Estrela Distante, de Roberto Bolãno

Por Charlles Campos

O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?

Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.

Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.

E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.

Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.

Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).

A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.

Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.

Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.

Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.

Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser uma serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.

Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.

Grafite de Roberto Bolaño numa rua de Buenos Aires

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Istambul, de Orhan Pamuk, e maisquememória, de Marcelo Backes

Lidos casualmente um após o outro, os livros de Pamuk (Istambul, Cia. das Letras, 399 págs.) e de Backes (maisquememória, Record, 399 págs.) podem parecer obras pertencentes a um gênero muito específico, o do memorialismo precoce e turístico, mas tal redução é injusta e, mesmo sendo tão diferentes, elas têm outras semelhanças além do número de páginas.

Conheci Pamuk numa Flip. Na verdade, fiquei (ficamos) abolhados com a metralhadora que é o homem. O tema de sua palestra era muito sedutor: “A influência de Borges sobre As Mil e uma Noites“. Sim, porque a admiração dos eruditos ocidentais, capitaneados argentino quando ainda não enxergava muito bem, causou tal furor nas pesquisas sobre o que havia de autêntico e o que tinha sido abusivamente alterado na obra, que, hoje, As Mil e uma Noites têm pouco a ver com a do começo do século XX. O tema era interessantíssimo, mas era o último da programação daquela dia na Flip e minha mulher desistiu no meio da fala daquele homem maluco que fazia tantas perguntas quanto respondia ao entrevistador. Mais: avisava que tinha pouco tempo e MUITO a contar. Falava com uma rapidez que deixava o tradutor audivelmente nervoso… OK, ela desistiu, mas eu fiquei ali ouvindo aquele homem estava em Parati mas que falava — palavras dele — desde a ponte de Istambul que liga a Europa à Ásia, voltando-se ora para um lado, ora para outro. Ao final daquele mesmo ano, aquele desconhecido turco maluco e inteligente receberia o Nobel.

Conheci Marcelo Backes num churrasco e não me arrependo até hoje. Ele devia ter uns 25 ou 26 anos, mas parecia ter lido 100 anos. Logo vi que era bom tê-lo por perto, pois Marcelo não apenas sabia muito como não se incomodava em ensinar. Desde lá, passaram-se mais de dez anos. Marcelo foi para a Alemanha finalizar mestrado e doutorado, publicou vários livros e traduziu mais de uma dezena, tendo percorrido desde Marx até Stanišić, passando por Kafka, Arthur Schnitzler e outros. De sua autoria, li A Arte do Combate, obra sobre a literatura alemã e seu caráter combativo em comparação com o habitual compadrio brasileiro; o sarcástico e aforístico Estilhaços (onde sou citado…) e agora este maisquememória. Hoje, Marcelo Backes mora no Rio. Falamos pouco, infelizmente.

Mas vamos antes às coincidências:

1. São ambos livros em grande parte de memórias, embora Backes chame, com razão, maisquememória de “romance”.
2. São ambos livros que falam muito eruditamente sobre história e artes em geral.
3. São ambos livros apaixonados, onde as cidades e a geografia participam na condição de personagens. Istambul parece levar a vida de Pamuk como a música de Bach leva adiante o texto de suas árias e Backes corre de cidade em cidade como se fosse um Lazarillo de Tormes moderno, mas a intenção não é só a de fazer graça e sim a de entabular diálogos — visuais, verbais e físicos — com a cultura local.
4. Istambul caracteriza-se pela melancolia (hüzun) e sabemos que Pamuk, de forma inacreditável e certamente sofrida, acabou separando-se da cidade que tanto ama e conhece, por fazer denúncias sobre o extermínio de armênios, enquanto maisquememória nos dá um itinerário muito sutil de como são emitidos e/ou ignorados os sinais que levam um casal à separação. Nos dois casos, ambos — e o “ambos” aqui é reforço de expressão — sabiam das conseqüências. Mas foram tragicamente em sua direção, como se outra coisa não fosse possível.
5. A pintura de Pamuk — pois o escritor é um ex-futuro pintor — é o fio condutor de grande parte do livro. Ela carrega todas as motivações, inclusive as sexuais, do autor. E Backes faz das obras de Oskar Kokoschka e de seu amor por Alma Mahler — desfeito por esta — um abrasador comentário paralelo, nem um pouco isento de sexo, sobre ocaso do casamento de seu personagem, matéria em pequena parte real e em grande parte ficcional.

Istambul é um livro para ser lido e admirado. Ganhar o livro de minha filha Bárbara como presente duplo de Dias dos Pais e aniversário, foi muito bom: ela não apenas escolheu o livro sozinha como comprou-o como sua própria mesada. Acertou em cheio. Fiquei folheando o livro (notem o ato falho: eu tinha escrito “filhando o livro”!) como forma de domar a comoção e a coisa só piorava, pois as fotos de Ara Güler que acompanham a obra e que pontuam minuciosamente a narrativa são lindíssimas, dignas de que você entre na livraria só para dar uma olhada, como numa pinacoteca. Mas faça isso no Brasil, pois o trabalho da Cia. das Letras é infinitamente melhor do que os da edição espanhola, argentina e mexicana.

À parte o turismo, maisquememória trata de uma separação que vai sendo lentamente anunciada durante a leitura. Aliás, há dois fatos que vão se aprofundando durante a leitura. (1) A dissociação entre o personagem principal e seu “cavalo” acentua-se até que o cavalo acaba por revoltar-se contra o primeiro eu de Marcelo Backes (ou de seu personagem Marcelo Backes) com seu enorme ego e (2) os melancólicos intermezzi — que chegam ao leitor em belo ostinato — não servem apenas para mostrar como Kokoschka é interessante, mas vão adquirindo significado antes do anúncio da separação. São extratos do profundo e inaceitado abandono que obcecou Kokoschka por anos. Então, o “eu narrador”, enquanto fala do mundo lá fora, caminha – repito – tragicamente na direção daquilo que é o que efetiva e talvez inconscientemente deseja e do qual só desconhece o amargor, ou seja, o cerne. É estranho que alguns leitores revoltaram-se contra o memorialista, ignorando a palavra “Romance” que há na capa. Tudo o que é contado em primeira pessoa são verdades… ficcionais…

Istambul, a ex-capital do ex-Império Bizantino, ex-capital do ex-Império Turco-Otomano tornou-se, no século XX, uma cidade que oscilava entre o riqueza e a pobreza, entre a ocidentalização chique e o orientalismo démodé. Filho de uma família rica, cujos pais estavam sempre às turras pelas constantes traições dele – fato notável, pois a mãe de Pamuk era belíssima, uma das mulheres mais belas da alta sociedade de Istambul, como podemos comprovar nas fotos do livro, prova de a vida é mesmo estranha … -, Pamuk constrói uma tranqüila e bela narrativa sobre o mundo infantil dentro da cidade que tenta ocidentalizar-se até mesmo através de incêndios. As descrições do Bósforo, acompanhadas pelas imagens de Güler, tornam a obra a mais bela homenagem que conheço a uma cidade. Falei com vários amigos que conhecem Istambul e eles não reconhecem a tal melancolia de seus habitantes, tão explorada por Pamuk, prova de que não somente a vida é estranha, mas o turismo também, pois o texto de Istambul combina tão bem com as fotos apresentadas que Pamuk nos convence de forma inequívoca.

maisquememória é um livro que cresce muito em sentido durante sua leitura. Se de início ficamos de nariz torcido para o narrador arrogante que nos enche – e como! – de informações muito interessantes e úteis acerca de suas viagens, se o autor adentra de forma oblíqua os mais variados assuntos e come as mais variadas mulheres das mais variadas etnias e línguas, ele nos causa estranheza pela intervenção de um cavalo de bom senso (o cavalo é um outro eu de Marcelo, bem mais razoável) e pelo coral grego representado pela narrativa, jogada aqui e ali, da separação de Oskar Kokoschka e Alma Mahler. Ao longo do livro, curiosamente, o contraditório que está na cabeça do leitor passa ao livro, que combate as assertivas do primeiro Marcelo através das vozes do segundo Marcelo e da que descreve o amor de Kokoschka. Ao final, as três vozes discutem abertamente, sendo caracterizadas por fontes (refiro-me ao tipo de letra) diferentes. Ou seja, o contraditório, a objeção presente do leitor migra para dentro do livro. Sem dúvida, é original.

O que mais gostei nos livros. Istambul: a esplêndida descrição do primeiro amor e as caminhadas do casal pela cidade, que são arrepiantes; os apontamentos sobre o pitoresco casual da cidade; a história dos escritores que escreveram antes sobre ela, turcos ou ocidentais; sua relação com a mãe e irmão e a prosa de Pamuk com sua perfeita noção de estilo. Ele efetivamente consegue mudar de capítulo para capítulo. Há os líricos, os descritivos, os jocosos; enfim, trata-se de um escritor que aprecia “mostrar” sua habilidade. Ah, e as fotos de Güler, as fotos, as fotos!

maisquememória é estupidamente informativo e tem todo o gênero de comentários divertidos sobre cultura em geral, mas estas opiniões e descrições vão se intrometendo nas “memórias” de forma curiosa, principalmente quando Kokoschka manda fazer uma boneca — fato real — de sua (já não sua) Alma Mahler. Tal procedimento acaba por criar o clima perfeito para a grandiosidade humana que o romance adquire em suas seções finais.

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FHC teria recebido milhões de dólares da CIA

Resenha do jornal Correio do Brasil sobre um livro recém lançado Brasil abre algumas caixas pretas das ligações entre o alto tucanato e a CIA.

LIVRO ACUSA FHC DE RECEBER MILHÕES DE DÓLARES DA CIA

Mal chegou às livrarias e Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura — Frances Stonor Saunders (*), Record, tradução de Vera Ribeiro — já se transformou na gazua que os adversários dos tucanos e neoliberais de todos os matizes mais desejavam. Em mensagens distribuídas neste domingo pela internet, já é possível perceber o ambiente de enfrentamento que precede as eleições deste ano. A obra da pesquisadora inglesa, ao mesmo tempo em que pergunta, responde: Quem “pagava a conta” era a CIA, a mesma fonte que financiou os US$ 145 mil iniciais para a tentativa de dominação cultural e ideológica do Brasil, assim como os milhões de dólares que os procederam, todos entregues pela Fundação Ford a Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do país no período de 1994 a 2002. O comentário sobre o livro consta na coluna do jornalista Sebastião Nery, na edição deste sábado do diário carioca Tribuna da Imprensa: “Não dá para resumir em uma coluna de jornal um livro que é um terremoto. São 550 páginas documentadas, minuciosa e magistralmente escritas”. “Consistente e fascinante” (The Washington Post). “Um livro que é uma martelada, e que estabelece em definitivo a verdade sobre as atividades da CIA” (Spectator). “Uma história crucial sobre as energias comprometedoras e sobre a manipulação de toda uma era muito recente” (The Times).

