira, D. Nhanhã, da qual era afilhado. Em 1930 Gilda e a irmã, Maria Elisa, vieram de Araraquara, onde o pai era fazendeiro, estudar em São Paulo e ficaram residindo lá. O pai delas era sobrinho muito ligado a D. Mariquinha Andrade. Gilda tinha dez anos e se tornou uma espécie de pupila de Mário, morando na mesma casa até o dia em que se casou comigo, em dezembro de 1943.
Em 1941 fundamos a revista Clima e ele fez para o primeiro número, a pedido de Alfredo Mesquita, o admirável ensaio sobre a posição do intelectual naquele momento, “Elegia de Abril”. No número 8, janeiro de 1942, publiquei uma resenha da edição reunida das suas Poesias. Ele gostou e agradeceu. Antes de sua morte ainda publiquei uns três artigos sobre escritos dele.
Em 1942 foi fundada no Rio a Associação Brasileira de Escritores, a famosa ABDE, e logo se cuidou de criar a seção paulista. A finalidade era defender os direitos autorais e arregimentar os intelectuais contra a ditadura do Estado Novo. Lembro que assisti então a uma cena curiosa, que já contei em livro mas vale a pena repetir. Estávamos conversando sobre a fundação da seção paulista na sede provisória, um grupo grande, inclusive Mário de Andrade, quando chegou Oswald. Vendo Mário, com quem era brigado, parou na porta e disse: “Boa tarde a todos”. Todos respondemos, menos Mário. Então teve lugar um diálogo virtual entre os dois, que se comunicavam de certo modo sem se falarem. Oswald, que sempre quis sem êxito fazer as pazes com Mário, informou que estava chegando do Rio, onde era grande o entusiasmo pela associação e onde todos achavam que Mário deveria presidir a seção paulista, concluindo: “Esta é também a minha opinião.” Na conversa que se generalizou Mário disse, dirigindo-se ao grupo, que considerava de fato importante a ABDE, mas não aceitava ser presidente, achando que devia ser Sérgio Milliet. Esse diálogo sui generis continuou por algum tempo, até que Oswald soltou uma das suas piadas irresistíveis. Todos riram, Mário tentou ficar sério, não conseguiu e estourou também na risada. Afinal o presidente acabou mesmo sendo Sérgio Milliet. Mário ficou vice e eu, segundo-secretário.
Em janeiro de 1943 ele fez em sua casa uma leitura de “Café”, poema dramático que tinha acabado de redigir, estando presentes Gilda, Oneida Alvarenga, seu marido Sílvio, Luís Saia, um argentino de passagem, Norberto Frontini, e eu. Fiquei transportado ouvindo Mário ler. Hoje “Café” não me toca muito, mas lido por ele naquele momento me pareceu um exemplo extraordinário de literatura política, “participante”, como se dizia. Passados uns dias escrevi a ele uma carta longa manifestando a minha opinião. Ele respondeu com outra também longa, na qual explicava a gênese e a estrutura da peça. Nos anos de 1950 Décio de Almeida Prado a publicou no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.
A pedido de Otávio Tarqüínio de Sousa fui intermediário entre Mário e Frontini, que tinha vindo com o encargo de arranjar livros brasileiros para a coleção mexicana Tierra Firme, do Fondo de Cultura Económica, que estava começando. Ele queria que Mário escrevesse um livro sobre a música popular brasileira. Mário não quis, mas indicou Oneida, que fez uma obra fundamental sobre o assunto. Graças às gestões de Frontini, Caio Prado Júnior escreveu a História Econômica do Brasil para Tierra Firme.
Naquele janeiro de 1943 eu me tornei crítico oficial, chamado “crítico titular”, coisa que hoje não existe mais, da Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo, publicando todas as semanas um rodapé de cinco a seis laudas datilografadas tamanho ofício. Mário nunca comentou comigo artigos meus, mas acho que em geral os apreciava, porque uma vez me disse amavelmente: “Uma boa parada é artigo seu com caipirinha”, explicando que parada é como se designa no Nordeste uma boa combinação (goiabada com queijo, por exemplo), e contou: “Domingo (dia do meu rodapé) gosto de pegar o bonde, ir até o Largo Paissandu, tomar uma batida no Café Juca Pato, comprar o jornal e vir de volta lendo seu artigo”. Mas pelo menos uma vez criticou severamente um deles, de fato bastante errado, sobre mestiçagem e literatura, e mais tarde, quando Lauro Escorel começou a sua notável e infelizmente breve atuação como crítico titular d’A Manhã, do Rio, me disse rindo: “Tome cuidado, mineiro. Tem um paulista no Rio que está passando na sua frente.”
Eu costumava escrever os artigos à mão e ir à casa onde Gilda morava com as tias-avós para ela os datilografar. Eu tinha máquina, mas era um pretexto para vê-la. Às vezes, enquanto eu ditava, Mário entrava para pegar um livro e ouvia alguma coisa. Certo dia eu estava ditando um artigo sobre o novo romance de Oswald, Marco zero. Para me preparar, tinha lido a obra anterior dele e achara certos livros muito ruins. Aliás, sempre achei a obra de Oswald admirável numa parte e ruim na outra, e ele chegou a me atacar feio por escrito devido a isso, mas depois fizemos as pazes e ficamos bons amigos. Naquele momento eu estava comentando Estrela de absinto [de Oswald], quando Mário entrou e eu disse que o achava péssimo. Mário não retrucou, encontrou o livro e, saindo, virou-se da porta e disse com um sorriso meio sem graça: “Eu acho muito bom.”
Ainda nesse ano de 1943 dei uma grande mancada. Ele me pediu para ler um seu relato de viagem, O turista aprendiz, dizendo que não estava certo se valia a pena publicar e queria a minha opinião. Eu estava para casar, sobrecarregado de trabalho, fazendo a tradução de um enorme livro americano para juntar dinheiro, de modo que só dei uma olhada no texto e acabei não lendo, apesar do sentimento de culpa por essa desconsideração a um escritor da estatura de Mário, que tinha confiado em mim. Afinal chegou o dia do casamento. O civil foi na casa onde moravam a noiva e ele. Fui para lá com o manuscrito e quando entrei ele vinha descendo a escada. Entreguei-o dizendo que tinha achado muito interessante e depois conversaríamos a respeito…
Em 1944 resolvi fazer concurso para a cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, na qual eu era assistente de Sociologia. Naquele tempo o sistema era diferente: abria-se a inscrição e qualquer pessoa que tivesse diploma superior podia concorrer. Eu era licenciado em Ciências Sociais, mas tinha vontade de passar para Literatura e pensei: “É uma oportunidade. Não vou ganhar a cadeira (tinha 25 anos), mas, se for aprovado, fico livre-docente, o que me dá o grau de doutor em Letras, e assim poderei um dia ensinar Literatura na Universidade” (o que de fato aconteceu anos mais tarde).
Para a tese resolvi pedir sugestões a Mário. Ele me escreveu então uma carta sugerindo vários temas, visivelmente de cunho acadêmico, tendo em vista a situação convencional. Acabei não aceitando nenhum, mas o interessante foram certas opiniões dele na ocasião.
O diretor da Faculdade (então de Filosofia, Ciências e Letras) era um biólogo eminente e muito culto, André Dreyfus, que insistiu com Mário para concorrer, mas ele não aceitou a sugestão. Pediu então que ao menos fizesse parte da banca, e ele recusou também isso. A mim, disse que detestava concursos, não acreditava na sua eficiência como critério de seleção e se tivesse aceitado seria para me dar o primeiro lugar (éramos seis concorrentes). Eu estranhei esta falta de objetividade e ele voltou ao argumento, dando um exemplo: só aceitara participar da banca de um concurso de História da Música, no Rio, porque decidira previamente votar num dos concorrentes, Luís Heitor Correia de Azevedo, por saber que era o melhor, independente de provas. E reiterou que achava detestável a situação de concurso e seu ritual. Eu disse que gostava, achava bonito. Ele comentou rindo: “Ô mineiro arrivista!” Afinal não chegou a ver o concurso, que começou cinco meses depois de sua morte.
Mário costumava ir à Livraria Jaraguá, na Rua Marconi, no mesmo lugar onde houve depois outra com o mesmo nome, mas esta não tinha nada a ver com a primeira, que era encantadora, com uma sala de chá no fundo. Mário saía do Patrimônio Histórico, quase em frente, e ficava lá batendo um papo. Para explicar a cena engraçada de que participou um dia na Jaraguá, abro parêntese.
Uma vez fiz uma brincadeira literária. Tendo dedicado um rodapé a certa tradução de Maiakovski para o espanhol, publicada em Buenos Aires, pouco depois escrevi em Clima, com pseudônimo de Fabrício Antunes, um artigo contra o meu, dizendo que o sr. Antonio Candido não tinha entendido nada. É que, comparando a tradução de um poema que em espanhol era “La nube en pantalones” com a francesa, intitulada “L’homme nuage” (O homem nuvem), dei um palpite: a tônica na tradução espanhola parecia ser a nuvem, vestida de calças, quando na verdade se tratava de homem se sentindo nuvem. A tônica se deslocava, portanto, do natural para o humano. Era um jogo mental para me divertir, mas então aconteceu o inesperado: uma senhora russa me telefonou entusiasmada, dizendo que Fabrício Antunes obviamente sabia russo e tinha razão, e me pedia para apresentá-la a ele. Eu lhe disse que se tratava de um rapaz muito esquisito do Sul de Minas, caixeiro viajante que passava raramente em São Paulo, de modo que talvez custasse a voltar, mas quando viesse eu certamente os aproximaria. Meus amigos da revista sabiam de tudo, é claro, e Gilda contou o caso a Mário, que se divertiu muito.
Ora, uma tarde estávamos na Livraria Jaraguá ele e eu quando entra Lívio Xavier, intelectual de grande saber, e me pergunta quem era esse Fabrício Antunes que certamente sabia bem russo. Repeti a história do rapaz sul-mineiro e Mário, da cadeira onde estava, vendo o desenrolar da conversa, tentou segurar o riso, mas não conseguiu. Felizmente, Lívio não percebeu.
Em 1944 veio a São Paulo um argentino chamado Luís Riessig, que fundara em Buenos Aires uma instituição interessante, o Colégio Livre de Estudos Superiores. Ele escreveu a Mário dizendo que gostaria de conversar sobre a possibilidade de fundar um igual aqui. Mário me pediu para participar da conversa e marcou encontro às duas da tarde em frente ao Mappin, na Praça Ramos de Azevedo. Cheguei pontualmente, antes do argentino, e vi que Mário estava aborrecido, por um motivo que logo explicou mais ou menos assim: “Agora no almoço, em casa, houve uma cena desagradável. De vez em quando, para brincar, eu espicaço minha mãe contra minha tia. Minha mãe fica irritada, briga com minha tia, eu aí entro no meio, fico do lado desta e sou bruto com minha mãe. Foi o que aconteceu hoje. Não sei por que faço isso. Complexo de Édipo não é, porque já me auto-analisei…”
Em janeiro de 1945 houve em São Paulo o I Congresso Brasileiro de Escritores, verdadeira arregimentação dos intelectuais contra a ditadura. Foi um acontecimento memorável, com delegações maiores ou menores de todos os estados. Mário estava na Paulista, com Oswald, Sérgio Milliet, Monteiro Lobato, Fernando de Azevedo e outros, num total de 26, dos quais eu era o caçula. Mário foi assíduo, vestido sempre de branco no calorão que fazia, mas calado, sem participar dos debates nem das comissões.
Durante o Congresso houve um grande jantar na casa de Lasar Segall. Eu não fui, mas Paulo Mendes de Almeida foi e me contou uma cena divertidíssima. Estava lá um jovem escritor hispano-americano que se pôs a dizer coisas de um complicado pedantismo sobre a poesia a partir de Rimbaud, segundo ele o poeta supremo. Paulo, para o descartar, disse que quem entendia de Rimbaud era Rubens Borba de Moraes, a quem o rapaz se dirigiu com a mesma parolagem abstrusa. Rubens, por sua vez, tirou o corpo dizendo que cuidara de poesia na mocidade, mas agora era apenas bibliotecário, e passou a bola adiante, dizendo que bom conhecedor de Rimbaud era Mário de Andrade, ali presente. O rapaz delirou, bradando: “Mário de Andrade, el grande Mário de Andrade está acá? Quiero conocerlo, quiero conocerlo!” “É aquele ali”, disse Rubens mostrando. O rapaz se precipitou excitadíssimo, repicando o estranho jargão, que Paulo Mendes reproduzia na chave do bestialógico. Mário, já meio no pileque, exclamou: “Quanta besteira! Olhe aqui moço, poesia é safadeza! A gente quer pegar uma mulher, não pode, aí faz um poema. E comigo é na piririca!” Atarantado, o rapaz perguntava ansioso para os lados: “Que es esto de piririca? Que es esto de piririca?“
Nesse Congresso Paulo Emilio e eu provocamos involuntariamente duas explosões de Mário. A primeira foi devida ao seguinte: Paulo alertou a mim e a outros que determinado intelectual, não sendo eleito por São Paulo, fora incluído meio de contrabando na delegação de outro estado, o que era irregular e nos contrariava politicamente. Redigiu-se então um protesto e fomos pedir a adesão de Mário, que ficou danado e recusou. Nós procuramos argumentar que era algo politicamente importante, aí ele estourou, dizendo que por isso é que não queria saber de política, que era uma indignidade e não assinava mesmo. Tremendo de raiva, foi se juntar a um grupo próximo formado por Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e, se não me engano, José Lins do Rego. Trinta e sete anos depois, em 1982, pouco antes e morrer, Sérgio Buarque me disse, como quem quer tirar um peso da consciência, que precisava confessar uma coisa: certa vez tinha me censurado com Caio Prado Júnior e Mário de Andrade. Percebendo do que se tratava, não o deixei explicar, dizendo: “Eu sei. Foi no I Congresso de Escritores e vocês tinham toda a razão”. De fato, nós estávamos agindo mal por birras políticas.
