A BBC elegeu as dez melhores orquestras do mundo atualmente

A BBC elegeu as dez melhores orquestras do mundo atualmente

Uma delas eu vi em fevereiro. Não me arrependi.

Orquestra Sinfônica da Rádio de Baviera (Munique)
Orquestra Filarmônica de Berlim
Orquestra do Festival de Budapest
Orquestra Hallé (Manchester)
Orquestra do Gewandhaus de Leipzig
Orquestra Sinfônica de Londres
Orquestra Filarmônica de Los Angeles
Orquestra da Academia Nacional de Santa Cecilia (Roma)
Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam
Orquestra Filarmônica de Viena

Assisti 4 delas — Berlim, Londres, Concertgebouw — e a de Santa Cecilia este ano em Roma, tocando a 5ª de Mahler e outras cositas. Para quem, como eu, é apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, nem parentes importantes, está bom.

Orquestra da Academia Nacional de Santa Cecilia | Fonte: Wikipedia

 

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Reflexão discretamente alcoolizada sobre Beethoven e o Fausto de Mann — Sonata No. 32, Op. 111

Reflexão discretamente alcoolizada sobre Beethoven e o Fausto de Mann — Sonata No. 32, Op. 111

Há um capítulo muito famoso, mais exatamente o oitavo, no Doutor Fausto de Thomas Mann, em que o imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Porque Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111“.

Talvez não haja verdades absolutas sobre algo tão aberto, criado numa arte que é intangível ar sonoro, mas o resultado é que, relendo o espetacular capítulo, resolvi pensar um pouco sobre uma questão que, se é significativa no romance de Mann, é apenas curiosa fora dele. Houve um corajoso Schindler (jornalista ou músico) que perguntou a Beethoven sobre a razão da inexistência do terceiro movimento. A resposta do compositor foi típica de seu mau humor: “Não tive tempo de escrever um!”. Mann explorou habilmente a história e só quem leu o Dr. Fausto sabe da profunda impressão que a aula de Kretzschmar causou a Adrian Leverkühn, o personagem principal do livro.

Pois o incrível é que li que havia a intenção de um terceiro movimento para esta sonata e que Beethoven parece ter desistido dele. Inclusive no manuscrito onde está o primeiro movimento há uma anotação: segundo movimento – Arietta; terceiro movimento – Presto. Também não encontrei referências de que a Arietta (segundo movimento) fosse algum tipo de adeus, conforme disse o Kretzschmar de Mann. Claro que a invenção dessa despedida foi uma das muitas liberdades poéticas tomadas pelo ultra entusiasmado professor. Está bem, foi a última sonata para piano de Beethoven, porém ao Op. 111 seguiram-se obras até o Op. 137 e dentre estas há todos os últimos quartetos, a Nona Sinfonia (Op. 125), as Variações Diabelli (Op.120) , as Bagatelas (Op. 126), a Missa Solemnis (Op. 123), etc. Ou seja, quando Beethoven escreveu o Op. 111, ele era um compositor em plena atividade e com vários projetos diferentes a desenvolver, não obstante a doença.

Porém, o mais interessante é tentar explicar porque esta obra provoca tanto e a tantas pessoas. A linguagem altamente abstrata que Beethoven alcançou em suas últimas obras nos perturba tanto aqui como nos últimos quartetos. A imaginação de quem criou a Arietta é arrebatadora. O professor Kretzschmar tem toda a razão ao proclamar que tudo aquilo vem de um simples dim-dada, ou seja, de três notas que não despertariam a atenção de nenhum artista comum, e é sobre este quase nada que Beethoven cria uma imensa construção, onde há lugar para a delicadeza, a simplicidade, o sublime e até para a explosão de uma desenfreada dança semelhante ao jazz que os negros inventariam 100 anos depois. Ele sempre foi dado à utilização de temas curtos e afirmativos, mas convenhamos, aquele dim-dada está mais para um balbucio de criança… Não seria isto o que nos surpreende tanto? A música se inicia como um balbucio, depois cresce mui modernamente, quase que por livre associação e depois retorna ao início. Será esta a despedida a que Kretzschmar se refere? Nascimento, vida e morte?

Não reli a aula de Kretzschmar antes de escrever este post. Fazendo rápida e severa autoanálise penso que talvez tenha entrado neste assunto apenas como pretexto para pensar em músicas que não são somente belas, mas demonstrativas de inteligência e engenhosidade. Outras do mesmo gênero seriam os quartetos de Béla Bártok, alguns dos últimos quartetos de Beethoven (principalmente o Op. 132), as Variações Goldberg, a Oferenda Musical de J.S. Bach e outras raríssimas. Não sei se me faço entender, mas acredito que o espírito mozartiano — que adentra muito no campo emocional — não poderia entrar aqui. São obras por demais cerebrais. São as minhas preferidas.

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Mozart, um de seus intérpretes e Elena

Mozart, um de seus intérpretes e Elena

A Elena diz que é uma artesã cansada, que não busca ouvir novas músicas, só as do trabalho. Só que ela casou com PQP Bach e o cara está sempre ouvindo coisas novas.

Hoje, preparei tudo direitinho. Quando ela chegou em casa, coloquei uma gravação das Sinfonias Nros. 38 e 41 de Mozart que sabia ser espetacular, mas não sabia por quê. É isso, eu sei quando é bom, sei que tenho sensibilidade, mas nem imagino os motivos de minhas admirações. E então ela me explica o que tem lá de diferente.

E ela ouviu, pediu pra repetir, ELOGIOU MUITO, destacou e detalhou o último movimento da Júpiter, com suas respirações diferentes, as puxadas de freio do maestro, as variações no andamento, etc.

Quando acabou, eu tirei o CD e coloquei um vinil com um contratenor cantando Purcell. Ela me olhou com estranheza. O que teria a ver? Será que a pequena cirurgia que fiz hoje teria afetado meu cérebro?

Expliquei que o contratenor que cantara Purcell nos anos 70 era o regente do Mozart de agora — um cara que se especializara na regência de óperas barrocas e clássicas.

E vieram considerações e pedidos para que eu ficasse mais tempo em casa. Passamos um bom dia. Eu com alguma dor pelo dente que morreu, mas com o resto ainda bem vivo.

Gravações citadas:
— W. A. Mozart (1756-1791): Sinfonias Nº 38 e 41
Freiburger Barockorchester
Reg.: René Jacobs

— Henry Purcell (1659-1695): “Tis Nature Voice” and other songs and elegies
Contratenor: René Jacobs

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Se não tivesse cruzado com Mark Chapman, provavelmente John Lennon faria 80 anos hoje

Se não tivesse cruzado com Mark Chapman, provavelmente John Lennon faria 80 anos hoje

Hoje, John Lennon faria 80 anos.

Desnecessário explicar que John Winston Ono Lennon (Liverpool, 9 de outubro de 1940 – Nova Iorque, 8 de dezembro de 1980) foi cantor, compositor e que fundou, com outros rapazes de Liverpool, os Beatles, a banda de maior sucesso da história da música popular. Não preciso dizer que sua parceria com o  colega de banda Paul McCartney foi uma das mais célebres da história da música. Também todo mundo sabe que os outros beatles eram George Harrison e Ringo Starr. E é de conhecimento geral que ele seguiu carreira solo após a separação dos Beatles em abril de 1970.

Menos gente sabe que foi ele quem, em 1956, formou sua primeira banda, The Quarrymen, e que esta foi a origem da criação dos Beatles em 1960. Inicialmente ele era o líder de fato do grupo, porém depois passou a dividir o posto com McCartney. Lennon se caracterizou pela natureza rebelde e sagaz de sua música e letras.  No auge de sua fama, na década de 1960, ele publicou dois livros: In His Own Write e A Spaniard in the Works, ambos coletâneas de escritos meio sem sentido e desenhos rabiscados. Começando por All You Need Is Love e seguindo por várias outras como Imagine e Happy Xmas, suas canções foram adotadas como hinos pelo movimento pacifista e pela contracultura da época.

Após mudar-se para Nova Iorque em 1971, suas críticas frequentes e contundentes contra a Guerra do Vietnã resultou em uma longa tentativa do governo Richard Nixon de deportá-lo. Em 1975, Lennon se retirou da indústria musical para cuidar de seu segundo filho, Sean, e em 1980 retornou com o álbum Double Fantasy. Ele foi assassinado em frente à sua casa em Manhattan por Mark David Chapman, um fã dos Beatles, três semanas após o lançamento de seu último álbum.

Como intérprete, compositor ou colaborador, Lennon teve 25 canções na primeira posição da Billboard. Double Fantasy, seu álbum solo mais vendido, venceu o Grammy para Álbum do Ano logo após sua morte. Em 1982, o Brit Award de Contribuição Excepcional à Música foi dado a ele postumamente. Em 2002, Lennon foi eleito o oitavo maior britânico de todos os tempos pela British Broadcasting Corporation. A revista Rolling Stone o elegeu o quinto melhor cantor da história e o incluiu na lista dos cem maiores artistas de todos os tempos. Em 1987, ele foi introduzido no Songwriters Hall of Fame. Lennon ainda entrou no Rock and Roll Hall of Fame duas vezes: como membro dos Beatles em 1988 e como artista solo em 1994.

A célebre foto que Annie Leibovitz tirou de John Lennon e Yoko Ono para a Rolling Stone

Vamos começar pelo fim. Eram 23h do dia 8 de dezembro de 1980. John Lennon e sua mulher Yoko Ono voltavam para o apartamento do casal no luxuoso Edifício Dakota e isto era justamente uma das coisas que Mark Chapman não suportava. Afinal, Lennon cantara em Imagine um mundo sem posses e lá estava ele, entrando em sua casa, localizada num dos endereços mais valiosos de Nova Iorque. Era uma flagrante incoerência. Outra coisa que Chapman não podia admitir eram as muitas alusões religiosas de Lennon, nas entrevistas e nas canções.

Cristão, Chapman se irritara com a frase proferida por Lennon ainda na primeira fase dos Beatles: “Somos mais populares que Jesus Cristo”. Irritou-se ainda mais com o clássico Imagine, onde Lennon cantava que nem céu nem inferno existiam e com God, do primeiro disco pós-Beatles, onde Lennon dizia que “Deus é um conceito através do qual medimos nossa dor”. Não obstante a irreligiosidade, Lennon parecia muito feliz com sua Yoko e ainda era muito rico. Aquilo era demais para Chapman, uma pessoa que ouvia vozes e recebia ordens do além.