DINHEIRO DA CIA PARA FHC

“Numa noite de inverno do ano de 1969, nos escritórios da Fundação Ford, no Rio, Fernando Henrique teve uma conversa com Peter Bell, o representante da Fundação Ford no Brasil. Peter Bell se entusiasma e lhe oferece uma ajuda financeira de 145 mil dólares. Nasce o Cebrap”. Esta história, assim aparentemente inocente, era a ponta de um iceberg. Está contada na página 154 do livro “Fernando Henrique Cardoso, o Brasil do possível”, da jornalista francesa Brigitte Hersant Leoni (Editora Nova Fronteira, Rio, 1997, tradução de Dora Rocha). O “inverno do ano de 1969” era fevereiro de 69.

FUNDAÇÃO FORD

Há menos de 60 dias, em 13 de dezembro, a ditadura havia lançado o AI-5 e jogado o País no ponto alto do terrorismo de estado pós-golpe de 64, desde o início financiado, comandado e sustentado pelos Estados Unidos. Centenas de novas cassações e suspensões de direitos políticos estavam sendo assinadas. As prisões, lotadas. Até Juscelino e Lacerda tinham sido presos. E Fernando Henrique recebia da poderosa e notória Fundação Ford, uma primeira parcela de 145 mil dólares para fundar o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). O total do financiamento nunca foi revelado. Na Universidade de São Paulo, sabia-se e se dizia que o compromisso final dos americanos era de 800 mil a um milhão de dólares.

A SERVIÇO DA CIA

Os americanos não estavam jogando dinheiro pela janela. Fernando Henrique já tinha serviços prestados. Eles sabiam em quem estavam aplicando sua grana. Com o economista chileno Faletto, Fernando Henrique havia acabado de lançar o livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina”, em que os dois defendiam a tese de que países em desenvolvimento ou mais atrasados poderiam desenvolver-se mantendo-se dependentes de outros países mais ricos. Como os Estados Unidos. Montado na cobertura e no dinheiro dos gringos, Fernando Henrique logo se tornou uma “personalidade internacional” e passou a dar aulas e fazer conferências em universidades norte-americanas e européias. Era “um homem da Fundação Ford”. E o que era a Fundação Ford? Um dos braços da CIA, o serviço secreto dos EUA.

MILHÕES DE DÓLARES

1 – “A Fundação Farfield era uma fundação da CIA… As fundações autênticas, como a Ford, a Rockfeller, a Carnegie, eram consideradas o tipo melhor e mais plausível de disfarce para os financiamentos… permitiu que a CIA financiasse um leque aparentemente ilimitado de programas secretos de ação que afetavam grupos de jovens, sindicatos de trabalhadores, universidades, editoras e outras instituições privadas” (pág. 153).

2 – “O uso de fundações filantrópicas era uma maneira conveniente de transferir grandes somas para projetos da CIA, sem alertar para sua origem. Em meados da década de 50, a intromissão no campo das fundações foi maciça…” (pág. 152). “A CIA e a Fundação Ford, entre outras agências, haviam montado e financiado um aparelho de intelectuais escolhidos por sua postura correta na guerra fria” (pág. 443).

3 – “A liberdade cultural não foi barata. A CIA bombeou dezenas de milhões de dólares… Ela funcionava, na verdade, como o ministério da Cultura dos Estados Unidos… com a organização sistemática de uma rede de grupos ou amigos, que trabalhavam de mãos dadas com a CIA, para proporcionar o financiamento de seus programas secretos” (pág. 147).

4 – “Não conseguíamos gastar tudo. Lembro-me de ter encontrado o tesoureiro. Santo Deus, disse eu, como podemos gastar isso? Não havia limites, ninguém tinha que prestar contas. Era impressionante” (pág. 123).

5 – “Surgiu uma profusão de sucursais, não apenas na Europa (havia escritorios na Alemanha Ocidental, na Grã-Bretanha, na Suécia, na Dinamarca e na Islândia), mas também noutras regiões: no Japão, na Índia, na Argentina, no Chile, na Austrália, no Líbano, no México, no Peru, no Uruguai, na Colômbia, no Paquistão e no Brasil” (pág. 119).

6 – “A ajuda financeira teria de ser complementada por um programa concentrado de guerra cultural, numa das mais ambiciosas operações secretas da guerra fria: conquistar a intelectualidade ocidental para a proposta norte-americana” (pág. 45).

(*) O nome correto da autora é Frances Stonor Saunders e não como está na capa do livro.

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Dia de provocar (light)

A eleição do Cristo Redentor como uma das sete maravilhas modernas só me afetou ontem, quando meu filho me apresentou a Estátua da Mãe Rússia, erguida em 1967 na cidade de Volgogrado, ex-Stalingrado. (Bernardo costuma viajar pelo mundo com o Google Earth). Logo pensei nas linhas retas e sem graça de nossa falsa maravilha, comparando-as com as de uma estátua muito maior, mais bonita e de significado mais concreto que o das linhas retas e sem graça do sólido “realismo socialista” de nosso Cristo. Do alto do Corcovado, temos uma vista deslumbrante de 360 graus, mas é melhor esquecer aquele cara de braços abertos sobre a Guanabara.

Então, além de ser muito mais bela, heroica e trabalhada, além da vantagem de não ter o significado rarefeito de um monumento religioso, a Mãe Rússia mede 85 metros contra os 30 do Cristo.

Vejam:

Sim, falta o Corcovado, mas sobra estátua. Ela foi construída em homenagem aos mortos da Batalha de Stalingrado.

As formiguinhas na foto acima são pessoas… E mais uma foto, esta tirada do parque que circunda a colina Mamayev, onde está localizada a estátua.

Mother Russia 10 x 0 Cristo Redentor. E não me venham com os 45 metros da Estátua da Liberdade (aquela mulher em posição de árbitro de futebol apresentando um cartão vermelho ao mundo), nem com os 67 metros do obelisco bonairense (um taxista me disse que era uma homenagem aos políticos argentinos — todos os veem, mas ninguém sabe para que servem).

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2666, de Roberto Bolaño (2ª Parte – La parte de Amalfitano)

Benno Von Archimboldi? Esqueçam. Seu nome nem é citado. A segunda é a parte mais curta de 2666 e se a violência e a morte são os panos de fundo do romance, esta é a parte em que a morte domina sozinha. Domina a primeira metade do capítulo, onde o professor de filosofia Amalfitano dedica-se a evocar sua ex-mulher Lola, uma bicho-grilo das mais radicais que o deixa sozinho com a filha Rosa em Barcelona para ir atrás, ir atrás e ir atrás — como tantos personagens de Bolaño — de um poeta, enquanto o melancólico Amalfitano instala-se com a filha na cidade de Santa Teresa, na fronteira do México com os EUA. E domina também a segunda metade, em que ficamos incomodados pelos sintomas de uma loucura que começa a insinuar-se em Amalfitano, o qual ouve vozes, comete pequenas esquisitices, preocupa-se com a segurança de Rosa numa cidade de repetidos assassinatos e sonha, sonha muito.

O personagem Oscar Amalfitano tem na decadência física sua dimensão trágica. A descrição que Bolaño realiza ao descrever rapidamente suas aulas e seus diálogos com a “voz” é comovente. Também o aparecimento de um livro do qual absolutamente não lembrava — O Testamento Geometrico, do galego Rafael Dieste — e seu entorno são narrados de forma inalcançável por autores menos capazes, a grande maioria. Inspirado por Marcel Duchamp, Amalfitano pendura o livro no varal de sua casa, de forma que este possa aprender sobre a vida cotidiana de Santa Teresa e proteger sua filha, tudo isso dentro de uma série de livres associações que funcionam espetacularmente neste capítulo que é finalizado por mais um sonho. Aposto que a história de Amalfitano e de seu destino serão deixados assim mesmo, no máximo ele reaparecerá como personagem secundária. Afinal, estamos lendo Bolaño e cabe a nós dar continuidade ou nexo à superfetação de ficções.

E aqui está o final de A parte de Amalfitano (trad. portuguesa de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, copiada daqui e “tropicalizada” (ho, ho, ho) por este abusivo resenhista:

… Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, até um conjunto de majólicas (azulejos pintados) listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (…) Quando o último filósofo do comunismo estava finalmente chegando à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria estupefato que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar tais disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pluma. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E lhe dizia: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou te explicar qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou te explicar. E depois me deixa em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a se desmoronar nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância e dos Urais e da Sibéria e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da bolso e dizia:

— Acho que é hora de beber um copinho.

Obs.: A Livraria Cultura (link acima, na coluna do meio) tem 2666 na edição espanhola da Anagrama. Pelo que é, custa bem baratinho, R$ 71,34. Afinal, veio de um país onde as edições são enormes. A propósito, lançado em 26 de setembro em Portugal, 2666 já vendeu 23.000 exemplares. Pobre Brasil-sil-sil…

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Retrato de um Casamento, de Nigel Nicholson

Very english, para o bem e principalmente para o mal. Cheguei a indicar Retrato de um Casamento, de Nigel Nicolson, a uma amiga. Estava no começo da leitura; arrependi-me. Este livro de 1973 foi traduzido com enorme sucesso no Brasil em 1976. Trata-se da biografia da aristocrata Vita Sackville-West escrita por seu filho Nigel, mas também é uma autobiografia. Explico melhor: é um livro em que dois longos capítulos são retirados do diário de Vita Sackville-West e três outros – também longos – são escritos por Nigel.

Mamãe Vita foi uma escritora de muitos livros e o filho Nigel tornou-se um político conservador inglês. Só que o político escreve muitíssimo melhor que a escritora. O primeiro capítulo de Nigel é maravilhoso. Então vem Vita e é uma tragédia! Tal fato diz tão mal da personagem principal que me foi impossível não achá-la ridícula. Pensava: “Então quem faz isto, também escreve aquelas expressões cheias de uma adjetivação obtusa?”. Blergh!

O livro trata basicamente do amor entre Vita e sua amiga Violet Trefusis, que escrevia muito melhor, a julgar pelas cartas que Nigel transcreve. Esta paixão magoa o marido homossexual Harold Nicolson, pois ele vê nela uma real ameaça de abandono. Ele não admite perdê-la, apesar de não ter interesse físico por Vita. É um estóico: não reclama, permanece gentil, prestativo e apaixonado. Very english, indeed.

Então esqueçamos os capítulos escritos por Vita e fiquemos com os três de Nigel. Dono de uma prosa elegante, ele narra os segredos sexuais e emocionais de sua mãe. É desconfortável e este é o grande ponto de interesse, na minha opinião. Nigel fala também do pai, Harold, e do fortíssimo e inabalável amor deste por Vita, que cresceu, recebeu retribuição platônica e se tornou cada vez mais importante com o passar dos anos. Era o porto seguro a que ambos regressavam após as aventuras de Harold com jovens rapazes e de Vita – uma delas com Virginia Woolf.

Para que a imagem de Vita saia ainda mais machucada do livro, o filho faz questão de salientar o profundo esnobismo de Vita e a seu profundo desprezo pelos pobres e plebeus. É o único momento em que ele parece perder o controle, falando abertamente mal da mãe. Francamente, que atitude inadequada, Nigel!