A segunda explosão foi no encerramento do Congresso, no Teatro Municipal, onde Oswald fez um discurso notável, no qual lançou a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República. As oposições achavam que era cedo, o Partido Comunista não queria precipitação, mas nós socialistas independentes e também muitos liberais aplaudimos, porque era uma boa pancada na ditadura em declínio. Além disso, Oswald fez troças divertidas com a alta sociedade de São Paulo, provocando protestos violentos. Todo o mundo acabou berrando e lembro de um senhor agranfinado perto de mim que enfrentou as vaias (inclusive minhas) com muita coragem, parecendo pronto para dar bengaladas. Na saída, em frente do teatro, Paulo Emílio e eu fomos falar com Mário e gabamos o discurso de Oswald. Ingenuidade nossa. Ele perdeu a calma e falou exasperado que não reconhecia a Oswald autoridade moral para falar mal da sociedade paulistana. Nós ficamos passados e fomos tratando de dar o fora.
Isso foi no fim de janeiro de 1945. No dia 17 de fevereiro Gilda e eu recebemos um telegrama de Mário (não tínhamos telefone, coisa dificílima naquele tempo), convidando para irmos no dia 20 conhecer Henriqueta Lisboa, que viria a São Paulo e estaria presente na festinha de aniversário da sobrinha dele, em sua casa. Fomos, e em dado momento eu estava conversando com ele e seu irmão mais velho, Carlos de Moraes Andrade. Naturalmente ele tinha ficado constrangido por ter tido aquele rompante na porta do Municipal e perguntou risonho se eu o tinha levado a sério, alegando que era simples brincadeira. Eu fingi que acreditei e ele passou a manifestar muita amargura, dizendo já estar cansado de sofrer injustiças e ser atacado. Eu observei que não tinha razão, porque poucas pessoas eram mais estimadas e admiradas. “Eu é que sei”, disse ele bastante amargurado, e seu irmão o apoiou citando um dito popular: “Pimenta não arde no olho do vizinho.” Mário prosseguiu na mesma craveira, dizendo-se convencido de que o intelectual não devia se meter em política, que o recente Congresso lhe tinha ensinado isto e que a partir daquele momento se fecharia na torre de marfim. O que tivesse de dizer como cidadão diria da torre de marfim, não dentro de algum partido ou movimento.
Isso foi no dia 20 de fevereiro. No dia 25, morreu. Luís Martins foi nos avisar no começo da noite e Gilda e eu fomos para o velório. No dia seguinte vi uma cena impressionante: os Irmãos do Carmo, que ele fora e talvez nunca tenha deixado formalmente de ser, vieram rezar alinhados dos lados do caixão. Eram uns oito com o hábito, batina marrom e um manto comprido de lã creme.
Durante o velório, Edgard Cavalheiro, escritor bastante em voga naquele momento, autor de biografias de Fagundes Varela e de Monteiro Lobato, me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?” Respondi: “Até a de Machado de Assis.” “Pois é exatamente o que estou pensando”, disse ele. “Machado de Assis em 1908 e Mário de Andrade agora”. O enterro foi no Cemitério da Consolação, muito concorrido, e impressionava a tristeza profunda de todos, como se todos sentissem uma espécie de enorme vazio na cultura do Brasil.
Uns dias depois fui ao escritório do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional e Luís Saia, delegado deste em São Paulo, me disse com os olhos espantados: “Tem um envelope com o seu nome na mesa do Mário”. Depois da morte de um amigo, coisas desse tipo parecem mensagem, e, meio perturbados, fomos abri-lo. Lá estava, com a letra de Mário no envelope grande: “Para o Antonio Candido”. Eram alguns poemas de Lira Paulistana, inclusive a versão final de “Meditação sobre o Tietê”, datada de poucos dias antes.
Naquele ano de 1945 preparei a primeira edição de Lira Paulistana e do Carro da miséria, pois Mário queria que saíssem em tiragem independente, antes de serem incorporadas às Obras completas que o editor José de Barros Martins estava publicando. Editei-os com um título que contrariou Oneida Alvarenga e Luís Saia, conhecedores mais seguros das intenções do amigo: Lira Paulistana seguida de O carro da miséria. Segundo eles, deveria ser: Lira Paulistana e O carro da miséria. Preparei também a edição de Contos novos, que só saiu em 1947, salvo engano. A Nota do Editor, anônima, foi escrita por mim.
Não lembro em que altura (fim de 1945, começo de 1946?) foi inaugurado o busto dele por Bruno Giorgi no jardim da Biblioteca Municipal, onde está até hoje. Na inauguração falaram Sérgio Milliet, diretor da Biblioteca, e Carlos de Moraes Andrade em nome da família. Oswald compareceu emocionado e discreto. (Não tem qualquer fundamento o boato segundo o qual teria escrito palavras desagradáveis no pedestal.)
Decidiu-se então promover a leitura pública de “Café”, ainda inédito, e eu achei que a pessoa indicada era Carlos Lacerda, que fora muito amigo de Mário, tinha uma bela voz abaritonada e viera para a inauguração do busto. Falei com ele e ele aceitou, mas foi precipitação minha, porque Oneida Alvarenga e Luís Saia, discípulos queridos muito chegados a Mário, vetaram, alegando que este desaprovaria totalmente as atitudes políticas que Carlos vinha assumindo, que aliás eu também reprovava. Muito sem graça, tive de lhe dizer que era melhor eu próprio ler. “Já percebi”, disse magoado. “É coisa da Oneida e do Saia”. Assim, em vez da bela voz de Carlos, “Café” foi comunicado ao público na minha, fraca e abafada.
Mário de Andrade era um homenzarrão feio e simpático, muito cordial, com um riso bom que quando virava gargalhada sacudia o seu corpo inteiro. Era certamente um feio charmoso que despertou várias paixões. Vestia-se bem, usava uns chapéus de aba meio larga enterrados na cabeça e calçava sapatos sob medida da Sapataria Guarani, a mais cara de São Paulo, sempre no modelo escocês furadinho de bico afinado. Os pés e as mãos eram enormes e ele me parecia ter pouca naturalidade, mas com os íntimos devia ser diferente.
Um dos seus hábitos mais constantes era ir, geralmente à noite, tomar chope no Bar Franciscano, que ficava na Rua Líbero Badaró perto de uma esquina da Avenida São João, com fundo envidraçado sobre o Vale do Anhangabaú. Sentava numa mesa redonda de canto, perto do balcão, e ia consumindo sucessivas “pedras”, que são canecas grandes de louça clara. Os amigos sabiam que podiam encontrá-lo no Franciscano e ele costumava marcar encontros lá, por vezes à tarde. Foi de tarde que me convocou uma vez para conhecer João Alphonsus, que estava de passagem e me pareceu de pouca fala. Outra tarde de 1942 fui conhecer Fernando Sabino, que ainda não tinha vinte anos e já publicara um livro de contos: Os grilos não cantam mais. Ele e Mário admiravam os romances de Otávio de Faria, de certo porque estes abordavam problemas da adolescência católica que lembravam os deles. Eu os achava ruins e nesse encontro Fernando os defendia enquanto eu os atacava. Ele quis conhecer as minhas razões e eu disse que eram várias, inclusive o fato de Otávio escrever prolixamente mal e os seus romances não questionarem a ordem burguesa, concluindo: “Eles não tiram o sono de Roberto Simonsen” ― figura de proa da alta burguesia industrial de São Paulo. O meu sectarismo elementar era devido ao período de militância bastante radical que eu estava vivendo. Mário escutava, risonho.
Em 1943 Jorge Amado publicou Terras do Sem Fim, que foi uma inflexão na sua obra, por ser menos panfletário e mais compreensivo, inclusive humanizando representantes da oligarquia agrária. Gostei muito e escrevi um artigo favorável, levando-o como de costume para Gilda bater à máquina. Vendo do que se tratava, Mário me disse: “Quero ver se você percebeu uma coisa em Terras do Sem Fim“, mas apesar da minha curiosidade, não explicou o que era. Mais tarde refiz a pergunta e ele disse com certa ironia: “Este livro não tira o sono de Roberto Simonsen (**)…”.
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Antonio Candido é professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Foi professor de Literatura Brasileira da Universidade de Paris (1964-1966) e Professor Visitante de Literatura Brasileira e Comparada da Universidade de Yale (1968). Recebeu vários prêmios, entre os quais Machado de Assis (da Academia Brasileira de Letras), Almirante Álvaro Alberto, Moinho Santista, Jabuti, Camões e Alfonso Reyes. Entre os seus principais livros estão o clássico Formação da Literatura Brasileira (1959), Tese e Antítese (1964), Os Parceiros do Rio Bonito (1964), Literatura e Sociedade (1965), O Discurso e a Cidade (1993).
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(*) Com informações da resenha de Maurício Meireles, publicada em O Globo.
(**) Político, economista e escritor, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).
Usuária de ônibus em Cluj-Napoca. Passagem gratuita.
Victor Miron está trabalhando para fazer com que as pessoas leiam mais livros. Recentemente, ele convenceu o prefeito de Cluj-Napoca (Romênia), Emil Boc, para aprovar uma lei que iria permitir que qualquer pessoa que lesse um livro no ônibus pudesse ser liberado do pagamento da passagem.
Ele levou um ano persuadindo a prefeitura e chegou lá. A partir do mês de junho, os passageiros que foram transportados lendo um livro não pagaram a tarifa de ônibus em Cluj-Napoca. Importante: o livro deve ser lido durante todo o percurso.
Miron pretende continuar a incentivar mais pessoas a lerem em espaços públicos, privados e em qualquer lugar. O ativista está atualmente trabalhando com seus amigos em outras campanhas relacionadas à literatura. Um dos quais é chamado Bookface, um programa para que as coloquem um livro como imagem de perfil do Facebook. Aqueles fizessem isso, receberiam descontos em incluindo livrarias, consultórios dentários e até mesmo salões de beleza.
E ele diz: “Nosso maior desafio agora é convencer Mark Zuckerberg. Estou cruzando os dedos”. Miron também quer criar em 23 de abril um feriado internacional: o Dia Mundial do Livro.
Na tarde de 3 de março de 1936, após passar a noite anterior revisando o romance Angústia, Graciliano Ramos entregou o manuscrito para sua datilógrafa, Dona Jeni. Depois, às 19h, foi levado de sua casa, preso. O motivo era a suspeita – jamais formalizada – de que o escritor tivesse conspirado no malsucedido levante comunista de novembro de 1935. Preso em Maceió, Graciliano foi demitido do serviço público e enviado a Recife, onde embarcou com outros 115 presos no navio “Manaus”. O país estava sob a ditadura Vargas. No período em que esteve preso no Rio, que durou até janeiro de 1937, passou pelo Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção e depois foi mandado para o presídio de Ilha Grande, onde passou a célebre temporada descrita em Memórias do Cárcere.
“Haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana”, escreveu Graciliano em Memórias do Cárcere, referindo-se ao nazismo e ao fascismo que tanta admiração causava ao governo brasileiro. Foi uma época terrível. Ou nem tanto. Afinal, ele esteva preso com Aparício Torelly, o Barão de Itararé, que garantia que tudo ia muito bem… No Capítulo 5 da Segunda Parte do livro, ainda descrevendo o que passou no Pavilhão dos Primários, há a comprovação de que a convivência com o Barão era bem mais efetiva que qualquer autoajuda de nosso tempo:
O Barão com o jornal que escrevia, “A Manha”
Apporelly sustentava que tudo ia muito bem [no Pavilhão dos Primários]. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.
Angústia foi lançado no mês de agosto de 1936, durante a prisão de Graciliano Ramos. Naquele ano, o autor recebeu o Prêmio Lima Barreto, conferido pela Revista Acadêmica numa atitude encarada como desafiadora do regime.
Escrito após Caetés e São Bernardo, Angústia foi o terceiro romance de Graciliano. Nele, radicaliza-se seu estilo seco e contundente, assim como o foco na produção de uma literatura que una a ética ao fazer literário. Trata-se de um romance de tom confessional que acompanha em primeira pessoa a vida de Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, tímido e solitário, que vive num bairro distante em uma casa caindo aos pedaços, acompanhado por ratos e desespero. Da mesma forma que em seus dois romances anteriores, Caetés e São Bernardo, também narrados em primeira pessoa, Graciliano apresenta personagens em grande conflito interno, buscando explicações sobre como agir e motivos para os acontecimentos que o atingem.
Graciliano: seco, direto, objetivo, estarrecedor
Além de trabalhar o dia todo, Luís completa o orçamento escrevendo, à noite, textos por encomenda para um jornal. Após curar-se de uma doença, retorna ao trabalho. Num fluxo de consciência escrito de forma seca e direta, Luís tenta entender seu passado com tamanha fúria que somos obrigados a lembrar que, na verdade, o existencialismo não começou apenas com Sartre, Camus e seus grupos após a Segunda Guerra Mundial.
Luís detestava todos e principalmente a si mesmo. Insatisfeito e pobre, frustra-se por sua vida inútil. Entregando-se à análise de sua vida, repassa-a desde a infância. O avô é um bêbado decrépito; o pai é um preguiçoso que vivia lendo e do qual herdara várias características, como o gosto pelas letras. Porém Luís, em crise, não consegue mais escrever, assediado por estes fantasmas e pela onipresente angústia.
Ilustração de Marcelo Grassmann para Angústia
Um dia, conhece a loira Marina. Pede-a em casamento, usando todas as suas economias para um enxoval. Porém, o gordo e eufórico Julião Tavares, com mais dinheiro, ousadia, lábia, posição social e, sobretudo, despreocupação, conquista Marina, que passa a desconhecer Luís. Humilhado, ele passa a desejar a própria morte. Quando vê que Julião abandonou Marina e fica sabendo que ela fez um aborto, cobre-a de ofensas em plena rua. Completa a obra fazendo mais bobagens. Todo o sofrimento e humilhação desaparecem e Luís passa a sentir-se forte, capaz e ativo. Porém, logo volta a angustiá-lo com o temor de ser descoberto. Não vai mais trabalhar, procurando destruir os indícios do que fez. Lava tudo e lava-se. A água tem importante papel no romance; é a purificação que percorre os canos sujos, conhecidos dos ratos. Mas Luís permanece em desvario, aniquilado, sufocado pela angústia, como o Raskonikov de Dostoiévski.
