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Quando vi Gritos e Sussurros pela primeira vez, tinha quinze ou dezesseis anos. Nunca pude esquecer a atmosfera do filme, o monte de coisas inéditas que ele me apresentava e meu choque à saída do velho Avenida. Sentia um misto de entusiasmo pela realização de uma obra daquele porte e de amargor pelo realismo do filme. Era como se me dissessem finalmente: “o cinema pode ser algo mais interessante do que tu pensas”. Me deem um desconto, não tinha visto nada parecido antes.
É um filme sobre duas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann) que temem, lamentam e ao mesmo tempo desejam a morte da terceira irmã Agnes (Harriet Andersson). Como quarta personagem principal, há a devotada criada de Agnes: Anna (Kari Sylwan). Improvisando, vou tentar colocar em tópicos fingidamente organizados o que penso sobre o filme depois de tê-lo visto muitas vezes.
As cores. Basicamente, há apenas três cores em Gritos e Sussurros: o vermelho das paredes e o branco e preto que as mulheres vestem. Ou seja, um filme que retrata a morte, o amor, o sexo e o ódio, passa-se em uma casa de paredes e chão vermelhos. Bergman disse não saber exatamente o motivo, afirmou que talvez fosse porque imaginava vermelhas as paredes do útero, assim como as da alma. Deve haver alguma verdade no senso comum que considera tal cor a representação da paixão e da raiva. O que interessa dizer é a saturação de vermelho no filme me hipnotiza, deixando-me apreensivo desde o lento início do filme.
O rosto é o palco. Bakhtin escreveu que o diálogo é o real habitat das ideias, é o local onde elas se transformam e que a mera expressão de uma ideia já bastaria para a alterar. Isto demonstra a importância da interação num mundo polifônico onde nada pode ser visto isoladamente. Bergman prova que o habitat da emoção do ator é seu rosto, fazendo com que vejamos a tela cheia de enormes rostos que falam e, principalmente, ouvem, reagindo à palavras quase sempre antagônicas. A câmara está sempre muito perto, mostrando bocas, ouvidos e olhos. A propósito, notem o título de alguns filmes de Bergman: “O Rosto” (Ansiktet), “Face a Face” (Ansikte mot ansikte) e “Persona” (máscara em grego). O homem era fascinado por rostos! O escritor Fernando Monteiro — imenso admirador de Bergman — reivindica para Joseph von Sternberg a compreensão da força da face humana na tela. Sternberg chegou a escrever: “O cinema é a ARTE DO ROSTO”.
A seguir, elas falarão de suas infâncias.
O ódio e o afeto. A agressividade permanece em estado de latência por grande parte todo o filme, apenas explodindo aqui e ali. Mesmo o momento em que Karin e Maria se acarinham é resultado de lembranças invocadas durante a reparação a mais uma briga. Agnes é dócil e solitária enquanto suporta a doença que a vencerá, Anna é a criada fiel, amorosa e adequada à resignação de Agnes, Karin é ressentida e insatisfeita e Maria é fútil e não tem por hábito sentir remorsos. Deus é silencioso e invisível como sempre e até o pastor acaba confessando sua falta de fé: “Encomendo-a a Deus para livrá-la da angústia causada por esta terra sombria e suja, onde vagamos sob um céu vazio e cruel”.
O puro ódio. A cena em que Karin mutila seu sexo com um caco de vidro — do copo que ela antes quebrara durante uma refeição nada interessante com o marido –, passando após o sangue em seu rosto… Bem, não preciso continuar.
O filme baseia-se no mundo feminino e mais. Os homens são inteiramente inúteis. O médico e o pastor falham em sua tentativa de oferecer qualquer conforto à Agnes e os maridos de Karin e Maria não compreendem suas necessidades emocionais. Mas elas também não são apresentadas como anjos. Todas, talvez à exceção de Anna, são autênticos monstros. Agnes tem uma doença inexorável que a devora internamente; Karin odeia e odeia; Maria leva seu marido à tentativa de suicídio com suas traições e Anna falha com sua filha biológica e com Agnes, apesar do toda sua capacidade de doação. Ou seja, o filme é uma representação de pessoas normais.
As cenas clássicas. Agnes — já morta, em cena assustadora — chama Karin e Maria, sendo recusada por ambas; então Anna a abraça em imitação à Pietà de Michelangelo (abaixo). A seqüência em que Karin a Maria rememoram sua intimidade quando crianças (foto com legenda), tocando uma à outra e o final do filme são absolutamente inesquecíveis (última foto).