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Sinuca embaixo d`água, de Carol Bensimon

O segundo livro de Carol só perde para o primeiro na capa. Deve haver um critério muito misterioso de marketing que justifique o fato da Companhia das Letras ter escolhido aquela coisa sem graça num livro tão visual como Sinuca. Antes de qualquer consideração, porém, peço licença para observar meu próprio umbigo. Se a atmosfera do romance é a da morte de uma jovem (Antônia), do fim de um bar (causado pela estupidez dos moradores em torno), da poluição do lago e do abandono de uma criança, nada disso me afeta muito comparado com a alegria que me causa a realização de um romance tão belo. Você pode dizer que troco e-mails com Carol, que já a vi duas ou três vezes e que meu exemplar veio com dedicatória, mas tal admiração passa longe do compadrio que detesto. A alegria é um defeito de fabricação: quando, por exemplo, ouço a desesperada súplica de arrependimento diante de Deus de Erbarme dich, mein Gott da Paixão Segundo São Mateus, de J. S. Bach, fico feliz pela realização de Bach, mesmo sem ignorar o sentimento que o levou àquilo. Na verdade, sinto-me eufórico.

E o mesmo ocorreu comigo ao finalizar Sinuca, fiquei eufórico com um romance que trata, entre outras coisas, da morte. Ou seja, Sinuca embaixo d`água não é um bombom nem um passeio de pedalinho pelo lago. É o romance do luto de três personagens principais — o namorado Bernardo, irmão Camilo e o dono do bar next door Polaco –, de quatro pequenas histórias paralelas e do bar, do próprio bar, outro morto.

A linguagem de Carol Bensimon alterou-se em relação a Pó de Parede. Lá, havia uma poesia menos dura do que a de Sinuca. As frases encurtaram, muitas são intencionalmente vagas e o seu significado exato é dado pela experiência do leitor. Não obstante, não é uma leitura trabalhosa; é, isto sim, poética. Deu trabalho, certamente, pois Carol ainda precisava adaptar a linguagem a cada um dos personagens.

E cada personagem encara a morte de sua maneira. Bernardo é o namorado culto que percorre a via crucis da forma mais inteligente e “normal”. Houve uma grande perda e a hora é de sofrer, seja ouvindo jazz, seja ouvindo coisas desnecessárias da parte de amigos, seja jogando um jogo à morte. Temos a impressão de que a construção da linguagem foi dedicada a ele, mas ela adapta-se igualmente a Camilo, o irmão preterido pela morte. Drogadito light, faz-nada e mecânico amador, amava a irmã ao ponto de sentir um controlado ciúme de Bernardo. E Polaco é o dono do bar que coleciona perdas. Porém os maiores personagens do romance são Antônia, desenhada lenta e minuciosamente a seis mãos, e o bar, ponto de encontro e centro do ódio de certa cidade.

O bar não tem seu nome declinado pela autora mas…, meus amigos, é o Timbuka. Se eu soubesse disso, teria falado três vezes com Carol Bensimon. Conheci-a na quarta ou quinta-feira da noite de autógrafos (1). Voltei a vê-la no Parangolé, durante a ImpedFest (2) e, no dia seguinte, lá estava ela, talvez com uma garrafa térmica, quem sabe com uma cuia, tomando chimarrão com o namorado do lado esquerdo e as ruínas do Timbuka do lado direito. Não quis interromper, mas interromperia, se soubesse que o bar era um dos temas do livro — teria excesso de assunto!.

Então, para terminar esta resenha que já vai longe, digo que este é um dos melhores romances porto-alegrenses que li, até por trazer com delicadeza um dos fatos dos quais a cidade deveria se envergonhar: a derrubada do Timbuka. Algo de perto semelhante vi no final de 2005: participei de uma reunião do movimento da Rua Gonçalo de Carvalho, justo em essência, mas que conseguiu enxotar uma Orquestra Sinfônica em nome do ecossistema da rua… A exposição de burrices e a emissão de preconceitos devem ter sido análogas quando da discussão sobre a ação de uma retroescavadeira sobre um local era apenas um culto à felicidade, como o Franciel descreve neste post.

Para não finalizar fora do tópico e como o pessoal que visita meu blog não é brincadeira e lê mesmo, uso o tempinho que sobra para sugerir os capítulos “Polaco” (p. 19), “Lucas” (p. 96) e “Bernardo” (p. 83, 101 e 115). São demonstrações claras do virtuosismo nada gratuito de Carol neste Timbuka, ops, Sinuca embaixo d`água.

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Una novelita lumpen, de Roberto Bolaño (crítica publicada no El Pais do último sábado)

No hay un Bolaño menor

Por JORDI GRACIA

 

Esta novela breve nació como un encargo y el resultado fue valioso, como sucede con tantos otros encargos que felizmente la industria editorial hace a los autores de los que se fía (o en los que confía). Quizá por eso Herralde ha decidido rescatar este relato de Roberto Bolaño, escrito por encargo de Claudio López de Lamadrid para una colección de Mondadori en 2002 (lo ha contado por escrito el propio Herralde). Transcurre en Roma pero podría transcurrir en las quimbambas mientras hubiera casas grandes y pisos pequeños, comercios de alquiler de vídeos y personajes con biografías complicadas o infinitamente sosas. La de la protagonista es anodina y amputada, peluquera de poco futuro, amante mecánica y urgente de un par de tipos que viven azarosamente en su propia casa, huérfana de edad indefinida pero ya crecida, y a cargo de un hermano desorientado y más joven que ella.

El cuadro es simple y muy poco prometedor: lo que sucede es todo mate. No hay melodrama ni hay autocompasión ni fantasías redentoras más allá de la mera ilusión de mejorar de vida. Pero hay una gran habilidad en dotar de una irresistible inocencia a la protagonista que narra una breve etapa de su vida y donde vibra sin notarse la inteligencia sentimental del mejor Bolaño. Algunos somos más decididamente partidarios del Bolaño comedido y sutil -el de esta novela breve o el de Estrella distante– que del Bolaño arrebatado por la ambición y la desmesura de Los detectives salvajes o de 2666. En las más extensas demasiadas veces acude la pregunta de para qué, y en ésta cada línea tiene un para qué inequívoco, fatal. Quizá precisamente porque el propio Bolaño no debió tomársela demasiado en serio.

Está el mejor Bolaño sin desatarse: el de la piedad difusa y sin huellas visibles, el de la amargura de las vidas malsanas sin culpa, el de las frustraciones veladas pero invencibles, y el de la vitalidad psicológica suficiente como para trazar personajes de escasa complejidad cuyo papel sin embargo desemboca en relatos complejos. Todo es fácil y directo en Una novelita lumpen y sin embargo la novela trata de la infelicidad y de las recompensas falsas dentro de la infelicidad, de la valentía para cambiar de rumbo y de la lucidez súbita sobre el rumbo real de la vida de cada cual: un pedazo de realismo inteligente sin sermón.

(Una novelita lumpen, Anagrama, Barcelona, 2009, 151 páginas. 15 euros.)

Mais um artigo encontrado e enviado por Helen Osório. Obrigado!

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2666, de Roberto Bolaño (1ª Parte – La parte de los críticos)

A primeira parte de 2666 é dedicada às peregrinações dos críticos Jean-Claude Pelletier (francês), Manuel Espinoza (espanhol), Liz Norton (inglesa) e Piero Morini (italiano) em busca do famoso escritor desaparecido de nome impossível: Benno von Archimboldi. Há um culto em torno de Archimboldi, eterno candidato ao Nobel e autor reconhecido mundialmente por especialistas, diferentemente da Cesárea Tinajero de Os Detetives Selvagens. Ele seria uma espécie de Thomas Pynchon alemão, um autor sem fotos, sem biografia e muito estudado. Sabe-se que é muito alto, tendo deixado rastros de sua existência aqui e ali.

A paixão por Archimboldi faz com que os críticos fiquem amigos, formem uma espécie de confraria logo atacada por outras e acabem todos amando a inglesa Liz Norton, às vezes em dupla. As histórias de Bolaño vão novamente saindo umas das outras de forma absolutamente hipnotizante. É difícil largar o livro. Em dado momento parte dos críticos resolvem seguir uma pista mais do que tênue e partem para procurá-lo em Santa Teresa, na fronteira do México com os EUA, onde sabemos que ocorrerão os crimes contra mulheres. Um grande livro, um livro genial? Sim, não tenho motivos para duvidar. Porém La parte de los críticos não é um romance completo e creio que os herdeiros de Bolaño têm razão em não editá-lo separadamente. É uma fantástica abertura de romance. Ponto.

Bolaños volta a fazer arte nas belíssimas trocas de foco narrativo. O final de La parte de los críticos é pura música com suas recapitulações resumidas. O efeito poético dos encontros de Espinoza com Rebeca, entremeadas das conversas noturnas com Pelletier e pela narrativa de Liz Norton de sua viagem à Turim é arrasadora. Ronaldo Bressane chamou inteligentemente a prosa de Bolaño de fluxo de onisciência. É a melhor defnição que li até agora para um narrador que se mascara por detrás de inúmeros personagens com uma única e muito perceptível voz. Bolaño não esconde-se, mas filtra.

Agora, farei uma pequena interrupção para ler o último livro de Carol Bensimon e depois retorno ao 2666, mas exatamente à La Parte de Amalfitano, onde já sei que os 4 críticos vão apenas e simplesmente sumir, para voltar daqui a centenas de páginas.

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A loteria na Babilônia, conto de Jorge Luis Borges

Numa semana meio maluca de reformas em casa e necessidade de trabalhar fortemente fora do trabalho habitual para reforço financeiro, fui hoje a um café acompanhado do fantasma de Borges dentro de uma edição argentina de Ficciones. Ele, logo de cara, no conto La Lotería en Babilonia, envia um recado a quem lerá a narrativa.

…nadie había ensayado hasta entonces una teoría general de los juegos. El babilonio no es especulativo. Acata los dictámenes del azar, les entrega su vida, su esperanza, su terror pánico, pero no se le ocurre investigar sus leyes laberínticas, ni las esferas giratorias que lo revelam.

Em seguida, outra curiosidade: a “interpolación del azar” é semelhante à teoria do Barão de Itararé citada por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere? Passemos a palavra a Graciliano, que chamava o Barão pela junção de seu nome, Apporelly (Aparício Torelli):

Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.

Mas, falemos um quase nada sobre minha leitura: é claro que a parábola proposta por Borges extrapola sua função de ser uma realidade menor que representa uma maior. A loteria É a própria realidade da Babilônia. Ou seja, é a própria vida. A loteria e seus acasos é análoga à vida e vice-versa, regulada por suas regras, condições e infinitas contingências.

A relação mais óbvia que me ocorreu nesta rápida leitura enquanto tomava café é aquela entre a Compañía e a Igreja com suas “ventas de suertes”, o funcionamento silêncioso de Deus, “seu carácter antiguamente plebeyo” e com o total desprezo a quem não participa de sua… loteria.

