Kanouté e o brasileiro Luís Fabiano, autor do outro gol do Sevilla
A paz não passa pelo massacre, por Milton Hatoum
O texto abaixo é o melhor e mais claro que li desde o início dos ataques. Como é cada vez mais raro um escritor brasileiro preocupar-se com seu tempo, saúdo o grande Milton Hatoum — do qual me orgulho ter sido aluno — que parece não alimentar-se apenas de sopas de letrinhas.
Retirado daqui.
I
O veterano jornalista israelense Uri Avneri afirmou várias vezes que o governo de Israel deve negociar com o Hamas, com a Síria e com a Autoridade Palestina a fim de obter um amplo acordo de paz na região. Mas Israel prefere agir militarmente a sentar à mesa de negociação. Isso porque, para Avneri, Israel tornou-se um Estado militarista, dotado de uma arrogância típica de uma potência ocupante.
De fato, a ocupação militar da Cisjordânia é a mais longa da história moderna. A ocupação, o muro que usurpou dez por cento de terras palestinas, a construção ininterrupta de assentamentos de colonos ortodoxos na Cisjordânia e na parte árabe de Jerusalém, tudo isso causa desespero à população palestina e impossibilita qualquer perspectiva de paz.
Quanto à Gaza, ninguém concorda com o lançamento de mísseis (mesmo de baixa potência) contra cidades israelenses, mas o bloqueio de toda a região de Gaza é muito mais do que uma provocação. Trata-se de um deliberado exercício de crueldade aplicado a 1,5 milhão de pessoas. Não menos cruel é o recente bombardeio, iniciado no dia 27 de dezembro de 2008 e que já matou mais de 500 pessoas, sendo mais de cem civis, entre mulheres e crianças. Se esse for o preço a pagar para que os partidos do atual governo israelense ganhem as eleições de fevereiro próximo, então mais uma vez Israel mostra que sua “democracia”, a única no Oriente Médio, é uma aberração. Não há democracia com ocupação militar, muito menos com massacres sistemáticos, prisões arbitrárias e tortura. Isto serve também ao governo “democrático” de George W. Bush, o pior presidente dos Estados Unidos, segundo o escritor Philip Roth.
II
Algo de errado está acontecendo com Israel e seus cidadãos. Durante a Segunda Guerra, quando milhões de judeus já tinham sido assassinados pelos nazistas, o que fez a “comunidade internacional” para deter o Holocausto? Nada. Essa mesma comunidade – países ricos e poderosos, Estados Unidos à frente, mas também países árabes – continua a ser cúmplice de genocídios na África, no Oriente Médio e em todos os países onde os mais fracos são humilhados e massacrados. Não deixa de ser assustador que a maioria da população israelense aceite e até aprove a matança de civis palestinos e a destruição de escolas, hospitais, mesquitas, universidades e de toda a infraestrutura de Gaza.
Sem dúvida há milhares de judeus no mundo todo que condenam essas ações bárbaras das Forças de Defesa de Israel. Mencionei Avneri, mas há vários historiadores e intelectuais judeus que criticam com veemência a política belicosa e expansionista de Israel. Gostaria de citar dois. O primeiro é Richard Falk, relator especial do “Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas para os Territórios Palestinos Ocupados” e professor emérito de Direito Internacional na Universidade de Princeton. No ano passado, bem antes do atual massacre contra o povo palestino, Falk assim relatou o cerco israelense de Gaza:
“Será um exagero irresponsável associar o tratamento dos palestinos às práticas de atrocidades coletivas dos nazistas? Não creio. Os recentes desenvolvimentos em Gaza são particularmente inquietantes porque exprimem de modo evidente uma intenção deliberada da parte de Israel e dos seus aliados de submeter toda uma comunidade humana a condições da maior crueldade que põem em perigo a sua vida. A sugestão de que este esquema de conduta é um holocausto em vias de ser feito representa um apelo bastante desesperado aos governos do mundo e à opinião pública internacional para que ajam com urgência a fim de impedir que estas tendências atuais ao genocídio não conduzam a uma tragédia coletiva”.
III
No artigo Israel e suas bombas nunca quiseram a paz, Haim Bresheeth, professor-titular de Estudos sobre Mídia na University of East London, escreveu:
“O exército de Israel é suficientemente poderoso para destruir todo o Oriente Médio (e, de fato, também para destruir parte importante do ocidente). O único problema é que, até hoje, jamais conseguiu mandar, sequer, no território em que lhe caberia mandar. O mais poderoso exército do mundo está detido, ainda, pela resistência palestina. Como entender essa contradição?
Bem, para começar, Israel jamais trabalhou para construir qualquer paz com os palestinos; jamais usou outro meio que não fossem os meios do extermínio, da limpeza étnica, do holocausto, para matar as populações nativas e residentes históricas na Palestina, desde a fundação do Estado de Israel, em maio de 1948.
Israel expulsou 750 mil palestinos, converteu-os em refugiados e, em seguida, passou a impedir sistematicamente o retorno deles e de seus filhos (hoje, também, já, dos netos deles), apesar das Resoluções da ONU, ao mesmo tempo em que continuou a destruir cidades e vilas, ou – o que é o mesmo – passou a construir colônias de ocupação sobre as ruínas das cidades e vilas palestinas.
Desde 1967, Israel fez tudo que algum Estado poderia fazer para tornar impossível qualquer solução política: colonizou por vias ilegais territórios ocupados por via ilegal e recusou-se a acatar os limites de antes das invasões de 1967; construiu um muro de apartheid; e tornou a vida impossível para a maioria dos palestinos. Nada, aí, faz pensar em esforço de paz. Antes, é operação continuada e sistemática para a limpeza étnica dos territórios palestinos ocupados ilegalmente.
Assim sendo, se a paz implicar – como implica necessariamente – o fim do mini-império construído por Israel, Israel continuará a fazer o que estiver ao seu alcance para que não haja paz, mesmo que a paz lhe seja oferecida numa bandeja, como a Iniciativa de Paz dos sauditas, recentemente, por exemplo. Outra vez, não se entende: se os israelenses só tinham a esperar esse tipo de oferta, se desejassem alguma paz, porque a rejeitaram, praticamente sem nem a considerar?
Faz tanto tempo que Israel rejeita toda e qualquer possibilidade de paz, que a maioria dos israelenses já nem são capazes de ver que rejeitar a paz converteu-se, para Israel, numa espécie de segunda natureza.
Mas o motivo mais aterrorizante pelo qual nenhuma iniciativa de paz jamais teve qualquer chance de prosperar tem a ver, de fato, conosco, com o ocidente.
Israel continua a ser apoiada pelas democracias ocidentais como uma espécie de força delegada, como batalhão ocidental avançado, implantado na entrada do mundo árabe, mais indispensável, tanto quanto mais dependente do ocidente, que regimes-clientes, como os sauditas e como o Iraque de Saddam até 1990.
Como uma espécie de ‘encarnação’ da tese do “choque de civilizações” de Huntington, Israel é, como sempre foi, mais exposta ou mais veladamente, um bastião do mundo judeu-cristão, contra os árabes e o Islam.
Isso já era verdade há décadas, mas jamais foi mais verdade do que na última década, quando a Ordem do Novo Mundo entrou em crise terminal, e começou-se a ouvir falar da “Doutrina do Choque”, de “Choque e Horror”, de várias ‘operações’ tempestade contra os desertos da Ásia e sempre contra os islâmicos.
Israel, não o Iran, possui armas nucleares e é capaz de usá-las – e várias vezes já ameaçou usá-las. Mas fala-se como se o perigo viesse do Iran, não se Israel. Os que propõem a destruição do Iran são os mesmos mercadores de tragédias que impingiram aos EUA e à Inglaterra o custo altíssimo da guerra do Iraque”.(1)
Esse texto do professor Haim Bresheeth resume o que muitos intelectuais pensam sobre o atual massacre. A essas vozes críticas, somam-se o protesto de escritores israelenses como David Grosmann e ativistas do movimento Paz Agora. Todos eles exigem a desocupação dos territórios palestinos, o fim do cerco à Faixa de Gaza e uma imediata abertura de negociações com as partes envolvidas no conflito. Reivindicam também – e com justa razão – o fim do lançamento de mísseis contra a população civil no sul de Israel. Mesmo assim, David Grossman pediu uma trégua imediata e incondicional dos bombardeios israelenses. Claro que não foi atendido, como tampouco foi atendido seu clamor pelo fim do ataque israelense contra o Líbano em agosto de 2006. Ele perdeu um filho nessa outra guerra insana, que matou 150 israelenses e mais de mil libaneses, e destruiu milhares de casas e toda a infra-estrutura do Líbano.
IV
Por fim, um artigo recente Robert Fisk, o mais respeitado correspondente europeu no Oriente Médio, contextualiza a atual agressão israelense aos palestinos de Gaza. O artigo de Fisk – Porque bombardear Asklan é a mais trágica ironia – foi publicado no jornal londrino The Independent (30-12-2008). Vale a pena ler o texto de Fisk, pois assim o leitor saberá quem são os miseráveis moradores de Gaza.
“Como é fácil desconectar o presente da história palestina, apagar a narrativa de sua tragédia e evitar a ironia grotesca de Gaza que, em qualquer outro conflito, os jornalistas estariam descrevendo desde suas primeiras reportagens: qual seja, que os habitantes originais e legais da terra israelense almejada pelos foguetes do Hamas, hoje vivem em Gaza.
Por isso existe Gaza: porque os Palestinos que vivem em Ashkelon e campos ao seu redor – Asklan em árabe- foram destituídos de suas terras em 1948, quando foi criado o Estado de Israel e empurrados para onde residem hoje, na Faixa de Gaza. Eles -ou seus filhos, netos e bisnetos- estão entre um milhão e meio de Palestinos espremidos na fossa séptica de Gaza. 80% dessas famílias viviam no que é hoje o Estado de Israel.