É curioso que um livro dedicado a um profundo estudo da frustração receba tantas homenagens e seja tão festejado. Afinal de contas, falamos de uma obra sem saída, cruel e violenta, cheia de amargura. Por que Angústia é tão importante? Porque é notavelmente bem executado; porque pela primeira vez na literatura nacional há um monólogo interior que parece não dirigir-se a um leitor, mas a si mesmo; porque Luís é muito nordestino, brasileiro e universal; porque comprova brilhantemente a célebre frase de Tolstói: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. A essência do romance é Luís. Quase não há diálogos e as cenas parecem ser jogadas com certo descontrole pelo narrador, como se transbordassem dele. É um monólogo-pesadelo. “Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos” – disse Graciliano em discurso no jantar de jantar de seus 50 anos, em 1942, referindo-se a seus três primeiros livros — “porque não sou Paulo Honório, não sou Luís da Silva, não sou Fabiano”.
Mas talvez o homem sério e duro que foi Graciliano se envaidecesse da permanência de seu personagem.
(Entrevista concedida ao Clarín no começo de 2007)
El calor no cede en estos primeros días de 2007. Ni siquiera a las 10 de la mañana, hora pautada para el encuentro con Mario Benedetti. En la puerta del departamento esperan Ariel, su secretario, y Raúl, su hermano, a quien se lo ve habitualmente, en un acotado circuito céntrico, acompañándolo.
Mario nos espera sentado en su silla, al lado de un gran ventanal con vista a la avenida 18 de julio buscando, quizás, que la “ciudad de todos lo vientos”, le regale al menos una brisa para llevar mejor, en esas primera horas de la mañana, sin el ventilador y sus ruidos, la sofocante temperatura.
“Me das un mate”, le dice a su hermano. Mientras terminamos de acomodarnos, el escritor parece compenetrado en un ritual que, curiosamente, le es completamente nuevo.
—Dicen que empezó a tomar mate hace poco. ¿Es cierto?
—Así es. Nunca había probado, increíblemente. Hasta que hace unos meses Ariel me dijo: “¿querés uno?”. Y no se porqué agarré viaje, y me gustó. Además me viene muy bien porque los médicos me recomendaron tomar mucho líquido.
—Este año que acaba de terminar fue particularmente difícil para usted, ¿verdad?
—Sí, sin duda. Fue un año dramático, lleno de muertes. La de mi mujer Luz, luego de una larga agonía, fue para mí un golpe muy duro. Pero no fue la única. En 2006 también se fueron la esposa de mi hermano, la pianista Lyda Indart (madre de Daniel Viglietti), a quien yo quería mucho, Poema Vilariño (hermana de Idea, la poeta), entre otra gente muy próxima.
—A partir de estas experiencias, ¿cambió en algo su idea con respecto a la muerte?
—No, no. Mi percepción sobre ella no ha cambiado. Sé que es inevitable, que ahí está.
—¿Y a partir de ahora puede que tenga mayor protagonismo en su producción literaria?
—No lo sé. Lo que puedo decirle es que a la muerte yo la he tenido siempre presente, aún cuando joven; y que ha sido un tema recurrente en mis textos. Hasta tengo un libro que la menciona directamente: “La muerte y otros escritos”.
—Después de la partida de Luz, ¿En qué o quién se ha refugiado para intentar mitigar tanto dolor?
—En la escritura. En este tiempo ha sido una especie de guarida para defenderme de todas las desgracias que le mencioné al principio. Inclusive seguí escribiendo, aunque menos, todos los meses que mi esposa estuvo internada en la casa de salud, adónde iba a visitarla diariamente.
—Pero se las arregló para publicar dos nuevos libros de poesía.
—Es verdad. En diciembre presenté “Canciones del que no canta” (editado por Seix Barral) y “Nuevo Rincón de Haikus” (editado por la uruguaya Cal y Canto), que es mi tercer libro basado en ese género japonés.
—¿Qué lo llevo al haiku?
—Hasta entrada la década del 80 yo no tenía idea de su existencia. Cuando Julio Cortázar —que fue muy amigo mío— murió, dejo un libro terminado, en ese momento inédito, que tenía como epígrafe un haiku, con un verso que decía “salvo el crepúsculo”, y que terminó usando como título del libro. En el momento que leí la estrofa me sorprendió por su rigor y empecé a buscar antecedentes. En primer lugar indagué sobre su procedencia y luego comencé a buscar algunos cultores de esa forma poética. En España hallé a tres poetas que habían escrito haikus; mientras que en América Latina, el único que había publicado haikus, con el mayor rigor, había sido Jorge Luis Borges.
—Se sabe que ahora está escribiendo, además de los haikus, muchos sonetos. ¿Qué le brinda la poesía reglada?
—Además de que ambos me atraen, tienen formas muy rigurosas que, hoy para mí, constituyen grandes desafíos.
—Y en cuanto a la temática, ¿Hay en esta producción nueva alguna innovación?
—Ariel, mi secretario, dice que estoy escribiendo una poesía más filosófica. Y puede que tenga razón. Cuando uno está viviendo en las cercanías de la muerte —como yo, que tengo 86 años— , resulta bastante lógico que surja una poesía más seria, más preocupada por ese final que se aproxima. Así y todo, los haikus que estoy escribiendo se prestan más para el humor. En el libro “Nuevo rincón de haikus” hay varios que están escritos en ese tono.
—A cincuenta años de sus célebres “Poemas de la oficina”. ¿Cómo se imagina que escribiría sobre ese mundo pero trasladado al presente?
—No podría hacerlos, ni tampoco me imagino cómo podría ser ese libro, porque no conozco bien la vida de los oficinistas de hoy. Hay que tener en cuenta que hice aquellos poemas en un momento que me desempeñaba como oficinista, por lo que conocía perfectamente ese ámbito.
—Ese trabajador anodino, gris, que si bien podía denotar cierta rebeldía no proponía —como sí en textos suyos posteriores- un cambio real, era un típico exponente de la clase media. ¿Cómo ve en la actualidad a la clase media rioplatense?
—¡Uff! En ambos márgenes del Plata la clase media ha caído mucho. Es muy distinta a la de aquella época. Por razones socioeconómicas, mucha gente perteneciente a familias de aquella clase media, hoy está en niveles más bajos. No estoy diciendo nada nuevo con esto. Esa clase social, con sus avatares, siempre me cautivó. Desde la primera vez que me fui de Uruguay por voluntad propia (a lo veintipocos años) y luego en el exilio, escribí siempre sobre la clase media uruguaya.
—¿Qué está leyendo por estos días?
—Ando con una antología de autores latinoamericanos que han escrito libros con humor. Y días pasados también estuve leyendo. ¿Qué estuve leyendo?, no me acuerdo. (lo de Piazzolla, le apunta su secretario ). ¡Ah, sí! Una biografía sobre Piazzolla que me ha enseñado muchas cosas sobre la evolución del tango, y su propia evolución, como empezó con un tango clásico y de a poco fue cambiando.
—Hablando de cambios, usted es de los que creen que la literatura puede cambiarle la realidad a la gente.
—Lo que puede la literatura es revelarle a las personas cosas en las que no habían pensado. Lo que no puede la literatura es cambiar la actitud de los gobernantes, porque éstos, en general, le tienen miedo a la cultura.
Erico Veríssimo dizia que Lygia Fagundes Telles não devia ter tanto talento para a literatura. Era bonita demais para isso. Ela ria, envaidecida.
Convencionou-se dizer que Clarice Lispector era uma bela mulher. Belo telefone, não?
Belíssima era Cecília Meirelles, dona daquele sorriso que tudo parece compreender. Foi tradutora de …
… Virginia Woolf *, que tinha perfil de camafeu, extraordinários livros e sofria enormemente com sua loucura.
Suicida como Virginia, tivemos a bonita brasileira Ana Cristina César. Apesar de sua boa poesia, ela ficaria aos pés de…
… Anna Akhmátova *, cujo grande sofrimento era de causas exteriores. Que poetisa maravilhosa ela era! Dá vontade de aprender russo como quis uma vez …
… Simone de Beauvoir, aqui em linda e arejada foto, demonstrando que tinha a frente, o conteúdo e o verso interessantes.
Tão de esquerda quanto Simone foi a ex-stalinista Doris Lessing, que se tornou a mais irritante das direitistas.
Sempre foi de direita a talentosa belga Marguerite Yourcenar, apesar do costume de fantasiar-se como agente da KGB.
A outra Marguerite, a Duras, gostava de cinema, de amantes orientais e sua obra permanecerá mais do que a das três anteriores.
Conversas mais íntimas tinha Anaïs Nin, que escrevia diários e corria atrás de um homem sensível.
Nome de francesa tinha a severamente inglesa Daphne du Maurier, autora de livros que assustaram minha adolescência, como Rebecca.
Também gostava de assustar a imensa, perfeita e maravilhosa dinamarquesa Karen Blixen *, que publicou suas obras-primas com o nome masculino de Isak Dinesen e que …
… traduzia seus livros para o inglês. Quando envelheceu, ficou “meio anoréxica”, mas mantinha as boas companhias — minha nossa!
Conversando com Karen, à direita, está a caçadora solitária Carson McCullers, …
… tão menos famosa do que Jane Austen *, cujos seis romances são cantados em prosa e verso pelos críticos e é adorada pelo cinema.
Em comum com Karen na utilização de nome um nome masculino, com Austen no espetacular talento, temos a insuperável George Eliot * (Mary Ann Evans).
A também inglesa Muriel Spark faz livros menos intelectuais quanto os de Eliot, mas é sempre fascinante e grudenta. Escreveu pelo menos duas obras-primas modernas.
Tem nome comprido e estranho a grande e bela poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, descoberta por mim logo após sua morte.
Com algumas exceções, são todas mulheres bonitas — às outras sobraria a beleza interior… — e as que receberam asterisco logo após seu nome são as minhas Top 5 da literatura feminina mundial.
Apesar de ter sua obra em grande parte traduzida no Brasil, Arthur Schnitzler (1862-1931), ainda é pouco conhecido em nosso país. O grande escritor é conhecido por referências, digamos, laterais. As mais comuns são duas. Ou se fala no fato de Stanley Kubrick ter adaptado Breve Romance de Sonho em seu filme De Olhos Bem Fechados, ou a referência gravita em torno da admiração que Freud tinha pelo autor.
Mesmo vivendo na mesma Viena, os dois pouco se encontraram. Em uma carta enviada a Schnitzler em 14 de maio de 1922, Sigmund Freud faz algumas observações sobre a obra do escritor e confessa ter evitado, durante muito tempo, ser apresentado a ele, pois, ao ler seus textos, acreditava que se tratava de seu “duplo”. “Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição – realmente, a partir de uma fina auto-observação – tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho.”
Além escritor prolífico, Schnitzler era médico e judeu como Freud. Mas sua obra é profundamente original e sobrevive facilmente sem o aval do criador da psicanálise. Numa sociedade de grandes progressos científicos e técnicos, numa época de tantas agitações e mudanças, era necessário que tal ambiente se refletisse nas artes e na literatura. E Schnitzler foi do tamanho de sua época.
Neste mês, a Editora Record está publicando o volume autobiográfico Juventude em Viena, com tradução de Marcelo Backes. Solicitamos permissão ao tradutor para publicar no Sul21 o posfácio do livro, de autoria do próprio Backes, o qual também é escritor e ensaísta. Aqui está. (Milton Ribeiro)
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Marcelo Backes
Num tempo em que o gênero estava longe de alcançar a divulgação que tem hoje em dia, Arthur Schnitzler escreveu uma autobiografia de suma importância. Juventude em Viena é um documento central no sentido de compreender tanto uma época decisiva da história da humanidade, quanto a vida e a obra de um dos maiores autores da língua alemã. De quebra, ainda assinala a relevância que todo um gênero literário viria a adquirir apenas várias décadas depois.
Schnitzler já se encontra às voltas com a ideia de escrever uma autobiografia em 1901. Em suas anotações, aponta sempre para a “necessidade profunda” de ser “verdadeiro”, de “registrar suas recordações de modo completamente fiel à verdade”. Mas ao sentir as dificuldades do retorno ao passado, as falhas na memória, os enganos da recordação, já questiona em que medida a verdade é possível, apesar da inclinação reafirmada de ser “verdadeiro”, inclusive “contra si mesmo”.(1)
Desde o princípio, Schnitzler reconhece que não é necessária nenhuma coragem de caráter especial para registrar todas as piores oscilações nem as ações mais sórdidas das quais alguém se sabe culpado quando esse mesmo alguém está convencido de que antes de sua morte ninguém tomará conhecimento do que foi dito. Ele também logo se pergunta – autocrítico – se sua necessidade de verdade não viria, em parte, de uma característica radicada no sentimento patológico da ideia obsessiva, na tendência a um certo pedantismo exterior que no decorrer dos anos se desenvolveu de forma cada vez mais decidida como um corretivo ao desleixo interior.
Quando fala do antissemitismo – um dos assuntos essenciais de Juventude em Viena –nas mesmas anotações, diz ter sentido a necessidade de reagir, pois manifestar impassibilidade diante do assunto seria mais ou menos como ficar indiferente depois de mandar anestesiar a pele, mesmo vendo, de olhos arregalados, como facas sujas nos rasgam a carne até fazer o sangue jorrar.
Viena no início do século XX
Uma capital, um autor
Schnitzler compartilha seu destino com Viena, a capital em que nasceu, viveu e morreu.
Seu mundo é um dos maiores centros da arte, do pensamento e até mesmo do poder na época. A capital do império austro-húngaro é o universo de Robert Musil e Karl Kraus na literatura, de Gustav Mahler e Arnold Schönberg na música, de Oskar Kokoschka e Gustav Klimt na pintura – o mundo de Sigmund Freud na psicologia e o de Theodor Meynert na psiquiatria.
