Ravel há muito acalentava a ideia de compor uma obra para piano e orquestra, mas não completaria seus dois concertos para piano (um só para a mão esquerda) até os cinquenta e poucos anos. Uma triunfante turnê pelos Estados Unidos em 1928 solidificou sua reputação como um dos maiores compositores vivos de sua época no mundo, e ele começou a trabalhar em seu Concerto para Piano em Sol no ano seguinte. Ele planejava tocá-lo em uma turnê mundial ainda maior que incluiria não apenas a Europa e os Estados Unidos, mas também a América do Sul e o Leste Asiático.
Assim, é fácil ouvir o concerto como uma espécie de autorretrato musical, um manifesto das crenças artísticas de Ravel. Reagindo contra o heroísmo e o bombástico de muitos concertos do século XIX, Ravel disse que sua nova obra era algo entre Mozart e Saint-Saëns. “A música de um concerto deve, na minha opinião, ser alegre e brilhante, e não visar profundidade ou efeitos dramáticos. Foi dito de certos grandes clássicos (especificamente Brahms) que seus concertos foram escritos não ‘para’, mas ‘contra’ o piano. Eu concordo. Eu pretendia chamar este concerto de Divertissement. Então me ocorreu que não havia necessidade de fazê-lo, porque o próprio título de Concerto deveria ser suficientemente claro.”
No lugar do pesado e emocionalmente intenso Sturm und Drang, Ravel escreveu música com uma leveza de toque que encanta a mente e os sentidos. Para que ninguém interprete mal sua rejeição à “profundidade”, no entanto, vale a pena mencionar que a música de Ravel – como a de Mozart – muitas vezes revela também enormes profundidades q que o movimento lento deste concerto… Bem, deixamos pra lá.
O concerto abre com o estalo de um chicote. O piano começa em o papel de acompanhamento, enquanto o flautim e o trompete introduzem o lúdico tema principal do movimento. Um solo de piano mais meditativo é ligado a um novo motivo jazzístico no clarinete, trompete e flautim. O solista então introduz um tema secundário amplamente lírico, mas a melodia é interrompida por notas curtas, ácidas e repetidas. Ravel opta por omitir um desenvolvimento tradicional mais longo, talvez em sua busca por um concerto mais “alegre e brilhante”.
O segundo movimento lento é uma das peças de música mais comoventes e belas já escritas. Nçao dá para falar em pouca profundidade. Ele começa com uma longa melodia para piano solo que tem jeito de improvisação. Apesar de sua aparente espontaneidade, Ravel confessou: “Essa frase fluente! Como eu trabalhei com isso! Quase me matou!” A melodia tem grande sutileza rítmica. Não é à toa que Ravel, sempre um artesão consumado, trabalhou tanto tempo em uma de suas criações mais perfeitas.
O final retorna ao humor efervescente do primeiro movimento. Um conjunto de temas curtos gira ao longo desta música alegre, começando com os acordes atrevidos que a iniciam. Duas outras ideias desempenham papéis importantes: uma melodia semelhante a uma marcha baseada em três notas descendentes e fanfarras de metal. Essas e outras ideias concorrem ao longo do movimento em meio às passagens virtuosas do pianista. Em uma reviravolta espirituosa característica, o movimento termina exatamente como começou.
Embora Ravel tivesse se preparado muito para ser o pianista de seu concerto, a doença o impediu de executar a peça. Em vez disso, sua amiga, a pianista Marguerite Long, tocou o solo e Ravel conduziu a orquestra na estreia em Paris em 1932. A turnê mundial também não se concretizou; em vez disso, Ravel teve que se contentar com uma turnê européia mais modesta com Long, durante a qual o concerto foi saudado como uma obra-prima a cada parada.
Infelizmente, este seria um dos últimos trabalhos de Ravel. Ele se calaria depois de 1932, acometido de uma doença neurológica que lhe dificultava escrever, falar e coordenar seus movimentos. Ele faleceu após uma operação cerebral mal sucedida em 1937. Com seu refinamento, eufemismo e alegria irreprimível, o concerto é um testemunho do gênio único de Ravel.
Porto Alegre é uma cidade curiosa. Parece oferecer pouco, pois as vias de informação em jornal e mesmo na internet passam por uma já longa crise, só que há coisas bem legais para se fazer e que não são descobertas.
