Shostakovich: Violin Concerto No. 1 in A Minor, Op. 99: III. Passacaglia. Andante – Cadenza

Prestem atenção na Passacaglia.

Violin Concerto No. 1 in A Minor, Op. 99: III. Passacaglia. Andante – Cadenza · David Oistrakh · New Philharmonia Orchestra · Maxim Shostakovich

Shostakovich: Violin Concerto No. 1, Op. 99

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Benjamin Britten: Peter Grimes: IV. Passacaglia

Prestem atenção na Passacaglia.

Chicago Youth Symphony Orchestras

Benjamin Britten (1913-1976)
Peter Grimes: Sea Interludes, op. 33a & Passacaglia, op. 33b
IV. Passacaglia

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Witold Lutosławski: Concerto para Orquestra

Prestem atenção na Passacaglia.

Witold Lutosławski:
Konzert für Orchester ∙

(Auftritt) 00:00 ∙
I. Intrada. Allegro maestoso 00:18 ∙
II. Capriccio Notturno e Arioso. Vivace 07:25 ∙
III. Passacaglia, Toccata e Corale. Andante con moto – Allegro giusto 13:37 ∙

hr-Sinfonieorchester – Frankfurt Radio Symphony ∙
Edward Gardner, Dirigent ∙

Alte Oper Frankfurt, 25. September 2015 ∙

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Dilúvio das Almas, de Tito Leite

Dilúvio das Almas, de Tito Leite

Por mais que tentemos evitar, muitas vezes os preconceitos mais idiotas se imiscuem em nossos pensamentos. Acho que acontece com todo mundo. Quando soube que Tito Leite, autor deste Dilúvio das Almas, era um monge beneditino, logo pensei na personagem de Isabelle Huppert na quase-comédia Amateur, de Hal Hartley. Lá, ela era uma ex-freira ninfomaníaca, porém virgem, que escreve contos que seriam pornográficos, mas que acabam por serem (má) poesia. Quando recebi o livro da editora Todavia e li as primeiras páginas, surpreendi-me com a alta qualidade do texto, com a sem-cerimônia de falar em sexo — sem grandes descrições, mas sem recuos — e com a firmeza de um excelente narrador.

O livro inicia de uma forma bastante cronística com várias histórias sendo jogadas no papel. Não sabemos onde Tito quer nos levar, mas quando o cenário fica completo, podemos dizer que o romance embica e voa. Leonardo retorna ao Nordeste, mais exatamente para a ficcional Dilúvio das Almas, cidade onde nasceu, após de muitos anos vivendo de todas as formas em São Paulo. Ele é um andarilho, um sujeito relativamente culto que faz de tudo, que trabalha tanto como pedreiro como faz artesanato. Parece não exigir muito da vida. Quer a boa amizade, os bares, as mulheres, seu dinheiro curto e está bem assim. Ah, também quer ir e vir livremente. Quando volta ao sertão, é bem recebido pela mãe e nem tão bem pelo padrasto. E fica por lá para viver ao seu estilo, certamente por uma curta temporada. Mas o retorno lhe mostra claramente a violência e a injustiça que o afastaram dali. E ele muda.

Faz parte da catequese do lugar. Em cara de homem não se bate. Se vai começar uma confusão, que mate logo, e que o serviço seja bem-feito.

O clima do livro vai lentamente se alterando nas mãos hábeis do autor. Como num faroeste, passamos a sentir uma grande tensão escondida sob diálogos curtos e secos. Algumas pessoas morrem, coisa comum no local. Não acontece nada com os assassinos. Com o texto encharcado de realidade, Tito nos demonstra a impossibilidade de não ser tragado pelo ambiente horrível.

Minha opção sempre foi a dos excluídos (…) e ser minoria é o melhor de mim. Minha falta de apego é o que me torna leve e arejado. No entanto, já faz algum tempo que ando como quem usa sapatos de chumbo. Só hoje percebi: já não sou um homem de passos leves.

Não pensem que há algo de Torto Arado no livro de Tito. Há a região e a opressão, mas a forma do texto e da opressão são outras. Sem tirar os indiscutíveis méritos do livro de Itamar, Dilúvio das Almas parece mais profundamente enraizado na tradição literária nordestina. É um Graciliano atualizado, um Jorge Amado dos primeiros romances, um José Lins, um Erico transposto, mas também há muito de Faulkner na prosa de Tito. É um romance curto, sem narrativas paralelas desnecessárias, cada detalhe conta, com tudo contribuindo para o potente clímax, o qual é montado com cuidado ao fazer a liberdade enfrentar os preconceitos, o belo lutar contra o feio. O final você descobre. E descobre que Dilúvio é muito, mas muito, atual.

Não há nada de divino no horror. A cada disparo, é parte de mim que também morre aqui. Hoje, eu também morro. Já não sou um estrangeiro na minha terra. Já não sou um deslocado. Sou apenas mais um dos seus filhos. Agora estou em casa.

Tito Leite

 

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Bamboletras recomenda bailes, cientistas e Joyce

Bamboletras recomenda bailes, cientistas e Joyce

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Benjamin Labatut (1980)

Olá!

Três livros bem diferentes. Sem bossa não há quem possa descreve os antigos bailes do interior e seus causos. Quando deixamos de entender o mundo é um grande sucesso editorial ao perfilar cientistas que perderam a razão (Karl Schwarzschild, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberger e outros). O livro tem mais ou menos a mesma proporção de ficção e não ficção. A ficção aponta a estranheza, a ambiguidade, que a História, a ciência e a não ficção não admitem.  Já Exílios e Poemas é uma demonstração do talento poético e da dramaturgia de James Joyce. Sim, foi muito difícil encontrar algo que una estes livro que não seja a (alta) qualidade.

Uma excelente semana com boas leituras!

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Sem bossa não há quem possa, de Eduardo Rodrigues (Capítulo 1, 143 páginas, R$ 45)

Imagine reunir em um mesmo lugar as melhores orquestras do Brasil e do exterior e as mulheres mais bonitas, elegantes e charmosas da região. Festas com atrações desse nível marcaram gerações. Em General Câmara, o glamour, a alegria e a diversidade dos bailes atraíam casais para a famosa pista do Cassino dos Operários. Tempo de romance ao som de inocentes marchinhas de carnaval, danças de rosto colado e troca de olhares que poderiam significar muito mais do que uma simples paquera. Neste livro, além e acima de tudo, o leitor se divertirá com relatos inéditos e engraçados, contados a rigor e a passeio. Pequenos flashes que exaltam lembranças que os anos não apagam.

Quando deixamos de entender o mundo, de Benjamín Labatut (Todavia, 176 páginas, R$ 59,90)

Em 2012, o matemático japonês Shinichi Mochizuki publicou artigos provando uma das mais importantes conjecturas da teoria dos números. Quando sua prova foi considerada impossível de entender pelos maiores especialistas da área, Mochizuki terminou por se excluir da sociedade, evocando o autoexílio de outro matemático, o lendário Alexander Grothendieck. Haveria alguma conexão enigmática entre esses dois homens? Esse é o ponto de partida de “O coração do coração”, uma das narrativas que o chileno Benjamín Labatut reuniu neste livro que o tornaria uma sensação mundial. Elementos parecidos figuram nos outros textos: cientistas tão geniais quanto atormentados perseguem suas ambições ao custo da saúde física e mental, enquanto os desdobramentos pessoais e históricos de suas descobertas atravessam o tempo e o espaço. Baseando-se em biografias e teorias reais, mas recorrendo à ficção para produzir efeitos estéticos e associações de ideias, o autor explora em seus relatos o entrelaçamento entre a vida íntima e o desbravamento científico. Com um estilo em que ouvimos ecos de W. G. Sebald e Roberto Bolaño, o leitor pode sentir que está diante da montagem hábil de um belo quebra-cabeças.