E não há escritor que melhor caracterize esse universo do que Arthur Schnitzler. Ele foi chamado de “Maupassant austríaco” por Alfred Kerr (o maior crítico alemão da época) e de “Tchekhov vienense” por Friedrich Torberg (um dos grandes autores austríacos do século XX). Torberg diz ainda que Schnitzler antecipou James Joyce com O tenente Gustl, e que a peça A cacatua verde já contém Pirandello inteiro.
Que Arthur Schnitzler é capaz de mergulhos profundos na alma humana em sua literatura, fica claro também em sua autobiografia. Na obra – quando a literatura ainda nem era de fato, já que Schnitzler conclui o relato de sua vida no momento em que começa a gozar os louros de sua escrita, mas a escreve bem mais tarde – o elemento erótico já mostra ser muito mais do que um passatempo social e Eros já evidencia querer muito antes expulsar a morte do que passar o tempo; exatamente como na ficção. Se a consciência da morte é onipresente – ainda que latente –, o autor mostra um sentimento quase amistoso em relação a ela, um ceticismo ameno que o leva a se entender com o fim definitivo. Nas memórias de Schnitzler fica claro mais uma vez que só podia ser ele o autor que veio a anotar já em uma de suas primeiras peças: “A alma é uma terra vasta”, referendando seu tantas vezes repisado parentesco com o já citado Freud. Mas Schnitzler vai ainda mais longe, por exemplo quando antecipa Fernando Pessoa, ao dizer, na peça Paracelso: “Não existe segurança em lugar nenhum. Não sabemos nada dos outros, nada de nós. Estamos sempre fingindo; quem sabe disso, é sábio.” Que é isso se não o “poeta fingidor” do poeta português?
A autobiografia de Schnitzler se caracteriza pela humildade sóbria, pela ausência daquela arrogância que finge inocência e caracteriza tantos autores quando se ocupam de si mesmos. É preciso lembrar que Juventude em Viena é obra de um autor cinquentenário, nos píncaros da fama, que já sabia que o jovem inseguro de décadas antes que ele se ocupa em caracterizar nem de longe preponderaria. Schnitzler não contempla a juventude com a ironia distante da velhice, e sim com uma espécie de carinho crítico e analítico, como se o homem de 25 anos inclusive se mostrasse irônico em relação ao de 50, querendo dizer que a maturidade não deixa de ser – pelo menos em parte – o resultado daquela crueza.
Schnitzler: profundos mergulhos e sóbria humildade
Marcando as datas no calendário, Schnitzler escreveu Juventude em Viena entre 1915 e 1920. Planejava levar a história de sua vida até 1900 – que foi quando a fama o bafejou de vez com O tenente Gustl –, mas acabou por concluí-la em 1889, ao iniciar de fato sua atividade artística, ao se tornar definitivamente mais escritor do que médico. Coincidentemente, é também o momento em que conhece Olga Gussmann, aquela que viria a se tornar sua esposa.
E assim, lembrando uma grande autobiografia contemporânea – Nas peles da cebola, de um Günter Grass aliás nem de longe tão humilde –, Schnitzler termina seu relato praticamente antes do início de sua verdadeira carreira – a de escritor, a de médico não era mais que um preparativo para ela –, como se quisesse deixar claro que o poeta começa a se desenvolver quando o desenvolvimento do homem chegou ao fim. Um homem que à época ainda nem entrara em contato com Freud, que ainda não trocara suas inúmeras cartas com o crítico e filósofo norueguês Georg Brandes, que ainda não dialogara com Rainer Maria Rilke e Thomas Mann em suas correspondências.
A edição da Fischer de ‘Juventude em Viena’
Algumas questões fundamentais
Schnitzler é um mestre no aproveitamento universal de manifestações periféricas. Elas sempre lhe proporcionam a possibilidade de grandes conclusões. É o que acontece inclusive em relação ao antissemitismo, cujo horror o autor não chegou a vivenciar em sua pior feição.
Desde o princípio de Juventude em Viena, Schnitzler já sinaliza para a questão judaica, debatendo-a com autocrítica, ao se perguntar se alguém que nasceu em determinado lugar, nele cresceu e nele continua trabalhando, deve contemplar outro país – não aquele no qual há décadas vivem seus pais e seus avós, e sim aquele no qual seus ancestrais estiveram em casa há milênios –, e não apenas por motivos políticos, sociais e econômicos (que de todo modo podem ser discutidos), mas também sentimentalmente, como sua verdadeira terra natal.
Diante dos ritos religiosos do judaísmo, Schnitzler manifesta a mesma indiferença – quando não resistência, ou inclusive sarcasmo – que caracterizava por exemplo a postura de Freud. Theodor Herzl, que veio a ser conhecido como o pai do sionismo, é referido inclusive por ter militado em organizações estudantis de índole antissemita; Schnitzler diz tê-lo encontrado num passeio usando o boné azul daqueles que eram então os seus irmãos reacionários de crença e de partido. E Schnitzler arremata, mais uma vez um tanto crítico: “O fato de estes o rechaçarem, ou, como dizia o verbo ofensivo dos estudantes, o repelirem de seu meio como judeu, sem dúvida alguma foi o primeiro motivo que transformou o estudante e orador alemão-nacionalista dos pódios acadêmicos (onde nos olhamos com troça, ainda sem nos conhecer pessoalmente, em uma noite de reunião) no sionista talvez mais entusiasmado do que convicto que ficou sendo para a posteridade.”
Quando fala do duelo, e dos judeus que se tornaram esgrimistas habilidosíssimos e agressivos para melhor encarar as ofensas dos antissemitas, Schnitzler chega a citar a macabra “Resolução de Waidhofen”, que declarava os judeus “incapazes de tomar satisfações”, e ao mesmo tempo deixava claro que o véu do holocausto que encobriria a Europa já começava a ser estendido: “Todo o filho de mãe judia, todo ser humano por cujas veias corre sangue judeu é desprovido de honra desde o nascimento, incapaz de qualquer sentimento mais sutil. Ele não consegue distinguir entre o que é sujo e o que é limpo. Eticamente, é um sujeito bem mais baixo. A relação com um judeu é por isso desonrosa; é preciso evitar qualquer espécie de comunhão com os judeus. Não se pode ofender um judeu, e por isso um judeu não pode exigir satisfação sobre uma ofensa sofrida.” A marca amarela que identificava racialmente os judeus desde a Idade Média – e que aliás é referida por Schnitzler – começava a se mostrar cada vez mais excludente e perigosa.
Num âmbito bem mais individual, o medo das doenças venéreas é outra constante que sinaliza um dos grandes problemas da época (e do sujeito). E Schnitzler mergulha em sua “ciranda” juvenil, buscando no sexo seu caminho pessoal para a liberdade. A peculiaridade do homem Schnitzler, que antecipa o autor Schnitzler é tanta que o historiador Peter Gay fez dele o personagem central e mais representativo de toda uma época numa obra já clássica, ainda que lançada em 2002, O século de Schnitzler.
A obra de Peter Gay ‘O Século de Schnitzler’
A leveza e o vazio – a leviandade – dos anos jovens de Schnitzler, cheios de possibilidades de duelos (outra questão debatida que se tornaria foco da narrativa em O tenente Gustl) e apostas em cavalos (a descrição do apostador envolvido no auge da corrida é maravilhosa), quando o dinheiro significava havanas e jantares no restaurante da moda, mais um camarote no teatro, é destrinçada de cabo a rabo na autobiografia. Schnitzler inclusive reconhece que até uma determinada época de sua vida muitas vezes se esforçou em se estilizar; e que, se chegou a ser esnobe – e o confessa –, diz que seu esnobismo foi curado completamente pelo contato com os esnobes que veio a conhecer.
Ele também relata uma dúzia de casos amorosos. De algumas dessas mulheres, Schnitzler – que chama a si mesmo de “galã de cinco florins” – se lembra apenas porque estão registradas em seu diário, de outras nem recorda mais o nome, sequer. Chegou a terminar o caso que tinha com uma delas anotando os seguintes versos: “Também esta cinta-liga eu te mando de volta, encontrei-a hoje pela manhã em minha cama.” O amor já se mostrava líquido e o torpedo do celular comunicando o fim da relação parece não ter sido usado tão-somente porque ainda não existia…
Ainda assim muitas de suas relações – como por exemplo a que teve com Olga Waissnix, a primeira grande mulher de sua vida – se alongam por meses em sua vida e dezenas de páginas em sua autobiografia. Outras precisam apenas de algumas linhas sintéticas e vertiginosas: “Uma jovem americana, Cora Cahn, de apenas dezesseis anos, que se encontrava em Ischl com seus parentes, me atraiu vivamente por causa de seu sotaque, de seus caprichos e de sua coqueteria. Em um túnel entre Gmunden e Ebensee as coisas se tornaram quase preocupantes, mas túneis são curtos e uma passagem por Ischl não chega a ser bem mais longa, sobretudo quando se tem de lidar com uma série demasiado grande de variáveis; e assim também essa aventura acabou dando em nada.”
A “doce mocinha” do subúrbio, uma criação do autor, que caracterizaria tantas de suas personagens, é definida também em Juventude em Viena, a partir de uma das mulheres que cruzou sua vida. Schnitzler diz que ela é o “protótipo de uma vienense, figura encantadora, feita para dançar (…), feita para beijar – um par de olhos brilhantes e vivazes.” Suas roupas são “de gosto simples e com uma certa feição de grisette”. Seu andar é “cheio de rebolado… lépido e natural…” E as qualidades não param por aí: “A voz clara… A língua vibrando em dialeto original. O que ela diz, apenas assim, como ela consegue dizê-lo, como é obrigada a fazê-lo, quer dizer, cheia de vontade de viver, com um leve toque de precipitação. ‘A gente é jovem, que fazer’, ela considera com um dar de ombros meio indiferente… Não há nada a perder nisso, é o que ela pensa consigo… E isso é a razão mergulhada nas cores luminosas do sul.” Impossível não mergulhar no poço da aventura!
A oficina literária do autor
Os personagens ingleses do romance O caminho para a liberdade, sua obra ficcional mais volumosa, parecem ter saído todos eles da “realidade” de Juventude em Viena, que aliás deixa claro porque uma certa Claire se torna tão importante no romance… No momento em que o autor – leviano como a juventude – ameaça se matar com um tiro porque seu diário foi descoberto, manifesta também um pouco daquela altivez melindrosa e problemática que caracterizaria o já citado tenente Gustl.(2)
Quando conta sobre as dificuldades que teve em escrever a peça Aegidius e critica sua concepção, somos levados mais uma vez diretamente a O caminho para a liberdade e às dificuldades de Georg von Wergenthin às voltas com Ägidius, o grande personagem da ópera que não consegue levar a cabo. Ao ler a autobiografia, confirma-se que o personagem central do romance tem muito a ver com o autor, inclusive na relação com seu irmão. Arthur está para seu irmão Julius exatamente como Georg está para Felician. A certa altura de Juventude em Viena Schnitzler chega a dizer: “Meu irmão passou do piano ao violino, e também na música, assim como em todas as questões escolares e mais tarde na medicina, acabou me superando com sua persistência e sua conscienciosidade, mas também por sua visão e seu talento.” Felician também era muito mais hábil, muito mais ágil e mais objetivo do que Georg.
O livro como um todo propicia uma bela olhada na oficina literária do autor. Descobrimos, por exemplo, que seus amigos pronunciaram algumas das frases que mais tarde seus personagens diriam. Também ficamos sabendo que Gustav Pick se tornaria o modelo do velho Eissler de O caminho para a liberdade, assim como seu filho, Rudi Pick, se tornaria o modelo de Willy. E Schnitzler ainda arremata dizendo que “os conhecedores do romance por certo haverão de ter percebido” as coincidências, arrematando que o velho Pick se mostrou mais compreensivo e bem humorado com sua ousadia do que muitos outros que compartilharam de seu destino e mostrando mais uma vez como a obra – ainda que ficcional – se encontra fortemente vinculada à vida vienense de sua época. Muitas outras peças e contos são referidos de passagem, bem como os motivos que os inspiraram. A passagem em que comenta a suposta origem da peça O véu de Beatrice é maravilhosa, e diretamente vinculada a seu grande, ainda que platônico, amor por Olga Waissnix. As páginas em que conta as venturas e desventuras desse amor, aliás, estão entre as mais interessantes da autobiografia.
O filme ‘De Olhos Bem Fechados’, de Stanley Kubrick, foi baseado na novela ‘Breve Romance de Sonho’, de Schnitzler
Schnitzler também fala das estratégias – lícitas e ilícitas – de autores no sentido de se tornarem conhecidos em uma época em que o mercado editorial estava longe de ter o vulto que alcançou hoje em dia. Em muitos momentos, o autor adquire fumos de homem frio, que pensa que são necessárias razões cadastráveis para retribuir a simpatia que alguém tem por ele, e não entende quando isso acontece sem as mesmas razões. O mesmo homem, no entanto, é capaz de ridicularizar a si mesmo citando longos versos ingênuos e pueris para arrematar em seguida que havia “provado ser um poeta talentoso”.
Ao longo da autobiografia há conceitos maravilhosos, como por exemplo o do “apoio dialético” que Schnitzler dava para um amigo entediado terminar o namoro. E sentenças precisas como: “Nos lábios de uma mulher o sorriso da recordação jamais se apaga completamente. Elas são mais vingativas, mas também mais agradecidas do que os homens costumam ser.” Avançado, e pedagogicamente cético, o autor declara a certa altura: “E, nesse sentido, quando se conheceu e se experimentou diante de que material pronto, apesar de toda a falta de maturidade, se encontram pais e professores, é que se sente por inteiro que problema em certo sentido insolúvel a educação representa.” Em dado momento, chega a levantar a hipótese avançada de que o alcoolismo provavelmente seja hereditário. Sua sabedoria de índole aforística fica clara em sentenças como: “Sempre temos de ver um punhal brilhando para compreender que um assassinato aconteceu”. E Schnitzler – que está falando de uma relação amorosa – ainda complementa dizendo que “muitas vezes o vemos brilhar, e em vez de arrancá-lo à mão do assassino, nos contentamos em fazer admoestações de leve, dizendo que ele não deveria fazer uma coisa dessas, se é que não nos mostramos indiferentes e acomodados demais até mesmo para uma admoestação assim.”
