Uma Incrível Coincidência (Fernando Monteiro, Herbert Caro, eu…)

Post publicado em algum dia de 2003 em meu antigo blog

Tenho certeza de que você que lê já leu Herbert Caro. Certeza absoluta! Mas você terá que chegar ao terceiro parágrafo para comprovar.

Estava dialogando por e-mail com o escritor pernambucano Fernando Monteiro – importante: minha imensa admiração por Fernando precede nosso contato, vim a conhecê-lo após elogiá-lo aqui neste blog e não o contrário, OK? -, quando fiz uma carinhosa referência a meu falecido amigo Herbert Caro. Conheci o Dr. Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já devia ter mais de 70 anos. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a consideração, a amizade e o carinho. Era alemão.

Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres – a mim e ao Júlio – por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo e “arborescente” gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro!) Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: estão-brincando-com-algo-que-é-sagrado-para-mim. Depois dava gargalhadas conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.

Pois bem, no meu e-mail para o Fernando, falei qualquer coisa sobre o velho e ele me respondeu assim:

(…)
Caro: que coincidência você ter sido amigo do Caro, personagem num capítulo (que estou anexando) de “As Confissões de Lúcio”. Se o quiser, pode divulgar o capítulo – ou a parte do Caro, nele – no blog.
(…)

Quer dizer que Fernando Monteiro, lá de Recife, põe como personagem em seu romance inédito As Confissões de Lúcio meu amigo Herbert “Carro”? Abaixo está a comprovação. A seguir, pois, tenho a honra de apresentar-lhes um trecho do capítulo Falenas na Sombra, de As Confissões de Lúcio. Notem (1) como o personagem Lúcio Graumann apelida Caro de “Herr Graal” – é claro que Fernando e Lúcio ignoravam o “Doktor Carro”! -, (2) como o Fernando refere-se em seu texto à “metáfora da Europa” e (3) aproveitem para medir o calibre do escritor Fernando Monteiro:

Essa anotação eu lera ainda na praia da Paraíba. Havia sentado sobre o papel, na rede de Acaú (Lúcio o deixara amassado sob o calor de febre do seu corpo magro naquele descanso menos estreito do que parecia, e mais cheio de areia e detritos do que se esperava). Quando descobri o papel, pensei – não sei porque – nas três ou quatro vezes (um recorde!) em que havíamos saído para beber no bar de um alemão, próximo da redação do Correio porto-alegrense… o que não era garantia nenhuma de conversa fluente, de piadas, do humor leve de sextas-feiras nas quais você ouve e é ouvido sem grande atenção, alguém entra, você acena, retoma o fio da conversa que não se crispa e o mais. Não, com Lúcio talvez nunca fosse assim, ao contrário, embora não fosse um “chato” (eu, pelo menos, não achava), mas ao se usar a palavra “chato” talvez alguém quisesse referir aquela intensidade dos prisioneiros, isto é, uma conversa meio fixa e fiel a coisas que seguiam no centro do seu interesse, indiferente à indiferença da bebida, da diversão “organizada” como uma suspensão sem maior responsabilidade: um balão desinflado com fritas, uma coisa que pudesse ser esquecida como um jornal dobrado no banco de trás de um táxi. Claro, ele tinha humor – mas seu humor respondia só às convocações rápidas, breves. Herbert Caro compreendia bem esse humor – quando brigavam dentro e fora da redação do Correio cheia de falsos “humorados”. Caro muitas vezes alongou o jogo dos jogos de palavras que fazia com Lúcio, ao tempo das traduções que “Herr Graal” (como ele o chamava) admirava e, eventualmente, corrigia aqui e ali, em algum tijolaço do idioma de Mann fundindo dois vocábulos com a sombra do terceiro como a águia sobre os picos nevados da montanha mágica disputando a visão da alma ingênua de Hans Castorp que não tinha humor, acusava Graumann, e Herbert respondia que era burrice de Lúcio não ver o humor de Mann naquele grau de exarcebação do “espírito monótono” que, no fundo, era de Heinrich e não de Thomas, como se poderia pensar do nariz degaulleano do prêmio Nobel refugiado na América para escapar da “parentada” de Graumann (uma estocada de Caro, suponho que dirigida aos ascendentes maternos, aos Braun cheios de loura burrice responsável por queimar livros em praças públicas)…

Seria um verdadeiro sanatório – e não uma metáfora da Europa – se a vertente “Heinrich” houvesse escrito o livro fascinante justamente por ser de um homem destinado a compreender tudo tarde, depois que as coisas se tornavam irremediáveis (respondia Caro, seriamente, às provocações de Graumann), e Lúcio poderia sorrir, mudar de assunto, contar uma piada – isso não seria o esperado e, contudo, quando a contasse, seria com inesperada graça, sem grande empenho, é verdade, mas com certa graça engraçada até por ter um quê de deslocada… sem no entanto riscar o vidro daquela intensidade do humor que se oculta na “seriedade” – o mesmo caso de Mann? – e que corresponde bem a uma pitada de humor secreto (não sei se isso poderá ser perfeitamente entendido por quem tenha sempre procurado ou preferido os amáveis palhaços de um escritório, Graumann não teria sido jamais um deles) manifestando-se no meio de uma roda como aquela do Correio dos velhos tempos, posso até rever a cabeça inclinada de Caro e a de Lúcio, por sua vez, no seu “ponto de parada”, naquilo que não correspondia a uma dessas pausas que se faz buscando a “aprovação” de algum raro conviva ainda mais ensimesmado, ou surpreendendo – então – por qualquer participação súbita e perfeitamente ajustada…

Observação aos incautos: Heinrich Mann é, por assim dizer, o irmão escrachado de Thomas Mann. É autor do livro Professor Unrat que, rebatizado para O Anjo Azul (Der Blaue Engel), tornou-se o filme-base da carreira de Marlene Dietrich.

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José e Pilar e os outros

Foi um belo fim-de-semana. Começou lá na sexta-feira com o jantar com a dupla Nikelen Witter e Luís Augusto Farinatti e terminou com o esplêndido documentário José e Pilar. Os dois casais foram entremeados por um filme notável: Código Desconhecido, de Michael Haneke, que, se não é o maior diretor de cinema vivo, merece figurar em qualquer lista que utilize a contundência como critério. Este Código e A Fita Branca são filmes de qualidade indiscutível, penso.

Mas voltemos à sexta-feira. Eu estava exausto de um dia de ar condicionado estragado no Sul21, porém a conversa inteligente, o vinho e a gentileza novamente viraram o jogo a favor de todos. Foi tudo muito agradável e civilizado. Minha filha Bárbara fez o resumo da noite dizendo que achava muito bom ouvir pessoas cultas conversarem. OK, só que acho que a sedução que exercemos sobre ela (já me incluí no “exercemos”, né?) é a de que falamos sobre política e temos posições que já são as dela. De certa forma, nós — apesar de não sermos nada grandiosos — mais ou menos justificamos aquilo uma forma de pensar o mundo. Fico me sentindo culpado por não ter feito referência nenhuma à visita do Ramiro Conceição lá no início do ano, mas aquela era uma fase triste de minha história recente…

José e Pilar não é um filme que fale muito da obra de Saramago, fala mais da repercussão dela, da rotina de um Nobel famoso e de seu relacionamento com a mulher amada, Pilar del Río. Olha, é um documentário estupendo como cinema. Resultado de quatro anos de filmagens — entre 2006 e 2009 — tem como pano de fundo a criação da romance A Viagem do Elefante e a doença do escritor. Saramago, absolutamente inteligente e erudito em suas palestras e livros, mostra uma face mais relaxada e íntima no excelente filme de Miguel Gonçalves Mendes. O filme me foi 100% satisfatório, mas tenho a impressão de que o diretor considerou que o público tivesse conhecimento prévio da vida do autor. Fica inexplicada a forma peculiar que tomaram com Saramago as eternas restrições portuguesas e brasileiras àqueles que se distinguem, fica inexplicado o justificado ódio com que Pilar del Río trata um jornalista português — merecia muito mais — , assim como a natureza de certo silêncio que o “Portugal oficial” tratou de cercar Saramago.