Assistindo os noticiários, tem-se a impressão de que a história começou apenas ontem, que um bando de lunáticos islâmicos barbudos antissemitas apareceu de repente nas favelas de Gaza -um lixão povoado por pessoas destituídas de origem- e começou a atirar mísseis contra o democrático e pacífico Israel, apenas para dar de encontro com a indignada vingança da força aérea israelense. Nessa história simplesmente não consta o fato de que as cinco meninas mortas no campo de Jabalya tinham avós oriundos da mesmíssima terra de onde os atuais habitantes as bombardearam até a morte.
Percebe-se porque tanto Yitzhak Rabin como Shimon Peres declararam, ainda na década de 1990, que desejavam que Gaza simplesmente desaparecesse, ou que sumisse no fundo do mar. A existência de Gaza é um indício permanente das centenas de milhares de Palestinos que perderam suas casas para o Estado de Israel, que fugiram apavorados ou foram expulsos por temor à limpeza étnica executada por Israel há 60 anos, momento em que uma imensa onda de refugiados varria a Europa no pós Segunda Guerra Mundial, e um punhado de árabes expulsos de suas propriedades não importava ao mundo.
Mas agora o mundo deveria se preocupar. Espremido nos poucos quilômetros quadrados mais densamente povoados do mundo, há um povo destituído, vivendo no isolamento, no esgoto, e, durante os últimos seis meses, na fome e no escuro, sancionados pelo Ocidente. Gaza sempre foi insurrecional. A “pacificação” sangrenta de Ariel Sharon, começando em 1971, levou dois anos para ser completada e não vai ser agora que conseguirão dobrar Gaza. Infelizmente para os palestinos, perderam sua mais poderosa voz política – refiro-me a Edward Said e não ao corrupto Yasser Arafat (e como os Israelenses devem sentir sua falta)-, ficando a sua sorte, em grande medida, sem explicação, no que depender dos seus atuais porta-vozes ineptos. “É o lugar mais deplorável que já vi”, disse Said, certa vez, sobre Gaza. “É um lugar terrivelmente triste devido ao desespero e à miséria em que vivem as pessoas. Não estava preparado para encontrar campos que são piores do que qualquer coisa que eu tivesse visto na África do Sul”.
Claro que ficou a cargo da Ministra de Relações Externas, Tzipi Livni, admitir que “às vezes os civis também pagam o preço”, um argumento que ela não usaria se a estatística de mortes fosse invertida. Foi certamente educativo ouvir ontem um membro do Instituto Empresarial Americano -repetindo fielmente os argumentos israelenses- defender o indefensável número de mortos palestinos, dizendo que “não faz sentido entrar no mérito dos números”. No entanto, se mais de 300 israelenses tivessem sido mortos, contra dois palestinos, pode ter certeza que se entraria “no mérito dos números”, e a violência desproporcional seria absolutamente relevante. O simples fato é que as mortes palestinas importam muito menos que as mortes israelenses. É verdade que 180 dos mortos eram membros do Hamas, mas e o restante? Se a estatística conservadora da ONU de 57 civis mortos for verdade, ainda assim seria uma desgraça.
Não é de surpreender que nem os EUA nem a Grã-Bretanha condenem o ataque israelense e ponham a culpa no Hamas. A política norte-americana para o Oriente Médio é indistinguível da israelense, sendo que Gordon Brown está assumindo a mesma devoção de cão à administração Bush, já demonstrada pelo seu antecessor.
Como sempre, os Estados árabes clientes – pagos e armadas pelo Ocidente – permanecem absurdamente em silêncio, convocando uma cúpula árabe para discutir e (se chegar a isso) apontar um “comitê de ação” que redigiria um relatório que jamais será escrito. É assim que funcionam o mundo árabe e seus líderes corruptos. Quanto ao Hamas, este terá, é claro, que suportar a desmoralização dos Estados árabes enquanto cinicamente esperam que Israel fale com eles. É o que farão. De fato, dentro de alguns meses, chegará a notícia de que Israel e Hamas mantêm ‘diálogos secretos’ – assim como outrora ouvimos falar em relação a Israel e a ainda mais corrupta OLP. Mas, até lá, os mortos estarão enterrados e estaremos ingressando na próxima crise do Oriente Médio”. (2)
(1) tradução de Caia Fitipaldi
(2) tradução de Arlene Clemesha
A ilusão da vitória na Faixa de Gaza, por Daniel Barenboim
Por Daniel Barenboim*, (publicado no THE GUARDIAN)
O regente e pianista Daniel Barenboim é judeu, cidadão israelense e cidadão de honra da Palestina.
Tenho apenas três desejos para o ano-novo. O primeiro é que o governo de Israel se conscientize, de uma vez por todas, que o conflito no Oriente Médio não pode ser resolvido por meios militares. O segundo é que o Hamas se conscientize que não defenderá seus interesses pela violência, e que Israel está aqui para ficar. O terceiro é que o mundo reconheça que esse conflito não é igual a nenhum outro em toda a história.
É um conflito intricado e sensível, um conflito humano entre dois povos profundamente convencidos de seu direito de viver no mesmo pedaço de terra. É por isso que não poderá ser resolvido nem pela diplomacia nem pelas armas.
Os acontecimentos dos últimos dias são extremamente preocupantes para mim por várias razões de caráter humano e político.
Embora seja óbvio que Israel tem o direito de se defender, que não pode e não deve tolerar os constantes ataques contra seus cidadãos, os bombardeios brutais sobre Gaza suscitam profundas indagações na minha mente.
Mortes
A primeira é se o governo de Israel tem o direito de considerar todo o povo palestino culpado pelas ações do Hamas. Será que toda a população de Gaza deve ser responsabilizada pelos pecados de uma organização terrorista?
Nós, o povo judeu, deveríamos saber e sentir mais profundamente do que qualquer outro povo que o assassinato de civis inocentes é desumano e inaceitável. Os militares israelenses argumentam, de maneira muito frágil, que a Faixa de Gaza é tão densamente povoada que é impossível evitar a morte de civis.
A debilidade desse argumento me leva a formular outras perguntas. Se as mortes de civis são inevitáveis, qual é a finalidade dos bombardeios? Qual é a lógica, se é que existe alguma, por trás da violência, e o que Israel espera conseguir por meio dela? Se o objetivo da operação é destruir o Hamas, a pergunta mais importante a ser feita é se esse objetivo é viável. Se não é, todo o ataque não só é cruel, bárbaro e repreensível, como também é insensato.
Por outro lado, se for realmente possível destruir o Hamas por meio de operações militares, que reação Israel espera que haja em Gaza depois que isso se concluir? Em Gaza vivem 1,5 milhão de palestinos, que seguramente não cairão de joelhos de repente para reverenciar o poderio do Exército israelense.
Não devemos esquecer que o Hamas, antes de ser eleito, foi encorajado por Israel como tática para enfraquecer o então líder palestino Yasser Arafat. A história recente de Israel me faz acreditar que, se o Hamas for eliminado por meio de bombardeios, outro grupo certamente tomará o seu lugar, um grupo que talvez seja mais radical e mais violento.
Vingança
Israel não pode se permitir uma derrota militar porque teme desaparecer do mapa. No entanto, a história demonstrou que toda vitória militar sempre deixou Israel em uma posição política mais fraca do que a anterior por causa do surgimento de grupos radicais.
Não pretendo subestimar a dificuldade das decisões que o governo israelense precisa tomar a cada dia, nem subestimo a importância da segurança de Israel. Entretanto, continuo convencido de que o único plano viável para a segurança em Israel, no longo prazo, é obter a aceitação de todos os nossos vizinhos.
Desejo para o ano de 2009 a volta da famosa inteligência que foi sempre atribuída aos judeus. Desejo a volta da sabedoria do Rei Salomão para os estrategistas israelenses, a fim de que a usem para compreender que palestinos e israelenses gozam de idênticos direitos humanos.
A violência palestina atormenta os israelenses e não contribui para a causa palestina. A retaliação militar israelense é desumana, imoral e não garante a segurança de Israel. Como disse antes, os destinos dos dois povos estão inextricavelmente ligados e os obriga a viver lado a lado. Eles terão de decidir se querem que isso se torne uma bênção ou uma maldição.
Porque é hoje é sábado, Liv Ullmann
Ontem, vi o último filme do homem que afaga Liv Ullmann e abraça Julia Dufvenius
Queria evitá-lo, como o condenado à morte evita terminar seu derradeiro prato
Mexendo o garfo de um lado para outro, debaixo do olhar indiferente do algoz.
Acho abomináveis os passadistas, saudosistas, decorridos, danificados, apodrecidos senhores
que não prezam a contemporaneidade e o presente, porém…
Porém o ano começava e resolvi finalmente conhecer Sarabanda, de Ingmar Bergman.
Fui à locadora e vim com o ponto final de meu mestre preferido sob o braço
E constatei que o homem de 85 anos, alguém que nascera quando os filmes
Eram em preto e branco
E sem som
Sabia e fazia mais do que o batalhão tecnológico de dólares e entretenimento de hoje.
Será que nossa época — minha geração – só serve para apanhar
a humanidade em vídeo-locadoras?
Será que só serve para vê-la — àquela que Bergman chamava de “meu Stradivarius”
— em antigos filmes?
Pergunto à Liv onde a fórmula das pequenas grandiosidades perdeu-se;
e quando e se voltarão.
Sobre Gaza: por "El Roto", do El Pais
Cai apoio ao ataque em Israel
A humanidade começa a brotar… Espero que ela vote em fevereiro.