Exílios e poemas, de James Joyce (Penguin, 368 páginas, R$ 29,90)

Este volume reúne toda a poesia publicada em vida por James Joyce, a peça “Exílios” – que contém temas posteriormente explorados em Ulysses – e um conjunto de notas elaboradas pelo autor durante o processo de escrita. Antes da publicação de Ulysses, James Joyce lançou a peça Exílios em 1918. Nela, o autor explora temas que aparecerão em sua obra magna, como as relações complexas de adultério e desejo. Neste volume estão reunidas a peça e também sua produção poética, sendo possível ter uma visão mais ampla das ideias do autor não só sobre o exílio, como também sobre a própria literatura.

Além da peça e dos poemas, esta edição conta com um conjunto de notas que Joyce elaborou durante o processo de escrita e alguns fragmentos de diálogos não incluídos na versão final do texto.

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Eleição de 2022: o PUM manifesta-se pela primeira vez

Eleição de 2022: o PUM manifesta-se pela primeira vez

Eu devo ser muito teimoso ou burro. Na minha opinião, o fundamental é tirar Bolsonaro do governo, substituindo-o por um outro que ao menos faça política e não nos envergonhe.

Não entendo esse nojinho em relação ao Alckmin. Bolsonaro é perigoso, tem muitos votos e estou disposto a votar no político que possa tirá-lo do posto.

Votaria no Doria, no Leite ou no Ciro ou em quem pudesse enfrentá-lo. Claro que tenho preferências, mas isto não importa no momento. E a Câmara tem de ser muito mudada também.

Acho que alguns perderam o foco ou estão considerando o Boçalnato como vencido. É um erro. O Bozo e seus corruptos estão bem vivos do ponto de vista eleitoral.

Não há nada pior do que Bolsonaro. E política se faz com alianças. É normal e, se você pensar um pouco, verá que é saudável.

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Sobre certa crítica cinematográfica

Sobre certa crítica cinematográfica

Eu e Elena estávamos conversando sobre o filme Lamb e ela disse que não gosta de ler críticas porque ou eles dão spoilers ou veem sentido a detalhes que podem ser meramente casuais… Como as paredes vermelhas em Gritos e Sussurros, completei.

E eu lhe contei uma história com meu pai. Estávamos vendo Tristana, de Luis Buñuel e, de repente, lá pela metade do filme, todo o elenco, que falava francês, passava a falar espanhol.

Na saída, um conhecido crítico explicava a um grupo de pessoas sobre a mudança de idioma. Falava que a elegância e frieza do francês dava lugar à sensualidade e informalidade do espanhol e que aquilo acompanhava o que era contado no filme.

Meu pai ficou contrariado e, desconfiado e cara de pau como era, foi falar com o operador do cinema. O cara lhe explicou que o segundo rolo viera em espanhol por engano e que algum cinema de Recife estava vendo o filme com a primeira metade em espanhol e a segunda em francês…

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Os livros mais vendidos de março na Bamboletras

Os livros mais vendidos de março na Bamboletras

Olá! Mais um mês chega ao final – já estamos em abril, é inacreditável – e com isso temos a lista dos livros mais vendidos da Bamboletras em março!

1 – Faróis do Rio Grande do Sul, de Cláudio Tarta.
2 – A Vida Disfarçada de Contos, de Sandro Farias.
3 – Violeta, de Isabel Allende.
4 – Dicionário de Porto-Alegrês, de Luís Augusto Fischer.
5 – Os Supridores, de José Falero.
6 – O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório.
7 – Tudo é Rio, de Carla Madeira
8 – Mas em que Mundo tu Vive, de José Falero.
9 – Banzeiro Òkotó, de Eliane Brum.
10 – Marrom e Amarelo, de Paulo Scott.

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Bamboletras recomenda três mulheres — uma ficcionista, uma psicanalista e uma vítima da ditadura

Bamboletras recomenda três mulheres — uma ficcionista, uma psicanalista e uma vítima da ditadura

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Marguerite Duras (1914-1996)

Olá!

Não foi planejado, simplesmente aconteceu de sugerirmos três excelentes livros de mulheres: a clássica Marguerite Duras, mais Elisabeth Roudinesco e Ana Maria Ramos Estevão. Duras vem com seu Hiroshima meu Amor, nunca dantes traduzido em nosso país e que deu origem ao filme de Resnais. Roudinesco analisa As lutas identitárias que, segundo ela, reduziram suas áreas de atuação, isolando-se. E o livro de Ana Maria Estevão fala da chamada Torre das Donzelas (argh!), o local onde ficavam as presas políticas da ditadura militar brasileira. Ana foi uma delas.

Uma excelente semana com boas leituras!

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Hiroshima meu amor, de Marguerite Duras (Relicário, 196 páginas, R$ 57,90)

Publicado pela primeira vez em português, Hiroshima meu amor foi concebido originalmente como roteiro para o filme dirigido por Alain Resnais. O filme foi aclamado internacionalmente após seu lançamento em 1959, tendo recebido o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cannes e o Prêmio da Crítica de Cinema de NY. A história de um caso de amor entre um arquiteto japonês e uma atriz francesa que visita o Japão para fazer um filme sobre a paz apresenta uma dupla dimensão: uma íntima e uma histórica. Essas duas dimensões se sobrepõem através da evocação à memória, ao passado, ao esquecimento e ao trauma. Alain Resnais e Marguerite Duras tematizam Hiroshima a partir da premissa de que isto seria impossível após os horrores da bomba atômica. E nessa tentativa de captar algo que testemunho nenhum pode comunicar, que está na essência do sentimento da perda e do trágico, eles realizam uma obra-prima única, de um lirismo incomparável. Este livro apresenta o roteiro e os diálogos originais do filme, que realizam magistralmente o pedido de Resnais feito a Duras: “Faça literatura. Esqueça a câmera.”

O Eu Soberano, de Elisabeth Roudinesco (Zahar, 304 páginas, R$ 89,90)

Ao fazer um balanço do tempo presente e das várias definições de identidade hoje possíveis, a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco analisa neste livro a natureza e os perigos do que chama de derivas identitárias. Depois de vinte anos, os movimentos de emancipação parecem ter mudado de direção. Já não se perguntam como transformar o mundo para que ele seja melhor, mas dedicam-se a proteger as populações daquilo que as ameaça: desigualdades crescentes, invisibilidade social, miséria moral. As pessoas exibem seus sofrimentos, denunciam as ofensas, dão livre curso a seus afetos, como marcadores identitários que exprimem um desejo de visibilidade. Em contraponto, consolida-se uma outra maneira de submeter-se à mecânica identitária: o isolamento. O Eu soberano é um livro provocador em que a autora se pergunta: o que fez com que os engajamentos emancipadores de outrora, notadamente as lutas anticoloniais e feministas, se fechassem de tal forma sobre si mesmas? À luz de Freud e Lacan, das obras de Sartre, Simone de Beauvoir, Aimé Césaire, Fanon, Judith Butler, Foucault e Derrida, Roudinesco tece os fios que unem os debates acerca de identidade, gênero, raça, interseccionalidade, pós-colonialismo, nacionalismo, República, extremismo e religião.