A câmera, o tempo e a música. A posição da câmera sempre fragmenta o corpo de Agnes ou a flagra em posições desconfortáveis, sugerindo a doença que destrói seu corpo ao longo do tempo, mostrado em vários relógios na sua faina de registrar o tempo passado. Ouçam as raras intervenções musicais, dedicadas a Bach (com Pierre Fournier, como lembrou Moacy Cirne) e Chopin, plenas de significação.
A fotografia do mestre Sven Nykvist: desnecessário comentar.
Finalizando, diria que Gritos e Sussurros é uma obra de extrema audácia dentro de uma estrutura clássica. Até mesmo a cena final, quando Anna abre o diário de Agnes e lê em voz alta um trecho sobre os tempos de felicidade das irmãs, acompanhado das imagens da foto abaixo, isto é, inclusive no único momento em que saímos da atmosfera de claustro do filme, a sensação é de estranheza, por tudo o que aconteceu antes. A presença da belo e rápido final, por mais convencional que nos pareça, causa espanto.
Não há quase mais cinemas de rua em Porto Alegre. Todos os cinemas se internaram em shoppings. À noite, não se vê mais placas luminosas com letras quase sempre tortas ou faltantes anunciando filmes. Além, disto, os cinemas reduziram seu tamanho. Já faz tempo que desapareceram aquelas imensas salas em que funcionários com lanterninhas nos indicavam os lugares livres depois de iniciar a sessão. O VHS, a televisão, o DVD, o Now, o Netflix, a pandemia e o streaming, aliados à falta de espaço, de tempo e de charme transformaram nossas salas em coisas diminutas.
Mas a época do Marabá era diferente. O Marabá era um cinema que ficava em um bairro contíguo ao centro da cidade. Ou no bairro mais próximo a ele, se considerarmos que nosso centro é, na verdade, uma ponta enfiada no rio-lagoa-estuário Guaíba. O Marabá não tinha nenhum charme, não era frequentado por mulheres elegantes que deixavam rastros não de ódio, mas de perfume, atrás de si. Essas iam a outros lugares. Nenhuma surpresa nisto, pois o Marabá, fora construído para passar reprises e porcarias. Os filmes mais artísticos que lá vi foram as obras-primas kitsch de Jack Arnold: O Monstro da Lagoa Negra, O incrível homem que encolheu e — como esquecer dos gritos da mocinha? — A Revanche do Monstro. O enorme cinema ficava na rua Cel. Genuíno, 210, próximo à Av. José do Patrocínio. Só que, um dia, cansado de tanto passar filmes ruins, alguém de lá enlouqueceu e começou a passar somente grandes filmes em programas duplos. Eram apenas duas sessões — uma iniciava às 14h e outra às 20h — mas, meus amigos, que sessões! Um belo dia, estando eu na casa dos quinze anos, abri o jornal e li que o Marabá passava A Noite, de Antonioni, e Viridiana, de Buñuel, em seu programa duplo. Talvez a nova geração desconheça a expressão “programa duplo”. É o seguinte: semanalmente, eram apresentados dois filmes com um pequeno intervalo no meio para irmos ao banheiro e ao bar comprar balas, fumar, conversar, beber, namorar ou simplesmente esticar as pernas. Só que os programas duplos apresentavam normalmente filmes pornográficos ou de pancadaria. Nunca coisas daquele calibre.