Guardian, UK, 1/1/2009 (em http://www.guardian.co.uk/world/2009/jan/01/israel-gaza) :
Pesquisa publicada hoje no jornal Haaretz mostra que baixou de 82 para 52% o número de israelenses favoráveis à continuação dos ataques contra Gaza (ao mesmo tempo, 20% apóiam o cessar-fogo; e 19% são favoráveis à invasão por terra ao território da Palestina). O líder do Hamás, Ismail Haniyeh, exige que cessem os ataques, que o bloqueio econômico seja levantado e que se abram os postos de passagem, como condição para qualquer negociação.
Na primeira indicação de que há divisões entre as autoridades israelenses, o primeiro-ministro Ehud Olmert defendeu pessoalmente que os ataques prossigam, depois de o ministro da Defesa, Ehud Barak – o mais condecorado soldado israelense e ex-comandante do exército – ter dado sinais de aceitar um cessar-fogo de 48 horas.
[…] Olmert reuniu-se com Barak, com a ministra dos Negócios Estrangeiros e com os comandantes militares, para um visivelmente muito tenso encontro de 4 horas, na 4ª-feira à noite. Em reunião do gabinete de segurança, decidiu-se que o bombardeio continuará.
Aparentemente, o governo de Israel está tentando não deixar transparecer qquer divisão interna, para evitar que se repita o que aconteceu na Guerra do Líbano, em 2006, quando divisões internas no governo, sobre o rumo da guerra, provocaram muitas críticas ao governo, até que a opinião pública passou, de uma posição em que a maioria apoiava a guerra, à declarada oposição ao governo e aos comandantes militares.
A maioria dos analistas militares diz que é pouco provável que Israel decida-se a favor da reocupação de Gaza, ocupação considerada impossível, ou excessivamente custosa. E não há tropas posicionadas em terra em quantidade suficiente. Para a maioria, a ameaça é operação de propaganda, que visa a manter sob pânico a população civil local.
Em todo o Oriente Médio, a tentativa de invasão por terra é considerada “situação favorável aos combatentes que lutam nos grupos armados”. Muitos analistas lembram que Israel jamais venceu guerra em situação de guerrilha urbana.
O mais provável é que prossigam os ataques aéreos. Contudo, a situação hoje já não é tão favorável a Israel, como no momento dos primeiros ataques, nem no cenário interno, nem no cenário internacional, e crescem as pressões para pôr fim à violência, tanto pelos governos ocidentais quanto pela ONU e agências de socorro humanitário.
[…] Já há mais de um ano, Israel impede a entrada em Gaza de quaisquer produtos importados (em Gaza, TUDO é importado de Israel). Nos últimos tempos, impede também a entrada de qualquer tipo de ajuda humanitária. Além disso, dada a proibição de que saiam de Gaza quaisquer produtos de exportação, Israel já destruiu toda a estrutura comercial e de negócios na região.
Feliz 2009 e Filmes de 2008
Copiado de um e-mail recebido em 31 de dezembro de 2005, destas pessoas aqui.
Pessoas!
Quase qualquer coisa que se diga ou deseje nessa época corre o risco de soar lugar comum, de ser óbvio, de parecer pouco ou meramente protocolar. Corra-se o risco.
Existe uma quantidade expressiva de pessoas para quem o Natal é desprovido de sentido religioso e, portanto, está muito mais associado aos propósitos da sociedade consumista na qual estamos inevitavelmente mergulhados: movimentação do mercado. Não pensem nesse comentário apenas como uma crítica ácida. A movimentação do mercado pode ser bem utilizada como festividade e como meio para distribuir, na forma de presentes – grandes e caros ou simples, não importa – afeto às pessoas queridas (mas vale frisar que o gasto não basta; há o tempo!).
Não deveria ser assim? Este não é o ideal? Certamente cada um tem o seu próprio conceito de ideal. E para quê toda essa lenga-lenga? É apenas porque eu não enviei mensagem de natal a ninguém e não estou me desculpando, apenas embasando. Foi deliberado e planejado porque prefiro imensamente o significado e efeito da comemoração do Ano Novo.
Sim, todos sabemos que o primeiro dia do ano que começa não difere em absolutamente nada do dia 31 de dezembro. Mas dentro de nós pode ser totalmente outra coisa. O ser humano precisa de símbolos e ritos – isso é fato – e eles podem cumprir um papel importante na nossa saúde emocional e ser um bom motor para mudar o mundo à nossa volta! Enfim: gosto do ano novo! E comemoro-o a rigor desejando com veemência que todas as pessoas de quem gosto possam usufruir de uma bela sensação nessa data.
De mensagem fica mesmo a máxima sempre válida do Walter Franco: “Tudo é uma questão de manter / a mente quieta / a espinha ereta / e o coração tranquilo”. Meta nada simples de se atingir, mas válida como base para qualquer outra coisa que se queira na vida. E que venha 2006(9) e nos encontre fortes e contentes, para que sejamos inteiros e maiores a cada passo.
Laura Paz
Assino embaixo e por todos os lados (como diria o Inagaki).
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Assisti poucos filmes em 2009, mas foram até demais.
Acho que nunca vi tantos filmes regulares como em 2008. Pouca coisa era agressivamente ruim e quase nada era indiscutivelmente bom. Mas acho que dá para salvar 4,5 filmes. Podemos começar por O Segredo do Grão, de Abdel Kechiche, um filme de visceral realismo que tem como tema a singela inauguração de um restaurante dentro de um barco numa cidade portuária da França. Trata do choque cultural entre a comunidade árabe e a francesa, mas é universal ao descrever detalhadamente conflitos familiares. A câmara móvel de Kechiche é apenas aparentada dos filmes do Dogma 95, pois ela não serve para demonstrar movimento ou despojamento, estando mais a serviço da busca de ângulos oiginais, muitas vezes aproximando-se dos atores como se quisesse penetrá-los ou acariciá-los. Outro grande filme foi o romeno 4 meses, 3 semanas e 2 dias, de Cristian Mungiu, Palma de Ouro de 2007. Ele conta a história de duas colegas de quarto obrigadas a uma verdadeira odisséia para que uma delas pudesse realizar um aborto ilegal na Romênia de Ceaucescu. É um filme sem a menor preocupação moral ou religiosa. Descreve como as duas fizeram para livrar-se de uma incomodação. Gabita, a grávida, deixa a operacionalização do aborto para Otilia, sua amiga. Gabita parece indiferente enquanto Otilia faz contatos com aborteiros, porteiros — todos pequenos ditadores cheios de mistérios — e depois trata de livrar-se do corpo do inquilino da amiga. Estes dois filmes têm algo em comum: ambos têm longas cenas que causam enorme angústia ao espectador.
E sim, os dois filmes dos irmãos Coen foram excelentes. Em No Country for old men (Este país não é para velhos em Portugal e um título qualquer no Brasil), a acidez dos Coen cai adequadamente para narrar com frieza uma história amalucada e violenta. Meio western, meio thriller, quase sem trilha sonora e com cenas antológicas, é um grande filme. Já Burn after reading (surpreendentemente Queime depois de ler no Brasil) tem a paranóia americana como alvo. É um filme que conta muita coisa em círculos, não chega a lugar algum e nem quer, mas nos arranca boas risadas. A cena de George Clooney em pânico por motivos que o espectador sabe serem falsos vai para minha galeria pessoal de momentos inesquecíveis.
Disse 4,5 filmes? Pois é, o 0,5 é do excelente Vicky Cristina Barcelona de Woody Allen.
E o Prêmio de MAIOR MICO DE 2009 vai para o discursivo homem de cuecas: Batman – O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight).
