A autoimolação de Valéri Kosolápov ao publicar Babi Yar, de Ievguêni Ievtuchenko

A autoimolação de Valéri Kosolápov ao publicar Babi Yar, de Ievguêni Ievtuchenko

Por Vadim Málev, em 10 de junho de 2020
Texto de Milton Ribeiro a partir de tradução oral de Elena Romanov

Valéri Kosolápov

Hoje é o dia dos 110 anos do nascimento de Valéri Kosolápov. Mas quem é esse Valéri Kosolápov? Por que deveria escrever sobre ele e você deveria ler? Valéri Kosolápov tornou-se um grande homem em uma noite e, se não fosse assim, talvez não conhecêssemos o poema de Yevgeny Yevtushenko (Ievguêni Ievtuchenko) Babi Yar. Kosolápov era então editor do Jornal de Literatura (Literatúrnii Jurnál), o qual publicou corajosamente o poema em 19 de setembro de 1961. Foi um feito civil real.

Afinal, o próprio Yevtushenko admitiu que esses versos eram mais fáceis de escrever do que de publicar naquela época. Tudo se deve ao fato de o jovem poeta ter conhecido o escritor Anatoly Kuznetsov, autor do romance Babi Yar, que contou verbalmente a Yevtushenko sobre a tragédia acontecida naquela assim chamada ravina (ou barranco). Por consequencia, Yevtushenko pediu a Kuznetsov que o levasse até o local e ele ficou chocado com o que viu.

“Eu sabia que não havia monumento lá, mas esperava ver algum tipo de placa in memorian ou ao menos algo que mostrasse que o local era de alguma forma respeitado. E de repente me vi num aterro sanitário comum, que era como imenso sanduíche podre. E era ali que dezenas de milhares de pessoas inocentes — principalmente crianças, idosos e mulheres — estavam enterradas. Diante de nossos olhos, no momento em que estava lá com Kuznetsov, caminhões chegaram e despejaram seu conteúdo fedorento bem no local onde essas vítimas estavam. Jogaram mais e mais pilhas de lixo sobre os corpos”, disse Yevtushenko.

Ele questionou Kuznetsov sobre porque parecia haver uma vil conspiração de silêncio sobre os fatos ocorridos em Babi Yar? Kuznetsov respondeu que 70% das pessoas que participaram dessas atrocidades foram policiais ucranianos que colaboraram com os nazistas. Os alemães lhes ofereceram o pior e mais sujo dos trabalhos, o de matar judeus inocentes.

Yevtushenko ficou estupefato. Ou, como disse, ficou tão “envergonhado” com o que viu que naquela noite compôs seu poema. De manhã, foi visitado por alguns poetas liderados por Korotich e leu alguns novos poemas para eles, incluindo Babi Yar… Claro que um dedo-duro ligou para as autoridades de Kiev e estas tentaram cancelar a leitura pública que Yevtushenko faria à noite. Mas ele não desistiu, ameaçou com escândalo e, no dia seguinte ao que fora escrito, Babi Yar foi ouvido publicamente pela primeira vez.

Yevtushenko lê seus poemas. Nos anos sessenta, os poetas podiam reunir milhares de pessoas…

Passemos a palavra a Yevtushenko: “Depois da leitura, houve um momento de silêncio que me pareceu interminável. Uma velhinha saiu da plateia mancando, apoiando-se em uma bengala, e encaminhou-se lentamente até o palco onde eu me encontrava. Ela disse que estivera em Babi Yar, que fora uma das poucas sobreviventes que conseguiu rastejar entre os cadáveres para se salvar. Ela fez uma reverência para mim e beijou minha mão. Nunca antes alguém beijara minha mão”.

Então Yevtushenko foi ao Jornal de Literatura. Seu editor era Valéri Kosolápov, que substituiu o célebre Aleksandr Tvardovsky no posto. Kosolápov era conhecido como uma pessoa muito decente e liberal, naturalmente dentro de certos limites. Tinha ficha no Partido, claro, caso contrário, nunca acabaria na cadeira de editor-chefe. Kosolápov leu Babi Yar e imediatamente disse que os versos eram muito fortes e necessários.

— O que vamos fazer com eles? — pensou Kosolápov em voz alta.

— Como assim? — Yevtushenko respondeu, fingindo que não tinha entendido — Vamos publicar!

Yevtushenko sabia muito bem que, quando alguém dizia “versos fortes”, logo depois vinha “mas, eu não posso publicar isso”. Mas Kosolápov olhou para Yevtushenko com tristeza e até com alguma ternura. Como se esta não fosse sua decisão.

— Sim.

Depois pensou mais um pouco e disse:

— Bem, você vai ter que  esperar, sente-se no corredor. Eu tenho que chamar minha esposa.

Yevtushenko ficou surpreso e o editor continuou:

— Por que devo chamar minha esposa? Porque esta deve ser uma decisão de família.

— Por que de família?

— Bem, eles vão me demitir do meu cargo quando o poema for publicado e eu tenho que consultá-la. Aguarde, por favor. Enquanto isso, já vamos mandando o poema para a tipografia.

Kosolápov sabia com certeza que seria demitido. E isso não significava simplesmente a perda de um emprego. Isso significava perda de status, perda de privilégios, de tapinhas nas costas de poderosos, de jantares, de viagens a resorts de prestígio …

Yevtushenko ficou preocupado. Sentou no corredor e esperou. A espera foi longa e insuportável. O poema se espalhou instantaneamente pela redação e pela gráfica. Operários da gráfica se aproximaram dele, deram-lhe parabéns, apertaram suas mãos. Um velho tipógrafo veio. “Ele me trouxe um pouco de vodka, um pepino salgado e um pedaço de pão”, contou o poeta. E este velho disse: — “Espere, espere, eles imprimirão, você verá.”

E então chegou a esposa de Kosolápov e se trancou com o marido em seu escritório por quase uma hora. Ela era uma mulher grande. Na Guerra, ela fora uma enfermeira que carregara muitos corpos nos ombros. Essa rocha saiu da reunião, aproximando-se de Yevtushenko: “Eu não diria que ela estava chorando, mas seus olhos estavam úmidos. Ela olhou para mim com atenção e sorriu. E disse: ‘Não se preocupe, Jenia, decidimos ser demitidos’.”

Olha, é simplesmente lindo: “Decidimos ser demitidos”. Foi quase um ato heroico. Somente uma mulher que foi para a front sob balas podia não ter medo.

Na manhã seguinte, chegou um grupo do Comitê Central, aos berros: “Quem deixou passar, quem aprovou isto?”. Mas já era tarde demais — o jornal estava à venda em todos os quiosques. E vendia muito.

“Durante a semana, recebi dez mil cartas, telegramas e radiogramas. O poema se espalhou como um raio. Foi transmitido por telefone a fim de ser publicado em locais mais distantes. Eles ligavam, liam, gravavam. Me ligaram de Kamchatka. Perguntei como tinham lido lá, porque o jornal ainda não tinha chegado. “Não chegou, mas pessoas nos leram pelo telefone, nós anotamos”, contou Yevtushenko.

Claro que as autoridades não gostaram e trataram de se vingar. Artigos aos montes foram escritos contra Yevtushenko. Kosolápov foi demitido.

Aqui está o jovem Yevtushenko, na época em que escreveu “Babi Yar”

O que salvou Yevtushenko foi a reação mundial. Em uma semana, o poema foi traduzido para 72 idiomas e publicado nas primeiras páginas de todos os principais jornais, incluindo os norte-americanos. Em pouco tempo, Yevtushenko recebeu outras 10 mil cartas agora de diferentes partes do mundo. E, é claro, não apenas judeus escreveram cartas de agradecimento, o poema fisgou muita gente. Mas houve muitas ações hostis contra o poeta. A palavra “judeu” foi riscada em seu carro e, pior, ele foi ameaçado e criticado em várias oportunidades.

“Vieram até meu edifício uns universitários enormes, do tamanho de jogadores da basquete. Eles se comprometeram a me proteger voluntariamente, embora não houvesse casos de agressão física. Mas poderia acontecer. Eles passavam a noite nas escadarias do meu prédio. Minha mãe os viu. As pessoas realmente me apoiaram ”, lembrou Yevtushenko.

— E, o milagre mais importante, Dmitri Shostakovich me telefonou. Minha esposa e eu não acreditamos, pensamos que era mais um gênero de intimidação ou que estavam aplicando um trote em nós. Mas Shostakovich apenas me perguntou se eu daria permissão para escrever música sobre meu poema.

Shostakovich e Yevtushenko na primeira apresentação da 13ª Sinfonia de Shostakovich, em cuja primeira parte foi colocada o poema “Babi Yar”

Esta história tem um belo final. Kosolápov aceitou tão dignamente sua demissão que o pessoal do Partido ficou assustado. Eles decidiram que se ele estava tão calmo era porque tinha proteção de alguém muito importante e superior… Depois de algum tempo, ele foi chamado para ser editor-chefe da revista Novy Mir. “E apenas a consciência o protegia”, resumiu Yevtushenko. “Era um Verdadeiro Homem.”

Valéri Kosolápov
A lápide de Valéri Kosolápov

RIP

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Os 40 anos de um grande disco: 80/81, de Pat Metheny

Os 40 anos de um grande disco: 80/81, de Pat Metheny

Traduzido mal e porcamente por mim. Achei aqui, ó.

Em 26 de maio de 1980, cinco músicos de jazz reuniram-se no Talent Studio em Oslo, Noruega. Eles estavam atrasados ​​após os respectivos voos, estavam de olhos vermelhos e tinham um dia inteiro de gravação pela frente. A sessão foi idealizada pelo mais jovem, um guitarrista de 26 anos que sonhava em trazer alguns de seus músicos preferidos para tocarem juntos pela primeira vez. O que se seguiu foi uma das sessões de gravação mais produtivas e inspiradoras do jazz moderno. Após pouco mais de um dia de gravação, a sessão rendeu um álbum duplo em LP que completou 40 anos de admiração e sucesso no último mês de maio. Vamos um pouco da história desta reunião de gênios promovida por Pat Metheny para a gravadora ECM.

Metheny não era novo no local de gravação e nem no selo da ECM com seu gerente Manfred Eicher. Em 1974, quando fazia parte da banda de Gary Burton, ele conheceu Eicher ao gravar o álbum Ring. No ano seguinte, gravou o álbum Dreams So Real com Gary Burton e seu primeiro álbum solo, Bright Size Life. Sua primeira vez no Talent Studio com o engenheiro Jan Erik Kongshaug foi em 1976 para a gravação de Passengers, do quinteto de Gary Burton, para a qual ele também escreveu parte do material. Os dois primeiros discos do Pat Metheny Group e o fantástico solo New Chautauqua vieram logo depois, também gravados pela lendária dupla de produtores / engenheiros Eicher / Kongshaug. O bom gosto que eles aplicaram no estúdio agora faz parte do lendário som ECM e funcionou perfeitamente para o estilo que Metheny estava criando no final dos anos 70. Então, após uma louca turnê, incluindo Shadows and Light, de Joni Mitchell, ele estava pronto para o próximo projeto.

Em uma entrevista de 1978 para a revista Downbeat, Pat Metheny expressou suas reservas sobre as restrições impostas a ele por Manfred Eicher: “Se Manfred conseguir o que quer, todo álbum que fizer terá seis baladas e uma bossa nova. Existem alguns problemas pra mim na ECM, mas ainda assim é 50 vezes melhor do que qualquer outra coisa.” Seu último álbum dos anos 70, American Garage, era de fato uma raridade no catálogo da ECM por ser produzido pelo próprio Metheny com a ajuda de Richard Niles. Metheny tinha o maior respeito por Eicher, mas este dissera certa vez que Metheny era “muito comercial…”, frase normalmente ausente no vocabulário de um produtor musical. Em cordial resposta, Pat disse: “Para mim, a única falha real é que Manfred tende a escolher artistas que não sabem dançar”. No entanto, no início de 1980, Metheny era uma estrela na cena do jazz e sua nova posição no mundo permitia-lhe escolher quem convidar para uma sessão de gravação. De fato, naquela sessão de maio de 1980, todos os quatro músicos balançavam como pouquíssimos.