Uma das últimas fotos de John Lennon vivo, feita pelo fotógrafo amador Paul Goresh, exibe Lennon autografando o álbum Double Fantasy para seu futuro assassino. | Foto: Paul Goresh

Chapman tinha 25 anos e uma relação confusa com seu maior ídolo. Ao final da tarde daquele mesmo dia, ele, junto com outros fãs, encontrara-se com Lennon e pedira-lhe um autógrafo em seu último LP, Double Fantasy. Lennon autografara a capa do vinil. Às 23h, antes de efetuar cinco disparos contra o ex-beatle, ele gritara “Mr. Lennon!”. Errou o primeiro tiro, mas os outros quatro atingiram Lennon. Um deles acertou a aorta – artéria mais importante do corpo humano. John Lennon caiu e começou a perder rapidamente sangue. O porteiro do Dakota desarmou facilmente Chapman e perguntou: “Você sabe o que fez?”. A resposta foi tão simples quanto a pergunta: “Sim, eu atirei em John Lennon”. Então, o assassino de Lennon sentou-se na calçada e esperou pela polícia.

O corpo foi cremado dois dias depois. A viúva Yoko Ono nunca fez um funeral. Mark Chapman foi condenado à prisão perpétua, com possibilidade de liberdade condicional após 20 anos, isto é no ano 2000. Porém, o benefício foi-lhe negado sete vezes – uma vez a cada dois anos, desde 2000. Em todas as oportunidades, Yoko interpôs-se alegando que sua vida, a de seus filhos e até a de Chapman correriam riscos.

John com sua mãe Julia: aulas com uma péssima tocadora de banjo

Naquela calçada de Nova Iorque, acabava a carreira de um dos músicos mais importantes do século XX e tornava impossível o sonho de muitos fãs dos Beatles: o de um retorno da banda.

Como dissemos acima, John Winston Lennon nasceu em 9 de outubro de 1940. O nome John foi uma homenagem ao avô paterno e o Winston era devido ao ex-primeiro ministro inglês Churchill. Seu pai era um certo Alfred Lennon, que trabalhava na marinha mercante durante a Segunda Guerra Mundial e mandava dinheiro para sua mãe Julia e para o pequeno John, que viviam em Liverpool. O dinheiro deixou de vir quando Alf desertou. John foi criado mais pela rigorosa tia Mimi do que por Julia. Esta desafiava as convenções de que sua irmã Mimi era escrava. Adorava uma plateia e encontrou em John e seus amigos um excelente público. Ela cantava e tocava banjo. Porém, havia o outro lado. Tia Mimi condenava a postura de adolescente rebelde de John e, talvez para afrontá-la, Julia deu a seu menino o primeiro violão, ensinando-lhe os poucos acordes que aprendera para o banjo. Julia morreu subitamente. Foi atropelada por um carro em 1958 e não resistiu.

Um violão? Tudo bem, mas você jamais ganhará a vida com ele.
Tia Mimi

Em 1956, aos 16 anos, John Lennon, armado de seu novo instrumento, recrutava colegas de turma para formar os Quarrymen, que seria o início de sua carreira musical. Em 1957, Paul McCartney viu os Quarrymen em ação, mostrou suas habilidades ao líder John e entrou para banda. Em fevereiro de 1958, ocorreu o mesmo com George Harrison. Estava formado núcleo principal daquilo que seriam os Beatles. Dois anos depois, a banda trocou de nome 5 vezes, até chegar a The Beetles (os besouros) em homenagem a The Crickets (os grilos), banda de Buddy Holly. The Beetles mudou para Beatles porque, assim, o nome derivaria tanto de besouros quanto de beat (batida, ritmo).

A primeira foto de Lennon e McCartney: se Paul compõe, melhor fazer o mesmo

Paul McCartney compunha canções. Então John, para não ficar em segundo plano – logo ele, o fundador da banda – , começou a fazer o mesmo. Na verdade, os mais famosos parceiros de todos os tempos – a dupla Lennon & McCartney – , não costumavam reunir-se para trabalharem juntos. As canções eram escritas por um e depois o outro dava seus pitacos. Há uma regra quase infalível para se descobrir de quem é cada música: basta ouvir quem canta. Se Lennon cantar, é dele; o mesmo valendo para Paul McCartney. Este teste serve para demonstrar o quanto eram diferentes. E bons, muito bons.

Uma das poucas canções que tem melodias de ambos é A day in the life, onde a primeira parte é de Lennon e a segunda, mais rápida, de McCartney. Grosso modo, as canções de Lennon são mais rock ´n´ roll e têm letras mais elaboradas, muitas vezes ácidas. Já Paul é um inventor imbatível de melodias. John escreveu, por exemplo, Help, I’m a loser, You’ve got to hide your love away, Nowhere man e Norwegian Wood na primeira fase do grupo. Durante a segunda fase dos Beatles, John mostrou-se também um grande letrista em Lucy in the sky with diamonds, I am the walrus, Revolution, Julia, Happiness is a warm gun, All you need is love, Strawberry Fields Forever, A day in the life e Across the Universe, entre outras.

O fim dos Beatles foi causado pelas diferenças entre Paul e John, apesar de grande parte dos fãs da época preferirem acusar Yoko e Linda, mulher de McCartney, como as causadoras da separação. Os dois casais pareciam caminhar em paralelo, mas acabaram colidindo. Em março de 1969, Paul e Linda se casaram. Oito dias depois, foi a vez de John e Yoko fazerem o mesmo em Gibraltar. Mas o estilo de Lennon era outro. Em vez dos sorrisos e da privacidade escolhidas pelo casal McCartney, John e Yoko foram para o Amsterdam Hilton a fim de protagonizarem um grande happening de protesto. A polícia holandesa se assustou, mas o protesto era bastante pacífico. Eles anunciaram que deixariam o cabelo crescer e que passariam uma semana sobre a cama, “pela paz, contra a violência e o sofrimento do mundo”. Tudo está explicado na canção The ballad of John and Yoko e em  Give peace a chance. (Esta canção, de 1969, marcou o começo de um processo que culminou, em 1972, com a tentativa do presidente norte-americano Richard Nixon de deportá-lo dos Estados Unidos.)  Mas, além das diferentes bodas, havia uma questão financeira.

John queria que os negócios do grupo fossem dirigidos por Allen Klein, um hábil contador norte-americano que já tinha organizado e deixado ainda mais multimilionários os Rolling Stones — retirando dinheiro das gravadoras a fim de depositá-lo na conta de seus clientes. Em contrapartida, Paul desejava que o gerente fosse Lee Eastman, seu sogro, um conhecedor de questões internacionais sobre direitos autorais. Foi uma batalha que acabou com Paul McCartney deixando os Beatles em 1970, o que provocou o fim da banda.

Após o final dos Beatles, John Lennon seguiu gravando excelentes álbuns, como o primeiro, John Lennon and the Plastic Ono Band, e o segundo, Imagine, onde podemos encontrar Working Class Hero, Mother e God, no primeiro, e Jealous Guy e Imagine, no segundo. No último álbum, Double Fantasy, gravado com músicas suas e de Yoko após cinco anos de reclusão, ainda havia uma grande canção, Watching the Wheels.  Neste disco, em (Just Like) Starting Over, John faz referências à sua volta. Esta canção e Woman atingiram o primeiro lugar nas paradas de sucesso norte-americanas e inglesas, impulsionadas pelo tiro desferido por Mark Chapman. Após ter carregado por toda a vida a mágoa de ter convivido muito pouco com a mãe, John deixou sua carreira paralisada por cinco anos a fim de ver seu filho Sean crescer. Porém, de forma simétrica, Sean não teve melhor sorte: tinha cinco anos quando o pai foi assassinado.

.oOo.

— Qual o seu nome?
— Joleno.
— Putz, de onde a tua mãe tirou esse nome?
— Dos Bitus.

.oOo.

John Lennon traduziu angústias masculinas que dizem tanto ao século XXI

Do Pragmatismo Político

John Lennon não foi o melhor músico e — alguns vão objetar, mas subjetividades são sempre subjetividades — tampouco o mais bonito dos Beatles. Talvez até fosse o mais inteligente, o mais experimental, embora os fãs de Paul, de George e mesmo de Ringo sempre tenham lá seus argumentos.

O que não dá para negar é que, nesta sexta-feira do seu aniversário de 80 anos de idade, Lennon sobrevive na memória coletiva como o melhor espelho para o homem desconstruído de 2020 — aquele que foi levado a reavaliar preconceitos, traumas, questões de poder, religião e a própria masculinidade. Com uma vantagem: dessa inquietação, o inglês fez canções que são patrimônio da humanidade.

“E afinal, o que é rock’n’roll? Os óculos do John ou o olhar do Paul?” A troça, feita por Humberto Gessinger e seus Engenheiros do Hawaii na canção “O papa é pop”, põe na mesa a eterna rivalidade, camuflada no interior da parceria Lennon-McCartney, que serve de combustível até hoje para intermináveis conversas de bar (ou melhor, de Zoom, dados os tempos pandêmicos).

John era o beatle sarcástico, cerebral, revoltado, que não se esquivava das polêmicas — um irresponsável capaz de dizer que os Beatles eram mais populares que Jesus Cristo. E Paul, o compositor do sentimento aflorado, que fazia as grandes canções de amor dos Beatles e que entendia como ninguém os anseios do seu público.

No entanto, nos 50 anos passados desde o fim dos Beatles, o público mudou, bem como as sensibilidades. As grandes canções de amor, é verdade, resistem, assim como Paul, que antes da pandemia continuava bem ativo nos maiores palcos do mundo. Mas o “zeitgeist” nervoso do pop de 2020 tem muito mais a ver com John, um artista que não se acanhou em transformar a terapia em arte, abrindo a alma diante do que a vida trazia para ele, fossem separações, crenças, mágoas, posições políticas, o mal-estar com si mesmo ou o pesadelo após o fim da lua-de-mel com as drogas.

“A única razão pela qual faço música e sou uma estrela é que aqui posso dar vazão às minhas repressões”, disse certa vez.

Sexo, raiva e ativismo

Ainda com os Beatles, Lennon pediu socorro ante o turbilhão de fama que o engolira (“Help!”) e falou de depressão (“You’ve got to hide your love away”), de infidelidade (“Norwegian wood (this bird has flown)”) e do incontrolável desejo sexual (“I want you (she’s so heavy)”). Em carreira solo, expôs sua raiva em relação a McCartney (“How do you sleep?”), mandou o povo ocupar as ruas (“Power to the people”) e, inspirado pela teoria do grito primal do psiquiatra Arthur Janov, exorcizou a perda da mãe, quando criança, em “Mother” — a intensa faixa de abertura de seu primeiro álbum pós-Beatles.

Aos poucos, Lennon repensou sua atitude abusiva de homem inglês de sua época (“Eu costumava ser cruel com minha mulher, e fisicamente — com qualquer mulher”, admitiu) e, a partir do romance com Yoko Ono, o feminino passou a ter centralidade em sua obra. Ele não apenas defendeu Yoko diante dos outros beatles e dividiu discos com ela, mas de forma absolutamente franca falou de seus erros nessa relação (em “Jealous guy”) e na que teve com a ex-mulher, Cynthia.