A mim isto não fez falta nenhuma, mas talvez um observador inexperiente ou marciano não entenda bem o gênero da estupidez envolvida. O fato é que “minhas mulheres” resumem muito bem tudo. Na saída do cinema, a Claudia, encantada com o filme, disse: “Como é bom a gente ouvir alguém brilhante que pensa parecido com a gente!”.

Finalizando: por falar em estupidez, o cinema nacional agora trata de investir na religião. Os trailers pré-José e Pilar foram todos dedicados a espécimes do novo cinema religioso nacional. Comparados aos argentinos, estamos cada vez mais fodidos — saímos da chanchada para a religião. Nada mais próximo. O contraste dos trailers com os 125 minutos seguintes de Saramago foi absolutamente desconcertante. Para sofrer este choque estético, vá ao Arteplex 2 de Porto Alegre antes que mudem.

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Eu sou um gênio, vocês não — quis dizer Jabor

Obs.: Vale a pena ler, é muito cômico. Aqui, minha opinião sobre a obra-prima jaboriana.

Patrulhas ideológicas e patrulhas pop

Por Arnaldo Jabor

Meu filme A Suprema Felicidade está sendo aplaudido em cinemas cheios. Pensei: “Oba! O filme é legal; estão gostando!” Uma espectadora me escreveu: “Saí do cinema lotado de pessoas que aplaudiam. Parecia que uma seca tinha acabado. Os que se falavam depois do filme, brindavam com olhos úmidos e a alma encharcada na alegria da dor comum a todos, serenamente revelada.”

Fiquei feliz com o email, mas logo vi que estava errado… Descobri que sou um mero “mané” que se ilude. São outros os que sabem a verdade. Os críticos da Folha e da Vejinha decretaram que o filme não merece nem uma análise; apenas frases de pichação, breves xingamentos. Eles são taxativos e cruéis como ativos militantes de novas patrulhas “contemporâneas”: “Ele não é mais cineasta” ou “a narração é que estraga…” ou ainda “muitos temas, sem foco” e ainda “acaba de repente”. Só isso?

É. O filme tem críticas ótimas com bonequinho batendo palma no O Globo e quatro estrelas no Estadão, mas, na minha trêmula insegurança, só penso nos quatro que trataram o filme como um objeto descartável, um lixo ridículo. E mais: criticam-me mais que o filme. Por que essa raiva? Por quê? Será que eles estão certos? Será que as 180 mil pessoas que já assistiram ao filme em 13 dias, e que fazem a renda crescer no cinema com um boca a boca fervoroso, são um bando de idiotas?

Resolvi entender isso. Pensei, pensei, não só pela vaidade ferida, claro, mas também para denunciar a estupidez de cadernos culturais que viraram meros releases de produtos de massa. Cresce no País uma cultura da incultura, a profundidade do superficial, a rapidez do julgamento, num mundo feito de fugazes emails, celulares tocando, filmes com imagens que não podem ter mais de quatro segundos, porrada, corrida, sem saída, até sem “roteiro”, essa coisa antiga do tempo em que os homens (e não robôs e transformers) se relacionavam.

Está fora de moda um filme para ser visto, refletido, com choro, risos, vida… Cinema agora é para manipular os espectadores, que são o videogame da indústria. O desejo dos produtores é justamente apagar o drama humano dentro de nossas cabeças. A ação na tela é incessante, o conflito é permanente, de modo a impedir o espectador de ver seus conflitos internos.

Acontece, patrulheiros pop, que A Suprema Felicidade foi feito justamente contra essa tendência – quero que os espectadores se sintam dentro do filme e não que sejam levados por porradas, som dolby e homens explodindo.

Eu sei que vocês foram modificados geneticamente por décadas de videoclipes, eu compreendo que vocês achem o Michel Gondry o novo Goddard e que o flash-back foi inventado pelo Tarantino. Imagino vosso tremor na hora da entrevista de emprego, com o diretor do jornal perguntando: “Conhece literatura, política, antropologia?” “Não, senhor…” “OK… Secretário, bota ele na crítica de cinema…”

Há em vocês uma esperteza ambiciosa por trás de tanta brevidade implacável – é duro passar a vida botando bolinha preta no Piranha. O cara precisa criar eventos que o promovam.

Eis que, de repente, aquele sujeito que fala na TV, escreve em 20 jornais, fala no rádio há 15 anos, resolveu fazer seu nono filme.

Vocês gritam: “Vamos quebrar a espinha dele!”

Compreendo que isso dá prestígio; é um upgrading. O sujeito entra na redação de testa alta e lábio trêmulo: “Esculachei a besta do Jabor..!” E é olhado com cálida admiração.

Ato de violência. Aí, percebi que não apenas a patrulha pop pautou seus críticos. Lembrei da devastadora crítica de Eduardo Escorel na revista piauí – (não confundir com Lauro Escorel, o grande artista que fotografou o filme). Lembro mesmo que corri à piauí com a esperança de aprender teoria com o velho autor de remotos filmes, como a história sinistra de um esquartejador e a adaptação dialética do Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado. Dele eu esperava opiniões cultas, conspícuas frases sobre Bergman, Fellini. Eu esperava encontrar André Bazin e dei de cara com Andrei Zhdanov, o supremo censor de Joseph Stalin (olhem no Google, meninos…)

Mas, mesmo assim, esquartejado, tentei entendê-lo. E tive a revelação, vi a luz!

Eduardo tinha uma missão política, senhores, iluminista mesmo: ele quis salvar o público das mensagens reacionárias que devo ter embutido no filme. Por isso, ele correu a Alphaville, para ver o filme quentinho, ainda no laboratório. Ele correu antes para avisar o povo: “Não vá!… Fuja do demônio neoliberal que fez um filme de época sem mostrar Getúlio ou a luta de classes.”

Ele deve ter zelosamente pensado: “Vou pautar também os jovens tenentes das novas “patrulhas pop”, porque eu sou egresso das velhas patrulhas ideológicas descobertas por Cacá Diegues e tenho esta missão.”

E conseguiu; parabéns, doce Zhdanov com seu lento sorriso superior. Foi um alívio. A sociedade estava salva.

Mesmo assim eu ainda entendo o homem. Sei que grandes frustrações na vida se compensam por elusivas fantasias de grandeza. Sei que a onipotência não realizada, o narcisismo que parou no meio provocam ódio e entendo que ele tenha buscado, digamos, “profissionalizar” seu rancor. Assim, ele descolou esse “bico” para aliviar sua dor interna. Deve ter pensado: “Boa ideia… serei implacável contra todos que ousam fazer filmes corrompidos pelo sucesso e pelo público enganado.”

Confesso que admiro sua integridade de não poupar nem amigos nem parentes.

Mas, aí… esbarrei com a frase: “Jabor sempre pareceu mais um “diletante” que um cineasta profissional.” Aí, não. Depois de ter trabalhado 30 anos em cinema, fazendo nove filmes, ouvir isso não dá. “Diletante” é você, cara, que fez dois ou três filmes medíocres que sumiram da história de nosso cinema.

E, no final, outro insulto, quando ele diz que, vendo esse filme, ele não tem mais dúvidas de quem sou eu…

Respondo: Se você pudesse saber quem eu sou, você não seria o que é.

E mais, ridículo censor do trabalho alheio: “A dignidade severa é o último refúgio dos fracassados.” É só.

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Os dias 30 e 31 de julho de 2007 foram …

… muito estranhos. No dia 30 morreu Ingmar Bergman e, no dia seguinte, Michelangelo Antonioni. Fiquei meio perdido.