Torre das guerreiras e outras memórias, de Ana Maria Ramos Estevão (Editora 106, 192 páginas, R$ 59,80)

1970, São Paulo, Presídio Tiradentes: na ala dos presos políticos, as mulheres eram encarceradas num prédio alto, conhecido como a Torre das Donzelas. Foi lá que Ana Maria Ramos Estevão, estudante de Serviço Social envolvida com o movimento estudantil e a organização Ação Libertadora Nacional (ALN), passou nove meses de sua vida. Semanas antes, havia sido capturada pelos órgãos de repressão da ditadura brasileira, passando por torturas e interrogatórios. Ao longo de sua trajetória como militante, conheceu tanto os agentes do regime, como o delegado Sérgio Paranhos Fleury e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, quanto seus oponentes, como Paulo Freire, que se tornaria referência mundial em educação, e Dilma Rousseff, presidenta do Brasil três décadas depois. Este livro reúne as memórias de uma mulher que subverteu a delicadeza das “donzelas”, vivendo como guerreira num dos períodos mais sombrios da História do Brasil.

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O Concerto para Piano e Orquestra em Sol Maior de Ravel

O Concerto para Piano e Orquestra em Sol Maior de Ravel
Cartaz da estreia do concerto para piano em 1932

Ravel há muito acalentava a ideia de compor uma obra para piano e orquestra, mas não completaria seus dois concertos para piano (um só para a mão esquerda) até os cinquenta e poucos anos. Uma triunfante turnê pelos Estados Unidos em 1928 solidificou sua reputação como um dos maiores compositores vivos de sua época no mundo, e ele começou a trabalhar em seu Concerto para Piano em Sol no ano seguinte. Ele planejava tocá-lo em uma turnê mundial ainda maior que incluiria não apenas a Europa e os Estados Unidos, mas também a América do Sul e o Leste Asiático.

Assim, é fácil ouvir o concerto como uma espécie de autorretrato musical, um manifesto das crenças artísticas de Ravel. Reagindo contra o heroísmo e o bombástico de muitos concertos do século XIX, Ravel disse que sua nova obra era algo entre Mozart e Saint-Saëns. “A música de um concerto deve, na minha opinião, ser alegre e brilhante, e não visar profundidade ou efeitos dramáticos. Foi dito de certos grandes clássicos (especificamente Brahms) que seus concertos foram escritos não ‘para’, mas ‘contra’ o piano. Eu concordo. Eu pretendia chamar este concerto de Divertissement. Então me ocorreu que não havia necessidade de fazê-lo, porque o próprio título de Concerto deveria ser suficientemente claro.”

Nada mais chato do que um gato. Este é Mouni.

No lugar do pesado e emocionalmente intenso Sturm und Drang, Ravel escreveu música com uma leveza de toque que encanta a mente e os sentidos. Para que ninguém interprete mal sua rejeição à “profundidade”, no entanto, vale a pena mencionar que a música de Ravel – como a de Mozart – muitas vezes revela também enormes profundidades q que o movimento lento deste concerto… Bem, deixamos pra lá.

O concerto abre com o estalo de um chicote. O piano começa em o papel de acompanhamento, enquanto o flautim e o trompete introduzem o lúdico tema principal do movimento. Um solo de piano mais meditativo é ligado a um novo motivo jazzístico no clarinete, trompete e flautim. O solista então introduz um tema secundário amplamente lírico, mas a melodia é interrompida por notas curtas, ácidas e repetidas. Ravel opta por omitir um desenvolvimento tradicional mais longo, talvez em sua busca por um concerto mais “alegre e brilhante”.

O segundo movimento lento é uma das peças de música mais comoventes e belas já escritas. Nçao dá para falar em pouca profundidade. Ele começa com uma longa melodia para piano solo que tem jeito de improvisação. Apesar de sua aparente espontaneidade, Ravel confessou: “Essa frase fluente! Como eu trabalhei com isso! Quase me matou!” A melodia tem grande sutileza rítmica. Não é à toa que Ravel, sempre um artesão consumado, trabalhou tanto tempo em uma de suas criações mais perfeitas.

O final retorna ao humor efervescente do primeiro movimento. Um conjunto de temas curtos gira ao longo desta música alegre, começando com os acordes atrevidos que a iniciam. Duas outras ideias desempenham papéis importantes: uma melodia semelhante a uma marcha baseada em três notas descendentes e fanfarras de metal. Essas e outras ideias concorrem ao longo do movimento em meio às passagens virtuosas do pianista. Em uma reviravolta espirituosa característica, o movimento termina exatamente como começou.

Embora Ravel tivesse se preparado muito para ser o pianista de seu concerto, a doença o impediu de executar a peça. Em vez disso, sua amiga, a pianista Marguerite Long, tocou o solo e Ravel conduziu a orquestra na estreia em Paris em 1932. A turnê mundial também não se concretizou; em vez disso, Ravel teve que se contentar com uma turnê européia mais modesta com Long, durante a qual o concerto foi saudado como uma obra-prima a cada parada.

Infelizmente, este seria um dos últimos trabalhos de Ravel. Ele se calaria depois de 1932, acometido de uma doença neurológica que lhe dificultava escrever, falar e coordenar seus movimentos. Ele faleceu após uma operação cerebral mal sucedida em 1937. Com seu refinamento, eufemismo e alegria irreprimível, o concerto é um testemunho do gênio único de Ravel.

Do alto de seu 1,61m, Ravel tentar dar uma de macho alfa.

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Salvador do Sul

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Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan

Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan

Um livrinho estupendo. Pelo nome, não parece, mas Nurit Bensusan é brasileira, bióloga, e tem alguns livros publicados e premiados — sempre sobre questões socioambientais. Este é seu primeiro livro de ficção e ele não trata diretamente de problemas ligados à biologia ou ao ambiente.

No Alto de Pinheiros — bairro da elite paulistana –, um sem-teto chamado Raimundo vive solitário numa praça próxima a uma sinagoga e a edifícios residenciais. Como não incomoda, mora na praça também sem ser importunado. Mas um dia ele pede para que o rabino distribua alimentos para os pobres. A proposta é aceita. É um estranho pedido de quem não fala com quase ninguém, parece viver de ar e que passa seus dias escrevendo em cadernos e mais cadernos. A aceitação por parte do rabino também é inesperada. A partir deste ponto, a ação bondosa vira problema, pois os habitantes do bairro nobre não veem aquilo com bons olhos.

É esquisita aquela gente que vem pegar comida, eles sujam tudo e, mesmo que o rabino contrate pessoas para fazer a limpeza diária, não adianta, os moradores querem o fim daquilo. Ou seja, a fila de famintos tem que ser retirada dali. Mesmo as domésticas e diaristas acham que aquilo não é para aquela região. Ou seja, o preconceito de classe é algo mais complexo e enraizado do que parece. Acionado, o poder público, representado pela subprefeitura, manda acabar com a distribuição de alimentos sem maiores explicações. Claro, no Brasil há um acordo tácito de tratar de modo diferente as pessoas em razão de sua situação econômica e acesso a bens de serviço. As pessoas de baixa renda “não devem” ter acesso aos mesmos espaços daquelas que são das “classes mais altas”, os pobres devem viver em isolamento social, não precisam ser vistos. O livro também explora o rabo preso de religiosos e alguns dos moradores dos elegantes edifícios. E mais não conto…

Com quantos rabinos usa a primeira pessoa do singular, porém com muitas vozes solistas, à exceção do personagem principal, que só escreve em seus cadernos e não tem revelados seus diálogos com os rabinos — um verdadeiro achado na construção do clima. A polifonia é geral, a dissonância idem. O curioso é que poucos gritam, tudo é um sufoco surdo, é como se estivéssemos assistindo um bando de mímicos em ações não tão cômicas assim. Bensusan rege seu coral com um grande virtuosismo, fazendo com que a ficção efetivamente arranhe a realidade. E, curioso, há espaço para humor no livro.