Eu e um bando de loucos por cinema começamos a acorrer ao lúgubre Marabá. Aposentados e desocupados também pagavam o ingresso baratíssimo do cinema não muito limpo. Grupos de estudantes vinham ver e rever filmes enquanto matavam aulas. Minha sessão habitual era a das 14h. Formávamos uma peculiar fauna de jovens secundaristas, universitários, velhos e desempregados. Lembro de ter saído muitas vezes rapidamente de casa, batido a porta, lembro de pegar e pagar o ônibus, de parar nas imediações do centro e de correr como Catherine, Jules e Jim (ou Lola, para os mais jovens) em direção ao cinema. Comigo, chegavam outros esbaforidos. Trocávamos um cumprimento rápido e entrávamos. Comigo, muitas vezes veio Maria Cristina, minha primeira namorada. Quando víamos os filmes pela primeira vez, não protagonizávamos grandes cenas de amor nas poltronas desconfortáveis de encosto de madeira, deixávamos para fazer isto no corredor do edifício onde ela morava, na rua Santana. No máximo, trocávamos alguns beijos apaixonados no intervalo — afinal, estávamos ali pelo cinema. Porém, quando conseguíamos ir duas vezes na mesma semana, a segunda tarde era dedicada quase que inteiramente ao amor. Foi numa cadeira do Marabá — ou em duas, mais precisamente — que minhas mãos e boca tiveram seu primeiro contato com o seio feminino. Inesquecível. Não entrarei em detalhes sobre tudo o que fiz pela primeira vez no Marabá, mas não exagerem na imaginação, pois nossa primeira relação sexual, a minha e a dela, ocorreu numa noite, atrás do sofá da sala de sua casa… Voltemos ao cinema.
Depois vieram outros programas duplos. Houve Gritos e Sussurros (Bergman) e Amarcord (Fellini), Jules e Jim (Truffaut) e Ascensor para o Cadafalso (Malle), O Mensageiro (Losey) e Petúlia, um Demônio de Mulher (Lester), Janela Indiscreta e Um corpo que cai (ambos de Hitchcock), Cidadão Kane e A Marca da Maldade (ambos de Welles), Paixões que alucinam (Fuller) e O Sétimo Selo (Bergman), O Magnífico (de Broca) e A Malvada (All About Eve, de Mankewicz), West Side Story (Wise-Robbins) e O Criado (Losey), e, comprovando que a loucura tomara conta do programador, houve Andrei Rublev (Tarkovski) e Acossado (Godard), evento que deixou nossas bundas quadradas por longo tempo. Em 1975, após um programa duplo que apresentava Contos da Lua Vaga (Mizoguchi) e Morangos Silvestres (Bergman), comecei a ter aulas à tarde e a estudar para o exame vestibular. Planejava voltar ao Marabá quando entrasse na universidade, em 1976. Só que, neste ínterim, o Marabá morreu para virar garagem. Sim, após Dillinger está morto (Ferreri) fazer dupla com Um Caso de Amor ou O Drama da Funcionária dos Correios (Makavejev) começou a demolição. Ou seja, a glória do Marabá, um cinema de 1800 lugares fundado em 1947, foi sua agonia, a agonia de um querido dinossauro.
Não há mais cinemas de rua em Porto Alegre e também não há nenhuma cinemateca alucinada e radical como o Marabá. Quando as salas menores pareciam ter o poder de reabilitar para nós a gloriosa história do cinema, algo as trouxe para a isonômica mediocridade dos blockbusters. Resta-nos ver os filmes em nossa casa, às vezes na cama, podendo a sessão ser interrompida pelo telefone ou pela campainha da porta. Apesar das imagens perfeitas, não há o ritual de ir ao cinema, nem a sala escura onde somos ininterrompíveis, nem — perversão minha — o divino cheiro de mofo do Marabá, hoje substituído pela fuligem dos automóveis e pelos gritos dos manobristas.
E então vemos esta mulher de delgada e interessante silhueta sob uma roupa leve…
…e não conseguimos acreditar na frase da foto abaixo.
Timidez? Olha até pode ser. Mas Eva Green não desaponta ninguém.
Ops!
Você fica desapontado ou desconcertado com ela?
Mais para o desconcertado e atraído, não?
Só para variar, ela é francesa, filha da atriz Marlène Jobert com um dentista sueco.
Na verdade, ela é loira e resolveu ser atriz ao ver Isabelle Adjani em A História de Adèle H., de François Truffaut, aos 14 anos. Então, pintou os cabelos como os de Isabelle.
Nos créditos de Os Sonhadores, de Bertolucci — uma grande estreia! –, ela figura…
…como co-autora do roteiro. E considera-se uma nerd, outro equívoco.
Seu filme favorito é Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman.
E é fã dos diretores François Truffaut, Ingmar Bergman, Lars von Trier e David Lynch.
Mas, apesar de seus gostos, atualmente costuma estrelar maus filmes americanos.
Dão $, claro. O destino das novas estrelas europeias é fazer filmes com diretores…
…sem personalidade. Green, Eva Green, Bond girl.
Sabemos que um dia, se quiser ficar na história, voltará a fazer bons filmes.