Ingmar Bergman (1918-2007)

Após produtiva existência, faleceu hoje pela manhã o maior diretor e autor de cinema de todos os tempos, Ingmar Bergman. O anúncio foi feito pelo Real Teatro Dramático da Suécia. Ele morreu em sua casa, em Faro. Pior notícia é difícil.

Nascido a 14 de Julho de 1918 em Uppsala, a norte de Estocolmo, Ingmar Bergman realizou ao longo da sua extensa carreira mais de 40 filmes, entre os quais se destacam Mônica e o Desejo (1951), “O Sétimo Selo” (1956), “Morangos Silvestres” (1957), “O Rosto” (1958), “Persona” (1966), “Gritos e Sussurros” (1972), “Sonata do Outono” (1978), “Fanny e Alexander” (1982) e “Sarabanda” (2003), além do esplêndido roteiro de “Infiel” (2000), de Liv Ullmann.

O cinema de Bergman vai muito além da simples diversão ou deleite, ele desperta reflexões sobre a vida, suas representações e o próprio homem. Eram os atores quem faziam os filmes de Bergman, eram eles quem davam vida a seus filmes e poderíamos dizer que eram suas feições a razão de seus filmes.

Além da sua obra cinematográfica, Bergman foi durante toda a vida um homem de teatro, tendo encenado numerosas peças, nomeadamente as do seu ídolo de juventude, August Strindberg. Foi no entanto o cinema o seu meio de expressão de eleição. “Fazer filmes é para mim um instinto, uma necessidade como comer, beber ou amar”, declarou em 1945.

Cineasta das mulheres, como alguns o consideravam, proporcionará os melhores papéis a atrizes como Maj Britt Nilsson, Harriet Andersson, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Eva Dahlbeck, Ulla Jacobsson e Liv Ullmann. Teve casos amorosos com várias das suas atrizes, casou-se cinco vezes e teve nove filhos.

<em>Que o cinema seja o meio que me expresso é absolutamente natural. Fiz-me compreender numa língua que passava ao lado da palavra de que carecia, da música que não sabia tocar, da pintura que me deixava indiferente. Subitamente tive a possibilidade de me corresponder com o mundo numa linguagem que literalmente fala da alma para a alma, em termos que, quase de maneira voluptuosa, escapam ao controle do intelecto.</em>

Filmografia principal:

2003 – Sarabanda
1986 – Documentário sobre Fanny and Alexander
1984 – Depois do ensaio
1982 – Fanny e Alexander
1980 – Da vida das marionetes
1978 – Sonata do outono
1977 – O ovo da serpente
1976 – Face a face
1974 – A flauta mágica
1973 – Cenas de um casamento
1972 – Gritos e sussurros
1971 – A hora do amor
1969 – O rito
1969 – A paixão de Ana
1968 – Vergonha
1968 – A hora do lobo
1966 – Persona (Quando duas mulheres pecam)
1964 – Para não falar de todas essas mulheres
1963 – O silêncio
1962 – Luz de inverno
1961 – Através de um espelho
1959 – A fonte da donzela
1958 – O rosto
1957 – Morangos silvestres
1956 – O sétimo selo
1955 – Sorrisos de uma noite de amor
1955 – Sonhos de mulheres
1953 – Noites de circo
1952 – Mônica e o desejo
1952 – Quando as mulheres esperam
1949 – Prisão
1948 – Música na noite
1946 – Chove em nosso amor
1945 – Crise

Michelangelo Antonioni (1912-2007)

Este blog não tem o menor interesse em especializar-se em obituários, mas o que podemos fazer se, nesta semana absurda, morrem Bergman e Antonioni, o último citado há três dias por seu Blow-up e por Vanessa Redgrave na minha rubrica (como os portugueses a chamam) Porque hoje é sábado? Mas deixemos para falar em A Noite e no ocaso do grande cinema em outro dia.

Posts de 30 e 31 de julho de 2007 em meu antigo blog…

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O reinventor do cinema

Por Fernando Monteiro

O mais importante cineasta vivo completará 80 anos no dia 3 de dezembro. Coincidência ou não, três semanas antes a Academia de Ciência e Artes do Cinema vai lhe entregar um Oscar honorário – pelo conjunto da obra – como se isso fizesse diferença para Jean-Luc Godard.

NÃO faz. Até porque nada é menos parecido com Godard do que a famosa estatueta dourada, uma figura andrógina concebida para representar a glória na indústria cinematográfica americana (e talvez por isso segurando, contritamente, uma espécie de espada encaixada entre as longas pernas).

Ao Jean-Luc já ancião será conferida uma homenagem antes recusada ao cineasta ao longo da carreira de meio século e, até agora, 85 títulos que contaram com a solene indiferença da mesma Academia. Só agora ela resolveu conceder-lhe um Oscar “especial” que chega tarde às mãos do diretor nunca galardoado, antes, ao menos com aquele prêmio colher-de-chá conferido aos melhores filmes estrangeiros – um troféu considerado importante por nós, mas não por eles. O homenzinho na pose de sentinela transida, para os americanos é relevante somente quando premia roteiristas, músicos, atores, atrizes, diretores e produtores integrados ao sistema hollywodiano.

Na contramão disso, Godard sempre representou – e ainda representa – um cinema radicalmente criativo e rebelde. Quem queira saber mais sobre a modernidade da sua obra, é só conferir as 944 páginas de GODard (assim mesmo, na capa), livro do historiador e jornalista Antoine de Baecque lançado na França em março deste ano.

Nem com essa empreitada do sério Baecque, se animou o Godard convidado para colaborar com a alentada biografia: “Pra que diabo servirá saber sobre detalhes da minha vida?” – logo de saída ele perguntou ao compatriota e admirador interessado até no café da manhã de uma lenda viva.

Agora, lá vem o Oscar chatear com seus cenários de luxo e acomodação, num contexto que é o emblema maior do Negócio, no cinema. O “caneco” americano celebra isso, madrugada adentro, numa festa de brilho brega, com passarela de celebridades e tradutores simultâneos tropeçando nas piadas sem graça de emocionados agraciados pulando do auditório com cara de surpresa. Seja como for, o diretor de “Acossado” sequer confirmou que estará presente, na entrega – prévia – dos prêmios especiais de 2010.

O DISSIDENTE QUE VIROU UM CLÁSSICO

Jean-Luc Godard nunca morreu de amores pelo cinema made in USA, mas, justiça seja feita, ele também não compareceu ao Festival de Cannes deste ano. Foi esperado até o último momento, quando afinal avisou que resolvera cancelar a viagem à Riviera, a fim de apresentar a mais recente produção (“Film Socialisme”) com a inconfundível assinatura JLG nos créditos – que incluem a cantora Patti Smith, o filósofo Alain Badiou e o historiador palestino Elias Sanber.

Se houver explicação para as recusas do cineasta, será a de que o homem está cada vez mais parecido consigo mesmo e, portanto, menos disposto a suportar as “futilidades” de festivais, holofotes da mídia, prêmios e entrevistas coletivas que fazem a delícia dos Woody Allen da vida.

Godard sempre foi mortalmente sério, desde seus tempos (cancelados, também) daquele cigarro de desprezo no canto da boca, óculos escuros e os olhos novos para imagens de desacordo vinte e quatro quadros por segundo.

Não resisto à tentação de fazer um paralelo desse Godard irredutível com um cineasta brasileiríssimo. Aviso aos navegantes [da obviedade]: não se trata de Glauber Rocha. O nome que vou trazer para perto de Jean-Luc é o do também revolucionário Mário Peixoto, realizador de um único e fundamental título: Limite, de 1930.