Manfred Eicher e Jan Erik Kongshaug

Metheny não pediu apenas que quatro notáveis músicos viessem para as sessões de 80/81. Ele tinha uma visão clara de como eles soariam juntos e escreveu novas músicas com o som e a personalidade deles em mente. Curiosamente, também reunira músicos que nunca tinham tocado ou gravado antes. Por incrível que pareça, o baixista Charlie Haden e o baterista Jack DeJohnette, que entre tocaram com quase todo mundo no jazz que vale a pena ouvir nos quinze anos que antecederam a sessão 80/81, não tinham gravado nada juntos até aquele momento. Os dois saxofonistas tenor, Dewey Redman e Mike Brecker, também estrearam juntos. Metheny decidiu excluir do álbum sua colaboração com Ornette Coleman na música Song X, que foi lançada depois.

Metheny lembra: “Pela primeira vez trabalhei com sopros e tive de considerar o elemento da respiração. Um dia, notei que todos os instrumentos com os quais eu havia trabalhado nas gravações de Gary e meus eram instrumentos do grupo rítmico ou harmônico: piano, baixo, guitarra, vibrafone, bateria, percussão e sintetizador. Nunca tive a oportunidade de escrever para este elemento Humano, o sopro, e realmente me arrependi de não tê-lo feito antes.”

Os dois saxofones tenor são apresentados juntos em três temas do álbum. Dois deles são enérgicos e permitem que Redman e Brecker se esbaldem. Open, um veículo de improvisação para todos os solistas, e  Pretty Scattered, com um tema que se assemelha a algumas das melodias distorcidas de Ornette Coleman. A terceira é a mais tranquila The Bat, que teve uma apresentação diferente e memorável no álbum seguinte de Metheny, Offiramp. 

O quão bem Redman e Brecker se conectaram é melhor contado por Metheny. Em um podcast que dedicou ao making of 80/81, ele contou uma história que aconteceu durante a curta turnê europeia que o grupo tocou no verão de 1981: “Algo que aconteceu com Mike e Dewey nessa turnê que é uma das as coisas mais incríveis que já experimentei. Eles eram tipos diferentes de instrumentistas, eles não se sobrepunham de forma alguma. No início, tivemos um show em um festival de jazz em Portugal e David Oakes, na época um técnico de som relativamente novo, disse: “OK, deixe-me ouvir um pouco dos sax tenores. Mike, toque”. Mike subiu no palco e tocou. Então, “Dewey, toque alguma coisa”. E Dewey subiu no microfone e tocou qualquer coisa. Então ele completou seu teste: “Agora vocês dois tocam algo ao mesmo tempo”. Jack DeJonette e eu estávamos sentados atrás deles, e vimos ambos caminharem até o microfone e tocarem uma  longa frase improvisada, total e completamente em uníssono, como um só saxofone. E eles, Jack, eu e David Oakes paramos e nos encaramos por cerca de dez segundos. Como? O que aconteceu? Se você tivesse escrito uma cadência e dissesse “toquem isso”, eles a praticariam por alguns dias até tocarem daquela forma.

A trupe on tour

A música 80/81 foi escrita para Dewey Redman, que Metheny conheceu durante uma turnê com a banda de Gary Burton no início dos anos 70. Redman também tocava no quarteto americano de Keith Jarrett. Esse quarteto, incluindo Charlie Haden no baixo e Paul Motian na bateria, foi uma das melhores combinações de jazz dos anos 70 e deixou uma profunda impressão em Metheny, que lembrou os métodos peculiares de Redman: “Keith escrevia temas para Dewey que eram muito difíceis e ele descobria uma forma de tocá-las que não seriam o que você esperaria. Quando dei a música a Dewey, ele a levou ao banheiro por cerca de duas horas e praticou arpejos. Então, saiu e disse: OK, vamos gravar. E não tocou nada parecido em seu brilhante solo.”

Depois de tocar todas as composições que Pat Metheny preparou para a sessão, a banda percebeu que  tinha material para mais de um álbum. Manfred Eicher sugeriu que continuassem gravando para preencher um registro duplo. Pat Metheny ficou sem material, mas Charlie Haden trouxe alguns arranjos de Ornette Coleman. Um deles foi Turnaround, lançado pela primeira vez no segundo álbum de Ornette, Tomorrow Is the Question!, de 1959. Metheny, mesmo bem versado na música de Coleman, não conhecia essa música e a aprendeu no estúdio. Já Haden e DeJohnette estavam se divertindo muito, e Charlie Haden pode ser ouvido no final da gravação, todo empolgado com a interpretação de Jack DeJohnette.

Jack DeJohnette em 1981

Um dos destaques do 80/81 é uma música que Metheny escreveu para Mike Brecker, Every Day (I Thank You). Ela foi escrita em um quarto de hotel em Bremen, Alemanha, tarde da noite, depois de um show. No rico catálogo de melodias bem elaboradas de Metheny, essa é uma das mais memoráveis ​​e especiais, devido ao toque emocionante de Brecker. Como composição, é certamente a mais interessante e complexa do álbum, e se encaixou perfeitamente no repertório do Pat Metheny Group: “Eu tive muito trabalho para criar uma música com diferentes seções e tempos, mas tudo isso não é nada comparado à profundidade emocional com que Mike tocou a melodia.” Para Mike Brecker, que estava no processo de abandonar as drogas na época, toda a sessão foi um evento que mudou sua vida, e essa música em particular o afetou profundamente. Metheny: “Quando eu estava escrevendo a música, imaginava como Mike tocaria isso, e a música está fortemente associada a ele. Ele estava passando por um momento difícil, no meio de um processo complicado. Estava sofrendo muito. Nas notas para a série ECM Selected Recordings dedicada à sua música, Metheny escreveu: “Mike Brecker sempre falou sobre como esse disco foi um ponto de virada para ele e o que ele fez ali afetou tudo o que fez depois. “

O 80/81 foi lançado como código de catálogo ECM 1180/81, pois a ECM possui um número único para cada LP, incluindo LPs duplos e conjuntos de caixas. A banda gravou e lançou o álbum em 1980 e o apresentou ao vivo durante sua turnê em 1981. Número de shows à parte, o álbum foi bem-sucedido para a ECM e Metheny, alcançando de cara o número quatro nas paradas de jazz da Billboard. Uma rápida olhada no resto da parada daquela semana mostra o sombrio estado do jazz norte-americano da época, com álbuns pouco inspiradores. 80/81 ganhou o prêmio de registro de jazz do ano.

Minha música favorita no álbum é a abertura Two Folk Songs. Ainda me lembro da primeira vez que ouvi o álbum e a pura emoção que senti imediatamente após a agulha cair no lado um do primeiro LP. Este deve ser uma das melhores primeiras músicas de álbuns de todos os tempos. O violento e bonito toque de violão marca você e, antes que você tenha tempo de se recuperar da surpresa, o resto da banda se une com uma energia implacável que continua por mais de 20 minutos da música. Metheny introduziu esse estilo de dedilhar no New Chautauqua do ano anterior, mas Two Folk Songs ainda não tinham sido usadas no contexto de um quarteto de jazz. Metheny: “Até onde eu sei, foi a primeira vez que houve esse tipo de dedilhar de guitarra integrado estilisticamente com a abordagem ultramoderna de Jack DeJohnette tocar bateria. Além disso, a conexão que Charlie e eu tínhamos com Missouri fez com que o Two Folk Songs tivesse um pulso mais autêntico.”

Mike Brecker, Pat Metheny, Dewey Redman e Charlie Haden

Todos os músicos estavam em sua melhor forma em Two Folk Songs. Brecker toca como se eu nunca o tivesse ouvido em nenhum outro lugar. Metheny percebeu isso no estúdio durante a gravação: “O jeito que Brecker tocava nessa faixa era meio assustador na época. Era, cara, o que é isso? Era algo que tem todo o vocabulário pós Coltrane. Em uma ocasião separada, Metheny disse: “A posição mais traiçoeira no jazz era a de ser o cara que precisa fazer um solo logo após Mike Brecker”.

Cerca de 13 minutos e meio da música, enquanto a banda encerra a primeira música folclórica, Charlie Haden inicia a segunda tocando uma versão lenta e com alma do Old Joe Clark, uma antiga música folclórica americana geralmente tocada com banjo ou rabeca. E em alta velocidade. Ele tocara essa música vinte anos antes no álbum Change Of The Century do quarteto de Ornette Coleman. A vivência de Metheny e Haden no meio-oeste norte-americano podem ter começado aqui e culminado no álbum Beyond The Missouri Sky: “Charlie realmente experimentou essa coisa do meio-oeste. Quando ele era criança, estava em turnê com a banda da família, tocando em programas de rádio e tocando com a mãe Maybelle Carter. Ele tem isso de uma maneira muito mais profunda do que eu, mesmo que eu sempre tenha me sentido muito próximo do tipo de música que sai de lá ”.

Pat Metheny: 80/81

Disc 1
1. Two Folk Songs 20:46
2. 80/81 7:27
3. The Bat 5:58
4. Turnaround 7:05

Disc 2
1. Open 14:26
2. Pretty Scattered 6:56
3. Every Day (I Thank You) 13:16
4. Goin’ Ahead 3:51

Pat Metheny – guitar
Charlie Haden – bass
Jack DeJohnette – drums
Michael Brecker – tenor saxophone
Dewey Redman – tenor saxophone

Vamos fazer de conta que temos a mesma altura que o nanico do Metheny?

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Os dez discos que mais me influenciaram

Os dez discos que mais me influenciaram

O Paulo Ben-Hur me convidou para deixar aqui as dez capas dos discos que mais me influenciaram. Só as capas, mas não resisti a fazer comentários. E eles foram crescendo disco a disco…

~ 1 ~

Bem, eu era uma criança quando minha irmã Iracema Gonçalves, em 1965, trouxe isso aqui pra casa. Eu certamente ouvi este disco mais de 500 vezes na minha vida — talvez mais de 1000 — e até hoje meu coração bate mais forte vendo a agulha com o disco girando antes de Harrison iniciar aquele solo de guitarra.

~ 2 ~

O segundo disco que mais me influenciou vem também lá da infância. A eletrola do meu pai ficava, por motivos difíceis de entender, no meu quarto. E ele ouvia muita música. Muita mesmo. Como eu, hoje, ele podia passar horas e horas ouvindo discos, um bem diferente do outro, o que deixava minha mãe louca.

Este era especial porque ele dizia que era algo diferente. Mas como eu saberia que era diferente se não conhecia nada? E ele, que era dentista e pianista amador, me explicava as harmonias, o violão, a batida, a forma de cantar… De tal forma que este é um LP que faz parte de mim. Veio pré-instalado no meu cérebro, o que jamais me incomodou.

E hoje eu sei que ele é absolutamente genial e revolucionário.

~ 3 ~

Esta é uma capa famosa, inspiradora de memes. Meu pai comprou o disco no ano de lançamento, em 1966, e ele rodava sem parar na nossa eletrola. Conheço cada acorde e verso dele.

É o LP de estreia deste cidadão muito admirado. Ouço este disco até hoje com enorme prazer.

~ 4 ~

O quarto disco é o primeiro erudito que comprei em minha vida. Era uma gravação pioneira em instrumentos originais, ainda com um jeitinho romântico, mas já com o som delicado e afinadíssimo que amo.

O Collegium Aureum era cheio de craques como Franzjosef Maier, Hans Martin Linde e Gustav Leonhardt.

Dias antes de comprá -lo, tinha saído do banho molhado, enrolado numa toalha, para perguntar a meu pai que maravilha era aquela que ele estava ouvindo. Era o Concerto de Brandenburgo N° 3 tocado com instrumentos modernos.

Então, dias depois, encontrei a minha maravilha na King’s Discos. Ele também ficou babando.

~ 5 ~

Eu era um adolescente que estava descobrindo Bach quando comprei este disco de Thurston Dart (1921-1971) interpretando as Suítes Francesas de Bach no clavicórdio. Estas Suítes foram escritas para cravo ou clavicórdio, tanto faz.