Depois de um tempo conturbado de separação de Yoko e muita farra (o “lost weekend”), em 1975 John tomou a decisão de interromper a carreira para, junto da mulher, cuidar do filho Sean — o que não conseguira fazer com Julian, filho que teve com Cynthia no começo do sucesso dos Beatles. E, pouco antes de ser assassinado na porta de casa, em 8 de dezembro de 1980, deixou a canção “Woman”, para Yoko.

Quando propunha um mundo sem religiões, em “Imagine”, John Lennon já considerava Deus “um conceito pelo qual medimos a nossa dor” (na letra da canção “God”). Era a expressão madura de um artista que, anos antes, quando os Beatles foram à Índia, ousara questionar o guru Maharishi Yogi e que conseguiu transformar indagações sobre a existência em um hit de rádio (“Whatever gets you thru the night”, em 1974). Com a postura que tem muito a ver com o niilismo dos tempos atuais, Lennon já dizia nos 70: “Não consigo te acordar, você pode se acordar. Não posso te curar, você pode se curar”

Um dos poucos artistas do rock de sua época cujo ativismo político foi consistente — do bed-in com Yoko (contra a Guerra do Vietnã) e o apoio aos Panteras Negras às críticas sociais de “Working class hero” —, Lennon pagou o preço. Se hoje as pessoas reclamam da vigilância eletrônica sobre suas opiniões, há que se lembrar que, nos anos 70, o beatle duramente foi investigado pelo FBI por suas posições antimilitaristas e esquerdistas. E esteve, durante anos, sob a ameaça de ser deportado dos EUA — como tantos imigrantes por lá hoje.

Pode-se tentar imaginar o que John Lennon estaria fazendo e pensando aos 80 anos. Talvez admirasse os jovens progressistas de 2020, talvez apreciasse as redes sociais — ou tivesse muitas críticas a tudo. Mas pode ser ainda que repetisse o conselho do Lennon fictício, velhinho e anônimo, do filme “Yesterday” (2019), passado numa realidade paralela em que ele e Paul nem chegaram a montar os Beatles: “Diga a verdade a todo mundo que você conhece.”

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Pois é, o PQP Bach não acabou…

Pois é, o PQP Bach não acabou…

Venho aqui deixar essa mensagem, pois nas semanas passadas joguei no google PQPBACH e fiquei triste de perceber que o site com o domínio anterior havia sumido. Passei alguns dias tentando novamente e já esperava pelo pior. Para mostrar minha admiração, vou colar abaixo o texto que escrevi quando tinha me convencido que o blog havia acabado. Um abração a todos os envolvidos.

Algumas semanas atrás fui visitar o melhor blog (sim, isso ainda existe) sobre música clássica do Brasil e descobri que ele havia sumido. Depois de muito vasculhar, não encontrei qualquer explicação sobre o ocorrido, então decidi aguardar alguns dias, visto que isso já havia se passado antes. Porém após tanto tempo creio que dessa vez o fim seja definitivo. Estou falando, é claro, do P.Q.P.Bach.

Sim, o nome pode causar estranhamento, mas o conteúdo era sem dúvida inigualável, e o melhor sobre o assunto entre todos os sites que visitei.

Me tornei frequentador assíduo em 2007 e, através dele, tomei conhecimento de muitas das grandes músicas e compositores que admiro até hoje. Luciano Berio, Mahler, Prokofiev e Shostakovich são apenas alguns exemplos que me foram apresentados por lá, coisa pela qual serei eternamente grato por toda a vida.

Mesmo com o acesso às plataformas de streaming — o blog oferecia links para downloads gratuitos, muitos deles raríssimos —, o PQP seguia como um norte, sempre trazendo indicações certeiras, através de uma pesquisa acurada e muito bem contextualizada, mas sempre carregada de bom humor, que a ajudava a desmistificar o estigma que envolve o ouvinte e a própria música clássica como algo elitista — no pior sentido da palavra — e ou chato. Com a quantidade gigantesca de música para se conhecer e apenas uma vida para se viver, o papel que eles tiveram para mim — e para tantos outros — é digno de total respeito e admiração. Obrigado pessoal, a eternidade agradece.

Assinado: João Herberth leitor-ouvinte-admirador do PQP Bach.

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2020: a culpa é de Beethoven

2020: a culpa é de Beethoven

Eu vou dizer pra vocês uma coisa muito séria. A culpa de 2020 estar sendo esta coisa que está sendo é de Beethoven. Sim, do cara das beterrabas e da Nona.

O cara faz 250 anos de nascimento este ano e todo mundo ia comemorar o ano de forma muy contenta. Estava tudo programado e alinhavado, mas estavam fazendo festa para festejar a existência de um músico surdo que seguiu compondo, que escreveu seu maior quarteto após quase morrer de um mal que não entrarei em detalhes devido à fedentina, que era alcoolista mas gostava de um vinho húngaro que vinha com mercúrio e que talvez o tenha matado, que era feio de doer, que era revolucionário e todos sabem o destino desses caras… Ô, desglória!

Bem, pensando melhor, era pra comemorar mesmo. Vem, vacina russa. Chega logo, porra, o ano tá acabando e o níver dele é dia 17 de dezembro!

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A maravilhosa Sonata K. 466, de Domenico Scarlatti, em várias versões

A maravilhosa Sonata K. 466, de Domenico Scarlatti, em várias versões

A melhor, na minha opinião, com o genial Pierre Hantaï:

Com o romântico Vladimir Horowitz:

E por que não na harpa?

Na marimba:

E o ultrarromântico:

Domenico Scarlatti (Nápoles, 1685 – Marid, 1757)

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A inicial B na música erudita

A inicial B na música erudita

É incrível o número de bons combositores cuja primeira letra do sobrenome é B. Estava bebendo vinho agora e falando pra Elena: Bach, Beethoven, Bartók, Brahms, Bruckner, Biber, Buxtehude, Britten, Borodin, Bowie, BacCartney, Barber, Boulez, Bizet, Brokofiev, Bernstein, Beatles, Berlioz, Bahler, Bozart, Berg, Bussorgsky, Bellini, Bley, Bottesini, Bendelssohn, Joe Bean — autor de Garota de Ibanema –, enfim, são muitos.

Bolfgang Abadeus Bozart (1756-1791)

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As 20 piores capas de LPs e CDs eruditos segundo o maestro Leonard Slatkin

As 20 piores capas de LPs e CDs eruditos segundo o maestro Leonard Slatkin

A gente é useiro e vezeiro nesse negócio de capas de discos.

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Bach escreveu a Cantata BWV 82 para transcender a tragédia. É uma canção de ninar para os nossos tempos

Bach escreveu a Cantata BWV 82 para transcender a tragédia. É uma canção de ninar para os nossos tempos

Por Mark Swed — Traduzido livremente por mim.

Ich habe genug, Cantata BWV 82 de Bach, é comumente traduzida como Estou contente. No centro da cantata, há uma canção de ninar de doçura consoladora e benção sonolenta, cuja melodia é incomparável. Quem está atualmente contente? Quem não está dormindo muito ou pouco, com noites pesadas e angustiadas?

Na verdade, a Cantata 82 fornece um manual de como morrer tranquilamente, mapeando o caminho para o paraíso. E, aparentemente, essa é a última coisa que alguém quer ouvir durante as circunstâncias terríveis que vivemos.

Eu tentei um experimento. Por alguns dias, a Cantata foi a última música que eu escutei antes de ir para a cama e a primeira que eu ouvi de manhã. Não me aliviou a apreensão noturna nem se mostrou eficaz para melhorar o humor diurno. Eu não fiquei mais contente, mas o curioso era que eu esperava ansiosamente aqueles momentos de escuta. Claro, a BWV 82, para usar o sistema de numeração convencional que usamos para Bach, não se tornou sem motivo uma dos mais amadas das cerca de 200 cantatas existentes de Bach. Ela é linda.

As cantatas de Bach são uma conquista da humanidade. Acredita-se que ele tenha composto pelo menos 300 (um terço ou mais foram perdidas). Aos 38 anos, em 1723, ele era o encarregado da música das quatro principais igrejas luteranas de Leipzig, na Alemanha, e era obrigado a fornecer 59 cantatas por ano, uma para o culto de cada domingo e outras para os feriados. A maioria das cantatas era composta por 3 árias, 3 movimentos corais e recitativos. E era interpretada por um ou dois cantores solo, coral e um conjunto instrumental no qual os membros também podiam ter partes solo, o que significava agendamentos frenéticos de ensaios.

As cantatas acabaram se tornando um álbum de respostas emocionais a seu tempo e lugar, às estações do ano, às alegrias e tristezas da vida de Leipzig no século XVIII. Elas eram meditações profundas sobre o significado de tudo, discursos pessoais de sons.

A Cantata (que significa apenas cantada) era, por si só, um gênero vago. Embora principalmente sacras, as elas também poderiam ser seculares, destinadas a casamentos e outras celebrações, funerais ou mesmo, como Bach nos demonstrou deliciosamente, a um café.

Como disse, elas normalmente continham árias para um ou dois cantores, um coro e um pequeno conjunto com solos para instrumentistas virtuosos. Para aborrecimento dos padres, a música de Bach costumava ser a principal atração para os cultos que começavam às 7 da manhã e podiam durar quatro horas. Sabe-se que a congregação da sociedade de Leipzig chegava tarde à missa e saía mais cedo, ou seja, iam mais para assistir Bach do que o sermão.

O BWV 82 foi escrito em 1727 para a Festa da Purificação da Virgem Maria, que aconteceu em 2 de fevereiro. É para um cantor solo e prescinde do coro. Seu libreto anônimo concentra-se em Simeão, que, depois de ver o menino Jesus no templo, não precisa mais da vida terrena.

Em seu brilhante estudo de Bach, Música no Castelo do Céu, o maestro John Eliot Gardiner diz que a teologia da época encarava o mundo como “um hospício povoado por almas doentes cujos pecados apodrecem como furúnculos supurantes e excrementos amarelos”. Mas, no BWV 82, Bach radicalmente nos permite aspirar a sermos anjos. A morte não é transformação ou punição, é missão cumprida, é uma boa noite de sono e uma alegre viagem para casa.

Anjos não somos, mas por 25 minutos sentimos que somos. Os sons das palavras do texto anônimo são transformados em melodias luxuosas, que demonstram um talento operístico indiscutível. Mas a realização mais significativa é a de que a melodia e a instrumentação transcenderem o texto completamente.

O formato da cantata é simples: um cantor — Bach criou versões para soprano, mezzo-soprano e baixo-barítono — e três árias conectadas por dois recitativos curtos. Um pequeno conjunto de cordas o acompanha. Um oboé solo (ou flauta na versão soprano) gira melodias acrobáticas fazendo um sofisticado contraponto à linha vocal. Sobre as cordas suaves, a ária de abertura começa com o oboé ou flauta, introduzindo a frase melódica de cinco notas que carregará as palavras “Ich habe genug”.