Recomendo muito.

Nurit Bensusan: escrevendo como Raimundo

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Bamboletras recomenda Roth, grafitti e filósofas

Bamboletras recomenda Roth, grafitti e filósofas

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Philip Roth (1933-2018)

Olá!

Talvez pela primeira vez na história desta newsletter, não colocaremos nenhum livro de ficção em nossas sugestões, culpa dos bons lançamentos em outras áreas. O primeiro é uma suma dos ensaios sobre literatura de Philip Roth. É imperdível, garanto-lhes. O segundo é um belo estudo visual sobre o grafitti porto-alegrense. E o terceiro, mais uma narrativa do extraordinário Wolfram Eilenberger, desta vez sobre o principal grupo de filósofas que surgiu na primeira metade do século passado.

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Por que escrever? Conversas e Ensaios sobre Literatura (1960-2013), de Philip Roth (Cia. das Letras, 568 páginas, R$ 89,90)

Reunindo mais de trinta ensaios, entrevistas e discursos, Por que escrever? traz aos leitores um Philip Roth raro e igualmente excepcional. Fora dos artifícios do romance, ele aqui está mais próximo de si mesmo. Philip Roth foi um dos mais notáveis escritores de língua inglesa do século XX. Dono de uma carreira literária incomparável, dedicada sobretudo à ficção, ele ainda nos legou uma extraordinária coleção de textos não ficcionais — muitos deles para responder a provocações de toda natureza, agradecer o recebimento de algum prêmio ou chorar a morte de um amigo. O resultado dessa produção é uma série de declarações e comentários sobre seu trabalho e dos escritores que admirava, seu processo criativo e a cultura americana. Último volume da obra completa do autor publicado pela Library of America antes de sua morte em 2018, Por que escrever? traz o indispensável de sua não ficção, reunida pela primeira vez em livro: estudos sobre a obra de Kafka e os judeus na literatura, palestras sobre os seus romances mais polêmicos e balanços de uma vida dedicada à escrita.

Poalaroiddes Urbanas, de Breno Serafini (Parangolé, 189 páginas, R$ 69,00)

O livro celebra a capital dos gaúchos a partir do registro de sua arte urbana, principalmente graffitis, que foram captados pelo celular do autor. Nesse sentido, Poalaroides faz um inventário de dez anos de registro fotográfico, com uma variedade de autores e formatos que representam hoje o que a cidade tem de mais significativo nessa arte. O que iniciou como um registro solitário, cotidiano, no final contou com a curadoria visual do artista visual Luís Flávio Trampo, uma referência na arte do graffiti porto-alegrense. O curador comenta a força desse movimento cultural no sul do Brasil. “Essa arte sem fronteiras tem como uma de suas principais características a fácil integração de seus adeptos, que são como agentes multiplicadores dessa manifestação popular. As intervenções nas ruas de Porto Alegre vão além da tinta spray. Muitos artistas (ativistas) usam diversas técnicas e suportes para registrar sua arte, seja colando adesivos e cartazes, seja pintando de uma forma livre. Muros que embelezam e denunciam, expressando uma cidade que pulsa e vibra.”

As Visionárias, de Wolfram Eilenberger (Todavia, 400 páginas, R$ 84,90)

A década de 1933 a 1943 marcou um dos capítulos mais tenebrosos da humanidade. Em meio ao horror da ascensão do nazismo e da carnificina da Segunda Guerra, quatro mulheres — Simone de Beauvoir, Simone Weil, Ayn Rand e Hannah Arendt — libertaram-se dos grilhões do gênero e provaram que a emancipação do pensamento podia ocorrer mesmo em meio a situações extremas. Com grande habilidade narrativa e um equilíbrio magistral entre a apresentação biográfica e a análise acurada de ideias, Wolfram Eilenberger nos oferece a história de quatro vidas hoje legendárias que, em meio à convulsão, mudaram nossa forma de entender o mundo e lançaram as bases para uma sociedade muito mais livre. Seus reflexos chegam até os nossos dias em temas como gênero, identidade, religião, liberdade, sexo e autonomia.

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Judee Sill (1944-1979)

Nascida em Oakland, Califórnia, perdeu o pai, Milford “Bun” Sill, morto devido a uma pneumonia em 1952,e o irmão ainda bem jovem. Sua mãe, alcoólatra, se casou novamente com Ken Muse, um dos responsáveis pela animação de Tom e Jerry. Judee nunca aceitou o fato de sua mãe ter se casado com ele, pois ela não simpatizava sua postura autoritária. Como que por vingança, passou a andar com turmas rebeldes, se envolveu com crimes e drogas (heroína). Correram boatos que Judee chegou a se prostituir para bancar o consumo de drogas. Foi presa uma vez, e na cadeia, conseguiu largar o vício. Decidiu também começar a compor. Era uma pianista e guitarrista talentosa. Ela foi influenciada em suas composições por Bach e Ray Charles. Fez uma viagem de carro cruzando os EUA, com duas garotas, quando tinha 19 anos. Nessa viagem, obteve mais contato com o mundo musical. Quando voltou, conheceu David Geffen, que contratou Judee para gravar um disco pela sua nova gravadora — a Asylum Records. Através de Geffen, Judee conheceu Graham Nash, que produziu o primeiro single para seu disco – Jesus was a crossmaker. Seu primeiro disco, de nome Judee Sill (1971), foi aclamado pela crítica, mas vendeu pouco.  Perfeccionista confessa, Judee podia levar um ano para escrever uma música. Algumas canções ficaram conhecidas por gravações feitas por outros artistas, como a própria Jesus, que foi regravada pelo The Hollies, e Lady-O, pelo The Turtles. O segundo disco, Heart Food, foi lançado em 1973. Infelizmente continha o mesmo problema que o primeiro, não conseguindo muitas vendas, apesar da alta qualidade. Sua fama foi diminuindo, até que ela desapareceu quase que por completo do cenário musical. Não se tem certeza do que aconteceu depois, mas é certo que ela retornou à heroína. Deve ter se envolvido também com cocaína. Morreu de overdose em 23 de novembro de 1979, aos 35 anos.

Sill é um dos cults favoritos para aqueles que descobrem seus raros discos esgotados. Há uma força que atrai algumas pessoas para Sill — raramente seus fãs são casuais. Sua vida foi fascinante e tumultuada. Ela roubou lojas de bebidas e postos de gasolina quando era uma adolescente viciada em drogas. Aprendeu a tocar órgão no reformatório e passou um bom tempo na prisão. Era abertamente bissexual em uma época em que até Freddie Mercury estava no armário.

Mas o que interessa é que a música melódica e estranha de Sill é muito boa. Abaixo, dois belos exemplos da música de Sill: The Kiss, de seu segundo LP, e Jesus Was a Cross Maker, do primeiro.

The Kiss

Love rising from the mists,
Promise me this and only this,
Holy breath touching me, like a wind song
Sweet communion of a kiss

Sun sifting through the grey
Enter in, reach me with a ray
Silently swooping down, just to show me
How to give my heart away

Once a crystal choir
Appeared while I was sleeping
And called my name
And when they came down nearer
Saying, dying is done,
Then a new song was sung
Until somewhere we breathed as one
And still I hear their whisper

Stars bursting in the sky
Hear the sad nova’s dying cry
Shimmering memory, come and hold me
While you show me how to fly

Sun sifting through the grey
Enter in, reach me with a ray
Silently swooping down, just to show me
How to give my heart away

Lately sparkling hosts
Come fill my dreams, descending
On fiery beams
I’ve seen ‘em come clear down
Where our poor bodies lay,
Soothe us gently and say,
Gonna wipe all your tears away
And still I hear their whisper?