Eu não sabia, mas Dart não era qualquer um, tanto que foi professor de gente como Michael Nyman, Davitt Moroney, Sir John Eliot Gardiner e Christopher Hogwood. Era um disco estupendo comprado na sorte por um ignorante.

O clavicórdio é um instrumento de teclado onde as cordas são percutidas como as do piano, e não pinçadas como as do cravo. Seu som é o mais leve e intimista dentre os três e as Suítes Francesas de Dart me pareceram a coisa mais próxima a um sussurro que já tinha ouvido. Mas era um sussurro muito belo, engenhoso e astuto.

Na Inglaterra, Dart é o padroeiro dos estudos de interpretação histórica. Toda a geração seguinte reverencia seu nome, e vários livros de interpretação histórica dividem esta área do conhecimento musical entre antes e depois de Thurston Dart. Parece que era uma pessoa realmente inspiradora.

Ouço este LP até hoje com enorme prazer.

~ 6 ~

Esse influenciou mesmo. Foi o disco que abriu as portas da música erudita do século XX para mim.

Quem me levou até Bartók foi Erico Verissimo lá nos anos 70. Num de seus livros — creio que se trata de O Senhor Embaixador –, um personagem diz que os Quartetos de Bartók davam-lhe uma representação tão vívida da Europa nos períodos das Guerras Mundiais que lhe era insuportável ouvi-los.

Como sabia de entrevistas que Erico amava os Quartetos de Bartók, aquilo foi a senha definitiva para que eu os procurasse. Perguntei para o amigo Herbert Caro que gravação deveria comprar e ele respondeu que eu deveria ouvir a do Quarteto Végh. Bem, teria que importar e o fiz. Eram 3 LPs da Astrée Auvidis. Me custaram os olhos da cara e aquela pessoa que SABEMOS QUEM É sumiu com o trio de LPs nos anos 90.

Só que o mundo abriga amigos e amigos e é comum acontecerem coisa mágicas. Há uns 5 anos, o Norberto Flach me ofereceu a gravação do Végh para ouvir. Essa mesmo, a de 1972, a que eu tinha. Eu jamais tinha falado pra ele do roubo nem nada, ele só chegou e colocou num e-mail: “Queres?”. Imaginem o que respondi.

~ 7 ~

Depois eu fui tomado de assalto por Schubert, o homem que conseguia fazer a poesia cantar e a música falar. Poderia colocar aqui o LP de A Morte e a Donzela, ou um de Sonatas (Pollini ou Brendel), ou o Winterreise com Fischer-Dieskau, ou a Fantasia Wanderer (com Pollini, novamente), quem sabe os dois últimos quartetos com o Allegri ou A truta, mas acho que ouvi muito mais este Quinteto que chamava de Quintetão.

É uma peça bastante longa e foi a última composição de câmara de Franz Schubert. Às vezes é chamado de “Quinteto para violoncelo” porque foi escrito para um quarteto de cordas padrão mais um violoncelo extra em vez de duas violas, como é mais comum em quintetos de cordas convencionais. Foi composta em 1828 e concluída dois meses antes da morte do compositor.

O incrível é que a primeira apresentação pública da peça só ocorreu em 1850 e a publicação em 1853.

Vale a pena ouvir mil vezes. O Adágio é algo sobrenatural com suas duas seções externas muito lentas e uma parte central turbulenta.

Sem exageros, penso que quem não conhece esta música ainda não viveu. Simples assim.

~ 8 ~

Uma capa ridícula, um disco de uma gravadora desconhecida em 1982, mas eu queria conhecer a tal Sinfonia Concertante de Mozart. E tive uma surpresa.

Sim, há ‘Don Giovanni’, ‘A Flauta Mágica’, os Concertos para Piano de números mais altos, a Júpiter, a 40, o Concerto para Clarinete, o Divertimento K. 287, é tanta obra-prima que nem sei, etc., porém, dentre os sei lá quantos CDs de Mozart de minha discoteca, escolho esta despretensiosa gravação da Bis sueca. É a que mais gosto, é endorfina pura, me deixa feliz. E nem é pelo extraordinário Concerto para Piano, é muito antes pela interpretação da Sinfonia Concertante para Violino e Viola K. 364. Para meu gosto torto, é meu melhor CD do mestre de Salzburgo.

Em 1988, Peter Greenaway realizou sua obra-prima ‘Afogando em Números’ utilizando o Andante da Sinfonia Concertante, o qual é executado longamente durante as cenas de assassinatos de maridos pelas Cissies do filme. Certamente, Mozart nunca imaginaria tal utilização, mas ficou lindo, perfeito, dentro de um filme virtuosístico tanto pela atuação dos atores como por sua beleza plástica.

Mas nosso assunto é Mozart. Prestem atenção ao primeiro movimento da Sinfonia Concertante, atentem ao momento em que violino e viola entram para fazer seu primeiro solo. Se você não sentir arrepios, a pandemia lhe afetou. Dificilmente haverá um mergulho vertiginoso que seja mais belo.

E num ano desses — antes de 2013 –, a Elena, seu ex e o Alexandre Constantino me deram de presente uma interpretação do Andante da Concertante na casa onde eu morava. Fiquei pasmo.

Este disco está no PQP Bach.

~ 9 ~

Tenho que colocar aqui meu querido Shostakovich. E uma audição da 10ª Sinfonia me deixou tão, digamos, fora de mim, que eu escrevi uma carta para a Rádio da Ufrgs pedindo que eles repetissem a Sinfonia no programa Atendendo o Ouvinte.

Fui atendido e fiquei deitado no sofá de casa tentando entender porque aquilo me contava uma história e qual seria exatamente ela. Pois eu sentia que algo de muito grave estava sendo contado.

Este monumento da arte contemporânea mistura música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tem, ademais, uma história bastante particular.

Que é, resumidamente, esta:

Em março de 1953, quando da morte de Stálin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram, normalmente, negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stálin.

Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista.

Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo. Sua oposição ao restante da obra faz-nos pensar em alguma segunda intenção do compositor. Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo o maior enigma musical do mestre: a orquestra para, dando espaço para a trompa executar o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã.

Para identificá-la, ouça o tema executado a capela pela trompa. Ele é repetido quatro vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stalin está morto, Shostakovich, não. O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.

Crianças, não ouçam o segundo movimento previamente irritados. Você e sua companhia poderão se machucar.

Ah, e quem eu ouvia? Ora, a Filarmônica de Leningrado sob Mravinsky, que foi o maestro que estreou a obra.

~ 10 ~

Esta é uma gravação que ouvi lá na virada do século e que, para mim, é a melhor desta obra-prima de Bach. Talvez seja a música que mais amo de todas. Sim, muita gente a gravou, os adversários são fortíssimos, mas nada se lhe compara ao que fez Pierre Hantaï. Confiram!

Eu nunca tive insônia. Talvez, em razão de alguma dor ou febre, não tenha dormido repousadamente apenas uns dez dias em minha vida. Não é exagero. Quando me deprimo, durmo mais ainda e acordar é ruim, péssimo. O sono é meu refúgio natural. Mas há pessoas que reclamam (muito) da insônia. Saul Bellow escreveu que ela o teria deixado culto, mas que preferiria ser inculto e ter dormido todas as noites — discordo do grande Bellow, acho que ele deveria ter ficado sempre acordado, escrevendo, vivendo e escrevendo para nós. Também poucos viram Marlene Dietrich adormecida. Kafka era outro, qualquer barulho impedia seu descanso, devia pensar no pai e passava suas noites acordado, amanhecendo daquele jeito após sonhos agitados… Groucho Marx, imaginem, era insone, assim como Alexandre Dumas e Mark Twain. Marilyn Monroe e Van Gogh também sofriam muito.

O Conde Keyserling sofria de insônia e desejava tornar suas noites mais agradáveis. Ele encomendou a Bach, Johann Sebastian Bach, algumas peças que o divertissem durante a noite. Como sempre, Bach fez seu melhor. Pensando que o Conde se apaziguaria com uma obra tranquila e de base harmônica invariável, escreveu uma longa peça formada de uma ária inicial, seguida de trinta variações e finalizada pela repetição da ária. ‘Quod erat demonstrandum’. A recuperação do Conde foi espantosa, tanto que ele chamava a obra de “minhas variações” e, depois de pagar o combinado a Bach, deu-lhe um presente adicional: um cálice de ouro contendo mais cem luíses, também de ouro. Era algo que só receberia um príncipe candidato à mão de uma filha encalhada.

O Conde tinha a seu serviço um menino de quinze anos chamado Johann Gottlieb Goldberg. Goldberg era o melhor aluno de Bach. Foi descrito como “um rapaz esquisito, melancólico e obstinado” que, ao tocar, “escolhia de propósito as peças mais difíceis”. Perfeito! Goldberg era enorme e suas mãos tinham grande abertura. O menino era uma lenda como intérprete e o esperto Conde logo o contratou para acompanhá-lo não somente em sua residência em Dresden como em suas viagens a São Petersburgo, Varsóvia e Postdam. (Esqueci de dizer que o Conde Keyserling era diplomata). Bach, sabendo o intérprete que teria, não facilitou em nada. As Variações Goldberg, apesar de nada agitadas, são, para gáudio do homenageado, dificílimas. Nelas, as dificuldades técnicas e a erudição estão curiosamente associadas ao lúdico, mas podemos inverter de várias formas a frase. Dará no mesmo.

O nome da obra — Variações Goldberg, BWV 988 — é estranho, pois pela primeira vez o homenageado não é quem encomendou a obra, mas seu primeiro intérprete.

Não posso distribuir cálices de ouro por aí, mas talvez devesse dar alguma coisa a Pierre Hantaï, o maior intérprete da obra.

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Os 10 (ou 13) Melhores Discos Brasileiros

Os 10 (ou 13) Melhores Discos Brasileiros

Estou ocupadíssimo, então vamos a uma listinha irritante com a qual ninguém vai concordar.

1. João Gilberto – Chega de Saudade, sem comentários.
2. Elis Regina e Tom Jobim – Elis e Tom, idem.
3. Heitor Villa-Lobos – Bachianas Brasileiras com a Orquestra da Rádio Teledifusão Francesa, regência de Villa-Lobos, idem.
4. Edu Lobo – Edu Lobo (1973), o que tem Vento Bravo, Viola Fora de Moda, etc.
5. Chico Buarque – Meus Caros Amigos, acho que é o melhor do Chico. Há aquele de 1966, com A Banda, Olê, olá, Pedro Pedreiro, A Rita, Você não ouviu, etc., mas fico com este, snif.
6. Tom Jobim – Matita Perê, vocês conhecem? É um Tom curioso, muito diferente e experimental. Uma joia.
7. Egberto Gismonti – Dança das Cabeças, quem está melhor? Egberto ou Naná Vasconcelos?
8. Paulinho da Viola – Nervos de Aço, a mulher abandona Paulinho e ele passa a cometer obras-primas.
9. Milton Nascimento – Clube da Esquina 2, mas poderia ser o “1”, ou quem sabe Geraes.
10. Elis Regina – Elis Regina (1966), aquele que tem Lunik 9, Carinhoso, Tem mais samba…
11. Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Elizete Cardoso – Canção do Amor Demais, impossível ficar de fora, mas aí já são onze e…
12. Mutantes (1968) e Mutantes (1969) – Os Mutantes, é quase um álbum duplo e ainda…
13. Hermeto Paschoal – Slaves Mass.

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A obra-prima de Chico Buarque que virou meme

A obra-prima de Chico Buarque que virou meme

A foto de capa do primeiro LP (todos sabem o que é isto?) de Chico Buarque é hoje meme nas redes sociais. Aliás, faz alguns anos que isto acontece. O curioso é que, na época em que foi lançado, em 1966, quase todas as capas de discos eram sem graça, ao menos no Brasil. Só que a deste disco foge inteiramente aos padrões daqueles anos. Ela é surpreendente, expressiva e hoje há ferramentas que permitem sua “adulteração”. Uma delas é o Chico Buarque Meme Creator. E não é só no Brasil que ela é utilizada para servir de base a piadas. A cantora norte-americana Patti Smith já criou sua versão do meme e torcedores de futebol inglês a utilizam frequentemente quando seus adversários sofrem decepções. Apoiada na ideia simples de que alguma coisa boa — ou uma boa perspectiva — é subitamente desfeita, o meme chegou a ser usado numa propaganda de um shopping no Piauí, o que levou Chico Buarque a processar o estabelecimento por uso indevido de imagem. Não obstante os abusos, Chico se diverte e deixou isto claro num vídeo que divulgou em seu site. Em conversa com João Bosco, ele disse que “o meme é do cacete”.