Abaixo, a lista completa:
2008/56 – Ainda Orangotangos – Ainda Orangotangos – 2007 – Brasil – Gustavo Spolidoro – 2
2008/55 – O Segredo do Grão – La Graine et le Mulet – 2007 – França – Abdel Kechiche – 5
2008/54 – Luz Silenciosa – Sellet Licht – 2007 – México / França / Alemanha / Holanda – Carlos Reygadas – 3
2008/53 – 007 – Quantum of solace – Quantum of solace – 2008 – EUA / Inglaterra – Marc Forster – 2
2008/52 – Queime depois de ler – Burn After Reading – 2008 – EUA – Ethan e Joel Cohen – 5
2008/51 – Lemon Tree – Etz Limon – 2008 – Israel / Alemanha / França – Eran Riklis – 4
2008/50 – Caos calmo – Caos Calmo – 2008 – Inglaterra / Itália – Antonio Luigi Grimaldi – 3
2008/49 – Vicky Cristina Barcelona – Vicky Cristina Barcelona – 2008 – Espanha / EUA – Woody Allen – 5
2008/48 – Estômago – Estômago – 2007 – Brasil / Itália – Marcos Jorge – 3
2008/47 – Fatal – Elegy – 2008 – Estados Unidos – Isabel Coixet – 5
2008/46 – O pequeno tenente – Le petit lieutenant – 2005 – França – Xavier Beauvois – 3
2008/45 – Ensaio sobre a cegueira – Blindness – 2008 – Canadá / Brasil / Japão – Fernando Meirelles – 3
2008/44 – Reflexos da Inocência – Flashbacks of a fool – 2008 – Inglaterra – Baille Walsh – 4
2008/43 – No Such Thing – No Such Thing – 2001 – EUA – Hal Hartley – 5
2008/42 – Quem disse que é fácil? – ¿Quién dice que es fácil? – 2007 – Argentina / Espanha – Juan Taratuto – 3
2008/41 – Ao Entardecer – Evening – 2007 – EUA / Alemanha – Lajos Koltai – 4
2008/40 – Quando estou amando – Quand j`étais chanteur – 2006 – França – Xavier Giannoli – 3
2008/39 – A Questão Humana – La Question Humaine – 2007 – França – Nicolas Klotz – 2
2008/38 – O Balão Vermelho / O Cavalo Branco – Le Balon Rouge / Crin Blanc: Le Cheval Sauvage – 1956 / 1953 – França – Albert Lamorisse – 4
2008/37 – Meu irmão é filho único – Mio fratello è figlio único – 2007 – Itália – Daniele Luchetti – 4
2008/36 – Amar… Não tem preço – Hors de prix – 2008 – França – Pierre Salvadori – 1
2008/35 – Batman – O Cavaleiro das Trevas – The Dark Knight – 2008 – EUA – Christopher Nolan – 1
2008/34 – Do Outro Lado – Auf der anderen Seite – 2006 – Alemanha / Turquia – Faith Akin – 5
2008/33 – Antes que o diabo saiba que você está morto – Before the devil knows you´re dead – 2007 – EUA – Sydney Lumet – 4
2008/32 – O Banheiro do Papa – El Baño del Papa – 2007 – Uruguai / Brasil / França – Enrique Fernández e César Charlone – 4
2008/31 – O Labirinto do Fauno – El Laberinto del Fauno – 2006 – Espanha / EUA / México – Guillermo del Toro – 3
2008/30 – Jornada da Alma – Prendimi L`Anima – 2003 – França / Itália – Roberto Faenza – 3
2008/29 – Bella – Bella – 2006 – México / EUA – Alejandro Gomez Monteverde – 3
2008/28 – Control – Control – 2007 – Inglaterra – Anton Corbijn – 4
2008/27 – Longe dela – Away from her – 2006 – Canadá – Sarah Polley – 3
2008/26 – A Outra – The Other Boleyn Girl – 2008 – Grã-Bretanha – Justin Chadwick – 2
2008/25 – Sex and the City – Sex and the City – 2008 – EUA – Michael Patrick King – 3
2008/24 – Bloom – Bloom – 2003 – Irlanda – Sean Walsh – 3
2008/23 – Confiança – Trust – 1990 – EUA / Inglaterra – Hal Hartley – 4
2008/22 – A Vida é um Milagre – Zivot je cudo – 2004 – Bósnia / França – Emir Kusturica – 5
2008/21 – A Casa de Alice – A Casa de Alice – 2007 – Brasil – Chico Teixeira – 3
2008/20 – Uma Canção de Amor para Bobby Long – A Love Song for Bobby Long – 2004 – EUA – Shainee Gabel – 3
2008/19 – Margot e o casamento – Margot at the Wedding – 2007 – EUA – Noah Baumbach – 2
2008/18 – Os Amantes – Les Amants – 1958 – França – Louis Malle – 5
2008/17 – 4 meses, 3 semanas e 2 dias – 4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile – 2007 – Romênia – Cristian Mungiu – 5
2008/16 – Tomates Verdes Fritos – Fried Green Tomatoes – 1991 – EUA / Inglaterra – Jon Avnet – 3
2008/15 – Em Paris – Dans Paris – 2006 – França – Christophe Honoré – 4
2008/14 – A Era da Inocência – L`Âge de Ténèbres – 2007 – Canadá – Denys Arcand – 5
2008/13 – O Sonho de Cassandra – Cassandra`s Dream – 2007 – EUA / Inglaterra / França – Woody Allen – 3
2008/12 – Um Beijo Roubado – My Blueberry Nignts – 2007 – China / França / EUA – Kar Wai Wong – 2
2008/11 – Desejo e Reparação – Atonement – 2007 – Inglaterra – Joe Wright – 4
2008/10 – Três Mulheres – Three Women – 1977 – EUA – Robert Altman – 4
2008/9 – M.A.S.H. – M.A.S.H. – 1970 – EUA – Robert Altman – 4
2008/8 – O Caçador de Pipas – The Kite Runner – 2007 – EUA – Marc Forster – 1
2008/7 – Mutum – Mutum – 2007 – Brasil – Sandra Kogut – 5
2008/6 – Maria – Maria – 2005 – EUA / França / Itália – Abel Ferrara – 2
2008/5 – Onde os fracos não têm vez – No Country for Old Men – 2007 – EUA – Ethan e Joel Cohen – 5
2008/4 – Juno – Juno – 2007 – EUA – Jason Reitman – 3
2008/3 – Meu nome não é Johnny – Meu nome não é Johnny – 2008 – Brasil – Mauro Lima – 2
2008/2 – A Desconhecida – La Sconosciuta – 2006 – França – Giuseppe Tornatore – 2
2008/1 – Coisas que perdemos pelo caminho – Things we lost in the fire – 2007 – EUA / Grã-Bretanha – Susanne Blier – 3
Legenda para as notas:
5 – Não deixe de ver
4 – Muito bom
3 – Vale a tentativa
2 – Medíocre
1 – Uma bomba
0 – Além de bomba, mal-intencionado
Latuff: O Gueto de Gaza
Por que Israel bombardeia uma universidade?
Pelo Dr. Akram Habeeb, da Faixa de Gaza ocupada, da Palestina, 29/12/2008
(em http://electronicintifada.net/v2/article10069.shtml)
Sou bolsista da Fundação Fulbright e professor de literatura norte-americana na Universidade Islâmica de Gaza. Nessa condição, sempre preferi manter-me afastado do conflito Israel-Palestina. Sempre entendi que meu dever é ensinar os valores da paz e da convivência pacífica.
Mas o ataque massivo de Israel contra a Faixa de Gaza obriga-me a manifestar-me.
Ontem à noite, durante a segunda noite de ataques de Israel a Gaza, os mais violentos de que há notícia por aqui, fui acordado pelo ruído ensurdecedor de bombardeio continuado, cerrado. Quando me dei conta de que Israel bombardeava a minha universidade, com F-16s fabricados nos EUA, vi que os “ataques seletivos” já nada tinham de seletivos.
Políticos e generais israelenses têm dito que a Universidade Islâmica de Gaza seria ‘aparelho’ do Hamás e que forma terroristas. É mentira.
Como professor independente, não filiado a partido político, afirmo que a Universidade Islâmica de Gaza – como as Universidades Católicas e as Universidades Pontifícias, que há no Brasil e em todo o mundo – é instituição acadêmica que abarca um larguíssimo espectro de tendências políticas. Conheço-a bem, como universidade de prestígio em todo o mundo, que estimula o liberalismo e a livre exposição e circulação de idéias.
Se meu depoimento parecer excessivamente pessoal e comprometido, convido todos a visitarem a página da UIG, na Internet (ing. Islamic University of Gaza website, em http://www.iugaza.edu.ps/eng/), e pesquisarem sua história, seus departamentos, os estudos que se desenvolvem ali.
Lá se informarão sobre a participação da Universidade Islâmica de Gaza em inúmeras instituições acadêmicas em todo o mundo, o trabalho de pesquisa de seus professores, prêmios e bolsas de estudo e pesquisa que recebem de instituições de todo o mundo.
Por que Israel bombardearia uma universidade? Não sei.
Mas Israel ontem não bombardeou apenas minha universidade: bombardeou mesquitas, farmácias e casas de família. No campo de refugiados em Jabaliya, o bombardeio matou quatro meninas pequenas, todas da família Balousha. Em Rafah, mataram três irmãos, de 6, 12 e 14 anos. Também mataram mãe e filho, um menino de um ano, da família Kishko, na cidade de Gaza.
São atos que nada justifica, em nenhum caso. Penso no que Deus ordenou ao Povo Eleito: Não matarás. Não invadirás a casa de teu vizinho. Deus não elegeria seu povo, nem povo algum, para matar os vizinhos e roubar a terra em que todos plantam o que todos comem. As escolhas que Israel está fazendo são escolhas do governo de Israel. O governo de Israel escolheu matar palestinenses. Pratica aqui genocídio semelhante ao que outros impérios invasores e ocupantes praticaram em outras partes do mundo, contra populações autóctones. Nenhum genocídio é admissível.
O Dr. Akram Habeeb é professor assistente de Literatura Norte-americana na Universidade Islâmica em Gaza.
Gaza
Por José Saramago
A sigla ONU, toda a gente o sabe, significa Organização das Nações Unidas, isto é, à luz da realidade, nada ou muito pouco. Que o digam os palestinos de Gaza a quem se lhes estão esgotando os alimentos, ou que se esgotaram já, porque assim o impôs o bloqueio israelita, decidido, pelos vistos, a condenar à fome as 750 mil pessoas ali registadas como refugiados. Nem pão têm já, a farinha acabou, e o azeite, as lentilhas e o açúcar vão pelo mesmo caminho.
Desde o dia 9 de Dezembro os camiões da agência das Nações Unidas, carregados de alimentos, aguardam que o exército israelita lhes permita a entrada na faixa de Gaza, uma autorização uma vez mais negada ou que será retardada até ao último desespero e à última exasperação dos palestinos famintos. Nações Unidas? Unidas? Contando com a cumplicidade ou a cobardia internacional, Israel ri-se de recomendações, decisões e protestos, faz o que entende, quando o entende e como o entende.
Vai ao ponto de impedir a entrada de livros e instrumentos musicais como se se tratasse de produtos que iriam pôr em risco a segurança de Israel. Se o ridículo matasse não restaria de pé um único político ou um único soldado israelita, esses especialistas em crueldade, esses doutorados em desprezo que olham o mundo do alto da insolência que é a base da sua educação. Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado.
Reproduzido de : http://www.iela.ufsc.br/?page=noticia&id=744
Gaza é assim
À esquerda, o Mar Mediterrâneo, no meio a Faixa de Gaza com 5000 habitantes por Km², depois um enorme muro e, à direita, a bucólica agricultura. Só entra e só sai o que Israel permite. Veja no Google Earth detalhes sobre o maior campo de concentração da humanidade. E, com menos detalhes, aqui.