O Caderno de Cultura de ZH quase não é lido — tem que ser assinante e muita gente fugiu do jornal por ser de direita e gremista. Na internet, não há um veículo confiável que reúna tudo. A Agenda Lírica ainda está se organizando. Então, os eventos têm de ser meio catados por aí.
Ontem, minha querida Elena avisou: o georgiano Guigla Katsarava vai tocar hoje no Instituto de Artes da Ufrgs, no Auditório Tasso Correa. Sim, sabemos que a Ufrgs não é uma casa de espetáculos. Sabemos também que o organizador do concerto, Ney Fialkow, não trabalha com publicidade. Divulgar algo desse quilate para a cidade seria função para jornalistas, só que… Bem, deixa assim. O que interessa é que fomos.
E vimos o melhor recital do ano na cidade. Katsarava tinha tocado em um concerto com a Ospa em junho do ano passado. Dias depois, apresentou-se na Casa da Música. Ou seja, sabíamos que se tratava de um pianista de impressionante técnica e sonoridade. Presentes na plateia, apenas os especialistas: pianistas, professores e alunos. Imaginem que a pianista Catarina Domenici chegou direto do aeroporto, sabendo que valeria a pena o esforço.
O programa começou com Grieg (Peças Líricas) e seguiu com duas peças de Scriabin. Depois, tivemos a Suíte Nº 2 para dois pianos de Rachmaninov — a partir daqui o excelente Ney Fialkow entrou em cena — e a surpreendente The Garden of Eden: Four Rags for Two Pianos, de William Bolcom. O bis foi talvez a melhor peça da noite: La Valse, de Ravel, em versão para dois pianos.
O nível esteve sempre lá em cima, foram interpretações de rara sensibilidade, mas gostei menos das obras dos russos Scriabin e Rach do que das outras.
A peça de Grieg é finalizada com a linda Bodas em Troldhaugen. A de Bolcom é puríssimo e fino fun, se posso me expressar assim. E La Valse é a vertiginosa apoteose da valsa vienense. Parece que nunca vai se realizar, mas depois acontece da forma surpreendente e nervosa. Dá a impressão do final de uma época. Ravel aparenta dizer: agora a alegria da valsa tem de lutar para chegar a nossos ouvidos.
Ele mesmo escreveu:
Através de nuvens, são vistos aqui e ali pares que valsam. A névoa se dissipa gradualmente, distinguindo-se um imenso salão povoado por uma multidão que baila. A cena se torna cada vez mais iluminada. As luzes dos candelabros se acendem. Situo este valsa num palácio imperial.
A dupla Katsarava e Fialkow vai se apresentar na Sala Cecília Meirelles amanhã, quinta-feira, no Rio de Janeiro, às 20h. Atenção, cariocas! Eu não perderia por nada. Ah, lá vai ter Bolcom e Ravel!
O compositor Maurice Ravel (1875-1937) foi um sujeito fino e bem-humorado. Depois da estreia de sua obra mais conhecida, o Bolero, uma pessoa da plateia afirmou que o compositor só poderia ser louco, ao que Ravel respondeu sorridente: “Ela compreendeu perfeitamente”. O compositor efetivamente desprezava sua peça mais famosa, achando-a trivial. Ele escreveu um texto nada entusiasmado para a estreia da obra:
É uma peça de 17 minutos que consiste de puro tecido orquestral sem música — um longo e muito gradual crescendo. Não existem contrastes, não existe nenhum desenvolvimento exceto no plano e na forma de execução. O tema é totalmente impessoal, pode-se tocá-lo com apenas um dedo no piano. Trata-se de temas populares hispano-árabes e, apesar do que possa ter sido dito em contrário, a escrita orquestral é simples e direta, sem qualquer tentativa de virtuosismo. Fiz exatamente o que queria e cabe aos ouvintes decidirem se devem amar ou odiar o Bolero.
O título inicial era Fandango. No entanto, este ritmo lhe pareceu uma dança demasiado rápida e o nome foi alterado para bolero, outra dança tradicional andaluz. A música foi composta por encomenda da bailarina russa Ida Rubinstein. Apesar de hoje fazer parte do repertório de concertos, na origem era um balé.
Abaixo, o Bolero com a Sinfônica de Londres, sob a direção de Valery Gergiev.