Love, rising from the mists
Promise me this and only this,
Holy breath touching me, like a wind song
Sweet communion of a kiss

Jesus Was a Cross Maker

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin’ low for me

One time I trusted a stranger
Cuz I heard his sweet song
And it was gently enticin’ me
Tho there was somethin’ wrong,
But when I turned he was gone.

Blindin’ me, his song remains remindin’ me,
He’s a bandit and a heart breaker,
Oh, but Jesus was a cross maker.

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin’ low for me

He wages war with the devil
A pistol by his side
And tho he chases him out windows
And won’t give him a place to hide,
He keeps his door open wide

Fightin’ him he lights a lamp invitin’ him,
He’s a bandit and a heart breaker,
Oh, but Jesus was a cross maker

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin’ low for me

I heard the thunder come rumblin’
The light never looked so dim
I see the junction git nearer’
And danger is in the wind
And either road’s lookin’ grim
Hidin’ me, I flee, desire dividin’ me,
He’s a bandit and a heart breaker.
Oh, but Jesus was a cross maker
Yes, Jesus was a cross maker

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin’ low for me

One time I trusted a stranger
Cuz I heard his sweet song
And it was gently enticin’ me
Tho there was somethin’ wrong
But when I turned he was gone
Blindin’ me, his song remains remindin’ me,
He’s a bandit and a heart breaker,
Oh, but Jesus was a cross maker.

Discografia:
— Judee Sill (1971) (Asylum)
— Heart Food (1973) (Asylum)
— Dreams Come True (2005) (Water — trabalho inacabado)
— Mas o Youtube traz o que segue:

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Heinrich Biber (1644-1704): Battalia à 10 (1673)

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Atrás do balcão da Bamboletras (XLV)

Atrás do balcão da Bamboletras (XLV)

O telefone toca:

— Livraria Bamboletras.

— Boa tarde, vocês têm o livro do Santiago, “Caderno de Desdenho”?

— Olha, acabou de acabar.

(risadas)

— Ah, que pena!

— Mas pera aí porque ele costuma almoçar aqui do lado e, se tivermos sorte, eu pergunto se ele tem o livro em casa.

Saio da livraria ainda falando no telefone e lá está o Santiago Neltair Abreu almoçando e pontificando com amigos.

— Santiago, tu tem o teu livro em casa? Os nossos acabaram!

— Tenho sim, Milton Ribeiro. Te levo 5 depois do almoço.

— É que tem uma moça que quer dar de presente para um gaúcho que está fazendo aniversário e que mora há décadas em Fortaleza.

— Qual é o nome do cara?

Eu pergunto no telefone.

— É R., Santiago.

— Diz pra ela que ele vai receber um com dedicatória.

Depois vocês pensam que é fácil ser livreiro…

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As Rãs, de Mo Yan

As Rãs, de Mo Yan

Mo Yan (1955) foi o primeiro autor chinês a ganhar o Prêmio Nobel da Literatura, em 2012. Seu nome verdadeiro é Guan Moye. O pseudônimo significa “Não fale” e surgiu durante o período revolucionário da década de 1950, quando seus pais o instruíram a não falar tudo o que pensa quando em público. Curiosamente, ele costuma ser descrito como “um dos mais famosos, banidos e pirateados escritores chineses”. Sem piratarias, foram publicados dois de seus livros no Brasil. O excelente Mudança (Cosac Naify) e este As Rãs (Cia. das Letras).

As Rãs fala de um tema especialmente complicado para o chineses: a gestão e a aplicação da política de controle da natalidade na China — apenas um filho por casal, sistema imposto por décadas. As mulheres grávidas do segundo filho eram forçadas a abortos, muitas vezes sofrendo perseguição policial. Os casais que conseguiam se esconder e tinham mais de um filho eram punidos com severas multas. Como consequência, existem, hoje, cerca de 90 milhões de filhos únicos na China. Eles são conhecidos como “pequenos imperadores”. Em outubro de 2013, no entanto, o governo chinês aboliu a lei em razão do envelhecimento da população, passando a permitir até dois filhos por família. Mas as regras anteriores ofereciam uma série de exceções e ambiguidades. Por exemplo: em grande parte da China rural, a maioria das famílias podia ter um segundo filho, se o primeiro fosse mulher…

O sistema quebrou a tradição chinesa de grandes famílias, fato que, segundo o governo, perpetuava a pobreza no país. Em razão da implementação da política, o número de casos de aborto e abandono de crianças aumentou significativamente, principalmente aquelas do sexo feminino. O governo, porém, preferiu não levar em conta os desdobramentos negativos do programa, apenas se importando com os números. A ordem era de reprimir. Famílias foram arruinadas, casas que escondiam mulheres grávidas foram literalmente destruídas e muita gente morreu nas mãos de autoridades locais que cumpriam as políticas de planejamento familiar de forma cruel e violenta.

Paradoxalmente, Mo Yan descreve tudo de forma simples e bem-humorada, até com certo afastamento, misturando habilmente a para nós curiosa tradição e cultura locais com dramas humanos universais. Nas mãos de um mestre, tal composto resulta em grande e impactante literatura, que percorre a história da China desde a invasão japonesa (1937) até o boom econômico do século XXI.

Em As Rãs, o narrador é o sobrinho de uma enfermeira do Partido Comunista que é capaz dos maiores esforços para evitar o nascimento de segundos filhos numa comunidade rural do interior do país. O autor dirige sua narrativa a um professor de literatura japonês que o incentiva a escrever uma peça de teatro sobre a tal tia.  No geral, o relato aponta — sem julgamentos — o problema. A tia é o tremendo braço do poder naquela localidade. “Não me importo de ser a malvada, alguém sempre terá de ser a malvada. Sei que vocês já me condenaram ao inferno! Uma comunista não acredita nessas coisas, uma materialista de verdade não tem medo de nada!”, diz a tia.

Mentira. O arrependimento dela aparece aqui e ali, principalmente em sua velhice, delineando algumas dúvidas de ordem moral. A linguagem de Mo Yan é falsamente ingênua, contando tudo a certa distância e como se não entendesse bem o que diz. Mas o naive vai ganhando tons escuros e estranhos. Coisa de mestre. Coisa de quem não fala, mas diz. Diz muito e com alta arte.

Mo Yan

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Bamboletras recomenda Faróis, Ritos e um romance sobre jovens

Bamboletras recomenda Faróis, Ritos e um romance sobre jovens

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Recebemos quase 100 exemplares do livro sobre os Faróis do Rio Grande do Sul e vendemos todos em 4 dias! O livro é deslumbrante! Neste nosso “recomenda”, este livro é acompanhado pelo relançamento de um romance do Prêmio Nobel de Literatura de 1983 William Golding e pelo surpreendente Cinco ou seis dias, um grande achado da Dublinense. Sim, o recomenda de hoje está muito bom!

Uma excelente semana com boas leituras!

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Faróis do Rio Grande do Sul, de Cláudio Tarta (Panorama Crítico, 254 páginas, R$ 100,00)

Um livro lindo e um grande sucesso! Este projeto aborda a iluminação das rotas náuticas costeiras e lacustres e o seu papel no desenvolvimento regional e econômico desde a época da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. O extenso registro fotográfico dos faróis da região, com enfoque nos seus aspectos artísticos e paisagísticos, além dos detalhes de sua estrutura interior e dos seus equipamentos seculares de iluminação, demonstra, de maneira inédita em nossa literatura, a preocupação com uma obra completa e que contribua para a preservação desses patrimônios históricos e arquiteturais. O livro traz, ainda, entrevista com o último descendente em atividade de uma geração de faroleiros que marcou a história do Rio Grande do Sul, resgatando essas figuras míticas que, anonimamente e com muita dificuldade, vêm dedicando suas vidas ao árduo e solitário trabalho de iluminar o caminho dos navegantes.