Genocídio, sim + Carta aberta de Uri Avnery a Barack Obama
A Faixa de Gaza é um território situado no Oriente Médio limitado a norte e a leste por Israel e a sul pelo Egito. É um dos territórios mais densamente povoados do planeta, com 1,5 milhão de palestinos para uma área de 300 Km², ou seja, sua densidade demográfica é de estupefacientes 5000 habitantes por Km². Atualmente a Faixa de Gaza não é reconhecida internacionalmente como pertencente a um país soberano. O espaço aéreo e o acesso marítimo a ela são controlados pelo estado de Israel.
5000 habitantes por quilômetro quadrado. Isto significa dizer que, se Israel jogar bombas a esmo, matará. Também significa dizer que os “alvos militares” estão certamente misturados a residências de civis.
Israel, antes dos ataques, já mantinha os habitantes de Gaza sob constante fome. É claro que tudo o que é consumido em Gaza é produzido fora. O “país” são alguns bairros lotados de gente. Gaza é uma prisão a céu aberto vista com indulgência por nós, ocidentais. Os israelenses decidiam o que poderia entrar no “país”. Só que há o Hamas, que conseguia trazer foguetes de pequeno porte para dentro de Gaza e os lança. É natural, meus amigos. No Brasil, quem tenta fugir da cadeia não tem sua pena aumentada, pois é considerado normal que o oprimido — e não importa seu crime — procure libertar-se.
Então, Israel passou a racionar drasticamente os víveres que entravam em Gaza. Tudo para criar um conflito que justificasse o atual genocídio. Sim, é um genocídio. Perguntei a dois amigos judeus se eles se ofenderiam se eu dissesse que as atitudes de Israel são comparáveis com o holocausto judeu promovido por Hitler. Não, acham normal que eu diga isso. Aquilo e isto são genocídios. Um deles apenas pediu para que eu não dissesse que aquilo era feito por judeus, pediu que eu acusasse Israel e seu atual governo.
Estou muito tranquilo para dizer que esses ataques são matança pura e simples, digo serenamente que Israel quis os foguetes do Hamas para justificar ao mundo seu Auschwitz particular. E o mundo ocidental, ainda culpado por fatos ocorridos há mais de 60 anos e adubados por filmes americanos que retratam um holocausto real e indiscutível, vê a reedição de fatos que nunca deveriam se repetir sob seus narizes. É uma vergonha sem fim para toda a humanidade.
Porém, um dia, provavelmente quando eu já estiver morto, haverá uma enorme guerra contra Israel. Há 1 bilhão de árabes quase desarmados e 7 milhões de israelenses competentíssimos e preparados para guerra. Um dia isso muda. Eu não quero ver como será a vingança, mas que ela virá, tenho certeza.
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O Diário Gauche publicou um post que demonstra a perda de território a que os palestinos foram submetidos por Israel e os EUA. Vejam abaixo a consequência das repetidas guerras. Mas acho melhor vocês verem o mapa lá no post do Diário Gauche, pois meu blog está tão estranho que não aceita imagens maiores do que 35-40K.
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Carta aberta de Uri Avnery a Barack Obama
(esta é uma carta aberta escrita por Uri Avnery, 85 anos, ex-deputado do Knesset, soldado que ajudou a fundar Israel em 1948 e que há décadas milita pela paz. A tradução ao português é de Idelber Avelar. O pedido de divulgação vai a todos os que desejam uma paz duradoura, nos termos já reconhecidos pela comunidade internacional).
As humildes sugestões que se seguem são baseadas nos meus 70 anos de experiência como combatente de trincheiras, soldado das forças especiais na guerra de 1948, editor-em-chefe de uma revista de notícias, membro do parlamento israelense e um dos fundadores do movimento pela paz:
1)No que se refere à paz israelense-árabe, o Sr. deve agir a partir do primeiro dia.
2)As eleições em Israel acontecerão em fevereiro de 2009. O Sr. pode ter um impacto indireto, mas importante e construtivo já no começo, anunciando sua determinação inequívoca de conseguir paz israelo-palestina, israelo-síria e israelo-pan-árabe em 2009.
3)Infelizmente, todos os seus predecessores desde 1967 jogaram duplamente. Apesar de que falaram sobre paz da boca para fora, e às vezes realizaram gestos de algum esforço pela paz, na prática eles apoiavam nosso governo em seu movimento contrário a esse esforço.
Particularmente, deram aprovação tácita à construção e ao crescimento dos assentamentos colonizadores de Israel nos territórios ocupados da Palestina e da Síria, cada um dos quais é uma mina subterrânea na estrada da paz.
4)Todos os assentamentos colonizadores são ilegais segundo a lei internacional. A distinção, às vezes feita, entre postos “ilegais” e os outros assentamentos colonizadores é pura propaganda feita para mascarar essa simples verdade.
5)Todos os assentamentos colonizadores desde 1967 foram construídos com o objetivo expresso de tornar um estado palestino – e portanto a paz – impossível, ao picotar em faixas o possível projetado Estado Palestino. Praticamente todos os departamentos de governo e o exército têm ajudado, aberta ou secretamente, a construir, consolidar e aumentar os assentamentos, como confirma o relatório preparado para o governo pela advogada Talia Sasson.
6)A estas alturas, o número de colonos na Cisjordânia já chegou a uns 250.000 (além dos 200.000 colonos da Grande Jerusalém, cujo estatuto é um pouco diferente). Eles estão politicamente isolados e são às vezes detestados pela maioria do público israelense, mas desfrutam de apoio significativo nos ministérios de governo e no exército.
7)Nenhum governo israelense ousaria confrontar a força material e política concentrada dos colonos. Esse confronto exigiria uma liderança muito forte e o apoio generoso do Presidente dos Estados Unidos para que tivesse qualquer chance de sucesso.
8)Na ausência de tudo isso, todas as “negociações de paz” são uma farsa. O governo israelense e seus apoiadores nos Estados Unidos já fizeram tudo o que é possível para impedir que as negociações com os palestinos ou com os sírios cheguem a qualquer conclusão, por causa do medo de enfrentar os colonos e seus apoiadores. As atuais negociações de “Annapolis” são tão vazias como as precedentes, com cada lado mantendo o fingimento por interesses politicos próprios.
9)A administração Clinton, e ainda mais a administração Bush, permitiram que o governo israelense mantivesse o fingimento. É, portanto, imperativo que se impeça que os membros dessas administrações desviem a política que terá o Sr. para o Oriente Médio na direção dos velhos canais.
10)É importante que o Sr. comece de novo e diga-o publicamente. Idéias desacreditadas e iniciativas falidas – como a “visão” de Bush, o “mapa do caminho”, Anápolis e coisas do tipo – devem ser lançadas à lata de lixo da história.
11)Para começar de novo, o alvo da política americana deve ser dito clara e sucintamente: atingir uma paz baseada numa solução biestatal dentro de um prazo de tempo (digamos, o fim de 2009).
12)Deve-se assinalar que este objetivo se baseia numa reavaliação do interesse nacional americano, de remover o veneno das relações muçulmano-americanas e árabe-americanas, fortalecer os regimes dedicados à paz, derrotar o terrorismo da Al-Qaeda, terminar as guerras do Iraque e do Afeganistão e atingir uma acomodação viável com o Irã.
13)Os termos da paz israelo-palestina são claros. Já foram cristalizados em milhares de horas de negociações, colóquios, encontros e conversas. São eles:
a) estabelecer-se-á um Estado da Palestina soberano e viável lado a lado com o Estado de Israel.
b) A fronteira entre os dois estados se baseará na linha de armistício de 1967 (a “Linha verde”). Alterações não substanciais poderão ser feitas por concordância mútua numa troca de territórios em base 1: 1.
c) Jerusalém Oriental, incluindo-se o Haram-al-Sharif (o “Monte do Templo”) e todos os bairros árabes servirão como Capital da Palestina. Jerusalém Ocidental, incluindo-se o Muro Ocidental e todos os bairros judeus, servirão como Capital de Israel. Uma autoridade municipal conjunta, baseada na igualdade, poderia se estabelecer por aceitação mútua, para administrar a cidade como uma unidade territorial.
d) Todos os assentamentos colonizadores de Israel – exceto aqueles que possam ser anexados no marco de uma troca consensual – serão esvaziados (veja-se o 15 abaixo)
e) Israel reconhecerá o princípio do direito de retorno dos refugiados. Uma Comissão Conjunta de Verdade e Reconciliação, composta por palestinos, israelesnses e historiadores internacionais estudará os fatos de 1948 e 1967 e determinará quem foi responsável por cada coisa. O refugiado, individualmente, terá a escolha de 1) repatriação para o Estado da Palestina; 2) permanência onde estiver agora, com compensação generosa; 3) retorno e reassentamento em Israel; 4) migração a outro país, com compensação generosa. O número de refugiados que retornarão ao território de Israel será fixado por acordo mútuo, entendendo-se que não se fará nada para materialmente alterar a composição demográfica da população de Israel. As polpuldas verbas necessárias para a implementação desta solução devem ser fornecidas pela comunidade internacional, no interesse da paz planetária. Isto economizaria muito do dinheiro gasto hoje militarmente e a partir de presentes dos EUA.
f) A Cisjordânia, Jerusalém Oriental e a Faixa de Gaza constituirão uma unidade nacional. Um vínculo extra-territorial (estrada, trilho, túnel ou ponte) ligará a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.
g) Israel e Síria assinarão um acordo de paz. Israel recuará até a linha de 1967 e todos os assentamentos colonizadores das Colinas de Golã serão desmantelados. A Síria interromperá todas as atividades anti-Israel, conduzidas direta ou vicariamente. Os dois lados estabelecerão relações normais.
h) De acordo com a Iniciativa Saudita de Paz, todos os membros da Liga Árabe reconhecerão Israel, e terão com Israel relações normais. Poder-se-á considerar conversações sobre uma futura União do Oriente Médio, no modelo da União Européia, possivelmente incluindo a Turquia e o Irã.