Ele foi o nosso Godard avant-la-lettre, e Jean-Luc é, no cinema de hoje, o único diretor que, a exemplo de Mário, continua interessado no cinema-cinematográfico (tautologia necessária), ou seja, na imagem pura, no discurso não “verbal” de tomadas que revelam o real para além do “naturalismo” vagabundo no qual se refestela grande parte dos filmes burros deste momento agônico quer do cinema clássico (a la John Ford e David Lean), quer do cinema das almas formalmente inconformistas, na tradição de Eisenstein, Peixoto, Welles e Godard.

É isso mesmo: um carioca, solitário, forma no quarteto básico do Cinema – com o “C” maiúsculo da contemporaneidade que não filma para o passado.

Usando-se do paradoxo dos signos verbais, o mais próximo de uma sinopse godardiana seriam os versos da polonesa Wislawa Szymborska (prêmio Nobel de 1996): “Quando pronuncio a palavra Futuro/a primeira sílaba já pertence ao passado./ Quando pronuncio a palavra Silêncio,/destruo-o. /Quando pronuncio a palavra Nada, /crio algo que não cabe em nenhum não-ser.”

Essa brevíssima metafísica corresponde, em parte, àquela dos filmes menos palavrosos do Jean-Luc que fez de tudo para reinventar a sétima arte: filmes literários e anti-policiais, crônicas parisienses desesperadas e ensaios de política, visões escatológicas, dramas cubistas, anotações e epifanias – jamais parecida uma com a outra – porque Godard sabe que o cinema é uma arte que, estranhamente, envelhece com a velhice das décadas, das culturas e da história a que ninguém mais está presente depois do ex-anônimo Abraham Zapruder filmando, em 8 milímetros, o assassinato de um presidente.

Isso aconteceu quando Godard caminhava para o zênite da “Nouvelle Vague”, a escola francesa de cinema da qual se tornaria a cabeça mais inquieta (enquanto o recém-falecido Claude Chabrol era a mente mais convencionalmente gaulesa, desculpem os chabrolianos que nunca aceitaram bem a superioridade dos Godard e dos Rivette). Ora, Jean-Luc foi, quase sozinho, a nova vaga em essência, longe da noite americana e outros disfarces à Truffaut. Ele impregnou o seu cinema da marca do reflexo do tempo que passa à nossa frente, caótico e inacabado como são todos os tempos.

VELHOS TEMPOS, BELOS DIAS

No auge da “Nouvelle”, mal havia o intervalo necessário para entender a nova visão godardiana nas coxas – entretanto, bem-feita – e lá vinha mais uma instigação lítero-visual dos seus cadernos de Dziga-Vértov da ficção cinematográfica em modo de discurso já diferente. Como descrever o que era aguardar, ansiosamente, o novo Godard?

Basta dizer, talvez, que era como esperar uma mensagem codificada invertendo tudo que fosse fácil de apreender nas salas de poltronas acolchoadas do pensamento, e que suas “películas” (ainda se usa a palavra?) de Kino-verité podiam ser Alfa e Ômega, e rolar de trás para diante nos projetores, de acordo com o ajuste irônico do autor de Je vous Salue, Marie: “Sim, todo filme tem que ter princípio, meio e fim, embora não necessariamente nessa ordem”.

Isso – esse novo modo de contar uma história na tela – viria a ser apropriado até pelos cineastas mais idiotas da indústria, nas imitações baratas que surgiriam, depois, macaqueadas das reinvenções de Godard. Mais, muito mais do que metade da linguagem do cinema de hoje, saiu das liberdades que esse cineasta tomou com a linguagem, até como possível reflexo de ser oriundo da família Monod, de protestantes severos.

O irrequieto artista surgido deles fez “história imediata”, ao filmar com uma necessidade de urgência tal que não hesitava sequer em furtar dentro de casa. Na época da estréia atrás das câmeras (Operátion Béton, curta-metragem, 1954), para choque dos seus sisudos parentes, o jovem Jean-Luc roubou um livro da biblioteca do avô – obra rara, com o autógrafo de Paul Valéry – para suplementar as despesas da produção.

Esses Monod franco-suiços bem-pensantes dos quais Godard provém, tornam-se bem mais aceitáveis, entretanto, do que a modernosa ligeireza dos monos, dos macaquinhos que passaram a praticar a diluição-da-diluição dos filmes que essa lenda cinematográfica involuntariamente articulou para um futuro de “déjà vu” estético e calculadoras exponenciais de lucros, quer sejam do mais novo Almodóvar atropelado pela vulgaridade do Tarantino mais recente, ou sejam do cinema falso-brilhante de Martin Scorcese e outros menos votados (formando a multidão de esquecíveis quase de imediato à consagração de um único dia na “Quinzena dos Realizadores”, na corda bamba da montanha russa mimetizada desse senhor que, nos anos de 1960, reinventou a arte das imagens: Monsieur Jean-Luc Godard).

O cineasta mal copiado é, na verdade, pináculo, vertigem e ascese – enquanto o resto vai de pós-modernismo tatibitate até chegar à cinematografia pedestre dos Spielbergs interessados em entretenimento rasteiro de maneira a fazer fortuna rápida com a sintaxe libertada pelo mestre.

Por que Godard estaria interessado na “homenagem” de uma estatueta sem valor? (Sem valor, vírgula: o Oscar serve para fazer dinheiro, mas não com os filmes alternativos da rica marginalidade do seu cinema).

Onde ele iria enfiá-lo? A pergunta é, acreditem, sem malícia – livrando o seu da reta e prevendo que o homenageado vá sair pela tangente daquela cerimônia de americanos “jecas” no Afeganistão de verdadeiros caipiras que já elevaram a mediocridade de um Forrest Gump à morada da sexta felicidade de seis estatuetas e quase setecentos milhões de dólares de receita.

Estou tentando louvar um velho renovador com o melhor do seu veneno: a paráfrase de um texto o mais próximo possível do cinema maravilhosamente perto das primeiras visões dos Lumière, quando a imagem era novidade e invenção mecânicas, a estimular a mente de proto-espectadores ainda bebês em matéria de “sétima arte”.

O cinema voltou a engatinhar? “A indústria recupera tudo”? Quem disse isso? Gilles Deleuze? Glauber? Godard? Branchú?…

Não importa: a dúvida sobre essa frase a indústria (zás!) já a recuperou, junto com a camiseta de Che Guevara que o mercado gosta de usar debaixo do smoking alugado para a noite do Oscar.

Alguém imagina Godard enfiado numa roupa de cerimônia, subindo ao palco pelo tapete cor vermelho-sangue do Iraque que vai recomeçar a render mais filmes de soldados desajustados de volta para a América sem qualquer inocência (restante daquela que havia na Idade de Ouro de um John Ford)?…

Eu, pelo menos, não consigo ver o diretor revolucionário no cul-de-sac de uma roupa apertada, avisando a todo mundo – na platéia expectante – que, no seu rigor, esqueceu de vestir a cueca, e, em seguida, agradecendo comportadamente aos pais, aos mestres, aos bedéis, às ex-namoradas, aos guardadores de carros e à antiga (in)sanidade dos tempos em que ir ao cinema era viver a vida novamente intensificada de um jeito que nada tem a ver com a arte sete vezes pasteurizada na telinha do celular…

Viva Godard. Os que vão ter saudade do futuro te saúdam!, rapaz de oitenta anos, imortalmente jovem na atração fatal de filmes ainda em plena desobediência política, artística, global – o escambau.

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A Suprema Felicidade, filme de Arnaldo Jabor

Publicado ontem no Sul21

Vinte e seis anos após Eu sei que vou te amar, Arnaldo Jabor volta às lides cinematográficas com o nostálgico e autobiográfico A Suprema Felicidade. Neste ínterim, Jabor trabalhou como colunista de O Globo e como comentarista do Jornal Nacional, Jornal da Globo, Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Fantástico e da Rádio CBN. Escreveu também dois best-sellers: Amor é prosa, sexo é poesia (Editora Objetiva, 2004) e Pornopolítica (Editora Objetiva, 2006). Se seus textos e suas intervenções na televisão renderam-lhe admiração e críticas, seus antigos filmes sempre foram respeitados.