Isto é necessário para que possamos — sem achar que estamos perdendo tempo –, …
… conviver com este verdadeiro sorvedouro de olhares.
Né?
Post de fevereiro de 2008, totalmente recauchutado.
AUTO-AJUDA ENTRE SEMIDEUSES E A CAIXINHA BERGMAN. Tenho desmedida admiração por Ingmar Bergman e Johann Sebastian Bach. O que não sabia, até anos atrás, era da admiração que Bergman nutria pelo alemão. Nos livros do diretor sueco, há referências diretas a Bach. Não são observações triviais ou meramente elogiosas, são observações de profundo conhecedor, de alguém que estudou inclusive o complexo simbolismo numérico que perpassa várias obras.
Ele diz ter utilizado a música de Bach nas cenas mais importantes de seus filmes ou, pelo menos, naquelas em que achava que a atenção do espectador pudesse ser dividida com a música. A escolha era quase sempre entre Bach ou o silêncio. No livro “Lanterna Mágica”, Bergman transcreve uma longa conversa que teve com o ator Erland Josephson. Nela, nos revela que, nos momentos de maior desespero, costuma contar para si mesmo uma história vivida por Bach.
Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase que serve para consolar Bergman: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.
Bergman escreve em A Lanterna Mágica:
Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim, repito no meu íntimo.
Às vezes eu, o limitado e ateu — tal como Bergman — Milton Ribeiro, repito esta frase. Ela me emociona, me acalma e me faz pensar que minha alegria ainda está ali comigo, tem de estar. É um grito infantil que reconheço facilmente e que ainda não me abandonou.
Deve ter sido um íntimo grito infantil o que bradei quando vi uma caixa com 4 filmes de Bergman à venda na videolocadora. Fiquei louco e arrematei O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, A Fonte da Donzela e Gritos e Sussurros. São filmes que conheço quase cena a cena. Só não entendo uma coisa: por que a caixa traz 3 filmes do final da década de 50 e um filme de 71? Por que esta confusão? Ao final dos 50, Bergman fez 5 filmes de enfiada que são a maior seqüência que um cineasta já realizou:
1955: Sorrisos de uma Noite de Verão,
1956: O Sétimo Selo,
1957: Morangos Silvestres,
1958: O Rosto e
1959: A Fonte da Donzela.
Então, por que tirar 2 e substituí-los por Gritos e Sussurros? Gritos está entre os meus 10 mais de todos os tempos, mas qual a razão desta falta de critério? Poderiam ter feito outra caixa com, por exemplo:
Gritos e Sussurros (1971),
O Ovo da Serpente (1976),
Sonata de Outono (1977),
Da Vida das Marionetes (1979),
Fanny e Alexander (1981) e
Infiel (que foi dirigido por Liv Ullmann mas possui texto, cor e pedigree deste grupo de filmes bergmanianos).
E outra com os muito citados e pouco vistos:
Através do Espelho (1961),
O Silêncio (1962),
Persona (1965),
A Hora do Lobo (1966) e
A Paixão de Ana (1968).
Chega de delírios!
INDICAÇÃO DE FILME BOM. Quero elogiar um tremendo filme. Trata-se Reconstrução de um Amor, criativa tradução de Reconstruction, filme dinamarquês de 2003, dirigido por Cristoffer Boe. A sinopse do filme nos leva a pensar em algo já visto: “Homem e mulher se conhecem e tentam se desvencilhar de seus relacionamentos para ficarem juntos.” O inédito do filme são os artifícios utilizados na montagem. Não pretendo estragar o prazer de ninguém, mas prestem atenção à voz do narrador quando ele diz: “Tudo aqui é montagem, mas mesmo assim dói”. Alguns comentaristas compararam o papel do escritor que há no filme (representado pelo ator Krister Henriksson) com alguns personagens de Bergman. Pode ser… É, talvez não tenha sido tão casual o fato de eu ter lembrado tanto do velho Ingmar nos últimos dias…
Pegamos o vôo para Roma pela Ibéria, já acostumados ao mau tratamento e aos atrasos da empresa. Chegamos às 22h ao aeroporto de Fiumicino e o amigo da Claudia, Mario De Cristoforo, já estava nos esperando. Ele me perguntou se eu já conhecia Roma e, ouvindo minha resposta negativa, propôs a seu colega Pedro, que dirigia o carro, um rápido tour pela cidade. Senti-me protagonizando a cena final de Roma de Fellini, na qual um grupo de motociclistas percorrem alucinadamente a cidade, passando — e não poderia ser diferente, porque a cidade é um museu a céu aberto — por vários de seus monumentos históricos. Vimos o Altar de Pátria, o qual foi descrito por Pedro como um horror criado por Mussolini (verdade); paramos em frente ao Coliseu, muito bonito e fantasmagórico à noite; e vi ruínas, ruínas, ruínas por todo o lado, as quais vão sendo sistematicamente cuidadas, recolhidas e remontadas. Percorrendo Roma de carro, à noite, certamente estava despejando ohs! e ahs! para todo o lado, nem que fosse em silêncio.