Porém, o que interessa mesmo a mim é o conto extremamente irônico e divertido, que mostrou-me que posso fazer uma leitura fluida de Borges em sua língua e que isto é um enorme privilégio para quem vem de uma língua materna que produziu literatura bastante inferior…

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Introdução à leitura de "2666", de Roberto Bolaño

Sim, eu não suportei a angústia. Quando fui a Montevideo, ele estava bem na entrada da Puro Verso. Abri o livro de 1125 páginas, vi que era de leitura confortável, com pontos de parada a cada duas ou três páginas; pensei que um livro daquele tamanho poderia ser mais um problema ortopédico do que literário para o leitor, mas que se repetiria na tradução brasileira. Ademais, para que serve o espanhol que conheço se recuasse ante o original de um escritor que amo? Comprei 2666 e voltei, não sei por quê, direto para o hotel. Abri o livro na primeira página e li a epígrafe:

Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio.

CHARLES BAUDELAIRE

Oásis de horror… E, na página seguinte, a importante Nota Explicativa que traduzo a seguir da original:

Nota de los herederos del autor

Ante la posibilidad de una muerte próxima, Roberto dejó instrucciones de que su novela 2666 se publicara dividida en cinco libros que se corresponden con las cinco partes de la novela, especificando el orden y periocidad de las publicaciones (una por año) e incluso el precio a negociar con el editor. Con esta decisión, comunicada días antes de su muerte por el propio Roberto a Jorge Herralde, creía dejar solventado el futuro económico de sus hijos.

Después de su muerte y tras la lectura y estudio de la obra y del material de trabajo dejado por Roberto que lleva a cabo Ignacio Echevarría (amigo al que indicó como persona referente para solicitar consejo sobre sus asuntos literarios), surge otra consideración de orden menos práctico: el respeto al valor literario de la obra que hace que de forma conjunta con Jorge Herralde cambiemos la decisión de Roberto y que 2666 se publique en un solo volumen, tal como él habría hecho de no haberse cumplido la peor de las posibilidades que el proceso de su enfermedad ofrecía.

ou

Nota dos herdeiros do autor

Diante da possibilidade da uma morte próxima, Roberto deixou instruções para que seu romance 2666 fosse publicado em cinco livros correspondentes às cinco partes do romance, especificando a ordem e a periodicidade das publicações (uma por ano) e até mesmo o preço para negociar com o editor. Com esta decisão, enviada dias antes de sua morte pelo próprio Roberto a Jorge Herralde, pensava deixar resolvido o futuro econômico de seus filhos.

Após sua morte e depois da leitura e estudo da obra e do material de trabalho deixado por Roberto, Ignacio Echevarría (o amigo que indicou como seu conselheiro literário) surgiu com outra consideração de ordem menos prática: o respeito ao valor literário da obra, que faz com que, em conjunto com Jorge Herralde, alteremos a decisão de Roberto e que 2666 seja publicado primeiro em um só volume, como o autor teria feito se não tivesse sido cumprida a pior das possibilidades que oferecia seu processo de doença.

(Trad. sem muita revisão feita por mim)

Então, lembrei de que estava em Montevideo e que seria interessante, além de econômico, voltar a comportar-me como um turista e não como um literato inveterado que fica lendo em seu hotel não obstante a viagem. Eu que deixasse a leitura para Porto Alegre. Retornei à 18 de julho e à Puro Verso, sabendo que o tesouro estava guardado no hotel e combinei o almoço com a Claudia no Panini`s da Travessa Bacacay, na Cidade Velha, bem perto da outra Puro Verso, a de seis andares. Neste ínterim, não fiz muita coisa que não fosse fuçar em alguns antiquários em busca do Spica perfeito.

Quando a Claudia chegou, comemos o maravilhoso almoço de sempre do Panini`s, lembro que falamos  no preço das roupas, no estado das meus blusões e, levados pelo Cabernet Sauvignon, em John Kennedy Toole. e sua mamãe. Na verdade, bebemos tanto que foi necessário um pit stop no hotel. onde ele, 2666, estava.

E agora estou lá pela página 140, faltando umas 900 para ler. Meu estado é: maravilhado. É curioso: em minha opinião, estou fazendo uma leitura fundamental para quem queira acompanhar a cena literária contemporânea, mas não há, no Brasil, meu ambiente, grande ressonância a Bolaño. Aliás, não há ressonância a nada que não seja perecível, efêmero. É nosso país. Para nossa sorte, há o Uruguai e a Argentina aqui perto. E há os blogues portugueses. Lá, faltam 9 dias, 14 horas, 39 minutos e vinte e seis segundos para 2666 ser lançado. Há um blog que acompanha o pré-lançamento e toda a reação ao livro. Ele faz uma contagem regressiva atá a data de lançamento, 26 de setembro de 2009. Há comentários por toda a blogosfera lusitana, parece haver autêntica expectativa, debate, existem tentativas talvez exageradas de arranjar-lhe um bom lugar na história da literatura, divulga-se opiniões de gente que leu (por mais amalucadas que sejam) e a cultura parece ser até assunto de conversa nas ruas. Isso em Portugal.

Para viver bem do Brasil, há que se acostumar com nossa estupidez. Quando a Cia. das Letras lançar o livro haverá matérias amadorísticas naqueles mesmos jornais, a Cultura dará desconto para quem fizer a compra antes do lançamento, vão chamá-lo de Livro do Ano, o bom Sérgio Rodrigues vai publicar uma crônica provocativa a seus leitores lançando a dúvida — Bolaño é superestimado ou não? — e será uma pequena confusão de leitores e não-leitores (a maioria) a iniciarem o enterro uma obra que, puxa, deveria ser ao menos debatida. E estamos, por incrível que pareça, na América Latina. E o livro lida com personagens e problemas muito, mas muito mesmo, latino-americanos. E com licença que vou ler mais um pouco.

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Espingardas e Música Clássica, de Alexandre Pinheiro Torres

Se todos fossem ateus, o Diabo ficava sem emprego.

ALEXANDRE PINHEIRO TORRES, em Espingardas e Música Clássica

Nenhum de meus amigos conhecem este autor e acredito que a maioria de vocês nem imagina quem seja Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999), escritor português nascido em Amarante. Mas deveriam. Romancista, poeta, importante crítico literário e professor universitário na Universidade de Cardiff, Alexandre viveu por curto período no Brasil após ser obrigado a exilar-se. O fato que o levou ao exílio está entre os gestos de que mais se orgulhava: em 1965, nomeado membro do Júri do Grande Prêmio de Ficção, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores, propôs a atribuição do prêmio ao livro Luuanda, de Luandino Vieira, que na época estava preso pela acusação de terrorismo. A atitude levou Salazar a proibi-lo de ensinar em Portugal, o que o levou primeiro ao Brasil e logo após à Cardiff, onde tornou-se catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira. Em 1970, fundou a primeira cadeira independente de Literatura Africana de Língua Portuguesa em universidades inglesas.

Mas esses são detalhes biográficos, vamos ao livro encontrado num balaio da Feira de Livro de Porto Alegre no ano passado ao preço de R$ 2,00. Espingardas e Música Clássica foi escrito em 1962 e só pode ser publicado após a queda de Salazar, pois seria impossível, naquela época, publicar um romance que se passava entre os dias 19 de dezembro de 1961 e 2 de janeiro de 1962. Na primeira data, a União Indiana de Nehru invadiu e ocupou em definitivo, para nenhum espanto do mundo, as possessões da chamada Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu). Em Goa quase não se ouviram tiros; de forma calma, inteligente e talvez pouco patriótica, os militares e marinheiros portugueses que deveriam opor-se à invasão escolheram depor as armas. A ação narrativa do romance se conclui em 2 de Janeiro de 1962, quando do assalto ao quartel de Beja.

Durante este período, a Emissora Nacional portuguesa transmitiu ao longo de todo o tempo música clássica. Sua intenção era suavizar ou esconder a verdade e aí está a explicação do estranho título que, aliás, foi o que me fez comprar o livro. Mas a curiosidade não pára aí.

Este livro altamente político tem sua história baseada no lacrimoso clássico de Camilo Castelo Branco Amor de Perdição. Mas está longe de ser um pastiche, pois a história contada supera em muito a simplicidade do modelo, seja em número de personagens, seja em visão de mundo, seja no interessante trabalho de linguagem, seja na tremenda e densa porção de sarcasmo que apresenta com elegância. A intriga não se constrói ao redor de um “amor de perdição”, mas antes de um amor de salvação ou de libertação, porque Teresa e Simão visam outros interesses. Porém, o fato de sobrepor personagens e situações se por um lado facilita a complexa trama ficcional do romance — o romance de Camilo não precisa ser lido, pois as concidências de nomes e circunstâncias são comentadas ao longo do romance pelos próprios personagens –, por outro avisa o leitor de os tempos são outros e que o final será muito diferente neste Portugal de Salazar.

O romance realiza um contraponto entre o final do período colonial nos anos 50 e 60 e a vida no interior de Portugal no mesmo período, com os agentes da Pide (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) e da GNR (Guarda Nacional Republicana) procurando, prendendo e torturando “agitadores” e “comunistas”. Espingardas em silêncio lá fora, espingardas ativas aqui; o mundo mudando lá, o mundo silenciado aqui; Goa caindo quase sem luta para vergonha e indignação de Salazar, Angola em guerra para desespero e fuga dos jovens portugueses. Tudo isso enquanto os ingleses, por exemplo, já aceitavam a irreversibilidade da História entregando o Quênia.

Um grande livro.

Bibliografia: o próprio Espingardas e alguns sites como este.

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A (pouca) utilidade das oficinas literárias, segundo Dacanal

Lá do Recife, o escritor Fernando Monteiro me pede para ler um artigo publicado em Zero Hora no último sábado. É um artigo de Carlos André Moreira sobre o livro recém lançado de José Hildebrando Dacanal, Oficinas Literárias: Fraude ou Negócio Sério? Como se depreende facilmente do título provocativo, o assunto é a duvidosa utilidade das oficinas literárias com a finalidade de servir como incubadoras ou criadouras de novos talentos…

José Hildebrando Dacanal é formado em Letras e Ciências Econômicas pela UFRGS e trabalha como jornalista, professor e ensaísta há 40 anos. Tem em seu peculiar currículo obras sobre linguagem, literatura, história, política e economia. Eu discordo radicalmente do homem político Dacanal, mas não sou idiota a ponto de fazer-lhe oposição pelo mero esporte de incomodar quem está no outro lado, ainda mais quando ele, curiosa e cada vez mais, tem escrito e defendido teses bastante claras, razoáveis e óbvias — na verdade até caindo de maduras –, tais como sobre baixa qualidade do ensino (e a necessidade dos clássicos) e agora esta sobre as tais oficinas.