Bach não está nos dizendo isso por palavras. Ele não está explicitando nada. Nem está, por mais que pareça, revelando as emoções carregadas no texto. Ele está nos levando pela mão a algum lugar.

A suposta tarefa da ária de canção de ninar “Schlummert ein” era representar a morte como sono. Em vez disso, Bach produz um milagre musical. Para que ele não nos leve a dormir, Bach produz um estado de reverência. O sono, então, torna-se não a morte, mas uma visão fugaz da morte, da qual acordamos revigorados. É por isso que a ária final curta e alegre pode estar escandalosamente viva.

Ich habe genug veio logo depois que Bach se cansou de cantatas para funerais. Aliás, a morte foi sua companheira constante. Seus pais morreram quando ele era menino. Sua primeira esposa morreu jovem. Ele sofreu a morte de seis de seus 20 filhos, incluindo a de um filho de seis meses antes de escrever o BVW 82. A essa altura, Bach havia deixado a tarefa hercúlea de escrever cantatas sem parar, para produzi-las apenas ocasionalmente. Mas o BWV 82 parece ser uma questão pessoal e Bach produziu um total de seis versões, a última em 1748, dois anos antes de sua própria morte.

Seis meses antes do 11 de setembro, a mezzo-soprano Lorraine Hunt Lieberson cantou a cantata em uma produção encenada de Peter Sellars no Lincoln Center em Nova York. Nos dois anos anteriores, ela cuidara da irmã que estava morrendo. A encenação surpreendente de Sellars trouxe um paciente moribundo em um hospital e terminou com Hunt Lieberson cortando os tubos, como se diz. Não havia um pingo de satisfação na maneira como Hunt Lieberson cantou as palavras “Ich habe genug”.

Para a questão universal do que significa ter o suficiente quando vivemos em um mundo que perigosa e autodestrutivamente pede cada vez mais, Bach é a resposta. Quando a produção dos Sellars chegou a Amsterdã em 2005, o “Ich habe genug” se tornou uma espécie de despedida de uma dos maiores cantoras que os EUA produziram. Hunt Lieberson morreu de câncer no ano seguinte.

Lorraine Hunt Lieberson ao final da BWV 82, Ich habe genug

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As melhores Cantatas de Bach

As melhores Cantatas de Bach

Escolher as “melhores” das mais de 200 cantatas sacras de Johann Sebastian Bach é uma tarefa assustadora, pois cada uma delas parece perfeita. Mas três grandes especialistas em Bach aceitaram o desafio.

Traduzido da dw.com

Peter Wollny, diretor do Arquivo Bach em Leipzig, Michael Maul, novo diretor do Bachfest, e Sir John Eliot Gardiner, maestro britânico, presidente do Arquivo Bach, escolheram as que consideram as “maiores” cantatas de Bach. Maul identificou 33, Gardiner tinha um total de 38 e Wollny 52.

Cada um do trio fez sua lista individualmente e 15 cantatas apareceram nas três relações. Então, já juntos, Wollny, Maul e Gardiner reduziram a lista para 33.

Isto foi feito nas primeiras 48 horas do Bachfest de Leipzig, em agosto de 2018. Depois, todas as 33 Cantatas foram apresentadas durante o Festival.

Então, o que é uma Cantata? O termo vem do italiano “cantare” e tem a ver com canto. A cantata é um trabalho vocal com duração de cerca de 20 minutos que compreende várias peças menores — árias, corais, recitativos, sinfonias.

Uma Cantata geralmente leva o mesmo nome que um hino de igreja, e as melodias e motivos musicais do hino — frequentemente o próprio hino – soam ao longo da peça. No tempo de Bach, cantatas sacras eram apresentadas durante os cultos da igreja, e os textos cantados tinham a ver com o tema da leitura do evangelho naquele domingo. É por isso que existem Cantatas para os domingos e feriados específicos do ano litúrgico.

Bach compôs Cantatas semana após semana e mandou tocá-las pelos meninos do coral de St. Thomas e por quaisquer instrumentistas que pudesse arranjar. Poderia ele sonhar que, 333 anos após seu nascimento, a performance de 33 de suas cantatas em seu último local de trabalho seria notada em todo o mundo? Só se pode especular.

Não é um ribeiro, é um oceano!

“Ele não deveria se chamar Ribeiro, mas Oceano!”é uma frase atribuída a Ludwig van Beethoven. É um jogo de palavras: “Bach”, em alemão, significa “ribeiro” ou “riacho”. Beethoven estava se referindo à quantidade  e à qualidade universal da obra de Bach. Nesse oceano, as cantatas são ilhas menos conhecidas do que muitos de seus outros trabalhos, mas definitivamente valem uma visita — ou uma revisão. A música é atraente na primeira audição, e torna-se ainda mais interessante quando cresce a familiaridade.

E aqui estão os 33 “melhores” selecionados por Peter Wollny, Michael Maul e Sir John Eliot Gardiner:

· Nun komm der heiden Heiland, BWV 61
· Wachet auf, ruft uns die Stimme, BWV 140
· Ich habe genug, BWV 82
· Wie schön leuchtet der Morgenstern, BWV 1
· Weinen, Klagen, Sorgen, Zagen, BWV 12
· O Ewigkeit, du Donnerwort, BWV 20
· Ich hatte viel Bekümmernis, BWV 21
· Es erhub sich ein Streit, BWV 19
· Schwingt freudig euch empor, BWV 36
· Wachet! Betet! Betet! Wachet !, BWV 70
· Unser Mund sei voll Lachens, BWV 110
· Sede de Saba alle kommen, BWV 65
· Jesus schläft, was soll ich hoffen, BWV 81
· Liebster Emanuel, Herzog der Frommen, BWV 123
· Sehet, wir gehen hinauf gen Jerusalem, BWV 159
. Herr Jesu Christ, Mensah und Gott, BWV 127
· Himmelskönig, sei willom, BWV 182
· Der Himmel lacht! die Erde jubilieret, BWV 31
· Bleib bei uns, denn es will Abend werden, BWV 6
· Ihr werdet weinen und heulen, BWV 103
· Ewiges Feuer, O Ursprung der Liebe, BWV 34
· Die Himmel erzählen die Ehre Gottes, BWV 76
· Die Elenden Sollen Essen, BWV 75
· Brich dem Hungrigen dein Brot, BWV 39
· Ach Gott, vom Himmel sieh darein, BWV 2
· Herr, gehe nicht ins Gericht, BWV 105
· Ich will den 
Kreuzstab gerne tragen, BWV 56
· Komm, süße Todesstunde, BWV 161
· Liebster Gott, Wann Wird ich sterben, BWV 8
· We weß, we have the mir mein Ende, BWV 27
· Christus, der ist mein Leben, BWV 95
· Nimm von uns, Herr, du Geu, BWV 101
· Jesus, der meine Seele, BWV 78

Obs. do blogueiro: Eu não estou muito disposto a discutir com o Gardiner e companhia, mas a 106 e a 80 tinham que estar na lista! Agora, achei ótimas as presenças das pouco citadas 36, 75, 95 e 127. A 106, a 80 e a 82 são minhas preferidas, além da incrível 198. E a sensacional 78?

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A morte de Eric Dolphy, um negro

A morte de Eric Dolphy, um negro

Nestes dias em que se fala tanto em racismo e onde pessoas brancas deixam escancarados seus preconceitos, gostaria de lembrar como morreu o genial saxofonista e claronista Eric Dolphy, um negro do qual brotava sons alegres, vanguardistas, criativos e de desconformidade.

Na tarde de 18 de Junho de 1964, Dolphy caiu nas ruas de Berlim e foi levado a um hospital. Os enfermeiros, que não sabiam que ele era diabético, pensaram que ele havia tido uma overdose e deixaram-no num leito até que passasse o efeito das “drogas”. E ele morreu aos 36 anos…. Foi um enorme artista.

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Morre, aos 91 anos, o compositor Ennio Morricone

Morre, aos 91 anos, o compositor Ennio Morricone

Morricone escreveu seu próprio obituário:

Ennio Morricone está morto. Anuncio assim a todos os amigos que estiveram próximos e àqueles um pouco distantes, a quem saúdo com grande afeto. É impossível nomear todos, mas uma recordação particular vai para Peppuccio e Roberta, amigos fraternos muito presentes nos últimos anos de nossa vida. Há apenas uma razão que me faz cumprimentar todos dessa maneira e ter um funeral de forma privada: não quero dar trabalho. Saúdo com tanto afeto Ines, Laura, Sara, Enzo, Norbert, por terem compartilhado comigo e minha família grande parte da minha vida. Quero recordar com amor minhas irmãs Adriana, Maria, Franca e seus parentes e dizer o quanto as quis bem. ma saudação plena, intensa e profunda a meus filhos Marco, Alessandra, Andrea, Giovanni, a minha nora Monica e a meus netos Francesca, Valentina, Francesco e Luca.

Espero que saibam o quanto os amei. Por último, Maria (mas não a última). A ela, renovo o amor extraordinário que nos manteve juntos e o qual lamento abandonar. A ela, o mais doloroso adeus.

Ennio Morricone (1928-2020)

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A História da Música em menos de 7 minutos

A História da Música em menos de 7 minutos

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A autoimolação de Valéri Kosolápov ao publicar Babi Yar, de Ievguêni Ievtuchenko

A autoimolação de Valéri Kosolápov ao publicar Babi Yar, de Ievguêni Ievtuchenko

Por Vadim Málev, em 10 de junho de 2020
Texto de Milton Ribeiro a partir de tradução oral de Elena Romanov

Valéri Kosolápov

Hoje é o dia dos 110 anos do nascimento de Valéri Kosolápov. Mas quem é esse Valéri Kosolápov? Por que deveria escrever sobre ele e você deveria ler? Valéri Kosolápov tornou-se um grande homem em uma noite e, se não fosse assim, talvez não conhecêssemos o poema de Yevgeny Yevtushenko (Ievguêni Ievtuchenko) Babi Yar. Kosolápov era então editor do Jornal de Literatura (Literatúrnii Jurnál), o qual publicou corajosamente o poema em 19 de setembro de 1961. Foi um feito civil real.

Afinal, o próprio Yevtushenko admitiu que esses versos eram mais fáceis de escrever do que de publicar naquela época. Tudo se deve ao fato de o jovem poeta ter conhecido o escritor Anatoly Kuznetsov, autor do romance Babi Yar, que contou verbalmente a Yevtushenko sobre a tragédia acontecida naquela assim chamada ravina (ou barranco). Por consequencia, Yevtushenko pediu a Kuznetsov que o levasse até o local e ele ficou chocado com o que viu.