Ficamos insuficientes 4 dias na cidade. A chuva, aquela que costuma me acompanhar e que desta vez até transformou-se em neve, esteve sempre presente em Roma, mas não nos impediu de passar todo o tempo fora de casa. Penso que o ponto alto foram as caminhadas pelas ruelas da cidade histórica, com o ambiente barulhento e desorganizado em torno de nós e as surpresas que aconteciam a cada virada de esquina. Deixando de lado o mapa, tínhamos a possibilidade de ver uma Piazza Navona, uma Fontana di Trevi, o bairro judeu, uma pequena piazza ou apenas mais uma rua ao fazermos uma curva. Se tivesse que eleger o que mais gostei em Roma, ficaria com suas ruas, depois com o Pantheon, a Fontana di Trevi, a Piazza Navona, a Piazza di Spagna ligada à Scalinata della Trinità dei Monti, o Caffè Greco, os estupendos Musei Vaticani, a estranha imensidão do Circo Massimo com seus atletas de fim de semana e o mercadão dominical de Porta Portese. Também adorei as pequenas igrejas da Via del Corso, os notáveis afrescos de Santa Maria del Popolo na Piazza del Popolo e mais vinte outras que esqueci os nomes.
As decepções foram a Catedral de São Pedro, uma ostentação medonha que parece existir mais com a intenção de oprimir os pobres seres humanos com o poder da igreja do que ser um local de devoção e fé. Sinceramente, a Catedral do Papa pareceu-me destinada a arrancar exclamações de turistas deslumbrados. A mim, causou um pouco de medo e fantasias rápidas de inquisição. Também fiquei desiludido ao ver a chocha expressividade perfeita da Pietà – esperava algo com a intensidade da clássica cena de Bergman em Gritos e Sussurros e vi apenas algo impecável, perdido na riqueza da Catedral. E voltando ao Altar da Pátria (Altare della Patria)… aquilo é um trambolho imenso, heróico e mussoliniano a estragar a paisagem, só tornando-se interessante de longe, quando não se vê seus detalhes.
Comemos sempre muito bem. Se íamos fazer economia nas pizzeria al taglio, o resultado era maravilhoso; se íamos gastar numa gelateria das piazze, experimentávamos o melhor dos sorvetes; se estávamos congelando e entrávamos num caffè ou numa cioccolateria, tínhamos vontade de passar lá o resto da tarde, lendo, bebendo e conversando. É natural que a comida italiana seja melhor na Itália, não? As pizza al taglio deles – que ficam atrás de vitrines acompanhadas de atendentes apressadas e simpáticas, sempre querendo nos cortar pedaços muito maiores do que o solicitado — poderiam ser servidas, com vantagem, nas melhores pizzarias brasileiras. Uma questão de qualidade dos ingredientes, explicava-me a Claudia.
Gastamos muito e bem em Roma. Há coisa barata e boa fora do circuito Helena Rubinstein; deveríamos ter viajado com a mala vazia para enchê-la com roupas de inverno na Itália. Os eletrônicos de pequeno porte também são acessíveis. Comprei um Walkman com CD, MP3, etc. por 39 euros. Tinha I-Pods a partir de 50 euros. Por que o mesmo Walkman custa R$ 300,00 no Brasil? Já os CDs são caros, principalmente para alguém financeiramente contido como eu, mas há honestos balcões de ofertas que me fizeram comprar uns 20 de primeira linha, sem cometer suicídio financeiro. Os livros também são muito acessíveis. O que é caro é a comida, as lojas para turistas e a hospedagem.
Depois destes 4 dias de caminhadas malucas, fomos para Verona de carro, com o casal Marisa Machado e Mario De Cristoforo, amigos da Claudia, como já disse. Mas isso fica para um próximo post. Finalizo Roma com fotos.