14)A unidade palestina é essencial. A paz feita só com um naco da população de nada vale. Os Estados Unidos facilitarão a reconciliação palestina e a unificação das estruturas palestinas. Para isso, os EUA terminarão com o seu boicote ao Hamas (que ganhou as últimas eleições), começarão um diálogo político com o movimento e sugerirão que Israel faça o mesmo. Os EUA respeitarão quaisquer resultados de eleições palestinas.
15)O governo dos EUA ajudará o governo de Israel a enfrentar-se com o problema dos assentamentos colonizadores. A partir de agora, os colonos terão um ano para deixar os territórios ocupados e voluntariamente voltar em troca de compensação que lhes permitirá construir seus lares dentro de Israel. Depois disso, todos os assentamentos serão esvaziados, exceto aqueles em quaisquer áreas anexadas a Israel sob o acordo de paz.
16)Eu sugiro ao Sr., como Presidente dos Estados Unidos, que venha a Israel e se dirija ao povo israelense pessoalmente, não só no pódio do parlamento, mas também num comício de massas na Praça Rabin em Tel-Aviv. O Presidente Anwar Sadat, do Egito, veio a Israel em 1977 e, ao se dirigir ao povo de Israel diretamente, mudou em tudo a atitude deles em relação à paz com o Egito. No momento, a maioria dos israelenses se sente insegura, incerta e temerosa de qualquer iniciativa ousada de paz, em parte graças a uma desconfiança de qualquer coisa que venha do lado árabe. A intervenção do Sr., neste momento crítico, poderia, literalmente, fazer milagres, ao criar a base psicológica para a paz.
Chico Buarque
Tinha 9 anos quando meu pai trouxe para casa o recém-lançado vinil “Chico Buarque de Hollanda”. Na capa, duas fotos de Chico – uma sorridente e outra sério – sobre fundo azul contínuo. Ali havia “A Banda”, “Olê Olá”, “Pedro Pedreiro”, “Você Não Ouviu”, “Tem Mais Samba”, “A Rita”, “Juca” e mais 5 músicas. Tal como os discos dos Beatles que ouvia com minha irmã, era um vinil de que se podia ouvir todas as canções. Não havia nada de segunda linha. Depois, continuamos a acompanhar a carreira de Chico comprando cada um de seus discos, até os italianos. Como muitos brasileiros, posso cantar muitíssimas músicas dele; faz parte da vida e da memória de nosso país e, quando meu pai faleceu, uma das poucas coisas que fiz questão de pegar foi este vinil.
Dia desses, vi numa comunidade do orkut pessoas escolhendo suas letras preferidas de Chico. É complicado — a audição ou leitura da obra de Chico mais parece antologia de grande autor do que obras completas –, são muitas letras notáveis e cada um só podia escolher três. A escolha passa necessariamente por nossas preferências pessoais e pelas idiossincrasias de cada um… Bem, eu meti a colher escolhendo “Eu te amo”, “Flor da Idade” e “Moto-contínuo”.
Depois, deitado em busca de sono, decidi que gostava mais da letra de “Moto-contínuo”. Em primeiro lugar por causa da perfeita combinação com a música de Edu Lobo, em segundo lugar por ser uma música sobre um assunto raro: a fé do homem e a fé no homem. Quem chamou minha atenção para esta letra foi meu amigo Alejandro Borche Casalas, pois, quando a ouvi pela primeira vez no vinil “Almanaque”, fiquei tão hipnotizado pela música de Edu que deixei de lado a letra, que pareceu-me confusamente dedicada a alguma musa de Chico… Engano crasso. Alejandro, num final de noite de 1982, perguntou-nos: sobre o que fala esta música? Não lembro de minha resposta nem das dos amigos. Lembro que ninguém disse que era sobre a fé. Como Alejandro é uruguaio, esclareceu-nos: é sobre a fê; disse assim mesmo: fê.
“Eu te amo” é uma escolha lírica e “Flor da Idade” é sua antítese; talvez seja a música mais sacana de Chico. Sacana no sentido de sacanagem mesmo.
Abaixo, transcrevo as letras de minhas preferidas para meus 7 leitores. Vocês concordam? Discordam?
Moto-Contínuo
Um homem pode ir ao fundo do fundo do fundo se for por você
Um homem pode tapar os buracos do mundo se for por você
Pode inventar qualquer mundo, como um vagabundo se for por você
Basta sonhar com você
Homem também pode amar e abraçar e afagar seu ofício
Porque vai habitar o edifício que fez pra você
E no aconchego da pele na pele, da carne na carne
Entender que o homem foi feito direito
Do jeito que é feito o prazer
Homem constrói sete usinas usando a energia
Que vem de você
Homem conduz a alegria que sai das turbinas
De volta a você
E cria o moto-contínuo da noite pro dia se for por você
E quando o homem já está de partida
Da curva da vida ele vê
Que o seu caminho não foi um caminho sozinho porque
Sabe que o homem vai fundo e vai fundo e vai fundo
se for por você.
Eu te amo
Ah, se já perdemos a noção da hora,
Se juntos já jogamos tudo fora,
Me conta agora como hei de partir?
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios,
Rompi com o mundo, queimei meus navios,
Me diz pra onde é que inda posso ir…
Se nós, nas travessuras das noites eternas,
Já confundimos tanto as nossas pernas,
Diz com que pernas eu devo seguir…
Se entornaste a nossa sorte pelo chão,
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu…
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu…
Como, se nos amamos feito dois pagãos,
Teus seios inda estão nas minhas mãos,
Me explica com que cara eu vou sair?
Não, acho que estás te fazendo de tonta,
Te dei meus olhos pra tomares conta,
Agora conta como hei de partir…
Flor da Idade
A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor
Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixa um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor
Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha
Divertimento de feriadão
Entediado, o governo de Israel resolveu bombardear a Faixa de Gaza na manhã de ontem. Mataram 224 palestinos e fizeram 700 feridos, 120 deles em estado grave. O primeiro-ministro do país, Ehud Olmert, disse que a operação militar “pode levar tempo” e uma fonte militar afirmou que a campanha pode ser ampliada e incluir forças terrestres. “Não temos limite de tempo e estamos determinados a fazer o que for preciso, incluindo todas as nossas opções, por ar ou por terra”, disse o militar a repórteres. Condoleezza achou o máximo.
Acima, um modelo profissional palestino procura obter sua compaixão, prezado leitor ocidental, durante o ataque de ontem…
É, meus amigos, a Palestina tem um inimigo que conta com incondicional simpatia no ocidente e que ainda costuma exibir-se como vítima. Isto significa que Israel pode promover suas carnificinas quando bem entender. Haverá muito mais sangue. É assim que começamos 2009.
Atualização das 18h:
Ataque israelense a Gaza
É a mesma velha técnica de Israel: poucos dias antes da posse do novo presidente dos EUA, os israelenses criam uma nova situação gravíssima, para garantir que os EUA sejam obrigados a continuar lá, fazendo o que sempre fizeram (pagando, sobretudo, tudo e todos). Os palestinos não têm qquer chance, enquanto os EUA reinarem no planeta. Leia mais aqui.
Atualização de segunda-feira, 12h:
Um post esclarecedor de Idelber Avelar aqui.
Porto do Desespero – Mais Vôos – Cap. XVIII
Publicado em 30 de junho de 2006
Obs.: Aqui, damos continuidade à novela coletiva Porto do Desespero. O segmento anterior está aqui e dizem que todos os outros capítulos estão aqui, na coluna da esquerda. Mas tem que dar uma procurada dentro de cada blog que você entrar, viu?
Os décimos de segundo que o corpo de Daniel levou para cair da janela até o chão foram longuíssimos. Todos os principais fatos de sua vida foram-lhe apresentados como num filme para que pudesse, quem sabe, arrepender-se. Como fundo, a voz de Cid Moreira, recitando em tom fúnebre:
Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Enquanto via o chão branco com 50 centímetros de neve aproximar-se rapidamente, continuava a ouvir:
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro,
sem uma bolsa d’água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas;
se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Daniel, cada vez mais preocupado com a batida contra o solo, especulava: quem me dera ter um pára-quedas ou ser mais leve! Será que o autor deste ícone da auto-ajuda achava que o cego Borges andava para lá e para cá com um pára-quedas sob a axila?
Porém, quando Cid chegou na sílaba tônica de “leve”, Daniel chegou ao chão. O fato de haver ouvido claramente a segunda sílaba era no mínimo alvissareiro. Visto da janela de onde saíra há poucos segundos, o recorte de seu corpo enterrado na neve faria a alegria de qualquer cineasta. Os poucos transeuntes que viram a cena – todos velhinhos canadenses que costumavam passear quando a temperatura chegava aos vinte graus negativos – exclamavam-se, mas uma velha senhora gritava desesperadamente. Mesmo com o nariz enterrado na neve, Daniel notou que caíra sobre algo peludo e gostoso de abraçar, ao mesmo tempo que escutava destacar-se a voz da velha:
– Ele levou um tiro e caiu sobre o cão de minha sobrinha-neta Anne-Lucie! Eu ouvi o tiro. Que horror!
Sob um ohhhhh dos circunstantes, Daniel ergueu-se lentamente e, com uma furtiva lágrima caindo-lhe do olho esquerdo, disse à velha senhora:
– Diga a Ana Lúcia que seu cão não morreu em vão. E… Gostaria de lhe dizer que… Sei lá, sabe? É que se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono.