Um exemplo dos mais recentes é uma referência ao fato de Chico ter sido hostilizado verbalmente num restaurante do Leblon por defensores do impeachment da presidente Dilma. Então, sob a imagem do Chico Buarque sorridente, foi colocada a frase: “Fui jantar no Leblon”. E, debaixo da foto do compositor com uma expressão sisuda: “Encontrei playboy leitor da Veja”.

O produtor do disco, Manoel Barenbein, não lembra de onde partiu a ideia da imagem:

— Naquela época, eu cuidava apenas da gravação. A parte de arte era do Júlio Nagib (morto em 1983) — revelou Barenbein ao jornal O Globo. — Imagino que ele, Chico e Dirceu Corte-Real (que assina as fotos e o lay-out na ficha técnica do álbum) conversaram e chegaram juntos a essa ideia do Chico sorrindo e do Chico triste.

O que muita gente não imagina é que, por trás das piadas, esconde-se um tesouro — as canções que o jovem Chico escreveu em sua juventude. Abaixo, você poderá ouvir cada uma delas.

O disco foi lançado em 1966 quando o compositor tinha entre 21 e 22 anos. Nascido em 1944, Chico Buarque chegou a ingressar em 63 no curso de Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo. Cursou dois anos e trancou a matrícula quando a carreira artística começou a tomar muito tempo.

Ele poderia ter sido mais um compositor lançado por Elis Regina, mas a cantora acabou desistindo de gravá-lo. Chico era tão tímido que Elis achou que ele “não tinha ido com sua cara” e acabou deixando de lado suas músicas. “Não vou gravar um cara que não gostou de mim”, disse. Mas não era nada disso. Chico ficara apenas constrangido ao mostrar suas criações para uma “cantora famosa”. E a honra de lançar Chico Buarque ficou para a obscura Maricene Costa, que registrou Marcha para um dia de sol em 1964.

A figura do próprio compositor revelou-se ao público brasileiro quando ele ganhou o Festival da Record em 1966 com A Banda — que abre o disco –, interpretada por Nara Leão. A canção empatou em primeiro lugar com Disparada, de Geraldo Vandré, interpretada por Jair Rodrigues. No entanto, Zuza Homem de Mello, no livro A Era dos Festivais: Uma Parábola, comprova que A Banda vencera o festival. O musicólogo preservou por décadas as folhas de votação do festival. Nelas, consta que A Banda ganhou por 7 a 5. Porém, Chico, ao perceber que ganharia, foi até o presidente da comissão e disse não aceitar a derrota de Disparada. Caso isso acontecesse, entregaria o prêmio à concorrente.

O LP de 1966 revela várias faces do futuro Chico. Ela e sua Janela, Você não ouviu e Olê Olá demonstram a faceta lírica de um compositor que chegava a uma bem sucedida pós-bossa nova. Pedro Pedreiro traz as preocupações sociais — além de ter sido a base experimental para o modo como viria a trabalhar os versos. Juca e A Rita são puro e bom Noel Rosa. A Banda é uma marchinha no estilo de Ismael Silva. Tem mais sambaMadalena foi pro marAmanhã, ninguém sabeMeu Refrão e Sonho de um Carnaval são a voz do próprio autor que seria polida nos anos seguintes.

Como quase todos, Chico também imitava João Gilberto e Tom Jobim (que o mandou estudar música), além de Vinicius de Moraes. Mas desde o primeiro momento buscou a aproximação do samba e da bossa nova. Havia nele muito Noel, mas também Tom Jobim.

Se Chico é ainda saudado hoje, na época de sua aparição era chamado de “a única unanimidade nacional”. Seu trabalho ao musicar Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, foi reverenciado pela crítica. Por outro lado, tornara-se popularíssimo graças ao fenômeno A Banda, cujo compacto de Nara Leão vendeu 100 mil cópias em uma semana.

Quando da explosão de A Banda, a gravadora RGE foi rápida. Sabia que não podia virar as costas para toda aquela popularidade. Afinal, Chico nem tinha LP e já era famoso! Tinha chegado a hora de um disco com doze canções. E ele foi gravado nos finais de semana em razão de compromissos profissionais dos envolvidos. Os arranjos foram de Toquinho. O resultado foi um disco perfeito, nascido clássico. “Lá está a filosofia de um Noel, a riqueza melódica de um Vadico, o balanço de um Janet de Almeida, um Vassourinha, um Ciro, de um Mário Reis devidamente atualizado pela batida moderna de Toquinho (…). A música popular brasileira se reencontrou com Chico Buarque de Hollanda”, escreveu Sylvio Tullio Cardoso no mesmo O Globo.

Porém, mesmo neste início de carreira, Chico já tinha embates com a censura. A canção Tamandaré, que estaria no disco, foi proibida após seis meses em cartaz no show Meu Refrão, por ter frases ofensivas ao patrono da marinha, Almirante Joaquim Marques Lisboa. A Marinha não achou graça e vetou a brincadeira. A figura do almirante Tamandaré era estampada nas notas de 1 cruzeiro e Chico perguntava: “Meu marquês de papel, cadê teu troféu? Cadê teu valor? Meu caro almirante, o tempo inconstante roubou…”. A  música permaneceu proibida até o ano de 1991, quando foi gravada pelo Quarteto em Cy. A curiosidade é que, para completar a trilha sonora, em substituição à Tamandaré, Chico compôs Noite dos Mascarados

“‘Seu Marquês’, ‘Seu’ Almirante / Do semblante meio contrariado / Que fazes parado / No meio dessa nota de um cruzeiro rasgado / ‘Seu Marquês’, ‘Seu’ Almirante / Sei que antigamente era bem diferente /  Desculpe a liberdade / E o samba sem maldade / Deste Zé qualquer / Perdão Marquês de Tamandaré”.

Num depoimento concedido a Regina Zappa, Chico surpreende: “Quando conheci Nara, em 65, 66, a gente achava que aquilo tudo estava ficando cansativo, a moda das canções de protesto me incomodava. Era bonitinho ser contra o governo. Parecia a burguesia brincando e dava a impressão de ser um pouco oportunista. Então fiz A Banda e dei para a Nara gravar. Foi uma coisa meio proposital, tipo um chega”. Só que a música explodiu e foi considerada mais um ataque à ditadura. Tudo, aliás, que escrevesse naquele tempo, já era considerado como crítica ao poder dos militares, o mais visível.

Mas voltemos ao disco. No texto do encarte do disco, Chico escreve: “É preciso confessar que à experiência com a música de Morte e vida Severina, devo muito do que aí está. Aquele trabalho garantiu-me que melodia e letra devem e podem formar um só corpo. Assim foi que procurei frear o orgulho das melodias, casando-as, por exemplo, ao fraseado e repetição de Pedro pedreiro, saudosismo e expectativa de Olê, olá, angústia e ironia de Ela e sua janela’, alegria e ingenuidade de A banda, etc”. No fim, falava das imagens da capa: “Enfim, cabe salientar a importância do limão galego para a voz rouca de cigarros, preocupações e gols do Fluminense (só parei de chupar limão para tirar fotografias)”.

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A canção de Goffin e King Will You Love Me Tomorrow — Still? Tomorrow?

A canção de Goffin e King Will You Love Me Tomorrow — Still? Tomorrow?

Amy WinehouseOntem estava ouvindo a versão de Amy Winehouse para o megaclássico de Gerry Goffin e Carole King Will You Love Me Tomorrow ou Will You Still Love Me Tomorrow ou ainda com interrogação atrás das duas formas. (Pouca gente sabe, mas Lennon e McCartney, lá no início, queriam apenas ser os Goffin & King da Inglaterra). A canção foi multigravada desde 1960, quando apareceu como Tomorrow num single das Shirelles. Coloco várias versões abaixo, inclusive duas da autora Carole King. Foi com Roberta Flack que a música ganhou insuspeitada grandiosidade. Agora, não deixa de ser curioso notar que Winehouse fez o clássico mudar de patamar novamente. Acompanhem a evolução.

Lá nos anos 60, com as pioneiras Shirelles, a coisa ia assim:

A autora Carole King mostrava que a coisa tinha mais potencial em 1971:

Roberta Flack dá um banho numa versão de palpável tristeza:

Ou quase um cantochão com Lykke Li:

No que é corrigida por uma Carole King veterana e sem voz em 2010 (atenção para a barba Tolstói-like do baixista):

Mas, antes, Amy Winehouse voltara a colocar a canção onde deixara Roberta Flack, ou seja, nas brumas do desespero:

E a pós-moderna Norah Jones:

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Don McLean: Vincent

Don McLean, um artista subestimado.

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Em busca de Última Forma

Em busca de Última Forma

Nos anos 70, havia uma rádio muito interessante em Porto Alegre. Era a Continental, que nada tinha a ver com bobamente nostálgica Continental FM de hoje.

Pois bem, a rádio era “jovem”. Ou seja, tocava não somente os grandes grupos de rock ativos na época — até hoje os melhores, não? — como colocava importantes questões em subtexto: a música brasileira era também esplêndida, talvez melhor.

Então, havia uma gravação que eles tocavam bastante. Era a da canção Última Forma, de Baden e Pinheiro. Melodia longa e linda, letra perfeita de quem se despede do antigo amor, uma perfeição de cabo a rabo. Procuro a gravação no YouTube e só encontro a versão pesada do MPB-4, a desinterpretação de Emílio Santiago, a discursiva de Elizeth, a de Alcione estilo alcione e a até boa de Roberta Sá.

Mas nada do charme, da ironia e do discreto ódio da gravação que ouvia na Continental. Certamente era uma cantora do segundo time, tipo Alaíde Costa.

(Informação: Paulo César Pinheiro fez a letra para Elis Regina, como resposta ao fim de seu casamento com Ronaldo Bôscoli. Elis ouviu, como que com um nó na garganta, não disse nada e não gravou a canção).

A pergunta: quem seria esta cantora? E onde poderia reouvi-la?

.oOo.

Após pesquisa, papos e risadas que envolveram Vagner Eifler, Jorge Lima, Fernando Gomes, Éder Silveira, Zeca Azevedo, Juarez Malta, Anaurelino Corrêa De Barros Neto, Norberto Flach, Renata Lins, Enio San, Guilherme Conte,  Álvaro Magalhães, Raul Ellwanger, Igor Freiberger e Marcos Abreu, chegamos à conclusão de que a gravação só poderia ser a original (a primeira) de Márcia, com Baden Powell ao violão.

Houve nova caçada à gravação e Zeca Azevedo, juntamente com seu amigo Manoel Filho chegaram lá.

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Stravinsky e Shostakovich. Puccini

Stravinsky e Shostakovich. Puccini

Ninguém duvida que Stravinsky fosse um gênio, mas há uma história dele que poucos conhecem e que demonstra notavelmente sua igualmente jamais contestada habilidade social. Em sua primeira visita à União Soviética, promoveram um encontro entre ele e Shostakovich. Como Shosta era silencioso por natureza — e ainda mais quando observado pela KGB –, Igor ficou matutando em como trazê-lo para a conversa geral. E procurou em sua mente algo que ambos certamente detestariam. E encontrou Puccini! Shostakovich fez uma cara feia, mas depois a dupla conversou a noite inteira e não só sobre o italiano. Como veem, o ódio pode ser motor de coisas boas.

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Beethoven e a direção da transformação

Beethoven e a direção da transformação

Texto publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo de hoje

Ouvir uma obra da juventude de Beethoven e logo depois outra da maturidade é um choque. Poucos compositores evoluíram tão espetacularmente. Mozart vinha fazendo o mesmo, mas viveu 21 a menos e não alcançou o romantismo. Beethoven alterou sua linguagem de tal forma que acabou por tornar-se a própria transição da música do período clássico para o romântico. Isto deu-se certamente por uma necessidade interna, mas fatores externos também o influenciaram.