Joseph-Maurice Ravel nasceu na cidade de Ciboure, França, em 7 de março de 1875. Recebeu as primeiras aulas de piano aos sete anos, junto com o irmão Edouard, três anos mais novo. Seu enorme interesse pela música chamou a atenção dos pais que, em 1889, o matricularam no tradicional Conservatório de Paris.
Curiosamente, mesmo com os excelentes professores do Conservatório, ele nunca aceitou bem as aulas e, após algum tempo, largou o aprendizado formal para estudar composição sozinho. Durante anos tentou vencer o Grande Prêmio de Música de Roma, evento que consagrava novos talentos. Considerado um dos favoritos à conquista em 1905, sofreu nova derrota por ser muito revolucionário para o conservadorismo do juri. Por já ter certa celebridade devida à Sonata para Violino (1897) e à Sheherazade (1898), sua derrota provocou escândalo público e a mudança na direção do Conservatório.
O revés de Roma deixou Ravel ficou muito contrariado, talvez traumatizado, e desde então ele passou a ser cuidadoso nas ocasiões públicas fora de concertos, chegando a recusar distinções como a Legião de Honra, principal condecoração francesa. O compositor evitava frequentar os salões em pleno auge da belle époque europeia.
Sua primeira peça famosa foi a impressionista Pavane pour une infante defunte, composta em 1900, quando Ravel tinha vinte e cinco anos. Devido à origem basca, Ravel tinha uma predileção especial pela música espanhola. A pavana é uma tradicional e lenta dança espanhola, que gozou de popularidade entre os séculos XVI e XVII. A peça foi escrita em 1899 para piano, durante os estudos do compositor no Conservatório de Paris. Ele a orquestrou em 1910. Segundo ele, ela não evoca nenhum momento histórico, mas somente a dança de uma jovem princesa imaginária na corte espanhola. Também, segundo o compositor, a música não deve levar o ouvinte a pensamentos funéreos. Ravel afirmou que o motivo do título da peça era porque gostava do som da combinação das palavras “infante défunte”
Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, Ravel deixou de compor. Tentou alistar-se no exército francês, mas foi rejeitado por razões médicas, acabando como motorista militar. Após a guerra, concluiu o poema coreográfico Wien (Viena), que depois teve seu título alterado para La Valse. La Valse foi concebida como uma homenagem à valsa vienense. Ele queria ver La Valse como um grande balé e chegou a apresentá-la ao empresário Serguei Diaghilev em 1919, mas este a considerou inadequada. É uma de suas obras-primas.
A cigana Tzigane foi encomendada pela violinista húngara Jelly d’Arányi. A instrumentação original é para violino e piano. A composição tem um movimento com duração aproximada de dez minutos. Tzigane demonstra a capacidade do compositor de criar música para violinistas virtuoses ao estilo de Paganini e Sarasate. É a música ideal para o violinista apresentar sua habilidade e carisma no instrumento. Os temas utilizados não são tradicionais ciganos, todos são originais de Ravel.
O Concerto para Piano em Sol maior e o Concerto para Piano para a Mão Esquerda vieram à luz nos anos de 1930 e 1931. O Concerto para mão Esquerda (1929–1930) foi dedicado ao pianista Paul Wittgenstein, irmão do filósofo Ludwig Wittgenstein, Paul foi um grande pianista que perdeu o braço direito durante a Primeira Guerra Mundial. Ele não se conformava com o fato e escreveu a vários compositores pedindo-lhes que escrevessem músicas que pudesse tocar. Ravel estava ocupado com a composição de um concerto para piano (o em Sol Maior, para duas mãos), mas interrompeu o trabalho para atender Wittgenstein.
O citado Concerto em Sol Maior foi composto entre 1929 e 1931. O concerto é fortemente influenciado pelo jazz e por Gershwin, que Ravel tinha conhecido em uma turnê pelos Estados Unidos realizada em 1928. O jazz era muito popular em Paris. Ravel observou que “A parte mais cativante de jazz é o seu ritmo rico e divertido. É uma inspiração para os compositores modernos e estou surpreso que tão poucos americanos sejam influenciados por ele”. Ravel desejava ser o solista na estreia da peça. No entanto, os problemas de saúde impediram que ele participasse da estreia.