Escultura de Arnaldo Pomodoro na parte interna dos Museus do Vaticano, adornada pelo brinco da Claudia (lado direito da foto).
Os museus do Vaticano têm um acervo artístico interminável, seja em obras sacras, seja em profanas, afrescos, etc. De quebra, ainda temos a insuperável Cappella Sistina e os aposentos de Rafael, etc. Compreensivelmente, as fotografias são proibidas, mas não aqui, neste corredor bloqueado.
Caffè Greco: local onde pobres mortais podem alimentar-se acomodados em salas antes frequentadas por gentalha como Goethe e Byron.
O Coliseu: o cartão postal é uma ruína mais bonita por fora do que por dentro. A Arena de Verona, apesar de menor, é mais interessante.
Mesmo sem Anita Ekberg e com um frio do cão, a Fontana di Trevi é belíssima.
Do outro lado, o Imperador; deste lado, o povo; no meio, corridas de bigas e outras competições. Hoje, apenas atletas de fim de semana com seus abrigos e Nikes.
A escadaria da Trinità dei Monti com a Piazza di Spagna lá embaixo. Procurei em vão a janela utilizada por Bertolucci em Assédio. Acho que foi montagem…
Chamem a Inquisição! Perdoem-me, mas penso que a Pietà montada por Bergman em Gritos e Sussurros era tão intensa que olhei para aquela coisa toda perfeitinha e achei sem nenhuma alma… Esperava muito mais. Pietà por Pietà, fico com esta, muito mais humana.
Não pensem que vou só ficar falando mal de Michelangelo por aí… Vale o torcicolo ficar admirando esta pequena parte do teto da Cappella Sistina. Melhor sentar ao fundo da Cappella para olhar. Mesmo assim, saí com o pescoço duro. A Sistina é o ponto alto dos Musei Vaticani e, mesmo que estejamos acompanhados por centenas de turistas, observá-la é uma experiência inteiramente individual que nos leva aos céus e nos traz de volta várias vezes. É Bach em pintura.
Building upon each other’s knowledge is exactly what Newton meant when he said he can see further because he stands on the shoulders of giants.
BERTRAND RUSSELL
Tenho absoluta certeza da decadência do cinema. Deveria generalizar e falar em decadência das artes em geral? Bom, hoje meu assunto é cinema ou ao menos pretendo partir dele. E começo dizendo que acredito que a crescente intervenção dos produtores tem efeitos desastrosos nos filmes. Neste domingo, por exemplo, fiquei surpreso ao ver num canal pago a comédia romântica Procura-se um Amor que Goste de Cachorros, filme lá de 2005. Deu-me a impressão de que a personagem vivida por Diane Lane repetia os diálogos que a mesma Diane tivera antes no simpático Sob o Sol da Toscana. Pude assegurar-me do fato ao ligar a TV ontem na HBO e dar de cara com Diane Lane na Toscana: ela usava as mesmas palavras e vivia a mesma situação do filme que vira! Só que, em vez de falar ao advogado, falava à irmã. Algum produtor sentiu no bolso que o filme anterior dera bom lucro e resolveu repetir minuciosamente a fórmula. Diane concordou em ficar mais rica e, em compensação, corre o risco de obter o duvidoso título de “A Namoradinha dos Divorciados da América”. Deve estar preocupadíssima. E assim caminha a humanidade, ao menos a cinematográfica.
Os filmes parecem estar cada vez mais indulgentes para com um público supostamente emburrecido. Como contrapartida, poderia lembrar que, em 1974, fui a um programa duplo no extinto cinema Marabá. Às 14h, vi Gritos e Sussurros e, às 16h, Amarcord. Se não era normal, era uma coisa possível de se fazer na época. Afinal, eram lançamentos.
Uma vez, fui convidado por Fernando Monteiro a fazer listas dos 10 melhores filmes e livros de todos os tempos. Ele publicou suas listas e as minhas na Rascunho. Por e-mail, me provocava mais ou menos assim: “Quero ver quantas obras recentes constarão nelas”. Fiz a lista cinematográfica forçando a entrada de um filme de Peter Greenaway de que gosto muito — Afogando em Números… Mas confesso ter forçado a barra. Mais recentemente, escrevi uma relação de filmes maior e mais bem mais pensada e o fenômeno repetiu-se.