A vida de Ludwig van Beethoven (1770-1827) mostrou-se tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes criando paradoxos. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade. Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha perfeita noção de quem era e do que representaria.

Também não foi uma pessoa fácil. Em seus anos de aluno, Beethoven utilizava harmonias que eram consideradas inadmissíveis. Quando lhe diziam que eram estranhas, perguntava: “Quem as proibiu?”. Há um fato muito curioso em sua formação. Desde cedo o compositor teve uma noção muito clara daquilo que lhe faltava: conhecer literatura. Ele sabia que seu talento poderia naufragar sem um arcabouço cultural. Com entusiasmo, ele atirou-se à leitura de Homero, Shakespeare, Goethe e Schiller. Pensava que só assim – e tendo bons professores de composição – poderia ser o que tinha planejado para si: tornar-se o Tondichter da Alemanha, o poeta dos sons de seu país.

As obras escritas antes de seus 30 anos obedeciam e traíam seus mestres. Apesar de respeitar as estruturas aprendidas, já são claros os procedimentos expressivos que utilizaria nas fases seguintes – os temas curtos e afirmativos, os súbitos silêncios, o uso simultâneo de graves e agudos do teclado, a primazia do ritmo. O seu “classicismo vienense” era muito pessoal. É tradicionalmente aceito dividir a vida artística de Beethoven em três fases, mas prefiro dividi-la em quatro. A primeira começa com a mudança para Viena, em 1792. Uma fase leve e ousada como Mozart.

Nove anos depois, em 1801, Beethoven afirmou não estar satisfeito com o que compusera até então, decidindo tomar um “novo caminho”. Tudo parecia levá-lo ao épico e, em 1803, surge o primeiro grande fruto: a Sinfonia Nº 3, Eroica. A obra seria dedicada a Napoleão Bonaparte — Beethoven tinha admiração por ele e pelos ideais da Revolução Francesa. Porém, quando o corso autoproclamou-se imperador da França em maio de 1804, Beethoven foi até a mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão com tanta força que ficou um buraco no papel. Perdeu Napoleão.

O ciclo épico iniciado pela Eroica seguiu com obras verdadeiramente espantosas e originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a vitória do espírito humano. Vieram a Sinfonia Nº 5, a Nº 6, Pastoral, as sonatas Waldstein e Appassionata, assim como o Concerto para Piano Nº 5, chamado Imperador. Eram músicas intensas, triunfantes e românticas.

Ao final da primeira década do século XIX, começa a terceira fase. Ele já era reconhecido como o maior compositor de sua época, e cometeu algumas, digamos, obras polêmicas. Entre 1813 e 17, passou por uma crise criativa, levado talvez pela progressiva surdez — ele começara a se comunicar com as pessoas por gestos ou por escrito — ou pela perda das esperanças matrimoniais. Mas seguiu compondo: escreveu a pior das músicas em A Vitória de Wellington. “É uma estupidez”, admitiu, mas o público saudou o triunfalismo da obra. Era o músico nacional e tudo o que fizesse era adorado.

Sua sorte foi ter conhecido a Condessa Maria Erdödy, grande e inspiradora amiga que conseguiu retirá-lo da letargia. Ele recomeçou, em 1818, a compor lentamente as que seriam, talvez, suas maiores obras. À Condessa foram dedicadas as duas esplêndidas Sonatas para Violoncelo e Piano Op. 102.

E começou a quarta fase, a mais vanguardista. Há obras muito populares neste período — dentre elas a Sinfonia Nº 9 —, mas há também aquelas que, de tão perfeitas, serviram de base para muitos compositores que vieram depois. A irrepetível sequência perfeita e revolucionária começou com a Sonata para Piano, Op. 106, Hammerklavier. Beethoven teve que prestar explicações a seus contemporâneos, que não a entenderam, o que gerou mais algumas de suas deliciosas respostas mal humoradas. “Não pensei no pianista quando a escrevi”. “Não gostam agora? Gostarão mais tarde. Não escrevo para vocês, escrevo para o futuro.”

As sonatas seguintes, de Op. 109, 110 e 111, são inacreditáveis, considerando-se a época em que foram compostas. A Sonata Op. 111 gerou um dos mais belos momentos da literatura de todos os tempos: a aula do Prof. Kretzschmar em Doutor Fausto, de Thomas Mann. O imaginário professor Kretzschmar dá uma aula sobre o tema “Por que Beethoven não escreveu o terceiro movimento da Sonata Op. 111”. A ideia de Mann nasceu quando um descuidado pianista contemporâneo de Beethoven perguntou sobre o motivo da inexistência do mesmo. A resposta do compositor foi típica: “Não tive tempo de escrever um!”.

O futuro lhe abriria as portas como fez para poucos. No início do século XX, o escritor Romain Rolland acreditava ser o último beethoveniano. Não poderia estar mais enganado. Bartók, Xenakis, Varèse, Shostakovich e Schnittke foram decisivamente influenciados. Além disso, Beethoven tornou-se o mais popular dos compositores, o elo perfeito para aqueles que raramente ouvem a música erudita pudessem adentrar em um novo mundo.

Em 1824, surge a Sinfonia nº 9, Op.125, para muitos sua obra-prima. Pela primeira vez na história da música é inserida a voz humana em uma sinfonia. Os anos finais de Beethoven foram dedicados quase que exclusivamente à composição de quartetos de cordas. Os últimos quartetos são talvez suas obras mais profundas e visionárias. Elas foram encomendados pelo príncipe Galitzin, que pagou 50 ducados por cada. Pagou mesmo? Beethoven recebeu o pagamento apenas do primeiro. Embora o príncipe russo não negasse a dívida, os quartetos restantes só foram pagos aos herdeiros de Beethoven em 1852, 25 anos após sua morte.

Na opinião de Beethoven, o quarteto — que fora inventado por Haydn — era a manifestação mais alta da arte musical e ele utilizou-o como veículo de expressão daquilo que parecia ser um projeto de renovação de sua música.

O Quarteto Op. 132 é absolutamente pessoal, como se vê nas anotações na partitura. Beethoven passara um inverno sem complicações de saúde, mas a primavera trouxera-lhe moléstias pulmonares, digestivas e intestinais que o debilitaram muito, a ponto de deixá-lo de cama por vários dias. Sua situação foi comentada musicalmente na obra. Na partitura, há anotações como “ação de graças de um convalescente”, “sentindo novas forças” ou “Tu (referindo-se a Deus) me devolveste a vontade de viver”. Trata-se de um caso único: um compositor comentar problemas tão terrenos em música. Normalmente, quando se fala na dor que uma música representa, em geral são dores da alma, dificilmente sofrimentos físicos.

Assim, a vida de Beethoven foi finalizada por obras de um tipo nunca ouvido antes. Seus contemporâneos tinham dificuldades de entender aqueles enormes quartetos, às vezes com sete movimentos.

Beethoven foi o primeiro romântico que fez questão de ter liberdade de expressão. Se foi condicionado por algo, foi pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos grandes ideais humanistas. Inaugurou a tradição do compositor que escreve música para si, não seguindo os desejos de um mecenas ou a moda. Em uma época em que tanta gente é chamada de gênio, convém conhecer um que verdadeiramente merece ser chamado assim. Beethoven é do tamanho de Shakespeare, Cervantes, Bach, Homero, Dante e de outros poucos, bem poucos.

Foto: Deutsche Welle

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Os mais importantes músicos alemães exigem ajuda de seu governo para artistas menos conhecidos

Os mais importantes músicos alemães exigem ajuda de seu governo para artistas menos conhecidos

Vários dos músicos alemães mais importantes de hoje assinaram uma carta dirigida ao Ministro Federal da Cultura, na qual solicitam maior segurança para artistas menos conhecidos.

Abaixo, alguns trechos da carta:

“Nós, artistas conhecidos e não tão conhecidos, lembramos da frequência com que nos últimos anos fomos solicitados a aceitar cachês mais baixos (por exemplo, após a crise financeira) e a contribuir para a diversidade da paisagem cultural.

Na maioria dos casos, temos aceitado. Em troca, é imperativo fornecer, para todos os músicos fora da cultura subsidiada, as condições adequadas para que possam seguir dando suas valiosas contribuições à cultura”.

A carta é assinada, entre outros, pelas violinistas Anne-Sophie Mutter e Lisa Batiashvili, pelos cantores Matthias Goerne e René Pape e pelos maestros Christian Thielemann e Thomas Hengelbrock.

Anne-Sophie Mutter, inclusive, contraiu o covid-19 e está em recuperação

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Em Barcelona, Sokolov tornou o impossível realidade

Em Barcelona, Sokolov tornou o impossível realidade

Nem se falava em quarentena,
era o dia 18 de fevereiro de 2020,
em Barcelona, no belíssimo Palau de la Música Catalana.
Grigory Sokolov, piano.
Recital com obras de Mozart e Schumann (e mais 6 bis…).
Traduzido rapidamente daqui, com pequenas alterações
Autor: Rafael Ortega Basagoiti

O público, com razão, sempre espera viver uma nova experiência musical daqueles que coloca em uma altíssima categoria separada. Categoria em que o pianista de São Petersburgo está, sem dúvida, colocado há muito tempo. Ele está naquele lugar onde não há chance para confusão, acessório ou banalidade. Sokolov entra no palco hierático e imperturbável, reverencia um lado e outro do palco, senta e ataca a primeira peça, depois a outra, sem interrupção. No final, várias saídas e bises em meio a uma crescente apoteose. E os bises vem aos montes. Em Barcelona foram seis, nem mais, nem menos.

Nem uma salva de palmas, nem, provavelmente, um terremoto, conseguiria deter o russo naquela caminhada determinada e solene, na reverência mecânica e, após, naquela mutação de indivíduo imperturbável para o artista capaz de elaborar momentos de uma mágica que está ao alcance de muito poucos. Em 18 de fevereiro, Sokolov desenvolveu um programa com trabalhos relativamente pouco frequentes. A primeira parte foi dedicada a Mozart, mas, com a exceção da Sonata K 331 , que é frequente, duas outas belas páginas não especialmente viajadas foram incluídas no Salzburgo, os K. 394 e 511.

Quem assina isso não se lembra da última vez que ouviu o Prelúdio e Fuga K. 394 em um recital, O Prelúdio foi legendado pelos editores como “Fantasia” e não sem razão. Seu caráter é caráter muito livre, às vezes quase improvisado. Na “fantasia do prelúdio” Mozart deixa voar uma imaginação transbordante. Já a fuga, impecavelmente construída por Sokolov, é de uma gravidade bachiana que não associamos a Mozart. Aqui, Sokolov já usava aquele controle mágico da pulsação, aquela e beleza no som que a gente fica se perguntando como é possível.

O Rondó K 511, algo mais frequente em recitais do que o prelúdio comentado, não é das partituras de teclado mais talentosas do gênio de Salzburgo. Obra dos últimos anos da vida de Mozart (1787), que contém grandes doses de tristeza, a peça é salpicada de grande intensidade dramática e culmina com um final que apresenta uma escuridão ameaçadora. O canto requintado de Sokolov, o desenho rasgado daquele drama intermediário e o final misterioso e chocante emolduravam uma interpretação de grande emoção, não importando a tentativa criminosa do telefone celular que tocou na plateia visando o assassinato do Rondó.

No meio desses dois trabalhos, apareceu a peça mais conhecida que citamos anteriormente, a Sonata K. 331 . Era evidente desde o início que Sokolov mais uma vez favoreceu o canto elegante (início do primeiro movimento), o som requintado (variação V), as nuances cuidadosas, o legato extraordinário (variação III) e a articulação cristalina (mão esquerda do variação II) antes de qualquer tentativa de fazer as coisas diferentes. O movimento final teve um ritmo que genuinamente respondia à indicação allegretto. Mais uma vez admirável o controle impossível da pulsação por Sokolov, com um pedal justo que também lhe permite executar os arpejos “turcos” apenas com a redondeza e a rusticidade, mas sem cobrir ou embaçar o que está acima deles. Eu raramente ouvi aquelas passagens feitas de maneira mais requintada.