“Eu sabia que não havia monumento lá, mas esperava ver algum tipo de placa in memorian ou ao menos algo que mostrasse que o local era de alguma forma respeitado. E de repente me vi num aterro sanitário comum, que era como imenso sanduíche podre. E era ali que dezenas de milhares de pessoas inocentes — principalmente crianças, idosos e mulheres — estavam enterradas. Diante de nossos olhos, no momento em que estava lá com Kuznetsov, caminhões chegaram e despejaram seu conteúdo fedorento bem no local onde essas vítimas estavam. Jogaram mais e mais pilhas de lixo sobre os corpos”, disse Yevtushenko.

Ele questionou Kuznetsov sobre porque parecia haver uma vil conspiração de silêncio sobre os fatos ocorridos em Babi Yar? Kuznetsov respondeu que 70% das pessoas que participaram dessas atrocidades foram policiais ucranianos que colaboraram com os nazistas. Os alemães lhes ofereceram o pior e mais sujo dos trabalhos, o de matar judeus inocentes.

Yevtushenko ficou estupefato. Ou, como disse, ficou tão “envergonhado” com o que viu que naquela noite compôs seu poema. De manhã, foi visitado por alguns poetas liderados por Korotich e leu alguns novos poemas para eles, incluindo Babi Yar… Claro que um dedo-duro ligou para as autoridades de Kiev e estas tentaram cancelar a leitura pública que Yevtushenko faria à noite. Mas ele não desistiu, ameaçou com escândalo e, no dia seguinte ao que fora escrito, Babi Yar foi ouvido publicamente pela primeira vez.

Yevtushenko lê seus poemas. Nos anos sessenta, os poetas podiam reunir milhares de pessoas…

Passemos a palavra a Yevtushenko: “Depois da leitura, houve um momento de silêncio que me pareceu interminável. Uma velhinha saiu da plateia mancando, apoiando-se em uma bengala, e encaminhou-se lentamente até o palco onde eu me encontrava. Ela disse que estivera em Babi Yar, que fora uma das poucas sobreviventes que conseguiu rastejar entre os cadáveres para se salvar. Ela fez uma reverência para mim e beijou minha mão. Nunca antes alguém beijara minha mão”.

Então Yevtushenko foi ao Jornal de Literatura. Seu editor era Valéri Kosolápov, que substituiu o célebre Aleksandr Tvardovsky no posto. Kosolápov era conhecido como uma pessoa muito decente e liberal, naturalmente dentro de certos limites. Tinha ficha no Partido, claro, caso contrário, nunca acabaria na cadeira de editor-chefe. Kosolápov leu Babi Yar e imediatamente disse que os versos eram muito fortes e necessários.

— O que vamos fazer com eles? — pensou Kosolápov em voz alta.

— Como assim? — Yevtushenko respondeu, fingindo que não tinha entendido — Vamos publicar!

Yevtushenko sabia muito bem que, quando alguém dizia “versos fortes”, logo depois vinha “mas, eu não posso publicar isso”. Mas Kosolápov olhou para Yevtushenko com tristeza e até com alguma ternura. Como se esta não fosse sua decisão.

— Sim.

Depois pensou mais um pouco e disse:

— Bem, você vai ter que  esperar, sente-se no corredor. Eu tenho que chamar minha esposa.

Yevtushenko ficou surpreso e o editor continuou:

— Por que devo chamar minha esposa? Porque esta deve ser uma decisão de família.

— Por que de família?

— Bem, eles vão me demitir do meu cargo quando o poema for publicado e eu tenho que consultá-la. Aguarde, por favor. Enquanto isso, já vamos mandando o poema para a tipografia.

Kosolápov sabia com certeza que seria demitido. E isso não significava simplesmente a perda de um emprego. Isso significava perda de status, perda de privilégios, de tapinhas nas costas de poderosos, de jantares, de viagens a resorts de prestígio …

Yevtushenko ficou preocupado. Sentou no corredor e esperou. A espera foi longa e insuportável. O poema se espalhou instantaneamente pela redação e pela gráfica. Operários da gráfica se aproximaram dele, deram-lhe parabéns, apertaram suas mãos. Um velho tipógrafo veio. “Ele me trouxe um pouco de vodka, um pepino salgado e um pedaço de pão”, contou o poeta. E este velho disse: — “Espere, espere, eles imprimirão, você verá.”

E então chegou a esposa de Kosolápov e se trancou com o marido em seu escritório por quase uma hora. Ela era uma mulher grande. Na Guerra, ela fora uma enfermeira que carregara muitos corpos nos ombros. Essa rocha saiu da reunião, aproximando-se de Yevtushenko: “Eu não diria que ela estava chorando, mas seus olhos estavam úmidos. Ela olhou para mim com atenção e sorriu. E disse: ‘Não se preocupe, Jenia, decidimos ser demitidos’.”

Olha, é simplesmente lindo: “Decidimos ser demitidos”. Foi quase um ato heroico. Somente uma mulher que foi para a front sob balas podia não ter medo.

Na manhã seguinte, chegou um grupo do Comitê Central, aos berros: “Quem deixou passar, quem aprovou isto?”. Mas já era tarde demais — o jornal estava à venda em todos os quiosques. E vendia muito.

“Durante a semana, recebi dez mil cartas, telegramas e radiogramas. O poema se espalhou como um raio. Foi transmitido por telefone a fim de ser publicado em locais mais distantes. Eles ligavam, liam, gravavam. Me ligaram de Kamchatka. Perguntei como tinham lido lá, porque o jornal ainda não tinha chegado. “Não chegou, mas pessoas nos leram pelo telefone, nós anotamos”, contou Yevtushenko.

Claro que as autoridades não gostaram e trataram de se vingar. Artigos aos montes foram escritos contra Yevtushenko. Kosolápov foi demitido.

Aqui está o jovem Yevtushenko, na época em que escreveu “Babi Yar”

O que salvou Yevtushenko foi a reação mundial. Em uma semana, o poema foi traduzido para 72 idiomas e publicado nas primeiras páginas de todos os principais jornais, incluindo os norte-americanos. Em pouco tempo, Yevtushenko recebeu outras 10 mil cartas agora de diferentes partes do mundo. E, é claro, não apenas judeus escreveram cartas de agradecimento, o poema fisgou muita gente. Mas houve muitas ações hostis contra o poeta. A palavra “judeu” foi riscada em seu carro e, pior, ele foi ameaçado e criticado em várias oportunidades.

“Vieram até meu edifício uns universitários enormes, do tamanho de jogadores da basquete. Eles se comprometeram a me proteger voluntariamente, embora não houvesse casos de agressão física. Mas poderia acontecer. Eles passavam a noite nas escadarias do meu prédio. Minha mãe os viu. As pessoas realmente me apoiaram ”, lembrou Yevtushenko.

— E, o milagre mais importante, Dmitri Shostakovich me telefonou. Minha esposa e eu não acreditamos, pensamos que era mais um gênero de intimidação ou que estavam aplicando um trote em nós. Mas Shostakovich apenas me perguntou se eu daria permissão para escrever música sobre meu poema.

Shostakovich e Yevtushenko na primeira apresentação da 13ª Sinfonia de Shostakovich, em cuja primeira parte foi colocada o poema “Babi Yar”

Esta história tem um belo final. Kosolápov aceitou tão dignamente sua demissão que o pessoal do Partido ficou assustado. Eles decidiram que se ele estava tão calmo era porque tinha proteção de alguém muito importante e superior… Depois de algum tempo, ele foi chamado para ser editor-chefe da revista Novy Mir. “E apenas a consciência o protegia”, resumiu Yevtushenko. “Era um Verdadeiro Homem.”

Valéri Kosolápov
A lápide de Valéri Kosolápov

RIP

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Os 40 anos de um grande disco: 80/81, de Pat Metheny

Os 40 anos de um grande disco: 80/81, de Pat Metheny

Traduzido mal e porcamente por mim. Achei aqui, ó.

Em 26 de maio de 1980, cinco músicos de jazz reuniram-se no Talent Studio em Oslo, Noruega. Eles estavam atrasados ​​após os respectivos voos, estavam de olhos vermelhos e tinham um dia inteiro de gravação pela frente. A sessão foi idealizada pelo mais jovem, um guitarrista de 26 anos que sonhava em trazer alguns de seus músicos preferidos para tocarem juntos pela primeira vez. O que se seguiu foi uma das sessões de gravação mais produtivas e inspiradoras do jazz moderno. Após pouco mais de um dia de gravação, a sessão rendeu um álbum duplo em LP que completou 40 anos de admiração e sucesso no último mês de maio. Vamos um pouco da história desta reunião de gênios promovida por Pat Metheny para a gravadora ECM.

Metheny não era novo no local de gravação e nem no selo da ECM com seu gerente Manfred Eicher. Em 1974, quando fazia parte da banda de Gary Burton, ele conheceu Eicher ao gravar o álbum Ring. No ano seguinte, gravou o álbum Dreams So Real com Gary Burton e seu primeiro álbum solo, Bright Size Life. Sua primeira vez no Talent Studio com o engenheiro Jan Erik Kongshaug foi em 1976 para a gravação de Passengers, do quinteto de Gary Burton, para a qual ele também escreveu parte do material. Os dois primeiros discos do Pat Metheny Group e o fantástico solo New Chautauqua vieram logo depois, também gravados pela lendária dupla de produtores / engenheiros Eicher / Kongshaug. O bom gosto que eles aplicaram no estúdio agora faz parte do lendário som ECM e funcionou perfeitamente para o estilo que Metheny estava criando no final dos anos 70. Então, após uma louca turnê, incluindo Shadows and Light, de Joni Mitchell, ele estava pronto para o próximo projeto.

Em uma entrevista de 1978 para a revista Downbeat, Pat Metheny expressou suas reservas sobre as restrições impostas a ele por Manfred Eicher: “Se Manfred conseguir o que quer, todo álbum que fizer terá seis baladas e uma bossa nova. Existem alguns problemas pra mim na ECM, mas ainda assim é 50 vezes melhor do que qualquer outra coisa.” Seu último álbum dos anos 70, American Garage, era de fato uma raridade no catálogo da ECM por ser produzido pelo próprio Metheny com a ajuda de Richard Niles. Metheny tinha o maior respeito por Eicher, mas este dissera certa vez que Metheny era “muito comercial…”, frase normalmente ausente no vocabulário de um produtor musical. Em cordial resposta, Pat disse: “Para mim, a única falha real é que Manfred tende a escolher artistas que não sabem dançar”. No entanto, no início de 1980, Metheny era uma estrela na cena do jazz e sua nova posição no mundo permitia-lhe escolher quem convidar para uma sessão de gravação. De fato, naquela sessão de maio de 1980, todos os quatro músicos balançavam como pouquíssimos.