Schnitzler também fala – talvez pela primeira vez na história da literatura, sobretudo se levarmos em conta que está falando de uma mulher e suas reações por volta de 1880 – de uma personagem deprimida (gemütskrank). Uma moça, namorada de um amigo, que parece ter protagonizado algo como uma fotonovela erótica – já que é fotografada nua ao lado de um tenente, e a fotografia era coisa nova na época – é outra que dá as caras em determinado trecho. Também a primeira manequim – modelo (Probiermamsell) – da literatura universal parece ter sido registrada por Schnitzler. Não apenas registrada, aliás. O mundo incipiente da moda já visitava a cama da arte bem cedo…
Freud, o aluno de Meynert
Muitas das grandes figuras científicas do final do século são apresentadas na autobiografia de Schnitzler. Assim, por exemplo, o neurologista francês Jean-Martin Charcot em sua lida com a hipnose, e os trabalhos do psiquiatra Hyppolyte Bernheim, também francês. Moritz Kaposi, fundador da dermatologia moderna, é outro dos citados. Schnitzler ainda caracteriza com detalhes o psiquiatra e neuroanatomista vienense Theodor Meynert, com quem trabalhou, e que aliás também foi professor de Freud.
Ao mesmo tempo percebe-se, em vários momentos, como a higiene é uma coisa nova e a ciência da medicina ainda estava longe de ter sido dessacralizada à época, mesmo que o mundo esteja em vertiginosa transformação, o que é registrado por exemplo quando o autor conta, entusiasmado, sobre a primeira vez em que ficou em um quarto com iluminação elétrica. Ciente do caráter ainda pouco científico da medicina, Schnitzler chega a contar de um médico que acreditava ter descoberto “no hábito enfadonho de lavar as costas” o verdadeiro motivo do catarro bronquial. Schnitzler diz ainda que o referido médico “foi tão longe a ponto de afirmar com toda a seriedade que o lado direito adoecia menos vezes porque a mão esquerda, mais fraca e mais lerda, não costumava tratar o lado direito das costas com tanta crueldade quanto acontecia com o lado esquerdo, que era lavado pela mão direita, muito mais forte.” E, assim, Juventude em Viena também é, em vários momentos, uma história subjetiva da medicina em um dos períodos em que mais evoluiu: o final do século XIX.
Henrik Ibsen: viver e escrever
O mundo literário e artístico da época e mesmo anterior também comparece em massa. Goethe é multicitado, mas também os conterrâneos e coetâneos do autor, por exemplo Alfred Polgar e Peter Altenberg, dão as caras. O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen é citado quando Schnitzler refere indiretamente o sentido que este dá ao “dia do juízo”, e somos obrigados a investigar para descobrir que Ibsen disse num de seus poemas, intitulado “Um verso”: “Viver significa – lutar contra o fantasma das forças estranhas dentro de si. / Escrever – fazer o dia do juízo contra seu próprio eu.” A citação é demasiado importante, e Ibsen conhecido demais à época, para que Schnitzler a repita em sua autobiografia tal qual o dramaturgo norueguês a registrou. Afinal de contas, é isso que ele faz ao longo de toda a obra.
Em vários momentos, Juventude em Viena assume uma construção quase romanesca, antecipando a confusão entre os gêneros que se tornaria evidente só décadas mais tarde. Quando Schnitzler diz que em Salzburgo, no inverno de 1891 para 1892, as relações teatrais na cidade invocavam seu interesse de modo bem especial – e por um motivo bem pessoal – insinua tangencialmente seu caso longo e ardente com a atriz Marie Glümer, que trabalhou vários anos em Salzburgo. Quando fala do suicídio, especula sobre a “carga ancestral inerente à descendência” dos seus, já que vários de seus parentes se suicidaram. Na época, o autor sequer imaginava que sua filha Lili também acabaria se suicidando, e que praticamente morreria de desgosto por causa disso três anos depois, em 1931.
Perto do final de Juventude em Viena, ademais, o autor começa a manifestar dúvidas de que as páginas autobiográficas terão um prosseguimento. E, de fato, cinco ou seis páginas depois elas chegam ao fim, compondo apenas o painel de uma juventude vienense, o caminho de um homem antes de se tornar artista, o devir de um escritor até o instante em que começa a bafejar a fama…
(1) Ver “Autobiographische Notizen” in: Jugend in Wien. Herausgegeben von Therese Nickl und Heinrich Schnitzler, Frankfurt a. M. 1985.
(2) Tanto O tenente Gustl quanto O caminho para a liberdade já foram publicados nesta mesma coleção.
Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.
Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar o mundo por causa do estômago.
Indiferente?
Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!
Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega —
Nem um centímetro mais longe.
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.
Como o diabo gosta é um livro delicioso. Ele já foi O diabo a quatro em 1985 e, radicalmente revisado e ampliado pelo autor, está sendo relançado neste ano em bela edição da Cosac Naify. Merece, e não apenas por estar completando 30 anos. O que talvez não mereça é minha participação de hoje à noite no lançamento da nova edição na Palavraria, batendo um papo com Ernani Ssó. Ainda bem que pretendo falar pouco. Porém, neste momento, peço desculpas ao Ernani, pois aqui no blog quem faz os solos sou eu.
Ernani realizou uma auto-entrevista a la Glenn Gould numa crônica chamada 50 tons de vermelho. O título é chamativo, mas é redutor. Ali, ele começa dizendo que “os resenhistas, como todo mundo nos jornais, trabalham demais, leem os livros correndo, quando leem, e escrevem a toda, sem pensar direito”, o que justifica a entrevista. Ele tem toda a razão, principalmente na necessidade de pensar, tanto que hoje acordei e fiquei matutando sobre como escrever a respeito de um livro do qual gostara muito. O problema é que é mais fácil dizer o que ele não é. Mas vamos ao que ele é.
Numa manhã, Camilo Severo tenta inspirar-se para escrever um romance. Seus pensamentos são interrompidos por lembranças desordenadas. O livro é isso, uma série de capítulos fora da ordem cronológica, às vezes escritos na primeira pessoa, às vezes não, talvez inspirado por O Jogo da Amarelinha do Cortázar que Ernani tanto ama. O livro se passa em Porto Alegre, no triângulo obtuso formado pela cidades de Ermo, Sombrio e Turvo (SC) e um pouquinho mais longe, no Farol de Santa Marta (SC), provavelmente durante o final dos anos 70, quando aquela região estava sendo recém descoberta pelos turistas, principalmente gaúchos. Para lá se dirigiam hordas de bichos-grilos a fim de alugar as casas de pescadores. Lá, ficavam tomando banho de mar e de caneca, bebendo cerveja, consumindo drogas e trepando. Era bom, participei.
Por que é mais fácil dizer o que ele não é? Pelo fato de que Como o diabo gosta ser um livro enganador: ao leitor mais superficial pode parecer uma série de descrições do desbunde, da perda do autodomínio, da loucura e das muitíssimas relações sexuais mantidas pelo narrador. Realmente, o sexo é um tema importante de um livro que se pretende meio bandalho, só que não podemos esquecer que este se apoia mais na literatura do que no sexo. O texto é excelente. Tudo aparece em seu lugar e tem ritmo. Exatas, as palavras só poderiam estar onde estão. Isto é que torna o livro uma delícia e é sempre difícil elogiar um volume dotado de tamanho potencial de prazer e que não envolve grandes e claras teses. É um livro cujas melhores metáforas vêm da musicalidade e isto confunde.
E há o humor. Como o diabo gosta é um livro engraçadíssimo, mas não é um livro de humor. A história também revela a angústia do personagem principal, presente desde o elaborado e culto “tô nem aí” de Camilo, que é refletido no desespero de algumas cenas de sexo. A repetição de alguns fatos — descritos de forma inteiramente diversa no romance — não resulta num quadro divertido, mesmo que se ria deles. Isto parece ser muito bem controlado por Ernani, que espalha pistas que formam um quadro de uma época em que, ao lado da vida no desbunde, havia uma ditadura se desmanchando.
Como toda lista, esta é irresponsável ao escolher os melhores livros de um ano que não acabou ainda. E mesmo se tivesse acabado… Sem nenhum distanciamento histórico, vamos novamente correr o risco, deixando por escrito nossa opinião a respeito daquilo que lemos em 2014, ignorando, obviamente, aquilo que não passou sob nossos olhos. Porém, este ano, nossa lista foi criada sem grandes problemas, diferentemente de 2013.
No ano passado, deparamo-nos com um impasse. Cada votante fez sua escolha de forma distinta, não havia quase livros com mais de um voto. O mesmo fato não ocorreu este ano. A equipe do Sul21, mais os jornalistas convidados Luiz Gonzaga Lopes (Correio do Povo), Carlos André Moreira (Zero Hora) e o historiador Éder Silveira deixaram cinco livros com quatro votos e outros cinco com três, resolvendo o problema da escolha.
Assim, aconteceu um empate quíntuplo no primeiro lugar, pois O Capital no Século XXI, Dia de matar porco, O homem que amava os cachorros, Terra avulsa e Vida e destino, receberam quatro votos e outros cinco livros três.
Segue a lista, por ordem alfabética:
~ 1 ~
O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty
Nenhum livro de economia publicado nos últimos anos foi capaz de provocar o furor internacional causado por O Capital no Século XXI (Intrínseca, 672 páginas), do francês Thomas Piketty. Seu estudo sobre a concentração de riqueza e a evolução da desigualdade ganhou manchetes nos principais jornais do mundo, gerou discussões nas redes sociais, vídeos no Youtube e colheu comentários e elogios. Fruto de quinze anos de pesquisas, o livro se apoia em dados que remontam ao século XVIII, provenientes de mais de vinte países, para chegar a conclusões explosivas. O crescimento econômico e a difusão do conhecimento impediram que fosse concretizado o cenário apocalíptico previsto por Karl Marx no século XIX. Porém, os registros históricos demonstram que o capitalismo tende a criar um círculo vicioso de desigualdade, pois, a longo prazo, a taxa de retorno sobre os ativos é maior que o ritmo do crescimento econômico, o que se traduz numa concentração cada vez maior da riqueza. Uma situação de desigualdade extrema que leva ao descontentamento geral e até, por vezes, ameaça os valores democráticos. Mas Piketty lembra que a política já foi capaz de reverter tal quadro no passado e poderá voltar a fazê-lo.
~ 2 ~
Dia de matar porco, de Charles Kiefer
Só o fato de Charles Kiefer ter retomado a narrativa longa após 12 anos já é digno de um olhar mais prescrutador. Outro aspecto importante é ele ter sido um dos únicos autores que lançou realmente seu livro na 60ª Feira do Livro de Porto Alegre, com sessões de autógrafos no supersticioso e excêntrico dia do aniversário, 5 de novembro. Duas festas numa só, autógrafos e 56 anos completados. Mas tudo isso não seria nada se abríssemos o livro e lá não estivesse a marca de Kiefer. Ela está lá. A aridez e o jogo metafórico com camadas quase imperceptíveis, a serem descortinadas da sua estrutura textual, revelam o autor maduro tratando de uma experiência vivida autobiograficamente, a de quase-morte, mas muito bem ficcionalizada por este professor doutor em Letras de Três de Maio. Em Dia de matar porco (Dublinense, 112 páginas), Kiefer nos oferece um personagem bem erigido, o advogado Ariosto Ducchese, que é natural da mítica Pau D´Arco, pelo menos na obra de Kiefer. Nesta experiência de quase-morte, ele vê a sua mãe morta e resolve voltar à cidade natal para desvendar um enigma do passado. Nesta volta, recorda de alguns fatos, como o ritual de iniciação do carnear o porco, que é um dia de contato com a dor e com a resistência à morte, mas também de festa. Esta volta ao passado desvela segredos e coloca Ariosto no coração dos erros cometidos dentro da família gerada por Dante e Beatriz. Kiefer acertou o tom, coloca camadas e referências que vão da Cabala à Ray Bradbury e Wittgenstein e é capaz de edifícações verbais como estas: “Escrever é como matar um porco. É preciso ferir o coração do real, submetê-lo a nossa vontade, dizer a ele o que ele foi, e depois esquartejá-lo, expor as suas vísceras, valorizar este ou aquele pedaço, transformar a pele e as mantas de gordura em torresmo, e os miúdos em salsichas e salames”. (Luiz Gonzaga Lopes)
~ 3 ~
Diário de Inverno, de Paul Auster
Ao entrar no inverno de sua vida, o maior escritor norte-americano vivo (que me desculpem os fãs de Philip Roth, Don de Lillo e outros), resolveu novamente se autobiografar. E fez o verão dos seus leitores com o inverno de sua vida, com mais um diário desregrado, coberto de pequenas tragédias e grandes lições familiares e da vida e mais uma vez desgraçadamente verdadeiro, como havia sido A Invenção da Solidão e o grande ensaio de per si Da Mão para a Boca. A frase do escritor francês Joseph Joubert, escrita em 1815, serve de baliza para uma das assertivas austerianas: Há que morrer adorável (se possível). Auster envelheceu junto com Quinn, Mr. Black, Hector Mann e outros personagens memoráveis da sua tessitura. Mas neste Diário de Inverno (Companhia das Letras, 216 páginas), livro que foi lançado em 2012 na Europa e Estados Unidos e no segundo semestre de 2014 no Brasil, Auster consegue novamente se colocar na segunda pessoa do singular e dissecar o seu mundo, a matéria tangível, vivenciada dos seus escritos. A autor metaficcional ou autoficcional indireto explica algumas histórias que surgiram ao acaso e que o impeliram a escrevê-las, como a ligação por engano para o escritório de detetives em sua casa, a gênese de Cidade de Vidro, onde Quinn recebe uma ligação de alguém que quer falar com Paul Auster, da Agência de Detetives Auster. (Luiz Gonzaga Lopes)
~ 4 ~
Dostoiévski-trip, de Vladímir Sorókin
Dostoiévski-trip (Editora 34, 104 páginas) é uma obra à beira da perfeição enquanto escolha narrativa. O vanguardista russo que teve seus textos banidos durante o regime soviético esteve na Flip e mostrou todo o seu medo de que Putin se revele mais perverso e ditador que Stalin. Fora isso, criou uma obra que brinca com a drogadição, comparando a literatura a drogas consolidadas e experimentais. Cinco homens e duas mulheres estão na fissura por mais drogas, que no caso são livros ou autores. Céline, Genet e Sartre são drogas que deixam os usuários tensos. Faulkner e Hemingway são consumidos por halterofilistas ou caras que cultuam o corpo. Mas eles vão se deparar com uma droga experimental e mais pesada: Dostoiévski. Após ingeri-la, eles acabam dentro de uma cena de O Idiota. Tudo anda conforme o script até que a droga começa a fazer efeito e eles tecem longos monólogos carregados de drama, sarcasmo e um niilismo. Um livro que aproxima o Dostoiévski do século 19 com o mundo veloz e junkie, mas que propõe que o autor russo pode ser uma leitura/droga demasiada pesado para este superficial e virtual mundo do século 21. (Luiz Gonzaga Lopes)
~ 5 ~
A festa da insignificância, de Milan Kundera
A festa da insignificância (Companhia das Letras, 136 páginas) foi aclamado pela crítica e despertou enorme interesse dos leitores na França e na Itália, onde logo figurava em todas as listas de best-sellers. Lembrando A Grande Beleza, filme de Paolo Sorrentino acolhido com entusiasmo pelo público brasileiro no mesmo ano, o romance de Milan Kundera coloca em cena quatro amigos parisienses que vivem numa deriva inócua, característica de uma existência contemporânea esvaziada de sentido. Eles passeiam pelos jardins de Luxemburgo, se encontram numa festa sinistra, constatam que as novas gerações já se esqueceram de quem era Stalin, perguntam-se o que está por trás de uma sociedade que, em vez dos seios ou das pernas, coloca o umbigo no centro do erotismo. Na forma de uma fuga com variações sobre um mesmo tema, Kundera transita com naturalidade entre a Paris de hoje em dia e a União Soviética de outrora, propondo um paralelo entre essas duas épocas. Assim, o romance tematiza o pior da civilização e lança luz sobre os problemas mais sérios com muito bom humor e ironia, abraçando a insignificância da existência humana.