Novos elogios à escolha do Bunte Blätter de Schumann, uma coleção que quase nunca está agendada, embora Sviatoslav Richter um defensor da obra. Há tudo nessa série: fantasia, lirismo, poesia, vitalidade energética, melancolia, agitação tempestuosa, animação … Há até uma marcha — o trabalho mais extenso da série — , que poderia muito bem ser considerado uma marcha fúnebre. Todo esse caleidoscópio de atmosferas expressivas foi dissecado por Sokolov. Como não admirar a bela poesia do número inicial, a canção nostálgica do terceiro, a tristeza sombria da quarta, a vibrante e leve Novelette, a tremenda tempestade do Präludium ou a tristeza devastadora da marcha mencionada acima?

Ao final, o Palau de la Música Catalana veio abaixo sob aplausos e urros. E na “terceira parte”, no enorme bis, a magia foi expandida. Os dois Intermezzi Op. 118 ( n. 2 e 3 ) de Brahms dificilmente podem ser melhores. Íntimo, delicado, sussurrando o primeiro; retumbante e enérgico, mas sempre cantado com requinte, o segundo. Sensacional, refinado e elegante naquela ambiguidade que Chopin lidou tão bem, a Mazurca Op. 30 nº 2. Não faltaria a dose de Rameau e, embora eu não seja um defensor especial dessa música no piano moderno, se houver alguém na terra capaz de reproduzir com essa improvável leveza e clareza a chuva impossível de ornamentos do francês, é precisamente Sokolov, portanto, resta apenas permanecer sem palavras antes da realização espetacular de Le rappel des oiseaux. Novo salto para uma tradução elegante, refinada e poética do Rachmaninov Prelude Op. 32 No. 12, e majestosa conclusão com uma leitura severa e coletiva do coral de Bach Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ BWV 639 no arranjo de Busoni.

O público teria gostado mais, mas a iluminação completa deixou claro que essa “terceira parte” já havia sido concluída. Enquanto isso, continuaremos nos perguntando como é possível para esse homem obter aquele som, essa nuance, essa articulação, esse equilíbrio de vozes. E continuaremos olhando boquiabertos para suas demonstrações contínuas, embora hieráticas, de uma estatura artística tão grande e vigorosa.

[Foto: DG/Klaus Rudoph]

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Zelenka nos tempos do coronavírus

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A Elena diz que eu tenho um esplêndido ouvido, mas hoje…

A Elena diz que eu tenho um esplêndido ouvido, mas hoje…

Bem, botei um CD pra tocar e ela logo perguntou se o Quarteto era o Borodin. É que ela tinha ouvido um solo de violino que lhe sussurrara qual era o Quarteto. Mas era o Quarteto Kopelman. Só que Mikhail Kopelman foi por anos o primeiro violino do Borodin.

Assim eu não brinco mais. 

Mikhail Kopelman

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Ludwig e Elise (e Napoleão)

Ludwig e Elise (e Napoleão)

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Bruckner: A história do inseguro mestre Anton

Bruckner: A história do inseguro mestre Anton

Por José Carlos Fernandes, no Observador.pt
(Copiado aqui só para não perder esta joia).

O maestro Daniel Barenboim gravou pela terceira vez as nove sinfonias de Bruckner. O que tem a música do compositor austríaco que justifique tamanha atenção?

Quem vagueie pelo final da letra B das discotecas, físicas ou online, deparar-se-á com uma apreciável abundância de gravações das sinfonias de Anton Bruckner (1824-1896). Porém, o compositor nem sempre gozou deste prestígio: levou anos a ganhar confiança em si mesmo como compositor e mais anos ainda a afirmar-se no meio musical vienense. Mesmo quando logrou obter algum reconhecimento, nunca deixou de ser alvo de ataques ferozes na imprensa musical, algumas das suas sinfonias foram desfiguradas pelos seus discípulos e outras nem chegaram a ser executadas durante a vida do compositor.

Nos nossos dias, apesar da profusão de gravações, continua a reinar alguma má vontade contra Bruckner entre alguns sectores da crítica, que menoriza as suas obras em termos que raramente são aplicados a outros compositores canónicos.

Um campónio de Ansfelden

Anton Bruckner não partiu de uma posição favorável para vir a ser um grande compositor: foi o primeiro dos 11 filhos de um mestre-escola na vilória de Ansfelden, perto de Linz, e viu sete irmãos morrer na infância; seguiu-se-lhes o pai e Anton, então com 13 anos, foi enviado para o mosteiro de Sankt Florian, onde foi menino de coro e recebeu treino como organista.

Biblioteca do mosteiro de Sankt Florian

Estudou para mestre-escola em Linz e, aos 17 anos, tudo indicava que iria seguir a carreira paterna. O posto de assistente para que foi nomeado em Windhaag sujeitava-o a constantes humilhações do seu superior e era tão mal remunerado que, para equilibrar as finanças, tocava violino e piano nos bailes populares ou desempenhava tarefas mais humildes, como espalhar estrume nos campos agrícolas. As condições eram francamente melhores em Kronstorf, onde esteve em 1843-45, prosseguindo a instrução musical com o organista local. Em 1845, com 21 anos, regressou, como professor de órgão, a Sankt Florian – o mosteiro era afamado por possuir um dos maiores órgãos do mundo, com 103 registos e 7300 tubos. Passaria aí a década seguinte, dividindo-se entre o ensino e o estudo afincado, que lhe permitiu, mediante vários exames, obter qualificações para ensinar a níveis mais elevados.

O maior dos dois órgãos do mosteiro de Sankt Florian, construído em 1770-74 e baptizado em 1930 como “Bruckner Organ”

Após ser nomeado oficialmente organista de Sankt Florian, em 1851, começou a alimentar sonhos mais altos e, a partir de 1855, passou a ir a Viena uma vez por semana para ter aulas com Simon Sechter, um eminente professor de composição (que, por coincidência, fora também o escolhido por Schubert para aperfeiçoar os seus conhecimentos, duas semanas antes de falecer). Em 1856 foi nomeado organista da catedral de Linz e em 1861 fez a estreia pública como maestro, dirigindo uma Ave Maria de sua lavra (a segunda, pois compusera outra em 1856). Nesse mesmo ano, estreou na Catedral de Linz a sua primeira obra de maturidade, a Missa n.º 1.

Este reconhecimento não fez muito para atenuar a sua insegurança: nesse mesmo ano de 1861, deu por terminados os estudos com Sechter, apenas para iniciar novos estudos com Otto Kitzler, primeiro violoncelo da orquestra da ópera de Linz e nove anos mais novo do que Bruckner, que já ia nos 37 anos – o que levaria o maestro Wilhelm Furtwängler a comentar que, com a idade com que “Schubert e Mozart já tinham terminado as suas obras, Bruckner ainda andava a fazer exercícios de contraponto”.

Bruckner continuaria a estudar com Kitzler até 1868.

Mudança para Viena

Só em 1868 resignou ao posto de organista na catedral de Linz e se mudou para Viena, ocupando o lugar de professor no conservatório da cidade, que vagara com a morte de Sechter. Porém, a mudança para Viena esteve longe de corresponder às suas expectativas: o cargo no conservatório era mais mal pago do que o de organista em Linz, o posto de organista da corte não era remunerado e não passava de um título vazio e o posto que almejava na Universidade de Viena foi-lhe sucessivamente negado – só em 1875 acabou por ser-lhe atribuído o cargo de professor de harmonia e composição, mas este trabalho só a partir de 1877 seria remunerado.

Entretanto, após vários anos a produzir exclusivamente música sacra, começara as experiências no género sinfónico: a Sinfonia em fá menor, conhecida hoje também por n.º 00 ou Studiensymphonie, foi composta em 1863, aos 39 anos, como um exercício para Kitzler e raramente é tocada.

A Sinfonia n.º1 foi iniciada em 1865 e estreada em Linz em 1868; mas a confiança vacilou com a sinfonia seguinte, terminada em 1869, mas que Bruckner declarou inválida – só estrearia em 1924 e é conhecida como n.º 0, ou “Die Nullte”.

A n.º 2, dedicada a Liszt e estreada em 1873, foi o primeiro sucesso de Bruckner.

A n.º 3 foi dedicada a Wagner e é referida, por vezes como “Wagner-Symphonie”, apesar de Bruckner ter feito uma “limpeza” das abundantes citações wagnerianas entre a composição, em 1873, e a estreia, em 1877, que foi um fiasco: o público foi abandonando a sala, restando no fim 25 pessoas (entre as quais um rapaz de 17 anos chamado Gustav Mahler), o que levou Bruckner a empreender nova revisão.

A insegurança, motivando sucessivas revisões das partituras, assombrou toda a carreira de Bruckner como sinfonista e nem sempre conduziu a melhores resultados. Quando, duas décadas após a estreia em Linz, Bruckner se dispôs a rever a Sinfonia n.º 1 para uma apresentação em Viena, para agradecer à Universidade a atribuição do grau de doutor honoris causa, o maestro Hermann Levi suplicou-lhe que não alterasse uma nota, mas Bruckner foi em frente – e, todavia, quase todos os maestros de hoje preferem tocar a primeira versão.

Para piorar tudo, três alunos seus – os irmãos Josef e Franz Schalk e Ferdinand Löwe – decidiram tornar a música de Bruckner mais acessível ao gosto médio e prepararam novas edições de várias das suas sinfonias e persuadiram Bruckner a dar-lhes aprovação oficial. Foram estas edições adulteradas que estiveram em uso até à década de 1920, quando os musicólogos as desautorizaram e advogaram o regresso às versões do compositor. Mas este regresso não tem nada de simples, uma vez que Bruckner fizera sucessivas revisões, o que leva a que hoje coexistam diferentes versões de cada sinfonia – esta disputa musicológica divide-se essencialmente entre as edições preparadas pelo musicólogo Robert Haas nos anos 30 e as do seu rival Leopold Nowak nos anos 50, que acusava Haas de ter introduzido alterações a seu bel-prazer, embora existam outras edições, cabendo a cada maestro escolher aquela que entende corresponder mais fielmente às intenções do compositor.

Grandes blocos em bruto

Josef e Franz Schalk e Ferdinand Löwe tinham, no seu limitado entendimento, razões para tentar “normalizar” as sinfonias de Bruckner, pois estas eram diferentes de tudo o que se ouvira até ali. Como escreve Gerald Abraham, em The concise Oxford history of music, “Bruckner orquestrava como o organista que era: por grandes blocos de som, alternando entre naipes orquestrais como se fossem combinações de registos de órgão, incluindo até as pausas de que o organista necessitava para fazer as mudanças de registo”. A vasta arquitectura das suas sinfonia é erguida com blocos ciclópicos, onde os metais desempenham papel proeminente, e caracteriza-se por cortes abruptos, que os Schalk e Löwe tentaram disfarçar, aproximando Bruckner da fluidez wagneriana – ora, Bruckner, embora tivesse uma devoção ilimitada por Wagner não pretendia compor como ele.

Nas duas magras páginas que o guia de música clássica da Third Ear dedica a Bruckner, Stephen Chakwin define-o, certeiramente, como um “Ansel Adams composer”. A analogia que está subentendida é que as sinfonias de Bruckner são o equivalente sonoro das fotos que o fotógrafo americano realizou nas paisagens selvagens do Oeste americano, sobretudo em Yosemite, e que realçam o carácter bravio, inóspito e rude das grandes formações rochosas. As sinfonias de Bruckner estão por lapidar, não porque o compositor não soubesse como o fazer, mas porque as pretendia assim, altaneiras e agrestes como uma cordilheira.

“Moon and Half Dome”, Yosemite Valley, ca. 1950, por Ansel Adams. Um análogo visual da música de Bruckner: austera, escarpada, inóspita e monumental

Mas, ao longo da história da música, bem como das restantes artes & letras, sempre houve e sempre haverá a tendência para as pessoas “sensatas”, sejam eles amigos ou editores, tentarem expurgar, ou, pelo menos, atenuar, o que há de estranho, bizarro e idiossincrático nas obras, tendo, por vezes em mente a adequação ao que imaginam ser os gostos, os interesses e as capacidades intelectuais do seu público, e não percebendo que, ao fazê-lo, descartam o que a obra tem de mais original, vital e duradouro.