Manfred Eicher e Jan Erik Kongshaug

Metheny não pediu apenas que quatro notáveis músicos viessem para as sessões de 80/81. Ele tinha uma visão clara de como eles soariam juntos e escreveu novas músicas com o som e a personalidade deles em mente. Curiosamente, também reunira músicos que nunca tinham tocado ou gravado antes. Por incrível que pareça, o baixista Charlie Haden e o baterista Jack DeJohnette, que entre tocaram com quase todo mundo no jazz que vale a pena ouvir nos quinze anos que antecederam a sessão 80/81, não tinham gravado nada juntos até aquele momento. Os dois saxofonistas tenor, Dewey Redman e Mike Brecker, também estrearam juntos. Metheny decidiu excluir do álbum sua colaboração com Ornette Coleman na música Song X, que foi lançada depois.

Metheny lembra: “Pela primeira vez trabalhei com sopros e tive de considerar o elemento da respiração. Um dia, notei que todos os instrumentos com os quais eu havia trabalhado nas gravações de Gary e meus eram instrumentos do grupo rítmico ou harmônico: piano, baixo, guitarra, vibrafone, bateria, percussão e sintetizador. Nunca tive a oportunidade de escrever para este elemento Humano, o sopro, e realmente me arrependi de não tê-lo feito antes.”

Os dois saxofones tenor são apresentados juntos em três temas do álbum. Dois deles são enérgicos e permitem que Redman e Brecker se esbaldem. Open, um veículo de improvisação para todos os solistas, e  Pretty Scattered, com um tema que se assemelha a algumas das melodias distorcidas de Ornette Coleman. A terceira é a mais tranquila The Bat, que teve uma apresentação diferente e memorável no álbum seguinte de Metheny, Offiramp. 

O quão bem Redman e Brecker se conectaram é melhor contado por Metheny. Em um podcast que dedicou ao making of 80/81, ele contou uma história que aconteceu durante a curta turnê europeia que o grupo tocou no verão de 1981: “Algo que aconteceu com Mike e Dewey nessa turnê que é uma das as coisas mais incríveis que já experimentei. Eles eram tipos diferentes de instrumentistas, eles não se sobrepunham de forma alguma. No início, tivemos um show em um festival de jazz em Portugal e David Oakes, na época um técnico de som relativamente novo, disse: “OK, deixe-me ouvir um pouco dos sax tenores. Mike, toque”. Mike subiu no palco e tocou. Então, “Dewey, toque alguma coisa”. E Dewey subiu no microfone e tocou qualquer coisa. Então ele completou seu teste: “Agora vocês dois tocam algo ao mesmo tempo”. Jack DeJonette e eu estávamos sentados atrás deles, e vimos ambos caminharem até o microfone e tocarem uma  longa frase improvisada, total e completamente em uníssono, como um só saxofone. E eles, Jack, eu e David Oakes paramos e nos encaramos por cerca de dez segundos. Como? O que aconteceu? Se você tivesse escrito uma cadência e dissesse “toquem isso”, eles a praticariam por alguns dias até tocarem daquela forma.

A trupe on tour

A música 80/81 foi escrita para Dewey Redman, que Metheny conheceu durante uma turnê com a banda de Gary Burton no início dos anos 70. Redman também tocava no quarteto americano de Keith Jarrett. Esse quarteto, incluindo Charlie Haden no baixo e Paul Motian na bateria, foi uma das melhores combinações de jazz dos anos 70 e deixou uma profunda impressão em Metheny, que lembrou os métodos peculiares de Redman: “Keith escrevia temas para Dewey que eram muito difíceis e ele descobria uma forma de tocá-las que não seriam o que você esperaria. Quando dei a música a Dewey, ele a levou ao banheiro por cerca de duas horas e praticou arpejos. Então, saiu e disse: OK, vamos gravar. E não tocou nada parecido em seu brilhante solo.”

Depois de tocar todas as composições que Pat Metheny preparou para a sessão, a banda percebeu que  tinha material para mais de um álbum. Manfred Eicher sugeriu que continuassem gravando para preencher um registro duplo. Pat Metheny ficou sem material, mas Charlie Haden trouxe alguns arranjos de Ornette Coleman. Um deles foi Turnaround, lançado pela primeira vez no segundo álbum de Ornette, Tomorrow Is the Question!, de 1959. Metheny, mesmo bem versado na música de Coleman, não conhecia essa música e a aprendeu no estúdio. Já Haden e DeJohnette estavam se divertindo muito, e Charlie Haden pode ser ouvido no final da gravação, todo empolgado com a interpretação de Jack DeJohnette.

Jack DeJohnette em 1981

Um dos destaques do 80/81 é uma música que Metheny escreveu para Mike Brecker, Every Day (I Thank You). Ela foi escrita em um quarto de hotel em Bremen, Alemanha, tarde da noite, depois de um show. No rico catálogo de melodias bem elaboradas de Metheny, essa é uma das mais memoráveis ​​e especiais, devido ao toque emocionante de Brecker. Como composição, é certamente a mais interessante e complexa do álbum, e se encaixou perfeitamente no repertório do Pat Metheny Group: “Eu tive muito trabalho para criar uma música com diferentes seções e tempos, mas tudo isso não é nada comparado à profundidade emocional com que Mike tocou a melodia.” Para Mike Brecker, que estava no processo de abandonar as drogas na época, toda a sessão foi um evento que mudou sua vida, e essa música em particular o afetou profundamente. Metheny: “Quando eu estava escrevendo a música, imaginava como Mike tocaria isso, e a música está fortemente associada a ele. Ele estava passando por um momento difícil, no meio de um processo complicado. Estava sofrendo muito. Nas notas para a série ECM Selected Recordings dedicada à sua música, Metheny escreveu: “Mike Brecker sempre falou sobre como esse disco foi um ponto de virada para ele e o que ele fez ali afetou tudo o que fez depois. “

O 80/81 foi lançado como código de catálogo ECM 1180/81, pois a ECM possui um número único para cada LP, incluindo LPs duplos e conjuntos de caixas. A banda gravou e lançou o álbum em 1980 e o apresentou ao vivo durante sua turnê em 1981. Número de shows à parte, o álbum foi bem-sucedido para a ECM e Metheny, alcançando de cara o número quatro nas paradas de jazz da Billboard. Uma rápida olhada no resto da parada daquela semana mostra o sombrio estado do jazz norte-americano da época, com álbuns pouco inspiradores. 80/81 ganhou o prêmio de registro de jazz do ano.

Minha música favorita no álbum é a abertura Two Folk Songs. Ainda me lembro da primeira vez que ouvi o álbum e a pura emoção que senti imediatamente após a agulha cair no lado um do primeiro LP. Este deve ser uma das melhores primeiras músicas de álbuns de todos os tempos. O violento e bonito toque de violão marca você e, antes que você tenha tempo de se recuperar da surpresa, o resto da banda se une com uma energia implacável que continua por mais de 20 minutos da música. Metheny introduziu esse estilo de dedilhar no New Chautauqua do ano anterior, mas Two Folk Songs ainda não tinham sido usadas no contexto de um quarteto de jazz. Metheny: “Até onde eu sei, foi a primeira vez que houve esse tipo de dedilhar de guitarra integrado estilisticamente com a abordagem ultramoderna de Jack DeJohnette tocar bateria. Além disso, a conexão que Charlie e eu tínhamos com Missouri fez com que o Two Folk Songs tivesse um pulso mais autêntico.”

Mike Brecker, Pat Metheny, Dewey Redman e Charlie Haden

Todos os músicos estavam em sua melhor forma em Two Folk Songs. Brecker toca como se eu nunca o tivesse ouvido em nenhum outro lugar. Metheny percebeu isso no estúdio durante a gravação: “O jeito que Brecker tocava nessa faixa era meio assustador na época. Era, cara, o que é isso? Era algo que tem todo o vocabulário pós Coltrane. Em uma ocasião separada, Metheny disse: “A posição mais traiçoeira no jazz era a de ser o cara que precisa fazer um solo logo após Mike Brecker”.

Cerca de 13 minutos e meio da música, enquanto a banda encerra a primeira música folclórica, Charlie Haden inicia a segunda tocando uma versão lenta e com alma do Old Joe Clark, uma antiga música folclórica americana geralmente tocada com banjo ou rabeca. E em alta velocidade. Ele tocara essa música vinte anos antes no álbum Change Of The Century do quarteto de Ornette Coleman. A vivência de Metheny e Haden no meio-oeste norte-americano podem ter começado aqui e culminado no álbum Beyond The Missouri Sky: “Charlie realmente experimentou essa coisa do meio-oeste. Quando ele era criança, estava em turnê com a banda da família, tocando em programas de rádio e tocando com a mãe Maybelle Carter. Ele tem isso de uma maneira muito mais profunda do que eu, mesmo que eu sempre tenha me sentido muito próximo do tipo de música que sai de lá ”.

Pat Metheny: 80/81

Disc 1
1. Two Folk Songs 20:46
2. 80/81 7:27
3. The Bat 5:58
4. Turnaround 7:05

Disc 2
1. Open 14:26
2. Pretty Scattered 6:56
3. Every Day (I Thank You) 13:16
4. Goin’ Ahead 3:51

Pat Metheny – guitar
Charlie Haden – bass
Jack DeJohnette – drums
Michael Brecker – tenor saxophone
Dewey Redman – tenor saxophone

Vamos fazer de conta que temos a mesma altura que o nanico do Metheny?

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Os dez discos que mais me influenciaram

Os dez discos que mais me influenciaram

O Paulo Ben-Hur me convidou para deixar aqui as dez capas dos discos que mais me influenciaram. Só as capas, mas não resisti a fazer comentários. E eles foram crescendo disco a disco…

~ 1 ~

Bem, eu era uma criança quando minha irmã Iracema Gonçalves, em 1965, trouxe isso aqui pra casa. Eu certamente ouvi este disco mais de 500 vezes na minha vida — talvez mais de 1000 — e até hoje meu coração bate mais forte vendo a agulha com o disco girando antes de Harrison iniciar aquele solo de guitarra.

~ 2 ~

O segundo disco que mais me influenciou vem também lá da infância. A eletrola do meu pai ficava, por motivos difíceis de entender, no meu quarto. E ele ouvia muita música. Muita mesmo. Como eu, hoje, ele podia passar horas e horas ouvindo discos, um bem diferente do outro, o que deixava minha mãe louca.

Este era especial porque ele dizia que era algo diferente. Mas como eu saberia que era diferente se não conhecia nada? E ele, que era dentista e pianista amador, me explicava as harmonias, o violão, a batida, a forma de cantar… De tal forma que este é um LP que faz parte de mim. Veio pré-instalado no meu cérebro, o que jamais me incomodou.

E hoje eu sei que ele é absolutamente genial e revolucionário.

~ 3 ~

Esta é uma capa famosa, inspiradora de memes. Meu pai comprou o disco no ano de lançamento, em 1966, e ele rodava sem parar na nossa eletrola. Conheço cada acorde e verso dele.

É o LP de estreia deste cidadão muito admirado. Ouço este disco até hoje com enorme prazer.