~ 6 ~
O Homem que Amava os Cachorros, de Leonardo Padura
Um grande e multipremiado romance baseado em fatos e personagens reais, onde o cubano Padura narra pormenorizadamente o assassinato de Trotsky a mando de Stalin — terceira vez que esta nome aparece nesta retrospectiva — a cargo de Ramón Mercader e do serviço secreto soviético. A pesquisa de Padura levou-o a todos os exílios de Trotsky: de Alma Ata (atual Cazaquistão) para a Turquia, dali para França e depois para a Noruega e o México, onde ele encontrará com seu algoz. O texto alterna capítulos dedicados a Trotsky, a Mercader e ao futuro autor do livro, perdido, sem temas e comida em Cuba. Padura inventa os diálogos, mas mantém rigorosamente os fatos históricos. Para melhorar ainda mais, o livro cresce de forma espetacular a cada página dentro do abandonado gênero do thriller policial. Graham Greene ficaria feliz de ler O Homem que Amava os Cachorros (Boitempo, 592 páginas). Obra indicada a todos que não tenham saudades de Stalin, pois seu autor diz claramente: “Trotski podia ser duro, mas era um político; Stalin era um psicopata”. (Milton Ribeiro)
~ 7 ~
O que amar quer dizer, de Mathieu Lindon
Ambientado na Paris do fim dos anos 1970 e início dos 80, O que amar quer dizer (Cosac Naify, 288 páginas) repassa os anos de convivência do jornalista cultural Mathieu Lindon com Michel Foucault (1926-1984) e a enorme influência que o filósofo teve sobre sua vida. Filho de Jérôme Lindon, fundador das Editions de Minuit e editor de Samuel Beckett e Marguerite Duras, o autor deste livro rememora as festas no apartamento de Foucault na Rue de Vaugirard em descrições bem-humoradas de sua vivência homossexual em meio a viagens de ácido e música clássica. Em seguida, trata da sombra que surgiu no meio gay quando a aids, que viria a vitimar o filósofo, entrou na pauta da época. A história se desenrola ao redor dessas duas figuras masculinas: de um lado, o pai de “sorriso tímido”, objeto de um amor que não encontra a forma de se expressar; de outro, o amigo de “sorriso escancarado” que lhe ensinou a ser feliz, vivo – e grato. O que amar quer dizer foi publicado na França em 2011, ano em que obteve o Prêmio Médicis.
~ 8 ~
Opisanie świata, de Veronica Stigger
Primeiro romance de Veronica Stigger, Opisanie świata (Cosac Naify, >160 páginas) significa “descrição do mundo” e é como se traduz Il Milione, o livro de viagens de Marco Polo para o polonês. É justamente como uma espécie de relato de viagens que essa novela se constitui. A história central do livro é a de Opalka, um polonês de cerca de sessenta anos que, em sua terra natal, recebe uma carta por meio da qual descobre que tem um filho no Brasil – mais especificamente, na Amazônia -, internado num hospital em estado grave. O pai decide viajar ao encontro do filho; no início do percurso, conhece Bopp, um turista brasileiro que, ao tomar conhecimento das razões da viagem de Opalka, resolve abandonar seu giro pela Europa para acompanhá-lo ao Brasil. O livro se compõe a partir de diversos registros, como o do relato em terceira pessoa, o da carta, o do diário etc., além de contar com inserções de imagens e fragmentos de textos sobre a ou da década de 1930 — época em que transcorre a ação.
~ 9 ~
Terra Avulsa, de Altair Martins
No seu mais recente romance, Terra Avulsa (Record, 312 páginas), o premiadíssimo Altair Martins fala de diversos temas – isolamento, relações familiares, amores nascentes, política latino-americana, tradução e fotografia – para, no final das contas, falar de literatura: para que ela serve? Como nasce o texto? Qual a distância que separa autor e leitor? E talvez a mais fundamental (e mais ousada e mais irrespondível) de todas as perguntas: o que é literatura? Logo no início do livro, o protagonista (um professor e tradutor que busca sua própria poesia ao mesmo tempo em que busca afastar-se do mundo) revela sua predileção pela hipálage, figura de linguagem que se caracteriza pelo desajustamento entre a função gramatical e a função lógica das palavras, o que ocorre, por exemplo, quando se atribui a um substantivo uma qualidade que pertence a outro. E assim, através de múltiplas transposições de sentidos entre as temáticas contidas no romance, sempre em linguagem exuberante e imagética (“porque a linguagem é a primeira que sangra”), o autor acaba por cunhar uma definição tão precisa quanto fluida: “literatura é procurar a mãe na casa dos outros”. (Rafael Bán Jacobsen, no Amálgama)
~ 10 ~
Vida e Destino, de Vassili Grossman
Vida e destino (Alfaguara, 920 páginas) é um épico moderno e uma análise profunda das forças que mergulharam o mundo na Segunda Guerra Mundial. Vassili Grossman, que esteve no campo de batalha e acompanhou os soldados russos em Stalingrado, compôs uma obra com a dimensão de Tolstói e de Dostoiévski, tocando, ao mesmo tempo, num dos momentos cruciais do século XX. A ação tem lugar durante a invasão da União Soviética pela Alemanha nazista, com foco na batalha de Stalingrado. O livro começa quando a Alemanha cerca a cidade, tentando conquistá-la. Ao longo do livro, são descritos os danos causados pelos bombardeios aéreos e pela artilharia localizada em torno da cidade. Com personagens que são uma combinação de figuras ficcionais e históricas, o romance não é apocalíptico nem crê que o ser humano esteja destinado à desgraça, mesmo em meio à destruição. Estão lá os campos de prisioneiros militares e os de concentração; os altos-comandos, com Hitler de um lado e Stalin de outro; a disputa insensata dos soldados por uma única casa na cidade em ruínas e os dramas familiares dos que ficam para trás e enfrentam o terror político e a incerteza. Um romance de grande força dramática. Finalizado em 1960, e a seguir confiscado pela KGB, o livro permaneceu inédito até a metade dos anos 1980. (Milton Ribeiro)
Logo nas primeiras linhas de O Irmão Alemão, Chico Buarque nos revela o centro do seu mais novo romance, a história da busca, empreendida por Francisco de Hollander, pelo paradeiro de seu irmão, nascido na Alemanha. Diz ele: “Sei que meu pai ainda solteiro morou em Berlim entre 1929 e 1930, e não custa imaginar um caso dele com alguma Fräulein por lá. Na verdade, acho que já ouvi falar de algo mais sério, acho até que há tempos ouvi em casa mencionarem um filho seu na Alemanha. Não foi discussão de pai e mãe, que uma criança não esquece, foi como um sussurro atrás da parede, uma rápida troca de palavras que eu mal poderia ter escutado, ou posso ter escutado mal.” Ou seja, mesmo que não passasse de um segredo de polichinelo, o irmão alemão, cuja existência é revelada por uma carta encontrada dentro de O ramo de ouro, obra clássica de Sir James Frazer, é o estopim para uma busca que haveria de se estender por décadas.
No dia a dia dos Holanda, falava-se do tema com maior desenvoltura. A Sergio Buarque de Holanda, não se sabe ao certo se pelos traços físicos ou se pelo domínio da língua, com certa frequência se perguntava se era filho de alemães. O historiador que, entre outras coisas, ficou conhecido por sua fina ironia, respondia de bate-pronto: filho não, sou pai de alemão. A conhecida historieta, que suponho já deva ter sido contada muitas vezes, é relembrada no belo documentário de Nelson Pereira dos Santos, Raízes do Brasil, filme que faz com que partes do livro de Chico Buarque tenham sabor de déjà vu.
Fato é que tudo o que envolve o nome de Chico Buarque ganha enormes proporções, e com O Irmão Alemão não foi diferente. Na mesma medida que os seus mergulhos em praias cariocas, seus discos ou outros livros, é digno de nota o alarido criado em torno do livro, antes mesmo de ele chegar às livrarias. Dias após o seu lançamento, O Irmão Alemão já contava com pelo menos quatro resenhas, assinadas por críticos respeitados, e com o prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).
Difícil de ignorar, o livro está em todas as livrarias | Foto: Divulgação
Confesso que mesmo eu, que nem de longe seria lembrado como um apreciador da literatura de Chico Buarque, fui fisgado pelas iscas que foram lançadas. A promessa de contar a história do filho alemão de Sergio Buarque de Holanda, e de tecer uma trama que ligaria os horrores da escalada do nazismo na Alemanha e os anos de chumbo da Ditadura Militar no Brasil, foram o suficiente para me fazer comprar o livro assim que publicado e lê-lo em uma tacada.
Aqueles que se interessam pela trajetória de Sergio Buarque sabem que esse período foi importantíssimo em sua formação. Ele partiu como um jornalista boêmio, ligado aos modernistas de 1922 e editor de Estética, uma revista de vanguarda, efêmera como todas devem ser. Voltou determinado a se tornar um scholar, versado na sociologia de Max Weber e de Georg Simmel. Lembro aqui uma passagem do mestre Antonio Cândido, que evocou de modo preciso o transe germânico de Sergio Buarque:
Por isso a estada em Berlim foi uma oportunidade para abrir ao seu conhecimento um campo novo – o “Domínio alemão” (como diria Valéry Larbaud), que ele incorporou sofregamente aos seus territórios. Lá seguiu sem muita regularidade alguns cursos, inclusive de Meinecke. Leu Sombart, Toennies, Alfred e Max Weber; familiarizou-se com os historiadores da arte; mergulhou na obra de Rilke, de Stefan George e dos discípulos deste, como Gundolf e Bertram; pela vida afora continuou lendo Goethe nos 70 ou 80 volumes da obra completa. E no meio de tudo isso imaginou um livro de interpretação da sua terra. Tinha 28 anos e “Raízes do Brasil” começava a germinar.
Além do tour de force intelectual descrito por Antonio Candido, o que se sabe da temporada berlinense de Sergio Buarque permite acrescentar visitas aos cafés e cabarés da capital alemã. O tempo foi suficiente, ainda, para um relacionamento mais sério, com uma jovem chamada Anne Ernst ou Annemarie Ernst, namorada alemã que permanece em Berlim quando Sergio volta, às pressas, ao Brasil. Ela estava grávida de Sergio Ernst, o irmão alemão de Chico Buarque. Sergio Buarque, até onde se sabe, desconhecia o fato.
Duas vidas marcadas pela violência | Foto: Divulgação
Não se trata aqui, bem sabido, de comparar o romance aos fatos. Mas esse tema será perseguido ao longo da obra, a busca de Francisco de Hollander, filho do professor Sergio de Hollander, pelo paradeiro de seu irmão alemão, que, nascido na Alemanha da década de 1930, teria visto a ascensão do nazismo ao poder. A descoberta da carta, que desencadeará todos os movimentos de Francisco para descobrir o paradeiro de seu irmão, estica um fio que liga o Brasil à Alemanha, o nazismo e a ditadura militar que já estava roçando os calcanhares do protagonista. Duas vidas marcadas pela violência.
Um tema como esse, carregado de historicidade, nas mãos de um escritor que domina as regras do ofício, nos faz pensar que seria difícil errar. Ou, se quisermos ser mais reticentes, diríamos que as chances de acerto seriam altíssimas. Finda a leitura, no entanto, a sensação é de incompletude. Ora, se é escusado dizer que Chico Buarque escreve muito bem, oferece um texto burilado, bem trabalhado, com frases bem construídas, é preciso que se diga que não foi capaz de se colocar à altura da história que escolheu contar. Não se trata, de modo algum, de um trabalho mal-acabado por imperícia. Mas, seu eu precisasse definir o livro em uma palavra, diria que ele é morno.
