Lidos casualmente um após o outro, os livros de Pamuk (Istambul, Cia. das Letras, 399 págs.) e de Backes (maisquememória, Record, 399 págs.) podem parecer obras pertencentes a um gênero muito específico, o do memorialismo precoce e turístico, mas tal redução é injusta e, mesmo sendo tão diferentes, elas têm outras semelhanças além do número de páginas.
Conheci Pamuk numa Flip. Na verdade, fiquei (ficamos) abolhados com a metralhadora que é o homem. O tema de sua palestra era muito sedutor: “A influência de Borges sobre As Mil e uma Noites“. Sim, porque a admiração dos eruditos ocidentais, capitaneados argentino quando ainda não enxergava muito bem, causou tal furor nas pesquisas sobre o que havia de autêntico e o que tinha sido abusivamente alterado na obra, que, hoje, As Mil e uma Noites têm pouco a ver com a do começo do século XX. O tema era interessantíssimo, mas era o último da programação daquela dia na Flip e minha mulher desistiu no meio da fala daquele homem maluco que fazia tantas perguntas quanto respondia ao entrevistador. Mais: avisava que tinha pouco tempo e MUITO a contar. Falava com uma rapidez que deixava o tradutor audivelmente nervoso… OK, ela desistiu, mas eu fiquei ali ouvindo aquele homem estava em Parati mas que falava — palavras dele — desde a ponte de Istambul que liga a Europa à Ásia, voltando-se ora para um lado, ora para outro. Ao final daquele mesmo ano, aquele desconhecido turco maluco e inteligente receberia o Nobel.
Conheci Marcelo Backes num churrasco e não me arrependo até hoje. Ele devia ter uns 25 ou 26 anos, mas parecia ter lido 100 anos. Logo vi que era bom tê-lo por perto, pois Marcelo não apenas sabia muito como não se incomodava em ensinar. Desde lá, passaram-se mais de dez anos. Marcelo foi para a Alemanha finalizar mestrado e doutorado, publicou vários livros e traduziu mais de uma dezena, tendo percorrido desde Marx até Stanišić, passando por Kafka, Arthur Schnitzler e outros. De sua autoria, li A Arte do Combate, obra sobre a literatura alemã e seu caráter combativo em comparação com o habitual compadrio brasileiro; o sarcástico e aforístico Estilhaços (onde sou citado…) e agora este maisquememória. Hoje, Marcelo Backes mora no Rio. Falamos pouco, infelizmente.
Mas vamos antes às coincidências:
1. São ambos livros em grande parte de memórias, embora Backes chame, com razão, maisquememória de “romance”.
2. São ambos livros que falam muito eruditamente sobre história e artes em geral.
3. São ambos livros apaixonados, onde as cidades e a geografia participam na condição de personagens. Istambul parece levar a vida de Pamuk como a música de Bach leva adiante o texto de suas árias e Backes corre de cidade em cidade como se fosse um Lazarillo de Tormes moderno, mas a intenção não é só a de fazer graça e sim a de entabular diálogos — visuais, verbais e físicos — com a cultura local.
4. Istambul caracteriza-se pela melancolia (hüzun) e sabemos que Pamuk, de forma inacreditável e certamente sofrida, acabou separando-se da cidade que tanto ama e conhece, por fazer denúncias sobre o extermínio de armênios, enquanto maisquememória nos dá um itinerário muito sutil de como são emitidos e/ou ignorados os sinais que levam um casal à separação. Nos dois casos, ambos — e o “ambos” aqui é reforço de expressão — sabiam das conseqüências. Mas foram tragicamente em sua direção, como se outra coisa não fosse possível.
5. A pintura de Pamuk — pois o escritor é um ex-futuro pintor — é o fio condutor de grande parte do livro. Ela carrega todas as motivações, inclusive as sexuais, do autor. E Backes faz das obras de Oskar Kokoschka e de seu amor por Alma Mahler — desfeito por esta — um abrasador comentário paralelo, nem um pouco isento de sexo, sobre ocaso do casamento de seu personagem, matéria em pequena parte real e em grande parte ficcional.
Istambul é um livro para ser lido e admirado. Ganhar o livro de minha filha Bárbara como presente duplo de Dias dos Pais e aniversário, foi muito bom: ela não apenas escolheu o livro sozinha como comprou-o como sua própria mesada. Acertou em cheio. Fiquei folheando o livro (notem o ato falho: eu tinha escrito “filhando o livro”!) como forma de domar a comoção e a coisa só piorava, pois as fotos de Ara Güler que acompanham a obra e que pontuam minuciosamente a narrativa são lindíssimas, dignas de que você entre na livraria só para dar uma olhada, como numa pinacoteca. Mas faça isso no Brasil, pois o trabalho da Cia. das Letras é infinitamente melhor do que os da edição espanhola, argentina e mexicana.