~ 4 ~

O quarto disco é o primeiro erudito que comprei em minha vida. Era uma gravação pioneira em instrumentos originais, ainda com um jeitinho romântico, mas já com o som delicado e afinadíssimo que amo.

O Collegium Aureum era cheio de craques como Franzjosef Maier, Hans Martin Linde e Gustav Leonhardt.

Dias antes de comprá -lo, tinha saído do banho molhado, enrolado numa toalha, para perguntar a meu pai que maravilha era aquela que ele estava ouvindo. Era o Concerto de Brandenburgo N° 3 tocado com instrumentos modernos.

Então, dias depois, encontrei a minha maravilha na King’s Discos. Ele também ficou babando.

~ 5 ~

Eu era um adolescente que estava descobrindo Bach quando comprei este disco de Thurston Dart (1921-1971) interpretando as Suítes Francesas de Bach no clavicórdio. Estas Suítes foram escritas para cravo ou clavicórdio, tanto faz.

Eu não sabia, mas Dart não era qualquer um, tanto que foi professor de gente como Michael Nyman, Davitt Moroney, Sir John Eliot Gardiner e Christopher Hogwood. Era um disco estupendo comprado na sorte por um ignorante.

O clavicórdio é um instrumento de teclado onde as cordas são percutidas como as do piano, e não pinçadas como as do cravo. Seu som é o mais leve e intimista dentre os três e as Suítes Francesas de Dart me pareceram a coisa mais próxima a um sussurro que já tinha ouvido. Mas era um sussurro muito belo, engenhoso e astuto.

Na Inglaterra, Dart é o padroeiro dos estudos de interpretação histórica. Toda a geração seguinte reverencia seu nome, e vários livros de interpretação histórica dividem esta área do conhecimento musical entre antes e depois de Thurston Dart. Parece que era uma pessoa realmente inspiradora.

Ouço este LP até hoje com enorme prazer.

~ 6 ~

Esse influenciou mesmo. Foi o disco que abriu as portas da música erudita do século XX para mim.

Quem me levou até Bartók foi Erico Verissimo lá nos anos 70. Num de seus livros — creio que se trata de O Senhor Embaixador –, um personagem diz que os Quartetos de Bartók davam-lhe uma representação tão vívida da Europa nos períodos das Guerras Mundiais que lhe era insuportável ouvi-los.

Como sabia de entrevistas que Erico amava os Quartetos de Bartók, aquilo foi a senha definitiva para que eu os procurasse. Perguntei para o amigo Herbert Caro que gravação deveria comprar e ele respondeu que eu deveria ouvir a do Quarteto Végh. Bem, teria que importar e o fiz. Eram 3 LPs da Astrée Auvidis. Me custaram os olhos da cara e aquela pessoa que SABEMOS QUEM É sumiu com o trio de LPs nos anos 90.

Só que o mundo abriga amigos e amigos e é comum acontecerem coisa mágicas. Há uns 5 anos, o Norberto Flach me ofereceu a gravação do Végh para ouvir. Essa mesmo, a de 1972, a que eu tinha. Eu jamais tinha falado pra ele do roubo nem nada, ele só chegou e colocou num e-mail: “Queres?”. Imaginem o que respondi.

~ 7 ~

Depois eu fui tomado de assalto por Schubert, o homem que conseguia fazer a poesia cantar e a música falar. Poderia colocar aqui o LP de A Morte e a Donzela, ou um de Sonatas (Pollini ou Brendel), ou o Winterreise com Fischer-Dieskau, ou a Fantasia Wanderer (com Pollini, novamente), quem sabe os dois últimos quartetos com o Allegri ou A truta, mas acho que ouvi muito mais este Quinteto que chamava de Quintetão.

É uma peça bastante longa e foi a última composição de câmara de Franz Schubert. Às vezes é chamado de “Quinteto para violoncelo” porque foi escrito para um quarteto de cordas padrão mais um violoncelo extra em vez de duas violas, como é mais comum em quintetos de cordas convencionais. Foi composta em 1828 e concluída dois meses antes da morte do compositor.

O incrível é que a primeira apresentação pública da peça só ocorreu em 1850 e a publicação em 1853.

Vale a pena ouvir mil vezes. O Adágio é algo sobrenatural com suas duas seções externas muito lentas e uma parte central turbulenta.

Sem exageros, penso que quem não conhece esta música ainda não viveu. Simples assim.

~ 8 ~

Uma capa ridícula, um disco de uma gravadora desconhecida em 1982, mas eu queria conhecer a tal Sinfonia Concertante de Mozart. E tive uma surpresa.

Sim, há ‘Don Giovanni’, ‘A Flauta Mágica’, os Concertos para Piano de números mais altos, a Júpiter, a 40, o Concerto para Clarinete, o Divertimento K. 287, é tanta obra-prima que nem sei, etc., porém, dentre os sei lá quantos CDs de Mozart de minha discoteca, escolho esta despretensiosa gravação da Bis sueca. É a que mais gosto, é endorfina pura, me deixa feliz. E nem é pelo extraordinário Concerto para Piano, é muito antes pela interpretação da Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364. Para meu gosto torto, é meu melhor CD do mestre de Salzburgo.

Em 1988, Peter Greenaway realizou sua obra-prima ‘Afogando em Números’ utilizando o Andante da Sinfonia Concertante, o qual é executado longamente durante as cenas de assassinatos de maridos pelas Cissies do filme. Certamente, Mozart nunca imaginaria tal utilização, mas ficou lindo, perfeito, dentro de um filme virtuosístico tanto pela atuação dos atores como por sua beleza plástica.

Mas nosso assunto é Mozart. Prestem atenção ao primeiro movimento da Sinfonia Concertante, atentem ao momento em que violino e viola entram para fazer seu primeiro solo. Se você não sentir arrepios, a pandemia lhe afetou. Dificilmente haverá um mergulho vertiginoso que seja mais belo.

E num ano desses — antes de 2013 –, a Elena, seu ex e o Alexandre Constantino me deram de presente uma interpretação do Andante da Concertante na casa onde eu morava. Fiquei pasmo.

Este disco está no PQP Bach.

~ 9 ~

Tenho que colocar aqui meu querido Shostakovich. E uma audição da 10ª Sinfonia me deixou tão, digamos, fora de mim, que eu escrevi uma carta para a Rádio da Ufrgs pedindo que eles repetissem a Sinfonia no programa Atendendo o Ouvinte.

Fui atendido e fiquei deitado no sofá de casa tentando entender porque aquilo me contava uma história e qual seria exatamente ela. Pois eu sentia que algo de muito grave estava sendo contado.

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Que é, resumidamente, esta:

Em março de 1953, quando da morte de Stálin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stálin.

Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista.

Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo. Sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã.

Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Crianças, não ouçam o segundo movimento previamente irritados. Você e sua companhia poderão se machucar.

Ah, e quem eu ouvia? Ora, a Filarmônica de Leningrado sob Mravinsky, que foi o maestro que estreou a obra.

~ 10 ~

Esta é uma gravação que ouvi lá na virada do século e que, para mim, é a melhor desta obra-prima de Bach. Talvez seja a música que mais amo de todas. Sim, muita gente a gravou, os adversários são fortíssimos, mas nada se lhe compara ao que fez Pierre Hantaï. Confiram!

Eu nunca tive insônia. Talvez, em razão de alguma dor ou febre, não tenha dormido repousadamente apenas uns dez dias em minha vida. Não é exagero. Quando me deprimo, durmo mais ainda e acordar é ruim, péssimo. O sono é meu refúgio natural. Mas há pessoas que reclamam (muito) da insônia. Saul Bellow escreveu que ela o teria deixado culto, mas que preferiria ser inculto e ter dormido todas as noites — discordo do grande Bellow, acho que ele deveria ter ficado sempre acordado, escrevendo, vivendo e escrevendo para nós. Também poucos viram Marlene Dietrich adormecida. Kafka era outro, qualquer barulho impedia seu descanso, devia pensar no pai e passava suas noites acordado, amanhecendo daquele jeito após sonhos agitados… Groucho Marx, imaginem, era insone, assim como Alexandre Dumas e Mark Twain. Marilyn Monroe e Van Gogh também sofriam muito.

O Conde Keyserling sofria de insônia e desejava tornar suas noites mais agradáveis. Ele encomendou a Bach, Johann Sebastian Bach, algumas peças que o divertissem durante a noite. Como sempre, Bach fez seu melhor. Pensando que o Conde se apaziguaria com uma obra tranquila e de base harmônica invariável, escreveu uma longa peça formada de uma ária inicial, seguida de trinta variações e finalizada pela repetição da ária. ‘Quod erat demonstrandum’. A recuperação do Conde foi espantosa, tanto que ele chamava a obra de “minhas variações” e, depois de pagar o combinado a Bach, deu-lhe um presente adicional: um cálice de ouro contendo mais cem luíses, também de ouro. Era algo que só receberia um príncipe candidato à mão de uma filha encalhada.

O Conde tinha a seu serviço um menino de quinze anos chamado Johann Gottlieb Goldberg. Goldberg era o melhor aluno de Bach. Foi descrito como “um rapaz esquisito, melancólico e obstinado” que, ao tocar, “escolhia de propósito as peças mais difíceis”. Perfeito! Goldberg era enorme e suas mãos tinham grande abertura. O menino era uma lenda como intérprete e o esperto Conde logo o contratou para acompanhá-lo não somente em sua residência em Dresden como em suas viagens a São Petersburgo, Varsóvia e Postdam. (Esqueci de dizer que o Conde Keyserling era diplomata). Bach, sabendo o intérprete que teria, não facilitou em nada. As Variações Goldberg, apesar de nada agitadas, são, para gáudio do homenageado, dificílimas. Nelas, as dificuldades técnicas e a erudição estão curiosamente associadas ao lúdico, mas podemos inverter de várias formas a frase. Dará no mesmo.

O nome da obra — Variações Goldberg, BWV 988 — é estranho, pois pela primeira vez o homenageado não é quem encomendou a obra, mas seu primeiro intérprete.

Não posso distribuir cálices de ouro por aí, mas talvez devesse dar alguma coisa a Pierre Hantaï, o maior intérprete da obra.

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Os 10 (ou 13) Melhores Discos Brasileiros

Os 10 (ou 13) Melhores Discos Brasileiros

Estou ocupadíssimo, então vamos a uma listinha irritante com a qual ninguém vai concordar.