Chico e Sérgio, sem o irmão alemão
Gostaria de sublinhar aspectos que me parecem enfraquecer o livro. O primeiro deles é a construção dos personagens. Ao longo do livro, quando fala de Sergio de Hollander, Chico Buarque não deixa dúvidas de que fala de seu pai. Quem assistiu o já mencionado documentário sobre ele não terá qualquer dificuldade de identificá-lo nas inúmeras marcas sobre as quais o autor insiste: o cigarro entre os dedos, o hábito de ler com os óculos pendurados na testa, o escritório no segundo andar da casa. Ainda assim, o esquematismo com o qual ele apresenta a rotina de um intelectual chega a ser surpreendente. O “intelectual” descrito por Chico Buarque é, bem pesadas as palavras, caricato.
Outras personagens não têm melhor sorte. Natércia, a colega-superior-amante; o pianista que tinha informações sobre Anne Ernst; o filho do pianista… A voz do narrador, igualmente, está longe de ser empolgante. Ele se dá a ver, quase sempre, por uma lente autodepreciativa. Não é ouvido pelo pai, não é O cara da turma, inveja o irmão bonito e burro que “come todas as meninas”. Em tempo: Chico, lembrado como o poeta que cantou a alma feminina, tem passagens constrangedoras sobre as mulheres com quem o seu narrador convive.
O segundo aspecto que me incomodou com relação ao livro vem da forma mediante a qual ele tratou os dois traumas históricos que servem de baliza para a narrativa, a saber, a ascensão do nazismo, evento de consequências gigantescas, e a Ditadura Militar no Brasil, período no qual transcorre boa parte da trama. A escolha por situar e relacionar a narrativa a esses dois momentos históricos, ligados à vida do autor, não recomenda o andamento, em vários momentos frívolo, a eles imposto. Uma história de amor e de segredos que tenha como eixo traumas históricos do século XX não pode se dar ao luxo de ser amena, quase superficial, sob o risco de fazer com que nossa entrega ao olhar desse narrador sobre a época simplesmente não ocorra.
Ainda que seja sabidamente uma tolice recriminar uma laranjeira por não dar pitangas, acredito que um tema como esse mereceria uma narrativa mais intensa, que fizesse jus às tragédias que, de certo modo, atravessam a vida dos seus protagonistas. Uma vez mais, retorna a questão: por que são tão raras, entre nós brasileiros, as obras artísticas que sejam capazes de traduzir a barbárie que nos cerca? Ok, ok, Chico Buarque não é Thomas Bernhard…
(*) Éder da Silveira é professor da UFCSPA, Doutor em História pela UFRGS e Pós-doutor em História pela USP
Valeu a pena esperar quase uma hora por Padura, que dava uma entrevista de última hora em seu quarto para a Folha de São Paulo. Fiquei muito feliz entrevistando o escritor cubano Leonardo Padura. O resultado físico do encontro é a dedicatória que ele escreveu no meu exemplar de O homem que amava os cachorros, mas o resultado intangível e pessoal foi maior.
Abaixo, a dedicatória:
Para o amigo Milton, com o desejo que a vida lhe sorria e que visite Havana.
Com o abraço cubano de Padura
2015
Foto: Elena Romanov
Por algum motivo incompreensível, eu sabia que nos entenderíamos perfeitamente e que meu roteiro de perguntas era bastante adequado a um autor que lera com boa dedicação. O resultado da entrevistafoi acima da média, porém o que mais gostei foi o que ficou, a pedido de Padura, off the record, confidencial. Fiz algumas perguntas sobre o mercado editorial que foram respondidas como se estivéssemos numa mesa de bar. Adentramos outros temas, como a cidade de Havana e a cultura em geral. Aludi ao fato de ter gostado muito de algumas partes de seu maior romance, deixando no ar certa contrariedade com certas proximidades. Ele entendeu e explicou tudo com lógica e sorrisos. Não faria sentido inserir minhas especificidades pessoais numa entrevista que já tinha cinco laudas, mas fiquei com a impressão de que poderíamos ter ficado horas conversando.
Saí de lá com a Fofonka, conversando sobre como a maioria das pessoas brilhantes não são arrogantes. E também sobre o fato de ele não ter perguntado sobre minha formação em literatura, como costumam fazer algumas sumidades da música porto-alegrense, que dizem que eu não entendo nada de sua arte, apesar do meu conhecimento do repertório. No caso de Padura, bastou lê-lo; no caso da música, não basta ouvir. Piada, né?
Acho vale a pena meus sete leitores darem uma olhada no link da entrevista. O Charlles Campos leu:
Rapaz, finalmente publicou a entrevista. Parabéns, Milton! (Pena que eu, claro, não tive meios de saber antecipadamente do evento, assim teria pedido a você o desconfortável favor de requisitar um exemplar do livro com o autógrafo do Padura, prontificando-me a pagar todas as despesas).
O homem que amava os cachorros, recomendação sua, foi um dos melhores romances latino-americanos que li nos últimos vinte anos. Creio que ele perde apenas para A festa do bode.
Note que Padura nunca externou a pretensão de pertencer ao primeiro time dos escritores cubanos. Ele não almeja nem a erudição de Carpentier, nem o esteticismo mirabolante de Cabrera Infante. Ele se contenta em ser um escritor de gênero_ a literatura cubana tem essa semelhança com a literatura norte-americana: se presta muito bem tanto ao alto cânone quanto a uma excelência de gênero. Há um artigo sobre Padura, publicado na revista Piauí, em que Padura diz que seu desejo é ser, apenas, o Paul Auster cubano. Ele conseguiu superar Paul Auster, que nunca escreveu um livro tão intenso e expressivo quanto O homem que amava os cachorros. O livro está sendo muito bem lido aqui no Brasil, e já se encontra em não sei qual reedição.
Talvez eu esteja ensaiando algo no estilo de Jep “não posso mais perder tempo fazendo coisas que não quero fazer” Gambardella. É verdade, estou velho demais para ficar revoluteando por aí. Claro que o melhor de mim acaba indo sempre para o trabalho, mas, se me organizasse, sei que poderia me livrar de alguns penduricalhos de anos e tornar minha rotina mais satisfatória. Deixando de lado a vida amorosa e os tais pingentes, minha prioridade, atualmente, é o retorno aos autores que mais amo e com os quais mais aprendi. E resolvi abordar novamente Vladimir Nabokov, indo diretamente àquele que é um de seus livros mais fundamentais: A Verdadeira Vida de Sebastian Knight (1941).
Sebastian Knight é o primeiro romance escrito em inglês por Nabokov (1899-1977). Conta-se que foi escrito em um banheiro parisiense, com o autor sentado em uma privada com a tampa fechada. Não haveria lugar melhor disponível. No livro, o narrador, V., pretende escrever a biografia de seu falecido meio-irmão, o obscuro e brilhante romancista russo, Sebastian (1899-1936). O nome Knight vem de sua mãe, de origem inglesa. Os dois irmãos, de pais diferentes, viveram afastados desde a juventude. Na busca por informações e do entendimento da vida do querido autor, ele analisa seus textos e vai atrás de conhecidos e de casos amorosos do irmão.
Nabokov é sempre muito enganador. Às vezes, chegamos a identificar culpa nesta obsessão de descobrir quem seria mesmo este irmão autor de livros tão intrigantes. Por que se encontraram em tão poucas oportunidades? Por que não se conheceram melhor?Outras vezes, parece que tudo é uma tentativa de colocar Knight em seu merecido Olimpo literário, pois a nova biografia refutaria outra, enganosa, escrita pelo ex-assistente de Knight, o Sr. Goodman, de nome A Tragédia de Sebastian Knight. Desprezando o autor, Goodman afirma que Knight estava muito distante da vida real e que, vivendo inteiramente em seu projeto literário, não seria um artista solitário, mas um artista cego ao mundo.
Em qualquer caso, uma sensação de falta percorre toda a narrativa. (Calma, não vou adiantar nada da trama). Só lhes digo que é particularmente interessante a parte final do livro, quando V. busca uma mulher com o qual o irmão teria sofrido uma desilusão amorosa após abandonar a esposa Claire. O livro torna-se poliestilístico ao adotar uma paródia de “livro de detetive”.
Não somos informados sobre o nome ou o sobrenome do narrador. Mais tarde Nabokov escreveu que “V estaria para Victor.” Três interpretações têm sido propostas sobre a relação entre o narrador e biografado: que, como se esperaria, V e SK fossem pessoas efetivamente distintas; que SK inventou o personagem V em um de seus livros ou que V inventou SK, sendo a biografia pura ficção. No fundo, a verdade não nos interessa e todas as interpretações parecem possíveis. O que interessa e fica é a notável beleza de um romance de reconstrução incompleta, regida por um autor de texto e talento ímpares.
O Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens era para ser só festa, como tem sido há 17 anos, mas o que encontrei lá foram editores arrasados com notícias oriundas dos governos federal, capitaneado pelo PT, e do Estado de São Paulo, comandado pelo PSDB. Ambos estão suspendendo compras de livros que deveriam ser entregues a estudantes e professores. Os dois partidos rivais na última disputa presidencial aproximam-se no desprezo à leitura.
Copiado de http://esoemfoco.blogspot.com.br/
O governo de Dilma Rousseff deverá prorrogar para o próximo ano os programas de distribuição de livros literários a escolas públicas previstos para este ano. A informação foi repassada a editores do segmento infantojuvenil por técnicos vinculados ao Ministério da Educação (MEC). Os cortes orçamentários são responsabilizados pela suspensão das compras, não anunciada oficialmente. Mas que, na prática, já está acontecendo no âmbito do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) em função da morosidade no cronograma de atividades, o que equivale a um adiamento.
Os avisos dão conta ainda de que o presidente do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE), Antônio Idilvan Alencar, nomeado pelo ex-ministro Cid Gomes (PROS), argumentou contra os cortes, sendo voto vencido. A justificativa dada pelos técnicos da equipe do novo ministro, Renato Janine Ribeiro, é que cortes precisam ser feitos e as obras de literatura são consideradas menos prioritárias. Prorrogada a entrega dos livros do PNBE, aproximadamente 6,7 milhões de exemplares deixarão de chegar aos leitores de escolas públicas de todo o País este ano.
Grandes números – O outro corte foi assumido semana passado, sendo mais expressivo em números, mas localizado em um só estado. O governo de Geraldo Alckmin informou aos editores a suspensão da chamada pública relativa ao ano de 2013 do Programa Estadual do Livro, responsável por abastecer os Programas Sala de Leitura, Leitura do Professor e Apoio ao Saber nas escolas de ensino fundamental e médio, além daquelas inseridas na Educação de Jovens e Adultos. Cerca de 18 milhões de livros que deveriam estar nas mãos de alunos e professores paulistas desde o ano passado não serão entregues. Os cortes orçamentários também foram responsabilizados pela atitude drástica.
O menosprezo à leitura dissemina-se em outras instâncias: a Prefeitura de São Paulo, há quatro anos, não compra livros de literatura para os programas Minha Biblioteca, Acervo Inicial, Acervo Complementar e Sala de Leitura. Portanto, nas gestões do PSD, de Gilberto Kassab, e de Fernando Haddad, do PT. No município do Rio de Janeiro, a situação é melhor, pois permanecem os projetos de compra para creches e aluno concluinte, embora tenha sido suspenso o programa Biblioteca do Professor, que entregava 16 obras literárias aos docentes. Algo próximo de 370 mil exemplares. E, observo, a Prefeitura, via Secretarias de Cultura e Educação, manteve o apoio ao Salão FNLIJ, viabilizando a presença de 17 mil alunos e a compra de livros pelos professores – os outros patrocinadores foram a Petrobras e o Instituto C&A.
Ainda no âmbito federal, ações do Programa de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) 2014, considerado prioritário na campanha da presidente Roussef, também estão bastante atrasadas. Consultadas sobre atrasos e suspensão dos programas, as Assessorias de Comunicação do MEC e do FNDE, responsável pela execução dessas ações, deram resposta semelhante, que, analisada, só confirma o quadro de descaso.
Diz o email enviado pelo MEC: “Os resultados das avaliações do PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) estão previstos para publicação no dia 29/06. E os do PNBE em outubro/novembro. No caso do PNLD Pacto, os resultados já foram divulgados e os guias finalizados, portanto estão em preparação para aquisição. O PNBE temático também já teve resultado divulgado, mas ainda aguarda avaliação da área responsável, a SECADI”. Abaixo, avalio item por item o estado desses e outros programas.
Tudo indica que o PNLD 2016 está dentro desse prazo anunciado, pois dele não se fala em prorrogação, pelo entendimento de que são livros essenciais de disciplinas como matemática, história, física. E, há duas semanas, em reunião com a Abrelivros (Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares), a Diretora de Apoio à Gestão Educacional da Secretaria de Educação Básica, Manoela Dutra, disse que espera divulgar os resultados na segunda quinzena de junho.
Estranhamento – Quanto ao PNBE, a informação de que só em outubro/novembro sairão os resultados dos livros escolhidos leva à conclusão de que obras de literatura não serão compradas em 2015. Leva-se tempo no processo de negociação com as editoras, e dezembro fica muito próximo da data do anúncio informado pela Comunicação do órgão. O estranho é que, há algumas semanas, tive acesso a uma planilha do MEC com o cronograma do PNBE 2015 que apontava ser o prazo para publicação do resultado das avaliações dos livros escolhidos o dia 28 de julho. Tal data permitiria a entrega dos volumes ainda este ano. O que, reitero, pelo visto, não ocorrerá.
O PNBE temático de 2013 vem sendo negociado com editoras desde setembro de 2014. Até o momento não foram assinados contratos. Portanto, há um atraso de dois anos na entrega das obras de referência destinadas aos alunos dos anos finais do ensino fundamental e médio. O PNBE Indígena 2015 também se encontra sem qualquer notícia. Está atrasada ainda a largada do PNBE de 2016, que deveria ter publicado edital no final de 2014, como era a praxe do calendário do MEC. O órgão alega aos editores que o documento se encontra em fase de confecção, pois houve mudanças na equipe de avaliação e estão sendo preparados novos critérios para a próxima edição. Já o PNBE do Professor 2015 parece ter sido abortado, nada se sabendo dele, e estamos na metade do período letivo.