À parte o turismo, maisquememória trata de uma separação que vai sendo lentamente anunciada durante a leitura. Aliás, há dois fatos que vão se aprofundando durante a leitura. (1) A dissociação entre o personagem principal e seu “cavalo” acentua-se até que o cavalo acaba por revoltar-se contra o primeiro eu de Marcelo Backes (ou de seu personagem Marcelo Backes) com seu enorme ego e (2) os melancólicos intermezzi — que chegam ao leitor em belo ostinato — não servem apenas para mostrar como Kokoschka é interessante, mas vão adquirindo significado antes do anúncio da separação. São extratos do profundo e inaceitado abandono que obcecou Kokoschka por anos. Então, o “eu narrador”, enquanto fala do mundo lá fora, caminha – repito – tragicamente na direção daquilo que é o que efetiva e talvez inconscientemente deseja e do qual só desconhece o amargor, ou seja, o cerne. É estranho que alguns leitores revoltaram-se contra o memorialista, ignorando a palavra “Romance” que há na capa. Tudo o que é contado em primeira pessoa são verdades… ficcionais…

Istambul, a ex-capital do ex-Império Bizantino, ex-capital do ex-Império Turco-Otomano tornou-se, no século XX, uma cidade que oscilava entre o riqueza e a pobreza, entre a ocidentalização chique e o orientalismo démodé. Filho de uma família rica, cujos pais estavam sempre às turras pelas constantes traições dele – fato notável, pois a mãe de Pamuk era belíssima, uma das mulheres mais belas da alta sociedade de Istambul, como podemos comprovar nas fotos do livro, prova de a vida é mesmo estranha … -, Pamuk constrói uma tranqüila e bela narrativa sobre o mundo infantil dentro da cidade que tenta ocidentalizar-se até mesmo através de incêndios. As descrições do Bósforo, acompanhadas pelas imagens de Güler, tornam a obra a mais bela homenagem que conheço a uma cidade. Falei com vários amigos que conhecem Istambul e eles não reconhecem a tal melancolia de seus habitantes, tão explorada por Pamuk, prova de que não somente a vida é estranha, mas o turismo também, pois o texto de Istambul combina tão bem com as fotos apresentadas que Pamuk nos convence de forma inequívoca.

maisquememória é um livro que cresce muito em sentido durante sua leitura. Se de início ficamos de nariz torcido para o narrador arrogante que nos enche – e como! – de informações muito interessantes e úteis acerca de suas viagens, se o autor adentra de forma oblíqua os mais variados assuntos e come as mais variadas mulheres das mais variadas etnias e línguas, ele nos causa estranheza pela intervenção de um cavalo de bom senso (o cavalo é um outro eu de Marcelo, bem mais razoável) e pelo coral grego representado pela narrativa, jogada aqui e ali, da separação de Oskar Kokoschka e Alma Mahler. Ao longo do livro, curiosamente, o contraditório que está na cabeça do leitor passa ao livro, que combate as assertivas do primeiro Marcelo através das vozes do segundo Marcelo e da que descreve o amor de Kokoschka. Ao final, as três vozes discutem abertamente, sendo caracterizadas por fontes (refiro-me ao tipo de letra) diferentes. Ou seja, o contraditório, a objeção presente do leitor migra para dentro do livro. Sem dúvida, é original.

O que mais gostei nos livros. Istambul: a esplêndida descrição do primeiro amor e as caminhadas do casal pela cidade, que são arrepiantes; os apontamentos sobre o pitoresco casual da cidade; a história dos escritores que escreveram antes sobre ela, turcos ou ocidentais; sua relação com a mãe e irmão e a prosa de Pamuk com sua perfeita noção de estilo. Ele efetivamente consegue mudar de capítulo para capítulo. Há os líricos, os descritivos, os jocosos; enfim, trata-se de um escritor que aprecia “mostrar” sua habilidade. Ah, e as fotos de Güler, as fotos, as fotos!
maisquememória é estupidamente informativo e tem todo o gênero de comentários divertidos sobre cultura em geral, mas estas opiniões e descrições vão se intrometendo nas “memórias” de forma curiosa, principalmente quando Kokoschka manda fazer uma boneca — fato real — de sua (já não sua) Alma Mahler. Tal procedimento acaba por criar o clima perfeito para a grandiosidade humana que o romance adquire em suas seções finais.
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