Dacanal recupera-se de duas visitas ao fundo do poço ao escrever um livrinho em parceria com César Busatto (o nanico que dança com a desgovernadora ao lado) naquele longínquo ano de 1998, em que os amigos de Yeda assistiram a vitória de Olívio Dutra — casualmente um homem também formado em Letras — para o governo do Estado… Mais transtornada ainda é sua parceria seguinte: em 1999, quando o governador Olívio Dutra mal tinha chegado ao poder, emprestou sua grife ou escreveu a quatro mãos com João Hernesto Weber o livro A Nova Classe – O Governo do PT no Rio Grande do Sul. Ultimamente, anda esquecido da política. A qualidade dos governos Rigotto e Yeda empurraram o professor — antes tão contumaz em expressar suas objeções — àquilo que ele melhor faz e pensa: à literatura. Melhor assim. Apesar de que acharia divertido ver Dacanal justificar e propor soluções para a suruba do Piratini. Creio que o político voltará em 2011… Dacanal é um volante brucutu que só sabe destruir, mas não sabe o que fazer, nem para onde correr, quando está com a bola. Deste modo, fiquemos por enquanto com o brucutu das letras. E aproveitemos.

Como a Editora Soles não facilita muito essa coisa de compra de livros, vamos comentar a ideia de Dacanal, esperando que um dia possamos tocar o pequeno volume que antes chamava-se Oficinas literárias: caça-níqueis, estelionato e bordel. Lamento muito que Dacanal tenha aliviado o título e talvez seu conteúdo. Seria muito interessante a “parte bordel” das oficinas, pois estou certo de que os cursos de línguas, academias de ginástica e outras reuniões eletivas do gênero servem notavelmente ao flerte e, bem, conheço tantas histórias que é melhor nem começar.

Nunca participei de oficinas literárias e o motivo é que não acredito nelas. O escritor nasce da absoluta necessidade e pressão interna de ler e escrever. É, sim, paixão. Escrever é uma forma de abordagem à inatingível verdade deste mundo e é o futuro autor quem sabe o que é preciso ler, não o tutor. Acredito que, por exemplo, seja sempre interessante e agradável ouvir alguém como Charles Kiefer ou Fernando Monteiro — até aceitaria pagar para ouvi-los! Eles sabem o suficiente para apontar caminhos de leitura ou mandar alguém trabalhar na construção civil, mas não creio que um escritor precise muito mais do que saber que existem coisas como foco narrativo, que é bom criar eficientemente um conflito, que ter uma boa história é algo interessante, que um trabalho de linguagem pode ser necessário aqui ou ali ou em tudo, que é legal ter noções da língua, de pontuação, da música das frases, etc. E que é preciso conhecer suas afinidades e a tradição de cada estilo, pois, sempre que sentamos para escrever, estamos, de uma forma ou outra, equilibrando-nos sobre os ombros de gigantes do passado, como diria Newton.

Quanto aos melhoramentos e críticas… Há coisas de Clarice Lispector que, fora de seu contexto, parecem imbecilidades. Já imaginaram a tragédia que ocorreria com a literatura brasileira se o Assis Brasil começasse a persegui-la com a intenção de deixá-la mais próxima a seu convencionalismo? Há tantas e diferentes vozes que a sabedoria teria receio de afirmar taxativamente: isto é péssimo, isto é bom! Acredito muito mais em alguém que dissesse: você, leia isto, informe-se sobre aquilo ou abra uma padaria.

No mais, o verdadeiro fracasso é entrar numa confraria dessas e sair sem uma boa amizade. Pois no fundo, lá no fundo mesmo, é este o objetivo de quem adere a uma oficina literária.

Eu acho que o livro tem tudo para ser bom e merece ser comprado e lido. Quem souber como, me avise. Afinal, a Soles tem existência mais obscura do que alguns volantes de Celso Roth.

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Terras do Sem Fim, de Jorge Amado

É estranho reler Jorge Amado depois de mais trinta anos. Não deixa de ser um retorno ao Colégio Júlio de Castilhos e a suas “leituras obrigatórias”. Nós, gaúchos meio ou menos bairristas, sempre tivemos problemas com o baiano. Naqueles anos, havia dois escritores que conseguiam viver de seus livros no Brasil: Jorge Amado e Erico Verissimo. Sendo Verissimo gaúcho de Cruz Alta — terra de minha mãe, que o conheceu –, sempre fazíamos seu elogio à custa de críticas ao baiano. Pura bobagem. Não obstante, éramos obrigados a ler dois de seus romances para o colégio: Gabriela Cravo e Canela e Dona Flor e Seus Dois Maridos. Claro, estes romances, nos anos 70, quando comparados à produção de Erico daquela época – Incidente em Antares, O Senhor Embaixador e os dois autobiográficos Solo de Clarineta, fazia com que Jorge parecesse um escritor folclórico, malemolente e brejeiro, de menor importância. Como resultado, acabávamos nos afastando dele.

Houve várias tentativas de reavaliar — sempre para melhor — a obra de Jorge Amado. A última vez foi uma Flip (2006?). Foi com este espírito que abri Terras do Sem Fim. Logo tive uma surpresa: o romance, escrito em 1943, homenageia em dedicatória Dmitri Shostakovich, “compositor e soldado de Leningrado”. Mas as surpresas ficam por aí, pois, ao iniciar a leitura deparo-me com a frase inicial: O apito do navio era como um lamento e cortou o crepúsculo que cobria a cidade. Achei a frasezinha meio sem-vergonha e vi que ou me adaptava ou passaria maus bocados, pensando em cortar frases e expressões desnecessárias ou de gosto duvidoso. Apesar de duvidar da necessidade de recuperar Amado, mudei, passando a me ater não aos detalhes mas à trama, a fim de suportar a leitura. Ainda sublinhei diversas dessas pérolas e erros, mas não vou encher o saco de vocês nem copiar mais trechos do livro.

A postura pantagruélica de comer a história contada e esquecer a linguagem revelou-se a correta. O romance funciona muito bem dessa maneira. O capítulo em que o negro Damião fraqueja é autenticamente maravilhoso, assim como a construção de alguns personagens, como a dos coronéis combatentes, a do advogado Virgílio, a do Dr. Jessé e a do jogador “capitão” João Magalhães. A única coisa de que realmente não gostei foi do atalho que Amado percorreu para desfazer o triângulo amoroso entre o Coronel Horácio, sua mulher Ester e Virgílio. Em vez de encarar o conflito, em vez de nos colocar a interessante questão sobre quem seria mais mais importante para o violento coronel, se a mulher que amava ou o competente advogado que lhe apoiava, Amado arranja uma providencial e implacável febre que mata a mulher e o conflito. Para não ficar muito chato, o romancista volta à questão num quase epílogo, fazendo com que Horácio descubra a traição postumamente. Porém, naquela altura, o trabalho do advogado não era mais fundamental, a luta acabara. É uma covardia muito utilizada e aceita pela maioria das pessoas; prova disso é que grande parte das pessoas enterneceu-se com o filme dos caubóis (Brokeback Mountain), onde também um personagem morre justo no momento em que seu amante cobra-lhe uma solução e uma continuidade para seu caso amoroso. Detesto este gênero de expediente e isto prejudica muito o romance, em minha opinião.

Sobram uma história bem contada, uma narrativa envolvente e talvez aquilo que fosse o objetivo do comunista Jorge Amado: a denúncia das condições de vida na região do cacau. Sim, não tenho dúvidas, nisto o romance é poderoso. Mas, convenhamos, poderia ser melhor. Minha dúvida é se Erico também era tão descuidado… Acho que não.

Para finalizar, tenho que dizer três coisas que julgo importante.

1. Não sofro da sacrofobia que parece ter atingido nosso leitor e comentarista Marcos Nunes, mas também não creio que seja necessário recuperar Jorge Amado.

2. Porém, se for para demonstrar que o Brasil já teve bons romancistas vendedores de livros, se for para demonstrar nossa decadência ao eleger Yed…, ops, Paulo Coelho e a atual auto-ajuda de Lya Luft como campeões de vendas, RECUPEREM AGORA O BAIANO COM TODO MEU APOIO!

3. Certas cenas de Terras do Sem Fim são pura Rede Globo. Espero que Paulo Coelho não venha futuramente influenciar nossa televisão. Aumentaria a venda de antieméticos e de suicídios no país.

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Vi uma foto de Anna Akhmátova, de Fernando Monteiro

Fiquei desconcertado quando recebi, ontem, Vi uma foto de Anna Akhmátova. O livro veio num envelope branco com a caligrafia e a caneta preta inconfundíveis do grande recifense Fernando Monteiro. Meu desconcerto deveu-se ao fato de ser um poema de 85 páginas. Um poema desses editado? Coisa rara. Li quase todo o livro caminhando pela calçada da Av. Cavalhada, enquanto refazia o conhecido trecho até o correio e no ir e vir de meu calvário como trabalhador comunitário, por culpa de meu carro estar parado na frente de uma moto no ano de 2004. O resto do livro, li no “trabalho”.

Vi uma foto de Anna Akhmátova,
numa oferta de segunda mão
em livraria de terceira
fechando as portas também baratas
em liquidação de quarta despedida
dos leitores de páginas impressas
à tinta das antigas tipografias
condenadas aos museus,
setor dos tipos móveis de Gutemberg
que não mais importa.

Setembro se derramava lá fora,
estação de sol sobre a fonte
de águas espargidas em torno da lua
de Vênus nativa molhando a ponta
tímida de dedos de mármore.
Pensei naqueles de Clarice criança,
subindo e descendo escadas
da casa entre movelarias e sebos,
vinda da Ucrânia para o coração
deste bairro de esquecidos
textos em hebraico e iídiche
de emigrantes deslocados.

Logo que cheguei ao trabalho — normalmente eu vou lá para trabalhar de verdade! –, após cumprimentar as freiras do colégio de meu descontentamento, voltei a ler o pequeno grande volume, ouvindo os sons das rezas de uma missa, aquele lastimável lenga-lenga da crendice que evidentemente grassa na instituição onde presto serviços. A mim, parece uma melopéia árabe. Mas gosto de lá, sou muito bem tratado. Aquele som acompanhava adequadamente a tristeza e absurdo da vida de Anna e formava um curioso painel de sonoro quando da entrada dos poetas brasileiros.

Nossos épicos sem dentes, nossos líricos
sem lenços, nossos Valérys de cemitérios,
nossos engenheiros de versos, juízes
e usineiros sonetistas de paraquedas,
nossos cantores das palmeiras e da pedra
no caminho de quem ia cantar palmas
mais altas do que as primeiras,
os vates caindo no rio de penas
dos cães banguelas, os nossos poetas
emplumados no lugar daqueles,
são imortalizados precocemente,
antes da colheita do tempo.

Nossos trovadores, menestréis, poetinhas
e poetões se dedicam ao vício secreto
de deslustrar poemas dos concorrentes
ao posto de Príncipe dos Poetas brasileiros.

Nossos parnasianos, condoreiros, simbolistas,
modernistas, praxistas e taxidermistas
da poesia do pantanal depois da lama seca
descobrem de novo o Brasil de Cabral,
trabalham para Capanema e não faz mal,
tomam remédio para dor de cabeça
e vão dormir em Pasárgada,
onde são mais que amigos do rei
de espadas dos jogos de cartas
marcadas da carreira literária
do acadêmico Getúlio Vargas

Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Todos eles aspiram ao céu de palmas abertas
soltando as batatas quentes na corrida
dos mil metros para ocupar ministérios,
secretarias da cultura e bibliotecas nacionais
reservadas para os insistentes em Poesia Sempre
(palmas para eles com uma só mão no ar rarefeito
da imortalidade a cacete, chá e simpatia
de casca dos bóias-quentes).