No caso do PNLD/ PNAIC, que busca garantir a alfabetização das crianças até os oito anos como determina o Plano Nacional de Educação (PNE), a habilitação das editoras já foi concluída. Porém, os contratos, o que inclui definição de tiragem e preço, não foram assinados. O atraso pode não significar nada para burocratas que definem cortes em orçamentos, porém, atrapalha a formação de alunos em seus anos iniciais de aprendizado de Português e Matemática e pode incidir negativamente na meta do PNE. Outro indício que preocupa é a possibilidade do PNAIC do próximo ano não acontecer, pois o FNDE está convocando editores para apresentarem os contratos internacionais – que dizem respeito a obras traduzidas – mas solicitando vigência para 2016.
Transparência – Considero absurdo o governo não adotar transparência e deixar de explicar para a sociedade os cortes de orçamentos, programas e prazos. Também me chama atenção que, naquilo que se refere à literatura infantojuvenil, não exista uma entidade capaz de capitanear as insatisfações e cobrar do governo respostas mais efetivas. Seja de professores, de pais e, especialmente, de editores. Somente no final do mês, um grupo destes últimos participará de audiência pública em Brasília para cobrar transparência nas contas de programas de educação e formação do leitor. A demora e a timidez no enfrentamento mais agressivo da questão provocam a sensação de que associações que cuidam dos negócios do livro no Brasil – como Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), Abrelivros, Liga Brasileira de Editores (LIBRE) e Câmara Brasileira do Livro (CBL) – não se unem, deixando de estabelecer marca representativa e forte na defesa da importância da literatura para crianças e jovens.
Diante de tal desarticulação, talvez esse papel devesse ser assumido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), cujo Salão tem a mesma idade do PNBE – portanto, tendo usufruído do fortalecimento que os programas institucionais de leitura possibilitaram ao segmento. Afinal, embora nele nenhuma mesa tenha se dedicado ao tema dos cortes nos programas, a Secretária-Geral da entidade, Beth Serra, resumiu toda a questão colocada para a sociedade brasileira: “a conquista de 20 anos de programas de leitura não pode ser interrompida”, disse.
Ela falou na abertura da instrutiva palestra da educadora argentina Emília Ferreiro, que apresentou pesquisa sobre como as crianças percebem três instâncias literárias – o autor, os personagens e o narrador – e demonstrou como essa percepção está contaminada pela linguagem das telas digitais. O que me levou a pensar que o Brasil, ao desconsiderar a importância dos programas de leitura nesse cenário dominado pelas tecnologias, poderá fomentar gerações de leitores precários.
Eu amo o mar, mas sou de origem e de alma um sujeito do sertão, que sei de vivência e não de notícia dos Euclides e Guimarães.
Adalberto de Queiróz
Pois eu só conheço o sertão de notícia, Beto, infelizmente só de notícia. A frase acima faz parte de um e-mail que meu amigo enviou-me anos atrás. Falávamos sobre férias, viagens e trabalho. Estava pensando em reler Os Sertões, mas ao notar que ainda não tinha lido o livro de Mario Vargas Llosa sobre Canudos — A Guerra do Fim do Mundo –, escolhi o peruano. O livro fora comprado em 21 de dezembro de 1981, conforme a anotação da primeira página. Nunca fora aberto.
A história de Canudos é riquíssima como documento humano e político. Os acontecimentos são regidos de um lado pelo fanatismo religioso e de outro pelos tortuosos caminhos da política brasileira. Os interessados no conflito são tantos que — guardadas as proporções — às vezes parece que estamos lidando com a Revolução Francesa. Há monarquistas que mudam seus apoios conforme os ventos, há o povo nordestino que tinha Antônio Conselheiro por santo, há os jagunços convertidos, há os republicanos que acabarão por realizar o massacre, há socialistas que viam na ação do Santo Conselheiro uma espécie de vanguarda intuitiva de suas idéias, etc. Ou seja, não é uma história simples e os interesses muitas vezes são acomodados de forma surpreendente.
Porém, o que desejavam os amotinados da terra santa de Canudos? Ora, livrar-se do Anticristo representado pela República e de seus “avanços”. O juramento que os novatos em Canudos faziam explica bem suas motivações:
Juro que não sou republicano, não aceito a expulsão do Imperador nem sua substituição pelo Anticristo. Não aceito o matrimônio civil, nem a separação da Igreja do Estado, nem o sistema métrico decimal. Não responderei às perguntas do censo. Nunca mais roubarei, nem fumarei, nem me embriagarei, nem apostarei, nem fornicarei por vício. E darei a vida por minha religião e o Bom Jesus.
Surpresos com a citação sobre o censo? Canudos era monarquista mas anti-escravatura. A ojeriza ao censo pode ser explicada da seguinte maneira: por que pretendia a República saber a raça e a cor das pessoas senão para, outra vez, escravizar os negros? E por que interessava-se ela pela religião da população, senão para identificar os crentes antes da matança? A rejeição ao sistema métrico decimal tinha motivações ainda mais disparatadas: é que as medidas inglesas eram, digamos, mais monarquistas… Digo-vos, meus caríssimos sete leitores: havia demência no ar. Ainda há hoje, não?
Além do completo massacre dos habitantes da vila de Canudos, houve enorme sacrifício de vidas no exército brasileiro, que não conseguia entender aquela guerra sem ética. Despreparado para ações de guerrilha, o Exército via os amotinados como um inimigo sinuoso, covarde, que se emboscava e desaparecia quando os “patriotas” tentavam encará-lo e que desconhecia as leis e os procedimentos da guerra. Além disto, os amotinados resistiam com inacreditável bravura, certos de que a morte lhes renderia o caminho dos céus. Os soldados, crentes em sua maioria, atacavam outros brasileiros que, paradoxalmente, cantavam hinos ao Senhor sob qualquer pretexto. Isto custou a todos muitas vidas, além de ódio mortal. O episódio Canudos pode ser dividido em 4 campanhas: a primeira e a segunda vencidas facilmente pelos amotinados — o que só fez com que se reforçassem e crescessem –, sendo a terceira foi uma guerra muito longa e tática à espera de reforços e a quarta o massacre no qual foram mortos TODOS os habitantes de Canudos.
O livro não é e nem se tornará um clássico com o de Euclides; é antes um romanção com dezenas de personagens e histórias que se desenvolvem ao mesmo tempo nas várias frentes: Canudos, Exército, jagunços, política e jornais baianos 1, 2 e 3, surpresa e raiva federal, etc. O livro se vale de quatro personagens principais: o monarquista Barão de Canabrava, o republicano Epaminondas Gonçalves, o jornalista míope e o anarquista escocês Galileu Gall. Não é por acaso que o intelectual da história seja um jornalista míope que teve seus óculos quebrados e que anda pela Vila de Canudos sem ver nada claramente.
Por que há tão poucas obras sobre Canudos, por que nosso cinema e a televisão não exploram mais o massacre? Lá foram mortas 25.000 pessoas! Será que Euclides da Cunha, com seu impecável estilo empolado e sua justa aura de fundador da sociologia brasileira, tornou-se intocável? Bobagem, Canudos não é dele. E por que há tantas recriações, abusadas ou não, de Machado de Assis e quase nada da grande história contada por Euclides? Trata-se de um equivocado respeito, de uma distância inexplicável de um fato que fala muito sobre nossa identidade cultural. Por que ignoramos Canudos? Sei lá. O que sei é que veio um peruano destituído deste respeito, fez pesquisas no local e enfrentou a complexa história em 560 páginas. Vale a pena ler, antes ou depois de Os Sertões.
Observações: (1) A charge acima, do El Roto, foi retirada do jornal El Pais e refere-se à Espanha. Deve ser a globalização… (2) Sugiro a leitura do livro no original em espanhol, mesmo para aqueles que têm pouca vivência com a língua. A tradução brasileira deste best-seller (na capa acima) é, digamos, média.
Lembra o Paulo Timm que hoje é o Bloomsday e eu simplesmente ignorei a data. Tem razão o Timm. Esqueci que hoje é o 16 de junho de 1904, o dia em que se passa o Ulysses de Joyce. Em todo o mundo, é o único feriado – falo da Irlanda — dedicado a um personagem de livro, a uma verdade ficcional, no caso Leopold Bloom. Hoje, em Dublin, há atores e leitores refazendo cenas do livro pelas 16h e 19 ruas onde se passa o romance.
Tenho uma boa relação com o livro, que li nas três traduções brasileiras. A melhor disparada é a última, de Caetano Galindo, que saiu pela Penguin. Nos últimos dias, vi que há também uma edição de bolso da mesma editora com o lindíssimo e quente monólogo de Molly Bloom que finaliza o livro (foto abaixo). São mais ou menos 80 páginas de um só parágrafo sem pontuação, um milagre que só o genial Joyce poderia criar e tornar compreensível.
Creio que é ali que Molly conta — entre mil fantasias e recordações — como ela alimentava Bloom no ínicio do namoro, dando-lhe comida já mastigada num boca a boca ao estilo mamãe-pássaro. Pura nojeira poética, uma maravilha do ponto de vista literária.
Há inúmeras referências a Joyce e ao Ulysses neste blog, basta clicar aqui. Quase todas elas são sobre Bloom, mulher e amigos. É um romance que, se não muda uma vida, dá-lhe nova perspectiva e sensibilidades para outras realidades artísticas. Não é um livro fácil, mas dou um conselho aos futuros leitores: leiam Ulysses como se ouvissem uma música, procurem não ficar parando a toda hora para pensar no quebra-cabeças de cada frase. A tradução de Galindo é de longe a mais musical. E, gente, pensem que os escritos poéticos são normalmente inapreensíveis em sua totalidade. Como leitor de Ulysses, digo que, após a leitura, lembrei de algumas daquelas partes incompreensíveis dando-lhes significados que podem ser livres-associações, mas que… Por que não?
O livro é muito explícito e não surpreende que tenha sido acusado de pornografia. Ele é pornográfico ao mais alto e inacreditável grau. Uma de minhas maiores alegrias foi poder falar em público por duas vezes sobre a originalíssima abordagem de Joyce à sexualidade no romance. Digo mais, digo que boa parte dos jovens de hoje encontrariam nele problemas de incorreção política no livro, pois penso que vivemos dias semelhantes aos que viveu Laurence Sterne enquanto escrevia seu Tristram Shandy. Os jovens são mais conservadores do que os velhos e certamente o fato de Gerty McDowell ser coxa acabaria em problema para a dignidade — altíssima — do concupiscente e por vezes feminino Bloom.
Amo este romance e termino este improviso dizendo só mais duas palavras: leiam Ulysses!
Dedicado à memória de Carl Nielsen, no dia dos 150 anos de seu nascimento.
Era uma vez uma pequena família de micróbios que vivia no lado dois de um disco de vinil. Eram três irmãos que moravam com seus pais na Sinfonia Nº 2 de Nielsen, Os Quatro Temperamentos, regida por Leonard Bernstein. Mas chega de números, não quero cansar vocês logo no primeiro parágrafo. Na música gravada, que a família jamais tinha ouvido por não possuir nada que se assemelhasse a uma orelha, cada movimento é curiosamente dedicado a um temperamento — colérico, melancólico, fleugmático e sanguíneo. Os irmãos habitavam um sulco do movimento fleugmático e o disco do qual tratamos está fotografado abaixo, nas mãos do autor desta história verdadeira.
O disco estava sem tocar há anos e os micróbios alimentavam-se e se reproduziam no local. É que como o vinil estava dentro de uma capa sem plástico, os pais iam facilmente ao papelão interno para retirar dele sua comida. Eram muito felizes.
Mas, ontem à noite, ninguém tinha informado à família que era a véspera dos 150 anos do autor daquela música. E o mundo todo começou a girar e vibrar justo quando mãe e pai estavam fora de casa, pois tinham ido até o papelão buscar o jantar.
Cada um dos irmãos tinha uma característica: um era ansioso, passional e gordo, outro era inteligente, fleugmático e bem pequeno e o terceiro era muito burro e oscilava entre o nervosismo do primeiro e a astúcia do segundo.
Mas, contava eu, o disco foi posto finalmente para rodar e eles estavam ficando tontos. Quando o dono virou o lado, eles puderam observar aquela enorme agulha cada vez mais próxima. O micróbio inteligente logo concluiu que aquela coisa brilhante estava percorrendo todo o sulco onde eles brincavam. Na verdade, ele achavam que eram muitos sulcos lado a lado, não apenas um só. Então, ele raciocinou com sua mente poderosa que, quando a coisa passasse quase encostando, rente às suas cabeças, eles deveriam pegar suas dezoito perninhas e pularem para o sulco que fora recém percorrido, porque o próximo seria o da casa deles.
E combinou com seus irmãos o que fazer. Incrivelmente, todos entenderam. Porém, quando a agulha estava a três sulcos de distância, o passional pulou para aquele lado a fim de se garantir mais cedo. A passionalidade é muitas vezes tola e fatal, sabemos. Quando o diamante se chocou contra seu corpo, destroçando-o, o dono do disco ouviu um pequeno chiado e pensou na ação do tempo sobre todas as coisas, inclusive sobre si mesmo. Os dois irmãos sobreviventes notaram que tinham perdido seu irmão, mas logo se consolaram. Sabiam que sua mãe poderia fazer mais.
Quando a agulha passou rente à cabeça dos dois remanescentes, o astuto pulou para o sulco ao lado, mas o dubitativo estava com medo e ficou refletindo se deveria seguir ou não o irmão. E perdeu sua pequena vida. Quando de sua morte, o chiado foi bem alto pois não apenas o vacilante fora decapitado, mas a agulha entrara e saíra rapidamente do buraco-moradia da família. Meus amigos, eu não prometi uma história alegre. Desta forma, só o astutinho permaneceu com vida.
A mãe apenas obteve retornar para casa após o disco ser guardado. Ela estava perdida no papelão sem entender nada. Cadê minha casa? Quando retornou, encontrou apenas o filho esperto. Mas não se surpreendeu. Na verdade, não lembrava quantos tinha. E logo ficou com vontade de fazer mais daqueles bichinhos tão lindos.