1. João Gilberto – Chega de Saudade, sem comentários.
2. Elis Regina e Tom Jobim – Elis e Tom, idem.
3. Heitor Villa-Lobos – Bachianas Brasileiras com a Orquestra da Rádio Teledifusão Francesa, regência de Villa-Lobos, idem.
4. Edu Lobo – Edu Lobo (1973), o que tem Vento Bravo, Viola Fora de Moda, etc.
5. Chico Buarque – Meus Caros Amigos, acho que é o melhor do Chico. Há aquele de 1966, com A Banda, Olê, olá, Pedro Pedreiro, A Rita, Você não ouviu, etc., mas fico com este, snif.
6. Tom Jobim – Matita Perê, vocês conhecem? É um Tom curioso, muito diferente e experimental. Uma joia.
7. Egberto Gismonti – Dança das Cabeças, quem está melhor? Egberto ou Naná Vasconcelos?
8. Paulinho da Viola – Nervos de Aço, a mulher abandona Paulinho e ele passa a cometer obras-primas.
9. Milton Nascimento – Clube da Esquina 2, mas poderia ser o “1”, ou quem sabe Geraes.
10. Elis Regina – Elis Regina (1966), aquele que tem Lunik 9, Carinhoso, Tem mais samba…
11. Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Elizete Cardoso – Canção do Amor Demais, impossível ficar de fora, mas aí já são onze e…
12. Mutantes (1968) e Mutantes (1969) – Os Mutantes, é quase um álbum duplo e ainda…
13. Hermeto Paschoal – Slaves Mass.

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A obra-prima de Chico Buarque que virou meme

A obra-prima de Chico Buarque que virou meme

A foto de capa do primeiro LP (todos sabem o que é isto?) de Chico Buarque é hoje meme nas redes sociais. Aliás, faz alguns anos que isto acontece. O curioso é que, na época em que foi lançado, em 1966, quase todas as capas de discos eram sem graça, ao menos no Brasil. Só que a deste disco foge inteiramente aos padrões daqueles anos. Ela é surpreendente, expressiva e hoje há ferramentas que permitem sua “adulteração”. Uma delas é o Chico Buarque Meme Creator. E não é só no Brasil que ela é utilizada para servir de base a piadas. A cantora norte-americana Patti Smith já criou sua versão do meme e torcedores de futebol inglês a utilizam frequentemente quando seus adversários sofrem decepções. Apoiada na ideia simples de que alguma coisa boa — ou uma boa perspectiva — é subitamente desfeita, o meme chegou a ser usado numa propaganda de um shopping no Piauí, o que levou Chico Buarque a processar o estabelecimento por uso indevido de imagem. Não obstante os abusos, Chico se diverte e deixou isto claro num vídeo que divulgou em seu site. Em conversa com João Bosco, ele disse que “o meme é do cacete”.

Um exemplo dos mais recentes é uma referência ao fato de Chico ter sido hostilizado verbalmente num restaurante do Leblon por defensores do impeachment da presidente Dilma. Então, sob a imagem do Chico Buarque sorridente, foi colocada a frase: “Fui jantar no Leblon”. E, debaixo da foto do compositor com uma expressão sisuda: “Encontrei playboy leitor da Veja”.

O produtor do disco, Manoel Barenbein, não lembra de onde partiu a ideia da imagem:

— Naquela época, eu cuidava apenas da gravação. A parte de arte era do Júlio Nagib (morto em 1983) — revelou Barenbein ao jornal O Globo. — Imagino que ele, Chico e Dirceu Corte-Real (que assina as fotos e o lay-out na ficha técnica do álbum) conversaram e chegaram juntos a essa ideia do Chico sorrindo e do Chico triste.

O que muita gente não imagina é que, por trás das piadas, esconde-se um tesouro — as canções que o jovem Chico escreveu em sua juventude. Abaixo, você poderá ouvir cada uma delas.

O disco foi lançado em 1966 quando o compositor tinha entre 21 e 22 anos. Nascido em 1944, Chico Buarque chegou a ingressar em 63 no curso de Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo. Cursou dois anos e trancou a matrícula quando a carreira artística começou a tomar muito tempo.

Ele poderia ter sido mais um compositor lançado por Elis Regina, mas a cantora acabou desistindo de gravá-lo. Chico era tão tímido que Elis achou que ele “não tinha ido com sua cara” e acabou deixando de lado suas músicas. “Não vou gravar um cara que não gostou de mim”, disse. Mas não era nada disso. Chico ficara apenas constrangido ao mostrar suas criações para uma “cantora famosa”. E a honra de lançar Chico Buarque ficou para a obscura Maricene Costa, que registrou Marcha para um dia de sol em 1964.

A figura do próprio compositor revelou-se ao público brasileiro quando ele ganhou o Festival da Record em 1966 com A Banda — que abre o disco –, interpretada por Nara Leão. A canção empatou em primeiro lugar com Disparada, de Geraldo Vandré, interpretada por Jair Rodrigues. No entanto, Zuza Homem de Mello, no livro A Era dos Festivais: Uma Parábola, comprova que A Banda vencera o festival. O musicólogo preservou por décadas as folhas de votação do festival. Nelas, consta que A Banda ganhou por 7 a 5. Porém, Chico, ao perceber que ganharia, foi até o presidente da comissão e disse não aceitar a derrota de Disparada. Caso isso acontecesse, entregaria o prêmio à concorrente.

O LP de 1966 revela várias faces do futuro Chico. Ela e sua Janela, Você não ouviu e Olê Olá demonstram a faceta lírica de um compositor que chegava a uma bem sucedida pós-bossa nova. Pedro Pedreiro traz as preocupações sociais — além de ter sido a base experimental para o modo como viria a trabalhar os versos. Juca e A Rita são puro e bom Noel Rosa. A Banda é uma marchinha no estilo de Ismael Silva. Tem mais sambaMadalena foi pro marAmanhã, ninguém sabeMeu Refrão e Sonho de um Carnaval são a voz do próprio autor que seria polida nos anos seguintes.

Como quase todos, Chico também imitava João Gilberto e Tom Jobim (que o mandou estudar música), além de Vinicius de Moraes. Mas desde o primeiro momento buscou a aproximação do samba e da bossa nova. Havia nele muito Noel, mas também Tom Jobim.

Se Chico é ainda saudado hoje, na época de sua aparição era chamado de “a única unanimidade nacional”. Seu trabalho ao musicar Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, foi reverenciado pela crítica. Por outro lado, tornara-se popularíssimo graças ao fenômeno A Banda, cujo compacto de Nara Leão vendeu 100 mil cópias em uma semana.

Quando da explosão de A Banda, a gravadora RGE foi rápida. Sabia que não podia virar as costas para toda aquela popularidade. Afinal, Chico nem tinha LP e já era famoso! Tinha chegado a hora de um disco com doze canções. E ele foi gravado nos finais de semana em razão de compromissos profissionais dos envolvidos. Os arranjos foram de Toquinho. O resultado foi um disco perfeito, nascido clássico. “Lá está a filosofia de um Noel, a riqueza melódica de um Vadico, o balanço de um Janet de Almeida, um Vassourinha, um Ciro, de um Mário Reis devidamente atualizado pela batida moderna de Toquinho (…). A música popular brasileira se reencontrou com Chico Buarque de Hollanda”, escreveu Sylvio Tullio Cardoso no mesmo O Globo.

Porém, mesmo neste início de carreira, Chico já tinha embates com a censura. A canção Tamandaré, que estaria no disco, foi proibida após seis meses em cartaz no show Meu Refrão, por ter frases ofensivas ao patrono da marinha, Almirante Joaquim Marques Lisboa. A Marinha não achou graça e vetou a brincadeira. A figura do almirante Tamandaré era estampada nas notas de 1 cruzeiro e Chico perguntava: “Meu marquês de papel, cadê teu troféu? Cadê teu valor? Meu caro almirante, o tempo inconstante roubou…”. A  música permaneceu proibida até o ano de 1991, quando foi gravada pelo Quarteto em Cy. A curiosidade é que, para completar a trilha sonora, em substituição à Tamandaré, Chico compôs Noite dos Mascarados

“‘Seu Marquês’, ‘Seu’ Almirante / Do semblante meio contrariado / Que fazes parado / No meio dessa nota de um cruzeiro rasgado / ‘Seu Marquês’, ‘Seu’ Almirante / Sei que antigamente era bem diferente /  Desculpe a liberdade / E o samba sem maldade / Deste Zé qualquer / Perdão Marquês de Tamandaré”.

Num depoimento concedido a Regina Zappa, Chico surpreende: “Quando conheci Nara, em 65, 66, a gente achava que aquilo tudo estava ficando cansativo, a moda das canções de protesto me incomodava. Era bonitinho ser contra o governo. Parecia a burguesia brincando e dava a impressão de ser um pouco oportunista. Então fiz A Banda e dei para a Nara gravar. Foi uma coisa meio proposital, tipo um chega”. Só que a música explodiu e foi considerada mais um ataque à ditadura. Tudo, aliás, que escrevesse naquele tempo, já era considerado como crítica ao poder dos militares, o mais visível.

Mas voltemos ao disco. No texto do encarte do disco, Chico escreve: “É preciso confessar que à experiência com a música de Morte e vida Severina, devo muito do que aí está. Aquele trabalho garantiu-me que melodia e letra devem e podem formar um só corpo. Assim foi que procurei frear o orgulho das melodias, casando-as, por exemplo, ao fraseado e repetição de Pedro pedreiro, saudosismo e expectativa de Olê, olá, angústia e ironia de Ela e sua janela’, alegria e ingenuidade de A banda, etc”. No fim, falava das imagens da capa: “Enfim, cabe salientar a importância do limão galego para a voz rouca de cigarros, preocupações e gols do Fluminense (só parei de chupar limão para tirar fotografias)”.

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A canção de Goffin e King Will You Love Me Tomorrow — Still? Tomorrow?

A canção de Goffin e King Will You Love Me Tomorrow — Still? Tomorrow?

Amy WinehouseOntem estava ouvindo a versão de Amy Winehouse para o megaclássico de Gerry Goffin e Carole King Will You Love Me Tomorrow ou Will You Still Love Me Tomorrow ou ainda com interrogação atrás das duas formas. (Pouca gente sabe, mas Lennon e McCartney, lá no início, queriam apenas ser os Goffin & King da Inglaterra). A canção foi multigravada desde 1960, quando apareceu como Tomorrow num single das Shirelles. Coloco várias versões abaixo, inclusive duas da autora Carole King. Foi com Roberta Flack que a música ganhou insuspeitada grandiosidade. Agora, não deixa de ser curioso notar que Winehouse fez o clássico mudar de patamar novamente. Acompanhem a evolução.

Lá nos anos 60, com as pioneiras Shirelles, a coisa ia assim:

A autora Carole King mostrava que a coisa tinha mais potencial em 1971:

Roberta Flack dá um banho numa versão de palpável tristeza:

Ou quase um cantochão com Lykke Li:

No que é corrigida por uma Carole King veterana e sem voz em 2010 (atenção para a barba Tolstói-like do baixista):

Mas, antes, Amy Winehouse voltara a colocar a canção onde deixara Roberta Flack, ou seja, nas brumas do desespero:

E a pós-moderna Norah Jones:

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