E Fernando vai um pouco mais adiante neste filme:

Não, Fernando não é alguém indulgente nesta terra de mesuras gentis entre escritores e governantes.

Nenhuma Revolução pode ser gentil
quando começa ou termina
por cortar cabeças à nacional
maneira de Ivan, o Terrível

A cantoria das freiras recrudece e eu posso ler mais um pouco. Em minha mente, como pano de fundo, há a comparação de múltiplos exemplos entre a pouca combatividade de nossos escritores e a dos russos. Anna Akhmátova (1889-1966) tinha a extraordinária poesia íntima, grande patriotismo e combatividade — poderia utilizar também a gasta palavra feminismo, mas não, direi em seu lugar que ela nunca deixou de ver o mundo atráves de uma posição inteiramente feminina, sendo tal fato apenas um viés de sua originalidade.

Vi essa mulher, com meus olhos cegos.
Vi sua vontade de morrer,
um lenço diáfano de gaze
sobrevoando as pombas cansadas

Há a introdução de um violão na missa. As freiras ficam animadas. O poema de Fernando começa a me entusiasmar.

Você já viu a neve?
E o que vem a ser essa interrupção da carícia
em progressão indecente no ventre
de uma russa morta?

O poema me toma por completo e o trabalho fica esquecido num canto. Jogo o corpo para trás em postura de 100% não-trabalho. A freira do violão erra lastimavelmente… Depois dizem que o legislador, autor da punição, é sábio. Aposto que ele não previu tortura musical. Tenho sorte de consolar-me com o livro.

Ela não tem medo,
a mulher da foto do volume
que eu levo debaixo do braço
e da chuva para longe do cais,
rumo aos subúrbios do esquecimento
onde se pode dormir e, talvez,
sonhar, ó príncipe sem consolo!

Ela lê Shakespeare em russo,
Ofélia armada de audácia misturada
à suportação de indizíveis sofrimentos:
já deixou que um comissário do povo
a sodomizasse, e agora tenta se preparar
para não vomitar quando chegar a hora
de chupar o oficial de plantão.

Vi tudo isso na foto.

Como estarei de aniversário amanhã (ou hoje, 19 de agosto), penso em como seria bom se ganhasse a biografia de Anna ou mais de seus poemas, mas ninguém irá adivinhar isso. Volto ao poema e leio estes versos aterradores de Anna, citados por Fernando já na página 43.

“Há dezessete meses que eu grito
chamando-te para casa.
És meu filho e meu terror”.

Reflito que não saberei a avaliar a real grandeza do que estou lendo, que não saberei escrever um post a respeito. Penso sobre minha incapacidade poética e em como, paradoxalmente, estou apaixonado, grudado, dentro do poema. Penso que raras tive tanto prazer e curiosidade com um livro aberto à minha frente.

Ela me contou tantas histórias
de transgressores, de ladrões das estepes!
Penso que seu seio, então, já arfava
ao alcance da minha mão.
Penso no banho.
Penso na água aquecida, nos sais,
nas lavandas francesas da Rússia
voltada para o Ocidente da língua
na qual Pais e Filhos está escrito
tão elegantemente:
somos nós?

Mês passado, uma freira apareceu para falar comigo vestindo as roupas de sempre, mas com chinelinhos vermelhos adornados por distintivos do Inter. Eu garanti a ela que aquilo a fazia superior espiritualmente a qualquer outra irmã. Ela riu muito. Aliás, ri sempre que me vê. Esta é a parte boa, porém o sofrimento de Anna, da Rússia, das mulheres e da cultura ocidental me parece agora incompatível com aquele desafinado Deus pra lá, Jesus pra cá. Céus, que cantoria diabólica!

Não, não somos nós, Mãezinha
Rússia, que mais próxima está do Fiodor jogador,
do estuprador da criança de Moscou,
aquele mendigo santo que foi procurar
o pior castigo, a suprema humilhação,
a confissão do seu crime
a ninguém menos que o belo, o rico,
o aclamado Ivan Sergueivitch,
nascido no seio de uma família de alta classe de Oröl
e falecido em Bougival, nas proximidades da cidade iluminada…

Penso na liberdade do autor em buscar, viver e amar Anna Akhmátova. Volto sobre suas páginas e começo a procurar todos os versos que começam por “Vi uma foto…”. São muitos e o ritmo deles passa a sobrepujar por completo a música da missa. Sigo lendo. Acaba meu horário, bato meu ponto e volto para casa como vim, a pé. Lembro que uma vez, lendo um jornal na rua, dei de cabeça num poste. Mais exatamente num parafuso que saia do poste. Tinha uns vinte anos. Trinta e dois anos depois, lembro do inesperado sangue que pingou sobre a folha de jornal. Isto sou eu?

Vi uma foto de Anna Akhmátova…
e não a prova de que o céu a perdoou.

Fernando resolveu ter um caso com Anna. Na verdade, desde o momento em que, naquela livraria de setembro, vira sua foto, apaixonara-se por seu olhar e decidira seu Réquiem paralelo. Saiu-lhe belíssimo. Como não se apaixonar por ela, ainda mais que sei o que daquele sujeito e que não está no poema de Fernando:

Ele gostava de três coisas neste mundo:
o coro das vésperas, pavões brancos
e mapas da América já bem gastos.
Não gostava de crianças chorando,
nem de chá com geléia de framboesa
e nem de mulheres histéricas
…e eu era a mulher dele.

Dona de uma poesia simples na aparência e sem o peso de palavras desnecessárias, Anna é uma narradora que tem em Fernando um equivalente masculino. É curioso notar o quanto Anna é feminina e pessoal, ao passo que Fernando é masculino e dedicado a ela. Também está cioso de ser simples e de encontrar as imagens inusitadas e significantes que habitam a poesia de Anna.

Quando Anna começou a usar
o verbo assim corroendo
o que antes fora belo,
triste e selvagem (um passo de afronta
envolto em delicadeza),
e havia sido lícito para nós;
quando tudo foi sendo minado
no cerne da carne que se permite
um instante de incerteza,
uma quebra da quebra da interdição
posta de lado como se abandona
um pente sobre uma penteadeira;
quando isso se anunciou
na forma do pretérito,
na hesitação tardia demais,
eu me desesperei contra ela,
não podia suportar a agulha no fogo,
o gelo na cama, a mudança do tanto
que já havia mudado no nosso amor
desviado para mais do que “sensualidade”,
“luxúria”, “emoções sem freio”,
suas palavras contaminadas do veto,
desconfiadas da nossa conjunção
condenada do modo mais severo,
enquanto tudo era leve na forma
de voltarmos a ser árvore e fruto
das noites geladas de dezembro.

Chego em casa e finalizo a leitura.

Eu já estou morto e este poema é a minha alma
profana vagando em busca da amada Mãe
amante de todas as Rússias que em todos os lugares
caminham para o esquecimento nos verdes túmulos
que há muito deixaram de ser verdes
como verdes eram as aves
pelas quais pergunta o poema:
todos os pássaros cujo piar nublado
eu escutei nascendo na dobra
de uma manhã do passado,
estarão mortos?

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Lendo Tchékov, de Janet Malcolm e Contos, de Anton Tchékov

Livro curioso que minha filha me deu de Dia dos Pais de 2005. É um calhamaço de 464 páginas com um ensaio de Janet Malcolm nas primeiras 176, seguidos de 37 contos do autor russo, traduzidos por Tatiana Belinky. É um excelente e bem bolado livro.

Já o ensaio de Janet Malcolm é mais bem bolado do que bem realizado. É uma grande idéia. A autora realiza uma viagem à vida do autor, isto é, visita as casas, os hotéis e os sanatórios onde viveu. Faltou a fundamental viagem à Sacalina – quase uma autopunição — e alguns locais citados pela autora. E o problema do livro está aí. Janet é uma tia que, ao lado de observações muito interessantes, traz-nos um certo ranço de irritante senso comum. Tudo o que ela vê e conta é interessante, até a pequena biografia de seus guias é interessante, mas a autora insiste em se colocar na narrativa e ela não é interessante, é apenas uma nova-iorquina um tantinho tola. Ao lado de explicações sobre como Tchekov vivia, ao lado do belo relato que faz das várias versões para as mortes do autor, há alguém que fica colocando pequenas críticas aos russos atuais, soviéticos e czaristas. Ora, é meio bobo tecer reparos a contextos tão diversos, sem procurar minimamente entender que aquela é outra cultura a que talvez seu país não seja exatamente um modelo de perfeição. O problema de Janet Malcolm é que ela teve acesso a um grande tesouro, mas parece descrevê-lo para um grupo de senhoras em torno de uma mesa de chá. O retrato de Olga Knipper, por exemplo, é decididamente fraco, porém logo depois a autora nos surpreende ao fazer a ligação entre um ambiente e seus contos correspondentes e o livro fica como deveria ser sempre. Um dia, espero receber uma bolsa para viajar refazendo a existência de um autor… Pode ser muito turístico e instrutivo, não acham? Pensei em várias possibilidades agora, mas acho que ganharia a de Jack London, só para passar bastante frio. Machado não teria muito movimento, já Guimarães Rosa e João Cabral poderiam ser legais, né? Hum… fantasio inutilmente. Adiante!

Os 37 contos que acompanham o ensaio são brilhantemente traduzidos do russo por Tatiana Belinky, uma russa que vive há décadas no Brasil e é excelente autora de livros infantis, são infinitamente maiores, claro. Tatiana… Li muitos de seus livros para meus filhos e, puxa, ela seria a pessoa perfeita para substituir Janet na tarefa de fazer a viagem à Rússia tchekovniana. É uma pessoa cheia de vida e humor. Sinto-a como alguém que me seria extremamente agradável. Seu afeto seria adequado a Tchekov, mas, enfim, vocês sabem: como dizia ontem, nossas oportunidades e nossa cultura vê-se privada por falta de idéias, interesse, dinheiro, cultura, etc. Alguns contos me trouxeram surpresas, claro. Não lembrava de dois contos especialmente raivosos: A Duquesa e A Aposta, ambos boníssimos, assim como do belo Do Amor. A Corista e Angústia – de desamparo verdadeiramente acabrunhante — foram magnificamente traduzidos e Amorzinho (também conhecido como O Coração de Olenka, Meu Docinho, Doçura e em Portugal por Dô-Doce) parece-me imbatível e, mesmo conhecendo a história de trás para a frente, o conto voltou a me emocionar como quando o li pela primeira vez.

No final das contas, um bom livro.