Porém o mesmo certamente não ocorrerá com A Suprema Felicidade. Chamá-lo de ruim é insuficiente, seria apenas colocá-lo na vala comum dos projetos fracassados. Para caracterizar o filme com maior exatidão, talvez o melhor seja utilizar a palavra pavoroso. Na partida, a ideia não é má: a trama ocorreria no Rio de Janeiro do pós-guerra, buscando fazer uma crônica nostálgica dos anos de formação de um menino – certamente o próprio Jabor. O filme iria desde a infância até a adolescência de Paulo, da guerra ao amor, de Deus ao sexo, das convenções à família, só que o roteiro e seu cantor revelaram-se muito inferiores aos temas.

Em poucos minutos, toda a ideia inicial torna-se rarefeita e Jabor passa a dar atenção apenas ao sexo, realizando uma paródia involuntária de A Primeira Noite de um Homem. O adolescente Paulo perde-se em cenas de gosto duvidoso sob a orientação de um avô boêmio e de um pai cheio de repressão e concupiscência, respectivamente dentro e fora de casa. Aqui, Jabor consegue o impossível: fazer Marco Nanini, o avô materno, realizar uma atuação forçada, fora do tom. Aliás, tudo é acompanhado pelo avô, que despeja boemia pelos poros e pérolas de sabedoria em suas falas. Nada mais clichê. A única personagem que se salva do naufrágio geral é a da mãe (Mariana Lima). Melhor seria tornar o avô narrador do filme — ele funcionaria como elemento unificador, meu caro Jabor.

Os problemas do filme começam pelo roteiro interminável, repetitivo e verborrágico, e seguem pela direção de arte tosca, pela falta de estrutura, pelas alegorias deselegantes, pela má direção de atores e, para terminar, pela pieguice e inverossimilhança – por exemplo, o personagem do protagonista é dividido entre três garotos de idades diferentes e nada em comum, inclusive a cor dos olhos varia!

O filme começa com o anúncio do final da Segunda Guerra Mundial e passa a acompanhar a em flash-backs a história dos pais de Paulo (Dan Stulbach e Mariana Lima), mostrando como se apaixonaram e passaram a se detestar. As cenas da infância de Paulo num colégio católico são ainda boas, apesar da onipresente e lastimável direção de arte.

O estilo também não se decide. Em alguns momentos é uma história adolescente, noutros é a crônica da crise de um casal, noutros é uma chanchada dos anos 70, noutros o único humor são os trocadilhos chulos, ainda noutros é um musical e tudo isso sem um elemento unificador que justifique as alterações de estilo.

Saudades de um Rio antigo? Saudades de um (mau) cinema? Saudades de um avô querido? Da mãe? Nostalgia de si mesmo? Impossível responder qual foi a intenção de Jabor à beira de seus 70 anos.

O melhor do filme é a epígrafe de mineiro-carioca Drummond:

As coisas findas
Muito mais que lindas
Essas ficarão

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Dois tópicos cinematográficos

AUTO-AJUDA ENTRE SEMIDEUSES E A CAIXINHA BERGMAN. Tenho desmedida admiração por Ingmar Bergman e Johann Sebastian Bach. O que não sabia, até anos atrás, era da admiração que Bergman nutria pelo alemão. Nos livros do diretor sueco, há referências diretas a Bach. Não são observações triviais ou meramente elogiosas, são observações de profundo conhecedor, de alguém que estudou inclusive o complexo simbolismo numérico que perpassa várias obras.

Ele diz ter utilizado a música de Bach nas cenas mais importantes de seus filmes ou, pelo menos, naquelas em que achava que a atenção do espectador pudesse ser dividida com a música. A escolha era quase sempre entre Bach ou o silêncio. No livro “Lanterna Mágica”, Bergman transcreve uma longa conversa que teve com o ator Erland Josephson. Nela, nos revela que, nos momentos de maior desespero, costuma contar para si mesmo uma história vivida por Bach.

Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase que serve para consolar Bergman: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

Bergman escreve em A Lanterna Mágica:

Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim, repito no meu íntimo.

Às vezes eu, o limitado e ateu — tal como Bergman — Milton Ribeiro, repito esta frase. Ela me emociona, me acalma e me faz pensar que minha alegria ainda está ali comigo, tem de estar. É um grito infantil que reconheço facilmente e que ainda não me abandonou.

Deve ter sido um íntimo grito infantil o que bradei quando vi uma caixa com 4 filmes de Bergman à venda na videolocadora. Fiquei louco e arrematei O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, A Fonte da Donzela e Gritos e Sussurros. São filmes que conheço quase cena a cena. Só não entendo uma coisa: por que a caixa traz 3 filmes do final da década de 50 e um filme de 71? Por que esta confusão? Ao final dos 50, Bergman fez 5 filmes de enfiada que são a maior seqüência que um cineasta já realizou:

1955: Sorrisos de uma Noite de Verão,
1956: O Sétimo Selo,
1957: Morangos Silvestres,
1958: O Rosto e
1959: A Fonte da Donzela.

Então, por que tirar 2 e substituí-los por Gritos e Sussurros? Gritos está entre os meus 10 mais de todos os tempos, mas qual a razão desta falta de critério? Poderiam ter feito outra caixa com, por exemplo:

Gritos e Sussurros (1971),
O Ovo da Serpente (1976),
Sonata de Outono (1977),
Da Vida das Marionetes (1979),
Fanny e Alexander (1981) e
Infiel (que foi dirigido por Liv Ullmann mas possui texto, cor e pedigree deste grupo de filmes bergmanianos).

E outra com os muito citados e pouco vistos:

Através do Espelho (1961),
O Silêncio (1962),
Persona (1965),
A Hora do Lobo (1966) e
A Paixão de Ana (1968).

Chega de delírios!

INDICAÇÃO DE FILME BOM. Quero elogiar um tremendo filme. Trata-se Reconstrução de um Amor, criativa tradução de Reconstruction, filme dinamarquês de 2003, dirigido por Cristoffer Boe. A sinopse do filme nos leva a pensar em algo já visto: “Homem e mulher se conhecem e tentam se desvencilhar de seus relacionamentos para ficarem juntos.” O inédito do filme são os artifícios utilizados na montagem. Não pretendo estragar o prazer de ninguém, mas prestem atenção à voz do narrador quando ele diz: “Tudo aqui é montagem, mas mesmo assim dói”. Alguns comentaristas compararam o papel do escritor que há no filme (representado pelo ator Krister Henriksson) com alguns personagens de Bergman. Pode ser… É, talvez não tenha sido tão casual o fato de eu ter lembrado tanto do velho Ingmar nos últimos dias…

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As incríveis legendas chinesas para "A Vida dos Outros"

Muito legal a forma de integração das legendas em chinês ao filme A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen), tremendo filme de Florian Henckel von Donnersmarck. Em vez de deixar a tradução fora da imagem, no local onde ficam escritos os diálogos, o chineses escolheram integrar a tradução daquilo que aparece escrito na imagem a ela própria. Num primeiro momento, eu não notei a alteração; a coisa só ficou clara com a imagem do livro. É uma cena inesquecível do livro que precede a leitura da dedicatória e a afirmação “Não, é para mim mesmo”. Vontade de rever tudo… Baita filme.

Fonte: ChinaSMACK.

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"O Sétimo Selo": Bergman usa o cinema para reflexão

André Setaro
Publicado originalmente no Terra

Ingmar Bergman (14/07/1918 – 30/07/2007), um dos maiores pensadores do cinema, morreu há três anos, com 89 anos de idade completados poucas semanas antes de seu passamento. A coluna lembra o genial cineasta através de seu belo “O sétimo selo”.