Os velhinhos olharam apalermados uns para os outros quando um casal saiu correndo do Hotel Quebec pedindo para que Daniel os acompanhasse. Mariana chorava e Roberto a puxava pelo braço. Roberto disse a Daniel:
– Vamos resolver esta merda com um moderador. Queremos que o Idelber Avelar resolva quem de nós, a partir de agora, comerá Mariana.
– Mas ele nem tem um blog! – reclamou Mariana.
– Já tem de novo!
Olhou para Daniel novamente.
– Essa vaca queria que o Smart Shade of Blue fosse nosso moderador, disse que todos o odiavam. Claro que, em sendo assim, deve ser um justo. Mas prefiro ir a New Orleans, muito mais perto.
Entraram os três no Karmann Ghia de Roberto. Como isto é uma Pulp Fiction, havia espaço de sobra.
– Você está bem, Daniel? – perguntara docemente Mariana, enquanto o via abrir o zíper das calças.
– Preciso de maior leveza, gente. Vou me masturbar.
– Ninguém vai sujar de porra a porra do meu carro – trovejou Roberto.
(Porém, meus sete leitores devem estar se perguntando sobre o tiro ouvido no quarto durante a longa queda de Daniel. Simples, no momento em que Mariana e Roberto lutavam, um homem de fenótipo neo-nazista – musculoso, skinhead, de botas pretas e piedosos cilícios nos pulsos – derrubara a porta com um pontapé e perguntara:
– Há alguém aqui que não aprecia os Wunderblogs?
Mariana percebeu a gritaria lá fora e concluiu que Daniel, aquele boca aberta, teria caído e morrido na queda. Também viu uma tatuajem no pulço do homem, logo abaixo dos torturantes silícios vindos diretamente da Califórnia.
Era o rosto de Alexandre Soares Silva!
Naquele momento, sentiu que crescera como ser humano. Entendeu que tinha que ser autêntica na presença do corpo morto de um dos homens com os quais praticara intercurso e declarou, veemente:
– Eu não gosto!
E Roberto interveio:
– Ele perguntou o quê? Se a gente não gosta do blog do Wunder Wildner? Eu adoro o Wunder. Ele tem blog?
Em resposta, a cara do articulado skinhead torceu-se em indescritível mágoa. Ele puxou um trabuco e fez mira em Mariana. Antes de atirar, gritou dramaticamente “Morraaaaaaa!”, porém Roberto, ex-goleiro do ASA de Arapiraca, saltou sobre seu braço, desviando o tiro. Quando preparava-se para encher o cara de porradas, Roberto sentiu que o skinhead desistira do combate por decisão deste escriba. Saiu furibundo dizendo que
– porra, o Flavio Prada me deixa apanhar de uma mulher no capítulo anterior, e neste não me deixam bater no Wunderbar, que merda.
Após rápida deliberação, fugiram do hotel. Nas escadas, Mariana explicava-lhe que o cantor era Wander – e não Wunder – Wildner. Fim da história do tiro.)
Agora, eles rumavam para New Orleans, milhares de quilômetros ao sul de Quebec, a fim de que Idelber resolvesse a pendenga sobre quem continuaria comendo quem. Não conseguiam descobrir a pronúncia correta do nome do moderador. Roberto garantia: era Ídelber; Daniel sustentava ser Idélber e Mariana queria um Idle Bear. Enquanto dirigia, Roberto via como Daniel se recuperara da queda. Com a ponta dos dedos da mão esquerda, ele segurava um dos mamilos de Mariana, enquanto que, com a mão direita, se masturbava. Só que, sentado no meio do espaçoso banco de trás, era obrigado a cruzar os braços, pois não conseguia masturbar-se com a mão esquerda. Com isto seu braço esquerdo atravessava o carro em direção ao seio de Mariana, enquanto que, com a mão direita, tentava manter um certo ritmo. Não era confortável. Mariana tirava o máximo prazer possível da situação com suas duas mãos dentro da calcinha. Chegou tão rapidamente a seu objetivo que Roberto refletia sobre quão rodada seria aquela gata.
Foi uma viagem altamente confusa, psicologicamente tensa e cheia de momentos bergmanianos – pois os rapazes não sabiam mesmo quem comeria quem e apenas Mariana tinha alguma idéia do que fazer. Roberto insistia em cheirar a cada parada, além de polvilhar com a droga tudo o que comia. Finalmente, chegaram a New Orleans. Estava tudo diferente. A cidade parecia um lago. Viram um cãozinho chamado Oliver vibrando com a oportunidade de ganhar um novo dono, um blogueiro desesperado por ver submersos os pés das mulheres, os professores de Tulane boiando nas águas aproveitando o sol e pássaros voando sem ter onde pousar.
Foi quando o Karmann-Ghia (um anfíbio?) começou a ser acompanhado por uma enorme sombra. Aquilo assustou-os. Era estranho: sol por toda a paisagem e uma sombra acompanhando-os! Depois desta situação hitchcoquiana, notaram que as pessoas olhavam admiradas para algo que estava sobre o carro. Foi uma circunstância fortemente shyamalaniana. Enquanto resolviam – sem decidirem-se a nada – quem sairia para examinar o que havia no teto, viram enormes garras envolver o carro como se este fosse uma lata de sardinha. Perceberam que eram erguidos ao mesmo tempo que enormes asas assomavam às janelas. Começaram a gritar desesperamente, mas só obtiveram como resposta um
– Graaaaak!
Creio que todos vocês sabem de quem será o próximo segmento da sensacional, aleatória e aleotária novela feminista “Porto do Desespero”. Sim, ele mesmo, El Rey, terá que se ver novamente com o pássaro que acaba de matar num post.
O Monólogo Amoroso (XI)
Raul senta-se calmamente diante do psiquiatra e recomeça.
Eu era muito moço e não sabia que uma separação era algo tão terrível. OK…, sim, na vez passada eu falava sobre como descobri que a Nina estava se encontrando com seu ex-namorado, é isso? Bem, um amigo me contou. Um dia, o Flávio veio cheio de dedos, dizendo que ia me contar uma coisa pela amizade que nos ligava e que eu não me irritasse. E falou claramente que a Nina entrava e saía e passava a noite no apartamento do tal de Ricardo. Minha primeira reação foi de ódio, mas acho que uma hora depois minha tristeza e desespero eram tão profundos que eu não queria voltar a conversar sobre o assunto. Enquanto estava com Flávio, perguntei duas ou três vezes se ele tinha certeza daquilo, se ele vira, se o fato se repetira, se era ela mesmo. Quis saber sobre horários e até sobre suas roupas. Não havia a menor sombra de dúvida: era ela, era ele e só se meu amigo fosse um louco de filme americano para inventar tantos detalhes. Pior: sua mãe era quem tinha visto primeiro.
O ciúme é o inferno, o ciúme é o inferno, o ciúme é o inferno. Nossa relação quase não existia mais, mas quando vi que nosso pobre relacionamento estava sob ameaça, ele tornou-se a coisa mais valiosa de minha vida. Como não me enganava a respeito da Nina – a qual mal possuíra e agora me fugia para sempre –, punha toda minha frustração sobre o afastamento que sofreria de Ana e em minha frustração e azar de ter casado com uma puta, etc. Mas o pior era o que eu sentia. O ódio que tivera dela no primeiro momento retornou contra mim sob muitas outras formas. Passei a me sentir incapaz, infeliz comigo mesmo, perdi o prazer de participar das brincadeiras no trabalho, passei a achar tudo uma idiotice. Não tinha concentração para fazer a mais simples das tarefas, o cansaço tomou conta de mim e comia o mínimo. Minha mãe notou que eu não estava bem e disse que tudo era culpa de Nina, que eu devia obrigá-la a morar comigo ou que a mandasse pedir o desquite. (Suspira). Mas eu não queria conversar sobre o que me deixava tão triste e, se conversasse, não seria com minha mãe, sempre muito alterada quando o assunto era Nina. Fui me isolando cada vez mais; imagina que até os carros passaram a ser coisas pouco importantes, assim como a família e os amigos; sentia-me burro, incapaz, azarado, inferior a todos os que conhecia.
Então, um dia, ao visitar a Ana, segui a Nina até seu quarto, uma atitude cada vez mais rara, mas que não chegava e ser uma invasão de privacidade porque aquele era supostamente “o nosso quarto”, e perguntei com voz embargada, louco de vontade de chorar – uma constante, apesar de que nunca chorava –, como nós ficaríamos. Naqueles dias, o ar de desinteresse dela por tudo o que eu dissesse era evidente, até suas brincadeiras e piadas tinham diminuído muito, ela estava vivendo livremente sua vida, mas parecia que eu precisava ouvir dela palavras ainda mais duras, aquelas que me fariam mergulhar com maior convicção ainda na minha incompetência e desespero. Ela me olhou com ar casual e respondeu que nada mudara.
— Por que isso agora? E Raul, teu humor funéreo vai acabar assustando a Ana. Tua cara não recomenda.
— É. Acho melhor tu ficar com ela. Eu me afasto por completo e tu educa ela. Mando dinheiro.
— Mas, por favor! O que está acontecendo? É o apocalipse?
— Tu sabe o que está acontecendo. Quero dizer, eu estou nesta merda e tu feliz por aí.
— Que merda, o que está acontecendo? Poderia ser mais claro? Tu está me criticando por ser ou estar ou parecer mais feliz do que tu? É isso?
— Nina, nossa situação é uma tragédia. Eu gostaria de morar contigo, temos uma filha, a chance de construir alguma coisa e tu fica por aí balançando o rabo como uma inconseqüente.
— Raul, eu não pretendo responder a tuas agressões. Acho que a única expectativa que tu deves depositar em mim é a de que eu cuide e ame nossa filha. E mais nada. Para mim, tu és um ex-namorado ou ex-marido, se um dia chegamos a tanto. É assim que tu deverias me tratar. Fui clara?