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Com o dedo na ferida (e comprazendo-se em mexê-lo)

A última Rascunho toca fundo em problemas da cultura brasileira. Fala sem rodeios sobre a ruindade e o comodismo da produção literária brasileira atual. Os dois articulistas — Nelson de Oliveira e Fernando Monteiro — agem diferentemente. Nelson parece não desejar muita confusão com a nova geração e a exime ao final do artigo, enquanto Fernando não recua ao habitual compadrio que rege as relações entre os escritores, aquele desagradável “eu te elogio e tu me elogias”. Trata-se de dois artigos longos onde, apesar da articulação de ambos, a melhor analogia é a linha reta que vai direto ao ponto, passando por cima de quem está no caminho. Ou uma patrola. Só que Nelson opta por uma curva no último momento. Tal pauta apenas demonstra que a Rascunho não tem o objetivo de fazer coro às bem-humoradas e sorridentes vozes de nossa literatura, quer a dissonância e, puxa, algum desconforto e novidade.

Menos amplo e mais benigno, Nelson de Oliveira escolhe um belo ponto de partida ao dizer que a história da literatura brasileira sempre mostrou conflitos entre o velho e o novo que o substituiria. Segundo ele, tal enfrentamento apenas retornou recentemente. De certa forma, Nelson é otimista, porém não creio que ele se arriscasse deste modo num meio menos efêmero que o da revista ou jornal. Ele recua até os anos 20 e de lá vem, comprovando facilmente sua tese. Fala no conforto e na cautela de nosso tempo, mas acaba por dizer que nunca houve tantas boas estreias como no século XXI. Os anos 90, iniciados por Fernando Collor, teriam sido os mais podres de todos os tempos no Brasil. Não vou entrar em cada argumento e exemplo que Nelson utiliza, mas discordo de alguns “bons autores” citados por ele. Nelson não chega ao absurdo de elogiar Marcelino Freire, por exemplo, ficando em nomes mais aceitáveis, mas escorrega e cai feio ao dizer que tais escritores escrevem para uma elite intelectual da qual fariam parte ele, eu e você, querido leitor. Acho, inclusive, que o termo “elite intelectual” é muito discutível. Estranhamente, o título do artigo é “Entre o perigo e o conforto”.

Entre os autores elogiados por Nelson estão alguns de que gosto, mas que também não são all that literature: Michel Melamed, João Paulo Cuenca, Veronica Stigger, Wir Caetano e Daniel Galera.

Já Fernando Monteiro comemora seus 60 anos no ataque. Seu artigo Acho justo que essa sociedade tenha a arte que merece me parece bem mais realista. Fernando também inicia seu artigo em ritmo adagio, falando sobre poesia e elogiando, entre outros, o site de poesia Sibila, publicações que efetivamente estão à margem, despreocupadas com um mercado que lhe virou as costas há muito tempo. A mim, interessa mais a análise da produção em prosa e aqui Fernando anuncia que perderá a finesse. E perde mesmo, apesar da nobreza do motivo. Porque a prosa está verdadeiramente regida pelo mercado e por seus escritores performáticos. Fernando critica acidamente 4 escritores que, em minha opinião, poderiam ser divididos assim: o performático Marcelino Freire, o neoperformático Fabrício Carpinejar (talvez um desistente da qualidade), o fraquíssimo Xico Sá — autor de uma nova linguagem de rua que é apenas uma boa ideia, não encontrando nenhuma literatura em seus becos sem saída — e, bem, Chico Buarque e seus treinamentos públicos.

Os dois artigos, na minha opinião, tocam fundo na questão primordial que causa todo este marasmo: as editoras e sua insistência na criação do sucesso imediato. Os mecanismos de promoção tornaram o ato público — a entrevista, a postura, a imagem, a maluquice-beleza, a excentricidade — mais importantes do que a redação, a concordância e as boas histórias. São escritores que repetem os modelos do passado. Não há sinais de um Juan José Saer — argentino, renomado professor universário radicado em Paris, um conhecedor de sua arte e da de outros –, de um Roberto Bolaño — chileno que literalmente morreu escrevendo, não que eu queira que alguém morra pela arte, por favor… –, de um Tomás Eloy Martínez!, para ficar apenas nos exemplos latino-americanos de Monteiro. Por favor, basta ver a história destes homens para se pensar que, talvez, gente séria NÃO ESCREVA no Brasil, salvo raras exceções.

E o pior é achar que eles têm razão.

Atualização das 14h15. Como o Marcos Nunes fez um comentário melhor do que o post, aqui está ele:

Volto então a Nelson Rodrigues: acho isso tudo um puta complexo de vira latas, uma herança autodepreciativa lusitana, que gerou a patetice do sebastianismo e, no brasileiro, a certeza de que, como não voltará redivivo Sebastião nenhum, e mesmo se voltasse, só faria arrebentar de vez com o que sobrou do Brasil depois de extintos diamantes e pau brasil, nós estamos fodidos e para sempre, aqui não há arte, sequer algum talento (à parte os que seguem o dito “com engano e arte vivo metade do ano, com engano e arte vivo a outra parte”, sendo a arte só a do engano, sendo o engano nosso estatuto de arte); para comprovar a tese, citamos alguns luminares vizinhos e, principalmente, os menos vizinhos, desancamos nossas editoras, o mercado e, por último e não menos importante, nosso povinho bunda, analfabeto, etc. e tal.

Enfim, todo povo tem a literatura que merece; a que temos tá de bom tamanho.

Conversa fiada.

Além disso, tenho plena certeza que a maioria dos bons autores do país são desconhecidos e até não publicados. Se devemos creditar a alguém nossa carência de bons autores, a princípio é ao “mercado”, esses administradores da indústria cultural, a mídia, que, em tudo que toca, atua como um Midas ao contrário: transforma em merda. Enfim, todo um processo de geração de valores que não deve se opor às ordens constituídas, patrimônios, famas e poderes subtraídos na forma de extração de mais-valia, a tudo transformando em menos-valia, vale-nada, inutilidades confortáveis, vagidos de metafísicos interiores girando em torno de umbigos de gênios da raça.

Não levo a mínima confiança nos “grandes autores” pelo mundo afora; este é um mundo de mediocridades fulgurantes, dependendo do arcabouço publicitário que tá atrás de ti. É como acontece todo ano com o Beaujolais (vinho?), uma bosta de bebida mas que a França exporta para o mundo inteiro como um must, sendo uma fraude. Recebemos aqui umas fraudes e abaixamos nossas cabeças, à vista dos pareceres dos grandes acadêmicos e da crítica mais balizada. O mundo nos chama de periferia, nós acreditamos e nos comportamos como tal, continuando a importar frivolidades e mandar para eles o que é mais substancial, menos nossa literatura, tida por subproduto de uma subcultura. A velha estratégia do mercantilismo se desdobra e se verticaliza: nosso lugar é lá embaixo, e pronto.

Mesmo com todo descaso das editoras, semanalmente são publicados autores brasileiros, não resenhados, não lidos, previamente esquecidos. Nunca saberemos se são bons, razoáveis ou bostejadores. Não os lemos. Eu mesmo não os leio. Tenho uma biblioteca à frente: de 100 livros para ler, uns seis de autores brasileiros. Nada demais, uma vez que o Brasil é só um país, e existem dezenas de outros com seus escritores, suas histórias, suas palavras, a merecer igualmente leitura. Mas a globalização persevera assim: de lá pra cá, muito, no sentido inverso, pouco ou nada.

Aqueles que merecem alguma consideração fazem parte de patotas de nosso mundo corporativo: egressos das mídias, do mundinho acadêmico, compadres, todos circulando no mesmo meio, fazendo fama e deitando na cama uns dos outros. Somos como que obrigados a ler Chico Buarque, por exemplo. De vingança, não lemos mais nada e metemos o pau em todos os outros mesmo assim.

Nas escolas, fingimos formar alunos, mas a má educação que eles recebem, além disso, é direcionada somente para o exercício de uma profissão, mal ou bem remunerada que seja. Com isso, suas leituras não vão além da autoajuda, dos manuais de conduta corporativa, das idéias voltadas para comprar e vender.

Todo esse lamento, no final das contas, é nada indo a lugar nenhum. A literatura no país será melhor produzida e lida quando alcançarmos um nível ao menos médio de desenvolvimento. Somos meia dúzia de pessoas supostamente cultas exigindo dos outros o que não fazemos nós mesmos: boa literatura, boas relações sociais, boa política.

Mesmo assim, insisto: gente, há, o que não há é oportunidade e contingente de leitores que suporte a ascensão de uma produção nacional praticamente submersa. No momento, os poucos que leem o fazem uns para os outros: o resto é o resto, uma maioria cinzenta, indistinta, congestionada pelo subdesenvolvimento, alheia a tudo que não seja a garantia de sobrevivência imediata. Nós os desconhecemos, eles nos desconhecem. É a tônica, uma dicotomia que nos faz utilizar categorias como elite versus povo, nós elite, eles povo, nós não povo, eles não elites.

Nos condenamos, assim, a uma discussão estéril, um método comparativo preparado para nos reduzir a pó, à submissão a critérios tão inconsistentes quanto os nossos, mas de matriz estrangeira, logo superior. O negócio é parar de colocar o rabo entre as pernas, jogar a responsabilidade alhures e sonhar que habitamos um mundo que não nos compreende. Nesse universo, estamos a fazer o papel de manés, mas pagamos por isso e batemos palminha no final, enquanto, reunidos, vaiamos uns aos outros, fazemos alianças efêmeras e ganhamos nosso dia, um depois do outro.

A merda toda é como pular fora da mera constatação. Não refletir só o olhar do outro sobre nós fingindo que é nosso olhar sobre nós mesmos. Vai ver que só com isso já dava para começar alguma coisa.

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A Máquina de Ser, de João Gilberto Noll

Eu teria tudo para gostar de João Gilberto Noll. Ele escreve indiscutivelmente muito bem, tem uma voz pessoal, distinta e acho-o muito inteligente nas entrevistas — cheguei a fazer anotações durante algumas para não esquecer de respostas especialmente brilhantes. Como se não bastasse, ele é portoalegrense como eu e, como eu, ainda vive na cidade. Mais: com surpreendente freqüência, vejo-o entrar nas mesmas sessões de cinema que eu e, na penúltima, ainda na fila do ingresso, pude observá-lo abrir a bolsa para pegar A Máquina de Ser com uma cara que interpretei de como de desaprovação. Ele lia a página 114… Mas Noll é uma pessoa reservada; ou seja, nossa “relação” nunca irá evoluir para o diálogo.

Comecei dizendo que teria tudo para gostar de seus livros e sigo confessando estar cansado de seu narrador, sempre na primeira pessoa do singular. “Há pouco tempo descobri que o meu protagonista é sempre o mesmo”, disse ele à Entrelivros. Puxa, ele descobriu isto só há pouco tempo?

Este narrador é alguém que observa-se na solidão e daí parte. Nesta coletânea de 24 contos, houve momentos de entusiasmo e de decepção e não é casual que os momentos mais satisfatórios foram aqueles em que Noll conseguiu afastar-se do protagonista que conta a história.