Não apenas um cineasta, mas um autor completo, um pensador que se vale do cinema para refletir suas angústias, suas dúvidas, refletir sobre a condição humana, Ingmar Bergman é um dos maiores realizadores cinematográficos de todos os tempos. Houve uma época, nos idos dos 60 e 70, que o seu nome despertava imensa curiosidade e, por causa dela, formou-se um verdadeiro culto ao diretor, que alguns chamaram de bergmania. Se na primeira fase de sua carreira não conheceu o sucesso nas bilheterias, considerado pelos exibidores um cineasta maldito, a partir dos meados dos anos 60 um mercado se abriu para suas obras. Principalmente na sua “fase psicanalítica” – “Cenas de um Casamento”, “Face a Face”, “Sonata de Outono”… Os filmes de Bergman que mais aprecio, no entanto, exceção se faça a “A Paixão de Ana” (1970), e, também a “O Silêncio”, são aqueles da primeira fase, notadamente “O Sétimo Selo” “Morangos Silvestres”, “A Fonte da Donzela”, “Noites de Circo”, “Mônica e o Desejo”, “Sorrisos de uma Noite de Verão”, “Juventude”, entre outros. No frigir dos ovos, entretanto, posso dizer que admiro a todos os seus filmes.

“O Sétimo Selo”, obra-prima da primeira fase do cineasta, ainda que produzido em 1956, somente em 1976, vinte anos depois de sua realização, foi lançado no Brasil através da distribuidora “Cinema 1” e, aqui na Bahia, apresentado neste mesmo ano no antigo cine Nazaré da Praça Almeida Couto. Já “Morangos silvestres” obteve estréia ainda na segunda metade do decurso dos 50, conseguindo grande impacto e estupefação na época de seu lançamento Alegoria tragicômica em forma de mistério medieval, com um desenvolvimento livre do imaginário da Idade Média, “O sétimo selo” ( “Det sjunde inseglet”) tem sua fábula estruturada na volta de Antonius Blok (Max Von Sydow) à Suécia após dez anos de luta na cruzada e o jogo que estabelece com a Morte num tabuleiro de xadrez. Antonius e seu lacaio Jons (Gunnar Blornstrand) se dirigem, por uma longa jornada, ao castelo onde moram, e, no caminho, contemplam uma terra arrasada pela peste. Este itinerário de Blok, do erro inicial à Verdade final, é conduzido com extrema maestria por Ingmar Bergman, que se utiliza, aqui, do cinema, como um veículo “filosofante” e reflexivo acerca da condição humana. No percurso, Blok e Jons encontram vários personagens, mas apenas um casal de artistas mambembes se constitui num remanso de paz e tranquilidade, longe da mesquinharia e da hipocrisia dos outros. Blok, entretanto, continua o jogo de xadrez com a Morte (impressionante caracterização de Bengt Ekerot), mas esta, de repente, ganha partida. Vencedora, precisa levar consigo todos os personagens, deixando na vida somente o casal de cômicos (Bibi Andersson e Nils Poppe), o único capaz de desfrutá-la de maneira pacífica e feliz.

“O Sétimo Selo”, antes da consagração definitiva que se daria, um ano depois, em “Morangos silvestres”, já coloca Bergman, no panorama internacional, como um dos grandes cineastas do século XX. Trata-se de um filme, a rigor, gnoseológico em que se estuda a origem e a possibilidade do conhecimento por parte do homem. Por autor, os filmes de Bergman se constituem, na verdade, em variações sobre um mesmo tema. Em todos eles, presentes: a incomunicabilidade dos seres, a angústia do estar-no-mundo, a inevitabilidade e o mistério da morte, os tormentos da relação amorosa… “O sétimo selo” volta às raízes do cinema nórdico de Victor Sjostrom e Mauritz Stiller, à floração sueca, quando a natureza tinha uma forte influência no comportamento das personagens. Assim, “Det sjunde inseglet” pertence à série de filmes que Bergman realizou e que possuem um “decór” histórico, ainda que o fato de a ação localizada na Idade Média não tira a esta obra magistral seu caráter contemporâneo. O homem que Bergman estuda é o homem do aqui e do agora.

Veja-se o caso dos dois protagonistas principais, o Cavaleiro e seu lacaio, que formam, a seu modo, um binômio no qual se debate o tema das fontes das possibilidades de conhecimento – não somente o conhecimento de Deus mas de tudo aquilo que escapa à constatação estrita dos sentidos. Elementos de mistérios – a bruxa, a peste, a procissão penitencial.., simbolismos e participações insólitas, como a personagem da Morte, criam, em “O sétimo selo”, um clima tenso ao qual contribuem uma planificação e uma iluminação ( do artista Gunnar Fischer antes de Bergman trabalhar com o iluminador Sven Nykvist) cuidadas com esmero.

Em “O Sétimo Selo”, como a afirmar a condição de autor do cinema moderno, Bergman mostra uma constância temática e estilística, um universo ficcional próprio e um estilo – que faz o artista! – pessoalíssimo. À guisa de um pequeno exemplo, que se veja alguns personagens secundários, os quais, vêem se repetindo nos filmes de Bergman de filme a filme: o casal dos artistas ambulantes (presentes desde Noites de Circo até O Rosto”; a controvérsia estabelecida entre o ferreiro e sua mulher – contraponto e complemento. Nas palavras do ensaista Claude Beylie (no indispensável “As obras-primas do cinema, Martins Fontes): “A mensagem é clara. Continuamos ameaçados pela peste, que se chama, hoje, guerra nuclear, e, diante deste perigo, não há outro recurso além dos corações puros. Bergman opõe ao fanatismo e à intolerância, “O leite da ternura humana”. No entanto, seu filme nada tem de dogmático. Ele joga o jogo da ingenuidade iconográfica, desenvolve livremente o imaginário medieval. Faz-nos pensar em Durer, nas xilogravuras de Hans Beham, na “dança macabra” de Orcagna. A reflexão filosófica é irrigada sem cessar por um onirismo límpido e, até, por traços de humor, notadamente através do personagem do escudeiro.”

André Setaro é crítico de cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

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Baita mentira

Ah, o cinema…

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Há tanto tempo que te amo, de Philippe Claudel

Há tanto tempo que te amo (Il y a longtemps que je t’aime), de Philippe Claudel, é um filme de título enganador. Pensamos numa história de amor, mas não é nada disso. Há tanto tempo que te amo é uma frase de uma canção que as duas irmãs protagonitas do filme (Kristin Scott Thomas e Elsa Zylberstein) cantavam quando crianças. Na verdade, o filme mostra uma bergmaniana exposição da dor.

A história começa com a libertação da irmã mais velha, presa durante 15 anos. A princípio, não somos informados dos motivos da prisão por tempo tão longo. O estreante Philippe Claudel, com notável controle, vai aos poucos elegantemente nos concedendo os fatos. Por um motivo inteiramente pessoal, chorei inúmeras vezes. Os sentimentos e as reações de Scott Thomas são meus velhos conhecidos.

Explico: em 2004, uma motocicleta bateu em meu carro parado. O motoqueiro morreu. Não recebi nem multa de trânsito. Nada de álcool, apenas fatalidade. O perito disse que não podia precisar o que tinha ocorrido porque o pessoal da EPTC (empresa que administra o trânsito de Porto Alegre) tinha retirado meu carro e a moto do local. Meu advogado me alertou que eu deveria “forjar testemunhas”, pois ninguém viu o acidente, que acontecera muito cedo da manhã, em dia útil. Eu resolvi que não o faria por dois motivos: havia uma morte e não submeteria amigos meus à mentira de terem visto o acidente. Não tenho nenhuma reclamação da família da vítima. Eles queriam que eu fosse punido e conseguiram. Mas nunca entraram com processo civil por danos, etc. Eu pouco falei durante o processo. De uma forma perigosa para mim, respeitei a vítima.