Ritos de Passagem, de William Golding (Alfaguara, 216 páginas, R$ 69,90)

William Golding — Prêmio Nobel e autor do clássico O Senhor das Moscas — mergulha fundo na alma humana para revelar seu lado mais sombrio. Em Ritos de passagem, vencedor do Booker Prize em 1980, o autor mescla a forma epistolar à narrativa histórica para mostrar as fissuras que surgem das diferenças de classe e de cultura. Um romance extraordinário. Em uma viagem à Austrália, no início do século XIX, Edmund Talbot mantém um diário, no qual narra suas aventuras para entreter o tio que ficou na Inglaterra. Talbot é um jovem com uma carreira promissora à frente, no serviço público da Coroa Britânica. Cheio de mordacidade e algum desprezo, ele relata o dia a dia dos marujos e oficiais e descreve os emigrantes em busca de uma nova vida. A bordo de um navio da Marinha inglesa, tripulantes e passageiros têm de conviver em um espaço exíguo, e a tensão entre eles parece cada dia maior. E, aos poucos, os companheiros de viagem começam a exibir sua verdadeira — e sombria — natureza. A situação se agrava quando o jovem e aparentemente ridículo reverendo Colley atrai a antipatia e animosidade dos marinheiros, e a vergonha e humilhação podem se tornar mais perigosas do que o próprio oceano.

Cinco ou seis dias, de Danich Hausen Mizoguchi (Dublinense, 192 páginas, R$ 59,90)

Um livro muito interessante sobre juventude e escolhas. João e Dante são dois amigos recém-saídos da universidade no despertar dos anos 2000. São idealistas e cheios de planos. Enquanto Dante acredita que pode fazer sua parte através de uma empresa inovadora, João tenta entender o mundo a partir da vivência nas ruas. De um lado, a ideia de que uma mudança real possa acontecer de dentro do sistema; do outro, o estado de constante vigilância e o medo de quem decidiu se juntar ao elo mais frágil da sociedade. Entre ideais compartilhados e ações opostas, os dois tentam manter a amizade e os sonhos enquanto lidam com a… falência das suas escolhas.

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Meu Sonho de Cinema — Um velho Bergman que nunca deixei de amar

Do blog do Merten por Luiz Carlos Merten

Em 1966, em Porto Alegre, comecei a escrever sobre cinema – há 56 anos! Muitos de vocês, a maioria?, nem eram nascidos. Em 1974, já estava na Folha da Manhã há bem uns quatro anos. Foi quando estreou Gritos e Sussurros. Havia visto a obra-prima de Ingmar Bergman numa viagem que Doris, minha ex, e eu fizemos a Buenos Aires. O filme causou-me verdadeira comoção. Entrou na mira da censura do regime militar, e quase foi proibido por causa de duas ou três cenas, incluindo aquela em que a personagem de Ingrid Thulin faz um corte na própria vagina com um caco de vidro. Na estreia, veio-me um desejo. Criei um ABC de Bergman para falar, não apenas de Gritos e Sussurros, mas para contextualizar o filme na obra do grande autor sueco. O texto foi publicado em dezembro de 1974 na Folha da Manhã. Integra a seleção de textos que escrevi na imprensa gaúcha e foram reunidos pela Prefeitura de Porto Alegre na Coleção Escritos de Cinema. O volume chama-se Um Sonho de Cinema e, no twitter, vocês vão ver a capa. Rocco e Seus Irmãos! Nos créditos do livro consta meu nome junto ao de Clarice da Silva Alves, na rubrica Seleção e Organização dos Textos. Até onde me lembro, dei carta branca para que ela, e talvez o Marcus Mello, fizessem o que bem entendessem. Fizeram um lindo trabalho. O livro está aqui na minha estante. Vilmar Ledesma me estimulou a republicar textos que são viscerais da minha juventudse. Quem eu era, e quem sou. Começo com esse Bergman. Ao mestre, todo meu carinho. Se interessarem a vocês, pretendo prosseguir com os Escritos, uma vez por semana, que tal?

ARTE-BELEZA-CRIAÇÃO, O ABC DE GRITOS E SUSSURROS

A de ANDERSSON, Harriet. É a atriz que faz Agnes, a personagem cujo sofrimento está no centro do filme. Quando Gritos e Sussurros começa, Agnes está à morte. Suas duas irmãs vieram de longe para assisti-la e se revezam com a empregada, à beira do leito. Era intenção de Bergman evitar todo sensacionalismo na descrição deste leito de morte, o que não o impede de dar uma dimensão patética à figura de Agnes. O rosto crispado de dor, a expressão assustada de quem expõe seu sofrimento ante os olhos dos outros e ao mesmo tempo, certa satisfação de menina rejeitada, que cresceu sozinha e finalmente se descobre no centro de todas as atenções, tudo isso encontramos na personagem de Agnes. Ao criá-la, Harriet Anderson se revela uma extraordinária atriz. Tão perfeita, que corta a respiração do público na cena (dolorosa) da sua “morte”.

B de BERGMAN, Ingmar. Cineasta sueco de 56 anos, nascido em Upsala. Uma carreira polêmica: Bergman foi endeusado pela crítica no Festival de Cannes de 1956, enterrado pela mesma crítica no início dos anos 60. Uma década mais tarde, foi aplaudido de pé pelo público e pelos críticos presentes ao Festival de Cannes de 1973, onde Gritos e Sussurros, exibido fora de concurso, foi considerado a obra-prima do Festival. A abundância de filmes de Bergman (34 em menos de 30 anos de carreira), não é um sinal de facilidade mas, pelo contrário, o resultado de um paciente trabalho de construção intelectual. Cineasta do sexo e também da alma, ele foi muitas vezes acusado de colocar seus temas acima do tempo, de dar-lhes uma dimensão subjetiva e até metafísica. É que Bergman reflexiona os grandes temas da humanidade: a angústia metafísica do homem frente aos mistérios da vida e da morte, do amor e do sexo, da alegria e do sofrimento.

C de CENSURA. Desta vez , para louvar. A mesma censura que mantém afastadas das nossas telas algumas das obras primas mais importantes produzidas pelo cinema mundial nos últimos anos, desta vez houve por bem permitir que Gritos e Sussurros não apenas fosse apresentado, como também fosse apresentado inteiro (que milagre!), à admiração do público. Este respeito (raro!) pela figura de um artista nós gostaríamos de ver aplicado não somente a Bergman, mas também a Stanley (A Laranja Mecânica) Kubrick, Bernardo (Último Tango em Paris) Bertolucci e muitos outros cujas obras estão proibidas no Brasil.

D de DEUS. Desde o seu primeiro trabalho cinematográfico importante, o roteiro de A Tortura do Desejo, de Alf Sjoberg, e depois, através de seus 34 filmes, Bergman, filho de pastor protestante, raramente deixou de perguntar: Deus existe? Esta interrogação apareceu, quase sempre sem resposta, nas entrelinhas de histórias sobre amores juvenis, casais em crise, doença, velhice, solidão e morte. Entre o silêncio de Deus e os tormentos do sexo, Bergman construiu uma obra polêmica, onde só de vez em quando, na fonte que brotava ao final de A Fonte da Donzela, pode-se encontrar uma resposta divina para os anseios espirituais dos seus personagens.