O que me incomoda é que tal narrador solitário leva a história a situações previsíveis, ao menos para mim, que conheço quase toda a obra do gaúcho. Imaginem que quando ele parte de sua solidão para um situação maior, consigo prever até a linguagem que ele vai utilizar para se encalacrar lá. Fica chato e nem a prosa inventiva do autor me salva do enfado.

Li algumas outras opiniões e ninguém parece ter restrições a este narrador e nem dizem que os contos são bastante desiguais. Deve ser um problema meu. Belos contos que demorarei a esquecer são O berço, Alma naval, Noturnas doutrinas, Rudes romeiros, Biombos, Na divisa, A máquina de ser e Na correnteza. Como disse acima, são contos onde o eterno narrador de Noll ou está excepcionalmente de folga – caso de O berço – ou está em conflito com outros personagens. Porém, ao menos minha relação de melhores contos de A Máquina de Ser está de acordo com quase todas as outras listas, o que me faz pensar se não está todo mundo enjoado do tal narrador.

Num livro tão bem escrito por Noll e bem cuidado pela Nova Fronteira, acho inconcebível que a segunda metade da “orelha”, escrita por Paulo Scott, não tenha sido censurada. É inútil ler aquele amontoado de adjetivos e analogias que só serve para dar a impressão de que trata-se de um ajuntamento mal costurado de histórias sobre todos os temas do mundo, o que não é absolutamente verdade.

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A cabeça do futebol, vários autores

Ganhei de presente este livro de um de seus autores, o escritor Fernando Monteiro. Trata-se de uma coletânea de crônicas futebolísticas organizada por Gustavo de Castro, Samarone Lima e Carlos Magno Araújo. O time contratado é cheio de estrelas, algumas habituais na crônica esportiva, outras bem menos. Como em qualquer grupo de atletas, tivemos bons e maus desempenhos, porém o trio dirigente manteve o comando do vestiário e o time saiu amplamente vencedor, apesar de algumas derrotas que revoltaram a torcida, a qual pediu insistentemente a cabeça do técnico, pretendendo jogá-la no fundo do entulho. Porém, a Casa das Musas manteve-se firme, declarando que não pagaria multas rescisórias à preguiçosos. O treinador permaneceu e o time mudou sem mudar.

Livros assim são um perigo, pois não adianta só saber escrever, há que saber ver o futebol. Conheço torcedores apaixonados para os quais tanto faria estar dentro de um estádio ou num hipódromo. Eles querem é torcer, não se preocupam em entender o que acontece em campo; suas sugestões são tolas, equivocadas, “irritam ao erudito”… Amam absolutamente o futebol, mas eu sei que, para entendê-lo a ponto de penetrar na cabeça de alguns técnicos, para adivinhar-lhes as reações, posturas e substituições, há que ter um gênero de observação especial que, curiosamente, não grassa por aí.

O livro abre com um bom relato de um caso uruguaio a cargo do espanhol Enrique Vila-Matas. Depois, o time chega cansado de Barcelona, sofrendo uma fragorosa derrota em São Leopoldo, a cargo de Fabrício Carpinejar — um conhecedor de futebol que veio com uma poesia banal, obra do cansaço da viagem, certamente. Fabrício, inclusive, acabou expulso de campo pelo árbitro. Na Vila Belmiro, José Roberto Torero, cronista habitual da área, assinou o mais emocionante e talvez melhor texto de todos, passando a bola a Juca Kfouri que, direto dos porões paulistanos da ditadura militar, fez excelente lançamento a Samarone (com um nome desses, o que seria de se esperar?) Lima que venceu o Velez e o Boca com tranquilidade em Buenos Aires. Após algumas derrotas surpreendentes, como a de Xico Sá, que marcou até gol contra, o time retornou à senda de vitórias com a extraordinária Selma Oliveira, que nos recomprovou que o olhar feminino sobre o futebol veio para ficar. Ela deu um passe a Abel Menezes, que pisou na bola. Sorte que o rebote caiu nos pés de Juremir Machado da Silva, o qual redimiu os gaúchos com um belo gol. Bola no centro. Então, a redonda ficou com Fernando Monteiro que, com o auxílio de Camilo José Cela, obteve inédita vitória com o Íbis. Daniel Piza escreveu uma crônica cujo tamanho só pode ser explicado pelas longas concentrações. Parece que ele resolveu deitar num texto tudo o que sabe de futebol. Sabe bastante, OK, mas a maratona gerou tal série de lesões e cartões amarelos que causou uma queda de rendimento com muitos empates verdadeiramente letárgicos. O time voltou ao bom caminho nas mãos competentes de Carlos Magno Araújo (CEUB?), Hilário Franco Junior (talvez um tanto erudito demais), Sérgio Xavier Filho (bonito relato sobre o futebol praticado pelos cegos), José Castello (O Fluminense está com Amok!) e Moacy Cirne (que me enganou até o final). Surpreendente mesmo foi a goleada sofrida por Humberto Werneck, um craque fora das quatro linhas. Tal derrota fez com que nossos dirigentes deixassem seus cargos à disposição. Sorte que a Casa das Musas não aceitou e mandou-lhes voltar ao trabalho, após tacar-lhes uma multa de 60% de seus vencimentos.

Vale a pena ler!

Organizadores: Gustavo de Castro, Samarone Lima e Carlos Magno Araújo.

Com Fabrício Carpinejar, José Roberto Torero, Juca Kfouri, Raimundo Carrero, Juremir Machado da Silva, Fernando Monteiro, Daniel Piza, Vladir de Sá Lemos, Inácio França, Luiz Zanin Oricchio, Luiz Martins da Silva, Klecius Henrique, Selma Oliveira, Josmar Jozino, Hilário Franco Jr., Humberto Werneck, Sérgio Xavier Filho, Abel Menezes, Moacy Cirne, José Castello, Rubens Lemos Filho, Elianne Diz de Abreu, Edmundo Barreiros, Xico Sá e o espanhol Enrique Vila-Matas.

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O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov / O irmão de Sergio

E então nós íamos conhecer o tal do monte da cidade mais plana que conheço, Montevidéo. Estávamos no carro de nossos amigos uruguaios Roberto Markarian e de sua mulher, Ana Ferrari. Foi quando eu disse que, na noite anterior, eu tinha assistido à peça que nos fora indicada por eles. Markarian virou-se, perguntando o que tínhamos achado. Estávamos entusiasmados com a montagem uruguaia e eu disse que lembrava de O Jardim das Cerejeiras como uma história de confronto aberto entre o ex-mujique — agora endinheirado — e a velha e decadente aristocracia. Roberto respondeu:

— Não, é tudo muito sutil, Milton. Porém, o conteúdo ideológico da peça é dos mais claros.

Ana concordou. Não havia muito a dizer sobre o grande texto de Tchékhov.

Conheço Roberto Markarian há mais de vinte anos. Ele morou na casa de um casal de amigos meus durante um bom período, nos anos 80, enquanto escrevia sua tese de doutorado na UFRGS. É um sujeito engraçado, inteligentíssimo e que parece conhecer tudo. Matemático conhecido no mundo inteiro (pelos matemáticos), teve sua carreira interrompida pela ditadura militar uruguaia, que preferiu vê-lo preso. Aos 36 anos, em 1983, ele apareceu em Porto Alegre a fim de recomeçar as atividades em sua área, após 10 anos de inatividade. É daquelas pessoas que qualquer um gostaria de ter como amiga. Sempre sorrindo e contando coisas com graça, Markarian é gentil até para discutir. Lembro que uma vez ele defendeu a tese, para mim indiscutível, da superioridade da literatura em língua espanhola sobre a de língua portuguesa. Contra bobos protestos nacionalistas, permaneceu tranqüilo, rebatendo facilmente os contra-ataques. Com a convivência soube também de sua família. Surpreendi-me com a profissão de seu irmão: técnico de futebol.

Sim, meu amigo Roberto (acima) é irmão de Sergio Markarian. Então aquele matemático que se vestia como um alguém muito pobre — sempre usando uma estranha combinação de chinelos de dedos, bermudas e camisas de manga curta, mesmo para sair à noite; aquela figura latinoamericana para quem os outros sempre faziam o movimento de pagar seu ingresso, seu restaurante, seu deslocamento, fato que, na verdade, nunca o vi permitir ocorrer (não por orgulho idiota, mas porque não precisava); aquele armênio hispano hablante que não se interessava de modo nenhum por esportes, era irmão de um técnico de futebol de sucesso? Estranho.

Pois é. Sergio Markarian (ou Sergio Apraham Markarian Abrahamian), assim como o hoje mundialmente famoso matemático Roberto -– não, repito, não é exagero –, sempre obteve sucesso como entrenador. Foi técnico do Olímpia entre 1983 e 1986, do Cerro Porteño entre 1990 e 1991, da Seleção Paraguaia na Copa de 1992 e novamente entre 1999 e 2002, do Panathinaikos que chegou às quartas de final da Liga dos Campeões em 2004 e da Copa da UEFA em 2003, esteve no Libertad eliminado pelo Inter na Libertadores de 2006 e agora está no Universidad do Chile, La U. Sem dúvida, uma tremenda carreira.

Lembro da figura do irmão de Roberto ao lado do campo enquanto sofríamos para vencer o Libertad de Guiñazu. Ele ficava tranqüilo enquanto Abel esbravejava. Eu pensava que, se Sergio fosse como o irmão — que estudava a Teoria do Caos –, poderia repentinamente fazer qualquer coisa para embolar nosso meio de campo como bolas de bilhar movimentando-se sem atrito. Mas quem realizou a mágica foi Alex, num tiro comprido e enganador. Sergio reagiu balançando a cabeça como quem diz tsc, tsc, tsc. É, Roberto é melhor.

Nunca falei com Sergio, mas cito sempre seu nome quando penso em substitutos para os técnicos do Inter. Seria uma questão de simetria receber outro Markarian.

Porém, quando comecei a divagar, estavávamos no carro indo para o monte que deu nome à cidade. Roberto já contava que, na noite anterior, eles tinham ficado até às 4 da manhã numa festa em que a atriz que fazia Duniacha na peça, a criada de quarto, chegara logo depois da montagem que víramos. Soubemos que o casal Markarian dançara bastante ou, como literalmente dissera Roberto, tentara movimentar seus corpos de acordo com o que ouviam.

Porém, antes eu falava de Tchékhov. Lembram que eu, na semana passada, lera e “resenhara” A Gaivota e que o livrinho português continha outra peça, exatamente O Jardim das Cerejeiras? Pois é, eu tive o privilégio de relê-la logo após a peça e digo a vocês que é perfeita e sutil, sutil e sutil. E ideológica, ideológica e ideológica. A cara de espanto dos nobres que se negam a acreditar que sua familiar e tradicional propriedade foi para as mãos de um mujique é a cara de um mundo que absolutamente não deseja compreender e aceitar o futuro. E o trabalho que ele dará.

Ah, Tchékhov. Tudo isso em apenas 44 anos?

P.S.- Ana e Roberto, obrigado pelos encontros, pelos vinhos, pela compra dos ingressos, por tudo. E desculpem nossa demora em telefonar. Somos assim imprevisíveis, como Chaotic Billiards.

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