Digo isto apenas para situar o que sei, o que passei, e o que mostra o filme: para algumas pessoas, a pior punição é a que nós mesmos decidimos receber. É nossa culpa, mesmo que esta seja pequena como a minha ou imensa como a da personagem de Scott Thomas quem decide. O filme de Claudel constrói minuciosamente a lógica interna de uma personagem que aceita o auxílio externo sempre com pesadas restrições, sempre em razão de ter decidido que só poderia elaborar e livrar-se da culpa se sofresse daquela forma. Eu passei 3 anos fazendo trabalhos comunitários (dei aulas de matemática), fui até feliz. Ela passou 15 anos na prisão. Porém, no fundo, a punição foi o lentíssimo tratamento da culpa.

Como disse um crítico do Estadão um tanto grandiosamente, “as prisões interiores podem mais opressoras do que as instituições penais da vida real”.

O trabalho das duas atrizes principais do filme é absolutamente arrebatador. Eu não sabia que Kristin Scott Thomas era capaz de algo tão perfeito e dilacerante.

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Andrei Tarkovsky "de grátis"

No link abaixo, filmes do diretor russo Andrei Tarkovsky para download grátis.

Tarkovsky, aqui

Dica do Tácito.

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O Ataque do Presente ao Restante do Tempo (*)

Não vogando já na doce ilusão de uma sociedade sem classes, concordei em viver numa sociedade sem classe.

Do extinto blog português BOMBYX MORI

O cinema é, atualmente, nosso único bem cultural comum, aquele que pode mais facilmente tornar-se assunto de conversa. Se você, por exemplo, desejar discutir um livro, só conseguirá fazê-lo se for um daqueles bem clássicos e olhe lá; se for um livro novo ou um que poucos leram, esqueça, você terá de “discutir” com um crítico ou procurar uma alma gêmea, como o Charlles Campos. Porém, é muito mais fácil trocar idéias sobre cinema, já que quase todos vêem os principais filmes. Por isso, tenho a opinião de que a crítica cinematográfica profissional é a atividade que hoje requer a maior das competências, pois é certamente a mais contestada. E temos excelentes críticos de cinema, seja em blogs, seja em jornais, mas há outros autenticamente ridículos.

Conheci um desses na última sexta-feira à noite. O autor, bastante lido, me assustou. É  análogo a certa casta de meninos que era obrigado a suportar na minha infância e adolescência: os que adoravam jogar futebol, não obstante serem irremediáveis pernas-de-pau. O pior é que, tal como o citado (ou não citado) blogueiro, aqueles meninos eram realmente fanáticos pelo jogo, eram os primeiros a chegar à nossa pracinha e muitas vezes eram os donos das melhores bolas. Estratégia.

Esse perna-de-pau — cujo nome não vou revelar e que não é o único — simplesmente não compreende o que vê na tela, possivelmente por falta de conhecimento e de bordel. Para escrever a respeito de determinados filmes são necessárias algumas interpretações e para tanto é imprescindível o conhecimento e/ou vivências e/ou referências e/ou esperteza; ou seja, cultura e algo mais.

Chutando para todo lado e pontificando sobre conceitos fundamentais suspeitos, usa uma arma que costuma ser sedutora aos crédulos: a arrogância sem justificativa. Este novo candidato a representante da ignorântzia escreve frases curtas e definitivas sobre todos filmes e é capaz de emitir involuntariamente os juízos mais cômicos. Patético. O único mérito que vejo neste blog de casa nova é o fato do homem realmente gostar de cinema; ele vê quase todos os filmes, dedica-se comovedoramente a correr de sala em sala, bem como fazia o menino perna-de-pau de minha infância — aquele que nos esperava para correr atrás da bola, raramente logrando tocá-la… Outro mérito, este mais duvidoso, é que ele parece ter o sério compromisso de resenhar todos os filmes. Aliás, é instado a isso por seus leitores nos comentários. Ou seja, há toda uma leva de jovens prontos para serem “orientados”.

Gostaria MESMO de explicitar algumas pérolas que andei lendo lá, mas tenho certeza que não devo fazer isso. O Google funciona muito bem e chega de confusões. Mas digo-lhes ao pé do ouvido que há coisas engraçadíssimas, se não fossem antes tristes. O que me deixa desconcertado é que um sujeito desses possa ter muitos leitores e que auxilie, sob aplausos, a confundir. Mas por que estou tão preocupado com isso quando há a Veja fazendo coisas piores em todas as áreas? Puff!

(*) Título copiado de outro título: o do filme de Alexander Kluge.

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Mas Polanski, 33 anos depois, está preso

Pois é. Andei lendo sobre o Caso Roman Polanski e — apesar de considerar a pedofilia o crime mais grave antes do assassinato — há tantos, mas tantos detalhes, que não sei o que eu decidiria em um juri. Os anos 70 eram diferentes. Polanski, já adentrado nos quarenta anos, namorava meninas de 15, como a grande Nastassja Kinski. Era tudo permitido, como podemos ver por esta surpreendente foto norteamericana de Brooke Shields, aos 11 anos de idade, em 1976.

Se isto não é pornografia infantil, não sei o que é. Saiu na imprensa da época, apesar de ser revoltante a nossos olhos certamente mais esclarecidos. (Digo isso sem nenhuma ironia).

Para meu pasmo, Samantha Gailey foi levada a Polanski pela mãe. E a mãe deixou-a sozinha lá para uma sessão de fotos… E Polanski era uma conhecida e admirada figura pública. E reconhecido por correr atrás de ninfetas. E era aceito pela sociedade menos conservadora. E Samantha, de 13 anos, tinha experiência sexual prévia.

Olha, é tudo muito estranho. O que hoje é um crime indiscutível, não parecia ser grave nos anos 70, apesar do veredicto do tribunal, que foi escolhido a dedo. De resto, calo-me antes que as feministas apareçam com uma argumentação perfeitamente razoável, porém com aquele tom indignado que nos deixa sem opções. Ou respondemos e somos sexistas (acusação falsa), ou ficamos quietos e somos indiferentes (acusação falsa), ou rimos e somos o pior tipo de rastejante (acusação que minha modéstia impede de considerar 100% falsa).

(*) A foto acima foi retirada deste post do Varal de Ideias.

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Uma personagem de Os homens que não amavam suas mulheres, filme de Niels Arden Oplev

Não vou contar o filme, certo? Filme de suspense não se conta e a Caminhante me mataria.

Também não li a tal trilogia Millennium de Stieg Larsson e nem lerei. É um fenômeno de vendas e penso que não tenho tempo para coisas provavelmente perecíveis. Mas vi o filme e fiquei apaixonado pelas possibilidades da personagem Lisbeth Salander — protagonizada pela excelente Noomi Rapace — , a genial hacker que acompanha o jornalista Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist) na sua tentativa de descobrir quem matou Harriet. É uma personagem muito moderna e sua postura expressa mais do que laudas ou manuais explicativos. Lisbeth é ressentida e agressiva, mas o que efetivamente interessa a mim é o fato de que ela se nega a falar de si. É um paradoxo, pois tudo o que há no filme é sua figura, de cuja biografia somos informados indiretamente. A montagem do quebra-cabeça Lisbeth Salander vai pouco a pouco tomando conta do filme. Sabemos pouco do jornalista (e nem nos interessa  saber), ao passo que sabemos tudo a respeito de quem não fala nada. Mas acabo de descobrir que não sou nada original. Na Europa há até uma lisbethmania… Bem, voltemos a nosso tema.

Cheia de tatuagens e piercings — o nome do filme nos EUA é The Girl With the Dragon Tattoo — , Lisbeth Salander é a mais enigmática e clara personagem da trama. Trata-se de uma intensa punk revoltada, antissocial, com corpo de criança, teimosa e silenciosa. É estranho que alguns comentaristas tenham se atrapalhado e reclamado das cenas de entre Lisbeth e seu curador. Elas são absolutamente fundamentais para caracterizar a personagem da qual precisamos saber tudo, inclusive o motivo da curatela. Dona de um sentido de justiça primário, ela é um resultado muito caótico de nosso tempo e mais não devo dizer.