— E já que tu acha que é assim, isso te permite encontros com ex-namorados e outras putarias por aí?
O rosto dela ficou muito vermelho. O meu também. Conseguira falar. Incrivelmente, meu objetivo interno era reconquistá-la e viver uma vida confortável noutro lugar, mas tinha feito com ela o que não fazia com mais ninguém: despejei nela um pouco do que estava pensando e sofrendo, um pouco do meu enorme ressentimento. Hoje sei que virar meu caminhão de lixo em cima dela não me traria resultado nenhum, só que eu não conseguia pensar, só tinha certeza que minha vida estava sendo destruída pela única pessoa que me interessava no mundo. Pensei que a vermelhidão no rosto dela era de raiva, mas tinha mais: ela se sentira atingida por eu saber de suas escapadas. Ela falou calmamente:
— Então tu e o mundo já sabem.
— Não, acho que só eu, o Flávio e a mãe dele.
— E todas as amigas dela e os dele.
— Mas tu tens te encontrado mesmo com o tal de Ricardo?
— Sim, Raul. Eu me sinto separada de ti, apesar de tu me veres como a prometida.
— É que temos toda a possibilidade de uma vida…
— Pára com isso, Raul. Está tudo atravessado, fora do lugar. Eu sou a mulher casada que dá para outro e tu és o corno. Até o “nosso futuro” da tua imaginação é impossível. Tua família logo vai saber e eu serei tratada como uma bruxa a ser queimada.
— Eu não deixarei que aconteça isso.
— Bah, tu não tem mesmo pudor de ser patético, hein? Agora, dane-se. A culpa é minha de não ter me protegido. Me encontro com Ricardo em qualquer lugar, entende? Não fico me esgueirando.
Com a confirmação, comecei a fantasiar todo tipo de suicídio, viagens para lugares longínquos onde me estabeleceria deixando tudo para trás. Era um merda. Por meses não conversei pessoalmente com Nina. Escrevi me comprometendo a pagar para minha filha um valor que inventei e até hoje ela não me respondeu. Mas eu pagava. Era um valor decente. Quase tudo o que ganhava. Em finais de semana alternados, ia a sua casa pegar Ana e retornava para entregá-la de volta segunda pela manhã. Nada disso, mas absolutamente nada disso melhorou meu humor e minhas negativas a comentar os fatos. Meu trabalho voltou ao normal, o resto demorou muito mais ou nunca voltou ao normal. Quando minha mãe me perguntava sobre meu casamento, recebia de volta um grito dizendo que aquilo não interessava a ela, ela que fosse cuidar de sua vida. Meu pai dizia que a “véia” estava muito triste e preocupada comigo e eu o mandava à merda. Comecei a sair à noite e ia bastante com prostitutas. Parecia bem, acho, mas a nuvem em torno da minha cabeça me ameaça até hoje. Uma separação, qualquer separação, é o maior dos horrores e não desejo para ninguém. A auto-estima some. Não é assim com todo mundo?
O psiquiatra aponta para o relógio e Raul ergue-se lentamente, dizendo-lhe que seu emprego era chato, mas que não dava incomodação.
O professor de botânica, de Samir Machado de Machado
A Não Editora segue surpreendendo. Tem nove livros, li dois e ambos são bons. O professor de botânica é um divertido e maldoso mergulho no ambiente acadêmico. Dividido em departamentos que mais parecem pequenos cestos de ofídios onde cada um de seus membros espreitam a mínima desatenção do outro, armando parcerias e inimizades aqui e ali, planejando viagens (muitas) e sacanagens, tais cestinhos cheios de emoções são bons locais para o exercício da ficção.
No quesito saco cheio, o professor de Samir está próximo do velho catedrático Nicolai Stiepánovich de Tal, da novela Uma história enfadonha, de Tchekhov, mas sua fama e modus operandi é muito diversa. Perto de uma vulgar aposentadoria, ainda luta por seus bolsistas e enfrenta seus inimigos, no caso Rogério Mourão, que o ameaça com a perda de seu bolsista, um jovem na verdade indiferente à biologia e que tem o discutível mérito de suportar o mau humor do chefe. Durante uma visita a uma reserva ecológica, Samir nos prega um elegante susto ao fazer de conta que a trama se tornará um whodunit, mas a ameaça não se cumpre. Ainda bem.
O livro gruda. Tanto que foi lido na tarde de 23 de dezembro apenas com três interrupções para que este leitor bebesse a água necessária à sobrevivência na insuportável canícula porto-alegrense.
Feliz Natal, o retorno
O Marco Aurélio Weissheimer veio com a melhor. Surpresa nenhuma.
Anos de Formação de um Sequestrador
Publicado em 28 de outubro de 2004
Alexandre envolvia-se com drogas desde os tempos do segundo grau. Quando tinha 16 anos, levava uma vida tranqüila com seus pais. Não precisava trabalhar nem estudar muito e usava seu tempo livre no cinema e com os amigos. Dinheiro não era uma grande preocupação até que começou a experimentar drogas. Estas eram fáceis de conseguir e acessíveis, mas trouxeram outros amigos, festas, bebida e ele precisou de meios para financiar o novo estilo de vida. Para não levantar suspeitas, decidiu não pedir dinheiro à mãe.
Lia era uma respeitável e emotiva senhora de 75 anos e há 16 vivia com Belle, uma cachorrinha da raça cocker. Lia tivera cinco filhos que a visitavam raramente, enquanto Belle nunca tivera uma ninhada, pois sempre vivera no pequeno apartamento com sua dona. Quem as conhecia, sabia que se amavam. Belle seguia Lia onde quer que fosse, enroscava-se em suas pernas, pedia colo e, devido à pouca mobilidade de sua dona, engordava. Comiam da mesma comida, deitavam-se no mesmo sofá e na mesma cama; enfim, faziam companhia constante uma à outra. Lia conversava com Belle, reclamava das dores da idade, da ausência dos filhos, das fofocas dos vizinhos, dos preços da farmácia e do supermercado. Belle, com o olhar triste e sonolento dos de sua raça, acompanhava tudo compreensiva e passivamente.
Alexandre passou a dedicar-se a pequenos roubos num ambiente que conhecia bem: o do ônibus. Ali, nos horários de maior movimento, explorava as bolsas das mulheres. Poucas vezes foi flagrado em ação e, quando acontecia, reagia dizendo que a bolsa estava aberta, que a mulher era louca, etc. Roubava normalmente os trocados da passagem.
Numa madrugada gelada, Lia foi ao banheiro (ia muitas vezes durante a noite) e verificou não ter sido acompanhada por Belle. Ao voltar, foi olhar sua cachorra ao lado da cama. Belle estava tranqüila, de olhos abertos e morta.
Nos últimos dias, Alexandre passou a achar que seus ganhos nos ônibus eram insuficientes se comparados com os riscos envolvidos. Sonhava com um lance maior, mas como conseguir isto dentro de um local freqüentado somente por pés-rapados como ele?
A perda fez Lia sofrer como nunca. Não sofrera tanto nem quando seu marido falecera após longa doença. Dependia daquele amor, como Belle dependia dela para comer e permanecer limpa, sem pulgas e perfumada. Porém, Lia não desejava ser ridicularizada por amar tanto a um cão. Prezava a discrição. Assim, passou dois dias fechada em casa choramingando e se perguntando sobre o que seria de sua vida sem sua querida. Quando um de seus filhos lhe telefonou, procurou esconder o luto que lhe embargava a voz. O filho nada notou; ademais, não queria saber de nenhum problema que o fizesse perder tempo. Tudo o que queria era que sua mãe estivesse bem de saúde e longe.
Alexandre resolveu tentar a sorte num bairro longínquo. Escolheu Petrópolis, um local cheio de velhinhas de bom poder aquisitivo.
No terceiro dia, Lia concluiu que teria de fazer alguma coisa com o corpo de sua companheira. Fez-lhe um lindo pacote e finalmente saiu de casa com Belle. Era difícil carregá-la, a cachorra era pesada e ela precisava pegar um ônibus para ir ao hospital veterinário. Com esforço e dignidade, chegou à parada. Mesmo sob a baixa temperatura, suava. Vestia casacão, blusão de lã, camisa de algodão grosso e camiseta. Subiu equilibrando-se no coletivo e conseguiu um lugar para sentar-se e descansar um pouco.
Alexandre encontrou sua vítima numa senhora que parecia carregar um tesouro consigo. O que haveria ali dentro? Era uma caixa retangular, parecia um pequeno baú e estava enrolado em belo pano bordado. Pensou em alguma peça antiga, bastante valiosa e fácil de vender; ou talvez num aparelho eletrônico que ela estivesse levando para uma amiga ou neto.
O ônibus foi ficando cheio e Lia levantou-se a fim de chegar perto da saída. Na porta, havia um jovem bem apessoado que lhe inspirou imediata simpatia; ele se oferecera para segurar o fardo. Lia aceitou. Com o olhar úmido, confidenciou-lhe que naquele volume havia algo de muito importante, tudo o que lhe restava neste mundo. O olhar risonho do menino pareceu-lhe consolador e Lia sentiu-se invadida por doce ternura. Então a porta abriu-se e Alexandre saiu correndo, carregando as melhores lembranças de Lia.
Ela foi até o fim da linha e voltou para casa no mesmo ônibus. No caminho, pensava no menino, no roubo e na surpresa que ele teria ao abrir o embrulho. Quando lembrava, não conseguia evitar um sorriso. Enquanto isto, Alexandre, no banheiro do colégio, deparava-se com Belle. Após o horror inicial, deixara o cão ali mesmo e concluíra:
– Não adianta! Acho que o negócio é seqüestrar alguém.