Gritos e Sussurros prossegue com interrogação, mas mostra que Bergman talvez não esteja mais tão angustiado ante a perspectiva de não encontrar uma resposta. A comovida oração que o pastor recita, encomendando a alma de Agnes a Deus é o momento culminante de uma enquete desenvolvida pelo cineasta ao longo de seus 34 filmes. Mas embora sem uma resposta divina, Gritos e Sussurros revela um Bergman mais sereno, menos desesperançado: a esperança, aqui, nasce não de um sinal de Deus mas da solidariedade entre os humanos. Esta esperança nós encontramos no momento em que Karen (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullman) rompem com seu silêncio e se tocam, se falam, ou então na outra cena, sublime, em que Ana (Kari Sylwan) toma sem seus braços a moribunda Agnes para que ela possa descansar em paz.

E de ESTILO, E de EVOLUÇÃO. Ao longo de sua carreira, é sensível a evolução de Bergman, o seu progressivo domínio sobre a linguagem cinematográfica. Na fase mais recente, a construção dos filmes torna-se mais harmoniosa: há um dosado controle do simbolismo e um abandono consciente da iluminação expressionista que caracteriza Noites de Circo, O Sétimo Selo, O Silêncio ou A Hora do Lobo. Para resumir tudo em poucas palavras: a composição da imagem em densidade ou profundidade. É a fase da maestria de Bergman, a fase de A Paixão de Ana, de A Hora do Amor e, sobretudo, deste esplêndido Gritos e Sussurros.

F de FOME. O sexo e a fome, já se sabe, são dois problemas fundamentais do homem. Na Suécia, país onde o povo não se martiriza pela fome, o sexo terminou assumindo uma importância crucial. Sem problemas materiais a infelicitá-los, os suecos acharam no sexo a sua fonte de martírio. O cinema e o teatro da Suécia, as peças de Strindberg, os filmes de Bergman, Alf Sjoberg e Mai Zetterling mostram isso.

O tema da fome é essencial em Gritos e Sussurros, mas é uma fome desesperada de amor, de carinho e comunicação. Ela aparece não apenas na impotência de Agnes frente à doença que devora suas entranhas, mas também na dureza das linhas do rosto de Karen, na futilidade de Maria e na própria força física que emana da figura de Ana, levando-a a ninar o corpo de Agnes, numa inesquecível recriação da Pietá.

G de GRITOS. Há no filme os gritos e os sussurros. Uns e outros calam fundo no público. Se o grito é a expressão da cólera contra a própria infelicidade, o sussurro é como um gemido arrancado ao fundo da alma. O grito fere o ar como uma punhalada, uma chicotada e uma agressão, o sussurro dilacera as entranhas. Bergman mostra.

H de HUMILHAÇÃO. Bergman sempre foi sensível ao tema da humilhação. Todo mundo ainda se lembra, por certo, da cena inicial de Noites de Circo, quando o palhaço era humilhado publicamente, ao carregar o corpo da mulher que tentara o suicídio, por entre os soldados com quem ela o enganara. O próprio sistema burocrático, Bergman assinalava recentemente, é feito de humilhações que alguns homens têm de sofrer nas mãos de outros.

A humilhação, como tema bergmaniano, não poderia estar ausente das imagens de Gritos e Sussurros. Aparece na cena em que Karen corta a vagina com um caco de vidro, para ilustrar, mais do que o desprezo e o ódio pelo marido, o desprezo e o ódio por si mesma. Aparece na cena em que o médico recusa o oferecimento de Maria. Aparece, em alguns momentos, na passividade com que Agnes aceita o seu destino cruel, a dor e o sofrimento.

I de INFÂNCIA. Em muitos filmes de Bergman, respiramos a nostalgia da infância. Um dos grandes momentos de Morangos Silvestres e de toda a carreira do cineasta foi, sem dúvida, aquele que mostrava o velho professor Isaak Borg abandonado no jardim de infância, chamando o seu amor de juventude (Sara! Sara!). Em Gritos e Sussurro, Agnes evoca suas tristes memórias de infância, quando a sua mãe (a deusa Liv Ullman, morena) passeava no belo jardim da casa, quase indiferente aos pedidos de atenção da filha. Num outro extremo, Ana sofre a perda da filha. É por isto, porque uma busca a mãe que não teve e outra a filha que perdeu, que Agnes e Ana estabelecem uma corrente de compreensão e solidariedade.

 

L de LIÇÕES. Num artigo publicado na revista francesa L’Express, logo após o Festival de Cannes do ano passado, o crítico e cineastra François (A Noite Americana) Truffaut assinalou as três grandes lições de Bergman em Gritos e Sussurros: liberação dos diálogos, nitidez radical da imagem e primazia absoluta ao rosto humano. As três colocadas a serviço de um notável estudo da mulher frente aos temas do amor, sexo, dor, sofrimento, vida e morte.

Gritos e Sussurros não é uma peça de literatura, mas é um filme que se compõe de palavras sinceras, de coisas ditadas e silenciadas, de confissões e confidências. O próprio Bergman é o autor dos diálogos deste filme, que contém algumas das falas mais bonitas que o público já ouviu no cinema. Gritos e Sussurros coloca o nome de Bergman entre os dos chamados cineastas “construtores” da imagem (Hitchcock, Eisenstein, Fritz Lang): não há nada no filme que ele não tenha querido mostrar.

Finalmente, Gritos e Sussurros devolve ao rosto humano todas as suas modulações expressivas. Nunca, desde os tempos do dinamarquês Carl Theodor Dryer, com sua obra-prima do cinema silencioso, A Paixão de Joana D’Arc, uma câmera se aproximou tanto do rosto humano. Em cena, estão quatro mulheres: seus rostos são os territórios percorridos pela câmera de Bergman, que devolve ao rosto humano sua primazia. Gritos e Sussurros é uma impressionante sucessão de olhos, bocas, orelhas: olhos que falam, bocas que silenciam, ouvidos presos ao inexorável tic-tac dos relógios que anunciam o tempo, e a morte.

M de MORTE. O problema da morte está ligado ao problema do tempo. A luta do homem contra a morte sempre foi uma luta contra o tempo, no sentido de preservar a vida. No filme de Bergman, Agnes morre mil vezes, a cada tic-tac do relógio que aproxima o momento do desenlace. Bergman nos faz sentir a opressão do tempo desde as cenas iniciais: depois dos planos do jardim, banhado pela luz do amanhecer, penetramos na casa, na atmosfera carregada do quarto, onde os relógios anunciam a Agnes que ela superou mais uma noite. Inicia-se um novo dia na corrida da personagem contra a morte.

N de NYKVIST, Sven. É o fotógrafo preferido de Bergman, premiado pela Academia de Hollywood em 1974 pelo seu trabalho neste filme. A ideia de Gritos e Sussurros nasceu, segundo Bergman, de uma imagem: as quatro mulheres num quarto vermelho. A cor era muito importante: vermelho sempre foi para Bergman, a cor da alma. Por quê, nem ele sabe. Mas foi por isto que ele exigiu de Sven Nykvist um tratamento impressionante de cor. Preto, branco, muito vermelho, são as cores que vemos em Gritos e Sussurros.

Outros detalhes também teriam que ser resolvidos através de uma estreita colaboração entre o cineasta e o diretor de fotografia. Bergman não queria determinar exatamente a época da ação, mas queria dar ao público, uma sugestão de sensualidade. Tudo isto ele conseguiu graças ao trabalho de um senhor fotógrafo, Sven Nykvist.