O filme é um charmoso Who done it? com todos os clichês habituais e um final alongado e desnecessário, porém demonstrativo de que a lentidão do cinema europeu pode não prejudicar uma narrativa deste gênero, ao contrário. Os homens que não amavam suas mulheres é muito europeu no tratamento e construção das personagens, apesar de tratar da violência, da corrupção e da indiferença, temas caros aos cinema americano. Longe das qualidades do filme de Antonioni, não há poucos ecos de Blow-up na trama. E mais não devo dizer. Um amigo que leu o livro ficou muito surpreso com a fidelidade deste ao livro. Mais um motivo para não lê-lo… E mais não devo dizer.

Obviamente, os estúdios de Hollywood já compraram os direitos de refilmagem. Leio que há uma verdadeira guerra pelo papel de Lisbeth: a atrizinha com cara de quem comeu e não gostou Kristen Stewart (de, argh, Crepúsculo), a bonitinha Ellen Page (de Juno) e a inglesa Carey Mulligan (de Educação) brigam pelo papel. Posso garantir desde já que nenhuma terá o impacto de Noomi Rapace pelo simples fato de que a qualidade da produção está no modo filmar e na postura daquele bando de europeus tranquilos e “educados”. E mais não devo dizer.

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A terceira idade em Cannes

— Abbas Kiarostami: 69 anos
— Jean-Luc Godard: 79 anos
— Manoel de Oliveira: 101 anos
— Mike Leigh: 64 anos
— Nikita Mikhalkov: 64 anos
— Oliver Stone: 63 anos
— Otar Iosseliani: 66 anos
— Ridley Scott: 73 anos
— Stephen Frears: 69 anos
— Woody Allen: 74 anos

Isso significa alguma coisa?

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Dois Filmes para o Findi no Guion

Os homens que não amavam as mulheres, elogiadíssimo e surpreendente thriller sueco, e o gaúcho Antes que o mundo acabe, de Ana Luiza Azevedo.  Ambos no Guion Center. E a Brigada andou desobstruindo a Lima e Silva no último domingo. Talvez haja um sinalizador aceso no fim do túnel que permita a chegada do socorro antes do naufrágio. Vamos lá pessoal, o Guion precisa de espectadores. Só solidariedade não basta.

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Dekassegui – The Final Cut

Eu acho impressionante que ele deu uma solução tão simples que eu não achei em 3 meses.

O “ele”, da frase acima, sou eu. Foi um comentário muito simples e despretensioso que fiz há um ano no blog de um amigo que nunca vi, Roberto Maxwell, a respeito de Dekassegui — um, mais um, de seus excelentes filmes. Eu gostei muito do que vi, mas achei que o final não estava à altura. O comentário deve ter causado ainda mais dor de cabeça ao cineasta. (Não fiz para incomodar, Roberto! Como é que eu iria adivinhar que tu estiveras três meses quebrando a cabeça sobre o final?) Resultado: ele alterou o filme e ganhei um agradecimento especial na nova versão. Agora é Dekassegui — The Final Cut. Fiquei bem feliz, honrado e coçando a barba, meio assustado sobre as conseqüências daquilo que escrevemos em comentários.

Depois de ver o filme, escrevi ao Roberto dizendo que seria legal se tomássemos um chope qualquer hora dessas, apesar de que é complicado acontecer um chope entre um carioca que mora no Japão e um gaúcho bastante sedentário em termos de viagens. Ademais, ele parece ter ficado com algum receio de mim:

Pois é, rapaz, um chope ia bem. Agora, você vê, um comentário pela net provocou aquilo. Imagino o estrago que você me faria em 1 hora de conversa na mesa de um bar? Hehehehehehehe

Pô, Roberto, minha média é de 50 besteiras por uma coisa que preste. Foste premiado.

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A Crise do Guion e o próximo Godard

SOS GUION – UM CINEMA VIVE DE SEUS ESPECTADORES

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Amanhã completa uma semana que noticiamos a difícil situação dos Cinemas Guion.

Recebemos muitas mensagens de apoio, que nos motivam a seguir em frente e reverter a situação.

Agora, a permanência dos CINEMAS GUION depende de todos!

Nos CINEMAS GUION todo dia é dia de cinema!

Carlos Schmidt

Não adianta, eu sigo gostando muito de Godard, mesmo do mais recente. O trailer de seu último filme, Socialisme, de 2010, vem sendo amplamente divulgado pela rede. Vi todos, mas achei mais bonita a versão curta. Nos outros, fica claro que Godard segue explorando o som — o filme efetivamente parece uma música contínua, como se o diretor fosse um compositor cujas obras fossem constituídas de colagens de trechos musicais, de ruídos e falas — e as imagens são cada vez mais belas e em perspectivas surpreendentes. Fiquem então com o trailer de que mais gostei:

E com um maiorzinho, também sensacional, que mostra o porte e o caráter de Socialisme:

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Livros melhores que filmes — A Reação! — e um conto de PQP Bach…

A Caminhante, certa vez escreveu um post falando sobre a sistemática superioridade dos livros sobre os filmes análogos. Penso que ela tenha razão em grande parte e deixei o assunto em suspenso, mas ontem, ao comentar o fato com meu filho Bernardo, ele teve uma reação inesperada. Primeiro uma risada. E depois o argumento:

— Pai, empresta para ela A Laranja Mecânica do Burgess, Jules e Jim do Roche, O Conformista (1) e A Estratégia da Aranha (2), feitos pelo Bertolucci, todos os livros em que o Kubrick se baseou e todos os que usou o Hitch! Nada a ver! Vá se …

Dear Walker, perdoa os 19 anos do menino.

(1) De Alberto Moravia
(2) De Jorge Luis Borges

-=-=-=-=-=-

A Décima de Beethoven (*)

— E daí, gatinha, tenho uma coisa pra te mostrar.

— Xiii…, eu não curo reumatismo, viu?

— Nada disso, princesa, quero te mostrar aqueles motivos curtos e repetitivos.

— Repetitivos está OK, mas curtos…?

— Sim, e afirmativos.

— Em riste?

— Certamente! Vamos para aquele cantinho ali? Me parece mais adequado.

Os dois vão e sentam, a mulher prepara-se para os amassos quando o homem tira um fone de ouvidos do bolso e um celular. Arruma tudo e enfia no ouvido da gata.

— É a 10ª de Beethoven.

A mulher faz uma cara de decepção e responde.

— Um, eu não estou aqui para ouvir eruditos, quero testosterona, meu! E, dois, Beethoven jamais chegou à décima, assim como tu jamais chegarias à 2ª, quiçá à 1ª!

— Minha cara, nada disso. Acabam de remontar o primeiro movimento da décima.

— Quem?

— Um Wyn qualquer coisa.

— Vin? A propósito, podias ser um cavalheiro e pedir um vinho pra aquecer.

— Garçon!

— Então podemos retirar Beethoven da “Maldição da Décima”?

— O que é isso?

— Véio, tu não sabes que Bruckner, Mahler, Dvorargh, Beethoven e Spohr escreveram nove sinfonias e aí veio um raio e fulminou com todos? Isto é, com um de cada vez… Não sabia?

— Mas Mahler fez o Adagio da Décima.

— Sim, mas era um adagio, não tinha muita ação. Aquilo lá devia estar moribundo como o teu Ludwig van.

— Então a décima é perigosa? Pode matar?

— Sim, haja disposição para chegar lá…

— Eu tenho.

Ele bem que tentou, mas acabou por deixar a terceira inacabada. Ainda hoje se encontram. Ela, feliz, faz o papel de furacão maduro, ele, não menos, o de pau amigo.

(*) PQP Bach não deu título à sua narrativa. Desto modo, batizei-o eu.

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