Poderia colocar nela os recentes e excelentes Dogville e Anticristo (Lars von Trier), Os Bons Companheiros (Martin Scorcese), Cidade dos Sonhos (David Lynch), A Vida é um Milagre (Emir Kusturica), As Confissões de Henry Fool (Hal Hartley), O Casamento de Rachel (Jonathan Demme), A Vida dos Outros (Von Donnersmark) ou Os Imperdoáveis (Clint Eastwood)? Até poderia, são belos filmes, mas quais tiraria?
(Um diabo chega por trás para fazer uma massagem em meus ombros e lê o que escrevo. Comenta: Não dramatiza, Milton, estamos numa época em que deixaram de fazer filmes de arte para fazer entretenimento. Antes que eu lhe diga que o cinema de entretenimento sempre existiu e que antes havia espaço para todos, ele vai embora. Se eu lhe respondesse, talvez ela fizesse referências à infantilização do cinema e de alguns adultos. Não vês as filas para Matrix? Não te lembras daquele quarentão que tcompra e sua diariamente seu videogame? Bom, diabo, esta é outra história e, na verdade, a decadência pessoal tem sua poesia e esta, dependendo das circunstâncias e de sua qualidade, pode até ser adorável.)
E, com os maus filmes, apareceu uma geração de críticos adequada a eles. Com mínimas noções de história do cinema, parecem não entender as alusões às vezes existentes nos filmes, sejam as de um ser mais complexo como Theo Angelopoulos, sejam as do pop Quentin Tarantino. E alguns que escrevem na Internet — onde, naturalmente, o amadorismo é mais presente — conseguem mais: conseguem transformar os fatos históricos narrados pelos filmes em ficção. É constrangedor lê-los. Isaac Newton e o roqueiro quase-hooligan-de-mentirinha Noel Gallagher sabiam estar Standing on the Shoulders of Giants, e que, só por isto, viam mais longe. Alguém deveria avisar a estes críticos que eles também estão lá e que deveriam delirar menos em seu suposto brilhantismo e olhar em torno. E um crítico cita o outro e todos juntos… Céus! Lembro de críticos que, ao comentarem um filme baseado numa obra de literatura, sabiam avaliar as alterações feitas por roteiristas nessa espinhosa questão de adaptar uma linguagem para outra. Agora, as críticas são rasteiras, ignorantes.
Eu estou convencido de que houve mesmo uma época (e um lugar) de ouro do cinema, que foi Hollywood na década de 1950, e talvez isso não se volte a repetir, porque se conjugaram várias coisas: o domínio da técnica cinematográfica, uma indústria próspera mas bastante aberta à inovação e a falta de concorrência da TV. Penso que depois disso tornou-se muito mais difícil ver-se filmes simultaneamente muito bons, inovadores e populares, como alguns de Hitchcock ou Nicholas Ray. Os Cahiers du Cinema vieram em auxílio a estes cineastas, porque até então o cinema americano era desprezado pelos intelectuais, e esses jovens (gente como Truffaut ou Rohmer) idolatravam John Ford e outros realizadores de Hollywood. Talvez o último herdeiro espiritual dessa época gloriosa seja Scorsese — o Good Fellas está ao nível dos melhores Nicholas Ray. O que aconteceu nas últimas décadas é que o cinema europeu começou a circular com grande dificuldade, esmagado pelos circuitos de distribuição americanos.
Hoje, não só o cinema se rendeu à linguagem fácil e banal dos filmes de entretenimento. TODA a cultura se transformou em produto de consumo popular. A reflexão cedeu espaço ao evento, tudo é evento. Tudo tem luz, produção, maquiagem até reunião de condomínio acabará tendo roteiro e cenografista. Mas e as idéias? E os ideais, as intenções? Para que fazer pensar se o que importa é faturar? Que discussão vou querer promover se o que quero promover é o sucesso de bilheteria e basta? O cinema sumiu junto com as utopias e quem sabe não está aqui a raiz da decadência? Claro que para toda ação, corresponde uma reação. Por que as Bienais não tratam do tema da arte como espetáculo vazio? Seria uma bela provocação.
Para finalizar este post deixado em aberto, cito Ivan Lessa — que pertence a uma geração anterior à minha — de memória:
Nós íamos ao cinema — definitivamente. Nós víamos filmes — indubitavelmente.