P de PIETÁ. Todo mundo sabe o que é a Pietá. É uma composição de pintura ou escultura que representa a Virgem, sozinha ou acompanhada com o corpo do Cristo morto. Depois das obras medievais (a famosa Pietá de Avignon), o tema tornou-se frequente sobretudo no Renascimento. Na escultura, a obra mais famosa é a Pietá de Miguel Ângelo, na Catedral  de São Pedro.

Bergman quis fazer a sua Pietá e fez Gritos e Sussurros, colocando Agnes num retorno da própria morte, nos braços de Ana, onde ela finalmente encontra a paz. Momento sublime de cinema, momento inesquecível de significação humana: Ana descobre o seio e envolve Agnes em seu calor. É assim que Agnes encontra a tranquilidade da morte. Esta cena tem uma dimensão fantástica: o milagre que leva à paz. P de Pietá, P de paz reencontrada.

S de SYLWAN, Kari. É a atriz que faz Ana, a empregada que mora sozinha na casa com Agnes. Ana é uma camponesa de beleza um pouco rude. Mas é uma das mais impressionantes figuras de mulher criadas por Bergman. Com uma silhueta barroca, lembrando vagamente a figura física de Simone Signoret, é no seu terno regaço que ela acolhe a moribunda Agnes. Curiosa relação, a destas duas mulheres: uma, Agnes, que não teve da mãe a atenção que queria; a outra, Ana, perdeu a filha querida. É isto afinal de contas, que as aproxima.

T de THULIN, Ingrid. A atriz que faz Karen. Mais velha que Agnes, ela casou com um burguês rico e hoje acumula ódio ao marido e desprezo por si mesma. Ingrid Thulin, uma excelente atriz, é conhecida do público não só por suas participações em filmes de Bergman, mas também por seus papeis em filmes de Vincente Minnelli (Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse) e Luchino Visconti (Os Deuses Malditos). Nenhum destes diretores, porém, nem o próprio Visconti, usou tanto a dureza das linhas do seu rosto. Como Karen, ela projeta uma imagem de pedra: a expressão crispada mal dissimula a violência que ela contém e que a destrói internamente. Mas quando esta natureza se liberta e Maria e ela se entregam a um diálogo cheio de ternura, percebemos o que existe de desolador na sua dureza. Quando o filme termina, Karen voltou a ser o que era. É isto, mais que o silêncio de Deus, que atormenta Bergman hoje em dia: a facilidade com que as pessoas se transformam em carrascos de si mesmos.

U de ULLMAN, Liv. Uma atriz que parece funcionar só nos filmes de Bergman (seus papeis em Hollywood foram desastrosos, ou quase isto), Liv interpreta duas personagens em Gritos e Sussurros. Morena, ela é a mãe, sempre vestida de branco, presença majestosa, envolta numa certa melancolia; como Maria, a mais nova das três irmãs, ela aparece com os cabelos ao natural, castanhos.

Maria é outra personagem bem pintada: é a mulher-criança, mimada, que acha que o mundo deve funcionar à medida dos seus caprichos, sexuais inclusive. Numa cena, ela é comparada a uma boneca: nisto não vai exagero nenhum de Bergman. Quando Agnes a chama para acudi-la no momento trágico de sua morte, Maria foge, Karen também foge, só Ana terá a coragem necessária para enfrentar a situação. Liv Ullman recebeu o prêmio da crítica de Nova Iorque por sua interpretação em Gritos e Sussurros. Qualquer uma das quatro mulheres do filme mereceria a distinção: ao premiá-la, os críticos nova-iorquinos certamente estavam destacando sua beleza, ou o duplo papel.

V de VIDA. O que existe de mais belo em Gritos e Sussurros é que, afinal de contas, este filme sobre a morte termina nos falando sobre a vida. A última imagem é retirada de um trecho do diário de Agnes, que Ana lê após a sua morte. É aquele em que Agnes diz de sua satisfação por receber a visita das irmãs e diz mais, que os passeios que elas fizeram pelo jardim da casa, acompanhadas por Ana, foi um dos momentos mais felizes de sua vida. Na tela, vestidas de branco, contra o verde fundo da relva, aparecem as quatro mulheres. A felicidade, comenta Agnes, é feita de momentos assim. Bergman escolheu esta imagem para encerrar a sua obra-prima. É com ela que o cineasta equilibra todos os instantes dolorosos que vimos antes. Uma imagem serena de vida, com força suficiente para purificar a alma do público.

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Cancele Putin, não a Rússia

Cancele Putin, não a Rússia

O repúdio ao ataque à Ucrânia pelo governo russo não deve ser confundido com a penalização a seus artistas e atletas

CHRISTOPH DE BARRY (AFP)
No El País
Tradução do blogueiro

As ações que condenam a guerra contra a Ucrânia também chegaram ao mundo da cultura e do esporte. Os ministros da Cultura da UE concordaram na semana passada com “a suspensão de projetos e iniciativas culturais e esportivas em andamento” envolvendo a Rússia e com o cancelamento de eventos programados. No comunicado do ministério espanhol, tanto federações quanto clubes são instados a não tomar medidas contra quem rescindir seus contratos com clubes russos ou prejudicar aqueles que decidem suspender atividades programadas com equipes convidadas da Rússia ou da Bielorrússia.

A aplicação dessas medidas é clara em relação às instituições oficiais russas, mas essa clareza desaparece quando desce à infinita variedade de situações individuais que a atividade cultural e esportiva promove. Será necessário ser particularmente escrupuloso para não incorrer na estigmatização de qualquer atleta, artista, músico ou escritor russo como porta-voz ou representante do presidente Vladimir Putin. Qualquer erro nessa área desafiaria o valor da medida e transformaria os países europeus em repressores indiscriminados daqueles que, na realidade, podem ser aliados ativos contra Putin. Os exemplos já divulgados são relevantes e começaram com a renúncia de artistas de alto nível a representar oficialmente a Rússia na Bienal de Veneza em abril. Nem a sua curadora artística, a lituana Raimundas Malasauskas, aceitou a encomenda porque “esta guerra é política e emocionalmente insuportável”. A resposta interna também foi importante. Houve até um manifesto contra a guerra assinado pelos diretores do teatro Bolshoi em Moscou e do teatro Alexandrinsky em São Petersburgo, Vladimir Urin e Valery Fokin, juntamente com artistas como o violinista Vladímir Spivakov ou o ator Oleg Basilashvili.

Não são casos únicos, mas são os que mostram a existência de uma oposição proeminente dentro do país que também precisa de ajuda como a resistência antifranquista, ao mesmo tempo em que um novo exílio na Europa já começou: aquele que escapa de Putin. Esses e outros nomes devem servir como antídotos para a associação preguiçosa entre a cultura russa e a invasão da Ucrânia lançada por um presidente autocrático . O nobre espírito que anima a medida está destinado a prejudicar Putin sem que esse boicote prejudique também a atividade de artistas, criadores e atletas fora das delegações oficiais russas.

A cultura do cancelamento é em si um esporte arriscado, mas arruinar a vida profissional e artística daqueles sem vínculos com Putin seria um grave erro. Apoios como uma bolsa para estudos adicionais fora da Rússia ou ajuda financeira para um projeto artístico não devem ser evidências suficientes para cancelar seus beneficiários sem incorrer em traços xenófobos ou dolorosamente simplistas. O cuidado requintado na aplicação dessas medidas, tanto no campo cultural quanto esportivo, terá que ser o critério central para que a condenação da agressão de Putin contra a Ucrânia não condene a cultura russa fora da Rússia à miséria.

Vladimir Spivakov: culpado de nada

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