No fogo cruzado da “Guerra dos Românticos”

Entretanto, em Viena, Bruckner, apesar de desfrutar de uma situação material mais confortável, caíra inadvertidamente no meio de uma acesa disputa estética que opunha brahmsianos a wagnerianos. Bruckner até começara por estabelecer amizade com Eduard Hanslick, o influente crítico da revista vienense Neue Freie Press, mas a admiração de Bruckner por Wagner nunca poderia ser aceitável para o crítico, de gosto conservador, que defendia Brahms e cujo ensaio Sobre o belo na música (1854) abria com um ataque a Wagner.

Hanslick tinha uma pena vitriólica e escreveu coisas tremendas sobre Bruckner: “Interminável, desorganizada e violenta, a Sinfonia n.º8 alonga-se numa duração detestável […] Não é de excluir que o futuro pertença a esta tenebrosa mixórdia, mas será um futuro de que não quero fazer parte”.

A Sinfonia n.º 3 mereceu-lhe esta definição: “a Sinfonia n.º 9 de Beethoven faz amizade com as valquírias de Wagner e acaba espezinhada sob os cascos dos seus cavalos”.

Max Kalbeck, correligionário de Hanslick e crítico no Wiener Allgemeine Zeitung, comparava, em 1883, a música de Bruckner ao chinfrim de uivos e rosnidos produzido por “matilhas de lobos na Noite de Walpurgis [o equivalente germânico da Noite das Bruxas]” e deixava um vaticínio similar ao de Hanslick: “Se o futuro for este caos musical, que soa como os ecos devolvidos por uma centena de escarpas, espero que esse futuro fique muito longe de nós”.

Gustav Dömpke, outro aliado de Hanslick, escrevia, a 22 de Março de 1886, no mesmo Wiener Allgemeine Zeitung: “Arrepiamo-nos, repugnados com o odor a putrefacção que assalta as nossas narinas e que emana deste contraponto apodrecido. A sua imaginação é tão irremediavelmente mórbida e retorcida que algo como uma progressão de acordes regular ou uma estrutura periódica não existem para ele. Bruckner compõe como um bêbedo”.

O extremar de posições entre wagnerianos e brahmsianos levou Bruckner a suspeitar que Brahms estaria por trás dos ataques desferidos por Hanslick e os seus apaniguados – como se Hanslick precisasse de tal incentivo. Consta que Bruckner terá chegado a pedir ao imperador austríaco que fizesse com que Hanslick deixasse de escrever coisas desagradáveis sobre ele.

Mas a reacção adversa não se cingiu aos brahmsianos nem a Viena e, um pouco por todo o mundo “civilizado” surgiram críticas virulentas a Bruckner. Em 1885, a revista nova-iorquina Keynote reagia assim à estreia da Sinfonia n.º 3: “Causa surpresa que qualquer editor com dois dedos de testa tenha concedido a dignidade da publicação impressa a esta partitura, surpresa só comparável à ideia de punir o público inocente com a sua execução, pois não é possível conceber nada mais inane e cansativo do que esta caldeirada de detritos sortidos […] A orquestração é, de fio a pavio, absolutamente pueril e a ausência de construção sensata ou capacidade inventiva atestam a imbecilidade musical do Sr. Bruckner”.

O também nova-iorquino Tribune, em 1886, descrevia assim a Sinfonia n.º 7: “Polifonia ensandecida […] A linguagem orquestral é uma espécie de volapuk musical […] Um fiasco. Talvez seja julgada bela daqui a 25 anos, mas não é bela hoje. A música abateu-se como chumbo sobre o público, do qual um terço saiu da sala após o II andamento”.

Outro crítico norte-americano viu em Bruckner “a maior ameaça musical viva, um Anticristo tonal […] [A expressão do seu rosto] pode revelar a modesta alma de um banal Kapellmeister, mas tudo o que compõe é alta traição, revolução e assassínio. A sua música pode emanar a fragrância de rosas celestiais, mas está envenenada com o enxofre do Inferno”.

Números, raparigas e cadáveres

Mesmo quem não partilhava de opiniões tão extremadas, tinha escasso apreço pelas sinfonias de Bruckner. A Filarmónica de Viena começou por recusar executar as suas três primeiras sinfonias; a Sinfonia n.º 4 foi bem recebida, mas a n.º 5 (completada em 1878) só foi executada, numa versão mutilada por Franz Schalk, em 1894, numa ocasião a que Bruckner não pôde assistir, devido às enfermidades que o atormentaram nos últimos anos de vida.

 Sinfonia n.º 6, terminada em 1881, só seria estreada em 1899 (em mais uma versão abastardada), após a morte do compositor. A estreia da n.º 7, sob a direcção de Hermann Levi, foi um sucesso, mas o maestro não ficou agradado com a Sinfonia n.º 8 e foi arranjando pretextos para não a estrear, o que conduziu o compositor a um esgotamento nervoso. Levi transferiu a responsabilidade da estreia para um seu protegido, Felix Weingartner, que voltou a adiar sucessivamente a execução da obra – a estreia só teve lugar a 18 de Dezembro de 1892, sob a direcção de Hans Richter, e embora parte do público tenha deixado a sala, acabou por ser bem acolhida.

Se muitas das resistências a Bruckner no meio musical vienense resultavam da incompreensão da sua música, o carácter do compositor também não ajudava. A vida no meio cosmopolita, as viagens pela Europa (para ouvir óperas de Wagner em Bayreuth, ou dar recitais de órgão em França e em Londres) e o convívio com figuras como Wagner e Liszt pouco fizeram para lhe abrir a sua mentalidade provinciana ou libertá-lo do sotaque rural. As suas roupas eram deselegantes e provincianas e assentavam-lhe mal e as suas competências sociais eram limitadas. Quando Hans Richter ensaiava a sua Sinfonia n.º 4, Bruckner não encontrou melhor forma de exprimir o seu orgulho e satisfação do que meter à força uma moeda na mão do maestro, para que fosse beber uma cerveja à sua saúde.

A sua profunda fé católica assumia frequentemente a forma de beatice: se a meio de uma aula de contraponto, ouvia soar o Angelus numa igreja, ajoelhava-se para rezar, para perplexidade dos alunos.

Seria um eufemismo descrever como “desajeitado” o seu relacionamento com o sexo feminino: Bruckner tinha uma fixação em raparigas adolescentes, mantendo nos seus diários uma longa lista daquelas que lhe agradavam; porém, as suas intempestivas propostas de casamento conduziam invariavelmente à recusa e ao afastamento (numa ocasião os avanços feitos a duas alunas foram tão intrusivos que acabou por ser alvo de um processo disciplinar – a partir de então passou a ensinar só rapazes). Embora tenha continuado a propor casamento a adolescentes para lá dos 70 anos, acabou por permanecer solteiro – a única resposta positiva que obteve veio de uma empregada de quarto de hotel de Berlim, que acabou por recuar perante a exigência de conversão ao catolicismo imposta por Bruckner.

A obsessão de Bruckner por raparigas só tinha par na sua “numeromania”: contava sistematicamente tudo o que se lhe deparava, folhas de árvores, janelas de casas, cataventos em telhados e compassos em partituras. Embora os diagnósticos a esta distância no tempo sejam falíveis, parece certo que sofria de uma desordem obsessivo-compulsiva.

Com a idade, a necromania veio juntar-se ao catálogo de obsessões: vasculhava os jornais em busca de notícias sobre homicídios e execuções, fez fotografar o cadáver da mãe e colocou no seu gabinete a foto da falecida, que, em vida, não tivera direito a tal atenção. Ia a funerais de pessoas que não conhecia e quando, em 1868, o corpo embalsamado do Imperador Maximiliano regressou a Viena (fora executado no México) para ser sepultado, Bruckner não faltou à cerimónia.

Corpo embalsamado de Maximiliano I do México, foto de François Aubert

O mesmo aconteceu quando os restos de Beethoven e Schubert foram trasladados para o cemitério central de Viena (há relatos de que terá acariciado e beijados os seus crânios e que na excitação para o fazer terá deixado cair uma lente do seu pince-nez para dentro do caixão). Não é de estranhar que tenha deixado instruções para ser embalsamado após a morte.

Desde novo que Bruckner sofria de “melancolia” – aquilo a que hoje se chamaria depressão – a ponto de por várias vezes ter considerado o suicídio. Numa carta a um amigo confessava “um sentimento de completo abandono e perda […] Vivo em permanente frustração e sou demasiado sensível”. Os banhos frios nas termas de Bad Kreuzen não atenuaram estas inclinações, que foram agravando-se com a idade.

Em 1891 começou a compor a Sinfonia n.º 9, mas o esgotamento nervoso causado pelos adiamentos da estreia da n.º 8, ao longo de 1892, desgastou a sua saúde física e mental. As mãos tremiam-lhe tanto que muito do tempo que passava à secretária, a compor, eram gastos a limpar os borrões que se iam multiplicando. Estava consciente de que não lhe restava muito tempo. “Será a minha última sinfonia […] Só peço a Deus que me deixe viver até a terminar”. Quando Mahler o visitou, confidenciou-lhe: “Tenho que acabá-la, ou então farei uma triste figura quando comparecer perante o Criador e ele me perguntar. ‘Então, meu rapaz, o que fizeste com o talento que te concedi para que me cantasses e glorificasses? Até agora vi poucos resultados’”.

Bruckner morreu em 1896, com 72 anos, e foi sepultado em Sankt Florian, perto do órgão de que fora titular. Deixou incompleta a Sinfonia n.º 9, que só estreou em 1903, em mais uma versão adulterada pelos seus alunos. Apesar de várias tentativas para reconstruir um IV andamento a partir dos esboços deixados pelo compositor, a obra é hoje executada com apenas três andamentos. A ideia de substituir o IV andamento pelo Te Deum (composto em 1884), que alguns autores atribuem a Bruckner, é destituída de sentido e não é praticada.

A discografia das sinfonias (em 2017)

A partir da década de 1960, as sinfonias de Bruckner têm vindo a despertar a atenção de maestros, orquestras, editoras e salas de concertos. Há gravações integrais das nove sinfonias (esporadicamente também da n.º 0 e da n.º 00) por:

Riccardo Chailly & Deutsches Symphonie-Orchester Berlin (Decca, gravações de 1985-2002);

Bernard Haitink & Concertgebouw Orchestra (Philips/Decca, 1963-1972);

Eliahu Inbal & Orquestra Sinfónica da Rádio de Frankfurt (Teldec/Warner);

Herbert von Karajan & Filarmónica de Berlim (Deutsche Grammophon, 1975-1980), antecedido de um ciclo incompleto com a Filarmónica de Berlim (EMI/Warner) e seguido por outro ciclo incompleto com a Filarmónica de Viena (Deutsche Grammophon);

Georg Solti & Orquestra Sinfónica de Chicago (Decca, 1979-1995);

Stanislaw Skrowaczewski & Orquestra Sinfónica da Rádio de Saarbrücken (Oehms Classics);

Georg Tintner & Real Orquestra Nacional Escocesa ou Orquestra Sinfónica Nacional da Irlanda (Naxos);

Günter Wand & Orquestra Sinfónica da Rádio de Colónia (RCA/Sony, 1974-1981), mais ciclos incompletos com a Filarmónica de Berlim (RCA/Sony) e com a Orquestra Sinfónica da Rádio do Norte da Alemanha (RCA/Sony).

Somam-se a este acervo gravações parciais por Karl Böhm (Decca), Sergiu Celibidache (EMI/Warner), Christoph von Dohnányi (Decca), Carlo Maria Giulini (Deutsche Grammophon), Otto Klemperer (EMI/Warner) e, em instrumentos de época, Philippe Herreweghe (Harmonia Mundi). E isto para nos ficarmos só por maestros de primeiro plano.

Eugen Jochum, um dos mais eminentes brucknerianos, gravou mesmo o ciclo integral por duas vezes: primeiro com a Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks (Orquestra Sinfónica da Rádio Bávara) e a Filarmónica de Berlim (Deutsche Grammophon, 1958-1967) e depois com a Staatskapelle Dresden (EMI/Warner, 1975-1980).

O maestro e pianista israelita (nascido na Argentina) Daniel Barenboim foi mais longe: depois de gravar as nove sinfonias com a Orquestra Sinfónica de Chicago (Deutsche Grammophon, 1972-1981) e com a Filarmónica de Berlim (Teldec/Warner, 1990-1997), voltou à carga com a Staatskapelle Berlin, em concertos ao vivo realizados em 2010 (Sinfonias n.º4-9, na Philharmonie de Berlim) e 2012 (Sinfonias n.º1-3, no Musikverein de Viena). O registo começou por estar disponível apenas sob a forma de download, através da Peral Music, a editora digital fundada por Barenboim, e cujo nome alude ao seu nome de família – Barenboim vem do alemão Birnbaum, que significa “pereira”.

Esta terceira integral foi agora disponibilizada em formato físico pela Deutsche Grammophon, sob a forma de uma caixa com nove CDs.

O registo das Sinfonias n.º 4-9, na Philharmonie de Berlim, em seis noites consecutivas de Julho de 2010, foi editado em formato vídeo (DVD ou Blu-ray) pela Accentus Music (como caixa de seis discos ou como discos isolados).

Apesar de nem sempre ser fácil estabelecer comparações entre leituras, devido ao recurso a diferentes edições (Haas, Nowak, etc.), é audível que a abordagem de Barenboim tende a polir e homogeneizar o som, atenuando os contrastes abruptos, efeito que é reforçado por uma imagem sonora um pouco difusa.

Os naipes da Staatskapelle Berlin soam perfeitamente integrados, o que alguns verão como positivo, mas que poderá parecer menos apelativo a quem entenda que as arestas e rugosidades são parte essencial das sinfonias de Bruckner e que os metais devem soar claramente recortados contra a restante textura orquestral.

Solti, Karajan e Jochum são, em geral, mais acutilantes e dramáticos nos trechos mais agitados, mas Barenboim oferece excelentes leituras dos trechos mais serenos. Nos finais das Sinfonias n.º 2 e n.º 6, Karajan é mais trágico e exaltado. No I andamento da n.º 4, Jochum & Staatskapelle Dresden oferece mais ênfase e articulação mais definida, embora no andamento seguinte as diferenças se esbatam.

Na n.º 8, a mais longa e imponente das sinfonias, Barenboim oferece uma leitura algo desvitalizada e flácida.

Tratando-se da terceira incursão nestas obras, esperar-se-ia que Barenboim tivesse algo de novo para revelar, porém traz-nos apenas mais uma interpretação de bom nível, que dificilmente se imporá como alternativa às versões de referência já existentes. Todavia, poderá ser apelativo para quem ache que as sinfonias de Bruckner soam melhor se forem amaciadas e polidas.

Um retrato de Bruckner

Para línguas de anjos

Salvo um quinteto de cordas composto em 1879 e mais uma ou outra peça ou fragmento de música de câmara escrito como exercício durante a sua longa aprendizagem, a obra de Bruckner resume-se às sinfonias e à música sacra. Esta consiste em oito missas (incluindo um Requiem), um Te Deum e meia centena de motetos e salmos, mas parte das missas e motetos são obras “de aprendizagem” ou “de circunstância”, que raramente são tocadas.

A Deutsche Grammophon reeditou há poucos meses uma caixa económica com as gravações realizadas por Eugen Jochum com o Coro e a Orquestra Sinfónica da Rádio Bávara ou com o Coro da Deutschen Oper de Berlim e a Filarmónica de Berlim, entre 1965 e 1972.

Os quatro CDs contêm o essencial das obras sacras da maturidade de Bruckner, que correspondem às obras que se implantaram no repertório corrente: as Missas n.º 1 (1864), n.º 2 (1866) e n.º 3 (1867), uma dezena de motetos e salmos (os mais consagrados, como Locus isteOs justi ou Vexilla regis) e o Te Deum.

A música sacra de Bruckner é mais convencional do que as suas sinfonias, mas nem por isso as três missas “de maturidade” e o Te Deum deixam de estar entre o que de melhor se produziu no género no século XIX.

Te Deum começou a ser composto em 1881 e concluído em 1884 e foi dedicado “à glória do Senhor”, em jeito de acção de graças pelo sucesso alcançado pela sua Sinfonia n.º 4. Foi estreado em versão integral, com orquestra, apenas em Janeiro de 1896 (foi a última vez que Bruckner assistiu à execução de uma obra sua) e o autor tinha-o em grande apreço – “se apresentar a partitura do meu Te Deum ao Criador, ele julgar-me-á com benevolência”. O musicólogo Jean Gallois dizia ser o Te Deum “a obra bruckneriana por excelência” e Mahler, que a dirigiu várias vezes, riscou, no seu exemplar da partitura, a indicação “Para coro, solistas e orquestra” e escreveu “Para línguas de anjos, bem-aventurados, corações atormentados e almas pacificadas pelo fogo”.

Estas versões de Jochum têm sido o padrão pela qual as outras têm sido avaliadas, mas, face ao padrões actuais de qualidade sonora, deixam algo a desejar. Salvo o Te Deum, registado na acústica generosa da Jesus-Christus Kirche, de Berlim, soam secos, baços e distantes.

O problema é mais notório nos motetos, que resultam morosos, sem detalhe e sem vida, sobretudo quando postos em confronto com o CD inteiramente preenchido com motetos de Bruckner gravado pelo Coro da St. Mary’s Cathedral, de Edimburgo, com direcção de Duncan Ferguson, para a Delphian.

A abordagem de Duncan, com um coro muito mais pequeno, as partes de soprano confiadas a crianças (rapazes e raparigas) e a vantagem de uma acústica reverberante, traz uma frescura e intensidade que faz a versão de Jochum soar amarelecida e murcha.

Também nas missas Jochum enfrenta hoje concorrência séria, de Matthew Best (Hyperion) e, mais ainda, de Philippe Herreweghe (Harmonia Mundi).

Embora não tenham envelhecido tão bem como os dois registos integrais das sinfonias, os registos de música sacra por Jochum para a Deutsche Grammophon não deixam de ter méritos, nomeadamente um bom leque de solistas, em que avultam Edith Mathis, Maria Stader, Ernst Haefliger ou Karl Ridderbusch, e o baixo custo.

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A cerveja de hoje

A cerveja de hoje

Vai ser difícil comemorar o aniversário de Bach enquanto Boçalnato estiver no poder. Vou tomar uma cervejinha discreta daqui a pouco. Afinal, JSB não apenas somente adorava cerveja como a produzia em grande quantidade. Parabéns, mestre, 335 anos não são nada pra ti.

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Bach é Deus, de Sheila Blanco

Bach é Deus, de Sheila Blanco

A letra de Bach es Dios — cantada sobre a Badinerie da Suíte para Orquestrs Nº 2 — é da própria cantora Sheila Blanco. Confiram aí:

Cuando se habla de composición,
hay muchos autores que merecen un programa:
Mozart, Beethoven, Chopin, Debussy,
todos ellos son irrepetibles.

Pero hay uno que es inigualable
porque su legado musical es colosal.

Es barroco, fastuoso, espiritual, indescriptible,
es la música de Dios, Johann Sebastian Bach.

Si tú te fueras a Marte a vivir,
llévate contigo la pasión de San Mateo.

Si necesitas relax y fluir,
escucha las variaciones Goldberg
y los conciertos de Brandenburgo.

No olvides la Suite número 2 menor en Si,
que te atrapa, te subyuga, te ilumina,
te sublima, te alucina, terminando este Badinerie.

¡Qué tío currante que fue Mister Bach!
todo el día compone que compone,
pero ahí no acaba la cosa ¡no, no!

Además de componer y 20 hijos tener,
fue cantor, clavecinista, violinista, organista y violista
y alemán y luterano.

Pero lo más loco de su historia
es que cuando murió J.S.
su inmenso legado
quedó sepultado
y tuvo que llegar Felix Mendelssohn
a hacer valer la obra de Juan Sebastián Bach
y construir casi de cero su reputación.

Hace ya más de tres siglos nació
y sus obras se escuchan cada día.

¡Qué habría hecho Bach con un buen Instagram!
Si en el XVII hubiera habido internet,
Bach tuiteando sus partitas, más retuits que Rosalía,
y con su peluca blanca de youtuber.

Si estás cansado del reguetón,
escucha a Bach y pon atención,
en sus corcheas
y semicorcheas
está la historia de nuestra Humanidad.

No pierdas el tiempo y vete a disfrutar,
si hubo alguna vez un Dios fue Juan Sebastian Bach.

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“A crítica deve ser parcial, política e apaixonada.” — Baudelaire

“A crítica deve ser parcial, política e apaixonada.” — Baudelaire

No último sábado, li num importante jornal — importante em âmbito mundial — uma resenha onde o cara utilizava envergonhadamente o pronome pessoal “eu”. Estava ali, nada escondido, até repetido. Aconteceu da argumentação ter sido concatenada de tal forma que ficaria estranho e desonesto escapar do “eu”. O editor deixou passar. Eu acho saudável por dois motivos. Primeiramente porque as avaliações são mesmo pessoais; em segundo lugar por que o texto não adquire aquele ar de lei. Crítica é opinião. Tem o valor de uma opinião. Usar a primeira pessoa é modesto e honesto.

Já certo editor de um jornal cultural — de obscuro âmbito internético — , me deu uma mijada quando fiz o mesmo. Não guardo ressentimentos, mas se rir do fato é guardar ressentimento, guardo sim!

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2020: o ano Beethoven, uma introdução

2020: o ano Beethoven, uma introdução

2020 é o ano Beethoven (1770-1827). Ele foi batizado em 17 de dezembro de 1770. O ano de nascimento é indiscutível, mas ele deve ter nascido uns dias antes do dia 17.

Depois de uma curta estada em Viena em 1786-1787, o compositor fixou-se na capital austríaca em 1792, onde veio a falecer em 1827, com 56 anos. A música de Mozart (1756-1791) influenciou muito a de Beethoven, mas em Viena, ele foi aluno de outro compositor, Haydn (1732-1809), alguns anos mais velho que Mozart. As aulas foram interrompidas por uma crítica do professor, porém ambos sempre se respeitaram. Aliás, o trio Haydn-Mozart-Beethoven são as três joias vienenses e, de diferentes formas, todos se influenciaram mutuamente do ponto de vista musical.

Não é acaso que Viena tenha sido o local onde tantos compositores surgiram para o mundo. Lá, sempre houve um mecenato atuante e organizado. Viena era pura música no final do século XVIII e início do XIX. Foi a cidade que comandou a transição do Classicismo — que interrompe o Barroco —  e o Romantismo musical. Então, se Haydn tem raízes no Barroco, Beethoven já entra pelo Romantismo. Aliás, também em Viena, ainda havia o genial Schubert (1797-1828) já com os dois pés no romantismo.

É complicado e, para nossa sorte, ocioso, definir onde Beethoven foi maior. Nas sinfonias, nos quartetos, nos concertos, nas sonatas para as mais diversas formações? Pode escolher, meu amigo. A recente edição da Deutsche Grammophon de suas obras completas traz 118 CDs, 2 DVDs e 3 BDs, com mais de 175 horas de música. Parece muito, mas fica aquém de Bach (153 CDs), Haydn (160 CD) e de Mozart (200 CD). Se Beethoven compôs nove sinfonias (deixou apontamentos de uma décima), Haydn compôs 104 e Mozart 40 (sim, não há uma Sinfonia Nº 37). OK, as sinfonias de Beethoven eram muito mais complexas e às vezes incluíam programas, mas mesmo assim a diferença numérica espanta.

Beethoven foi imenso. No final de sua vida, afirmava escrever para o futuro. Tinha razão. Seus últimos quartetos e sonatas são um aceno e uma direção para o que viria um século depois. É um compositor incontornável, tem de ser estudado e ouvido por quem se dedica à música ou não. Foi um homem atarracado e, dizem, muito feio. Claro que os gravuristas lhe deram uma mãozinha, principalmente na cabeleira rebelde. Mas não se enganem, ele tem o tamanho de um Shakespeare ou de um Homero.

Aproveitemos esses últimos anos de nosso planeta com ele. Não há muita coisa melhor para fazer.

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