Voltando no tempo, destacamos o esplêndido Quarteto de Cordas. Ravel estreou na música de câmara com este quarteto, escrito entre dezembro de 1902 e abril de 1903. A obra foi dedicada a “meu querido mestre” Gabriel Fauré… Mas a reação de Fauré foi de desaprovação. Por outro lado, Claude Debussy gostou muito do quarteto e ficou assustado com a possibilidade do jovem Ravel, então com 27 anos, revisar o quarteto a fim de agradar ao mestre e pediu: “Em nome dos deuses da música e no meu próprio, não mexa em nada do que você escreveu”. A estreia, em 1904, provocou opiniões controversas. Pierre Lalo, por exemplo, considerou-o “indecentemente próximo de Debussy do ponto de vista da harmonia, da sonoridade e da forma”, enquanto o crítico do jornal “Mercure de France” vaticinou: “É preciso fixar o nome de Maurice Ravel. Ele será um dos mestres de amanhã”.
Ma mère l’oye é Mamãe Gansa. A peça foi escrita originalmente para o piano como um presente a dois filhos de amigos do compositor e publicada em 1910 para ser tocada a quatro mãos. Foi inspirada nos contos de fada de Charles Perrault e da condessa d’Aulnoy. No mesmo ano, seu amigo Jacques Charlot a transcreveu para piano solo e, em 1911, a peça foi orquestrada pelo próprio Ravel que adicionou novas partes e a transformou num balé.
Quadros de uma Exposição não é uma obra de Ravel. Trata-se de uma Suíte para Piano escrita pelo russo Modest Mussorgsky em 1874. A orquestração que Ravel preparou para a peça é tão perfeita e valorizou da tal forma as nuances dos temas que se tornou impossível falar apenas na autoria da música quando se ouve a versão orquestral. Ao fazer o arranjo, Ravel prestou um grande serviço póstumo a Mussorgsky, tirando-o da obscuridade. Quadros de uma Exposiçãodescreve uma visita a uma exposição de quadros. Os temas isolados de cada quadro são unidos pelo mesmo tema de abertura, o passeio, interpretado com diferentes harmonias através da obra.
Os últimos anos de Ravel foram afetados pela Doença de Pick. É um mal neurodegenerativo incomum que afeta a capacidade de raciocínio, a linguagem e o auto-controle. É semelhante ao Mal de Alzheimer, mas na doença de Pick os sintomas comportamentais aparecem muito antes da perda de memória. Ele foi submetido a uma inútil cirurgia no cérebro em 1937, morrendo alguns meses depois.
Nesta quarta-feira (8), fomos assistir ao concerto da Salzburg Chamber Soloists no velho Theatro São Pedro. Conhecia o grupo apenas através de alguns excelentes CDs que possuo. Já seu fundador e diretor artístico, o violinista e regente Lavard Skou-Larsen, é meu conhecido de outros carnavais. Já vi Lavard regendo a Ospa — entrevistei-o na época — e tocando com grupos menores no próprio TSP. O programa era ótimo, bastante afastado daquele mais do mesmo habitual:
Ernest Chausson: Concerto para Violino, Piano e Cordas, Op. 21 Solo: Lavard Skou-Larsen – Violino Phillippe Raskin – Piano
Wolfgang Amadeus Mozart: Divertimento em Ré Maior, KV 136
Maurice Ravel: Quarteto de cordas em fá maior (arranjo para orquestra de cordas: Lavard Skou Larsen)
A orquestra é a coisa mais linda que eu já vi passar. Não por Lavard, mas pelos outros, ou outras, pessoas cheias de graça num doce balanço a caminho do mar. Como quase toda orquestra europeia, há uma maioria de mulheres. Elas são jovens, belas e, no conjunto de 16 membros, há 13 nacionalidades diferentes, vindas de 4 continentes. Há apenas um violinista com passaporte austríaco, só que ele nasceu na Colômbia. Suponho que tenha casado com uma nativa.
Antes de tocar o Chausson que abria o programa, Lavard contou a história da morte do compositor. É uma tragédia cômica ocorrida quando o compositor tinha 44 anos de idade. A gente lamenta, mas ri. Certo dia, depois da chuva, ele vinha de bicicleta descendo por Montmartre, um dos bairros mais charmosos de Paris, quando se desequilibrou, bateu de cabeça num muro e perdeu a consciência. Só que, casualmente, caiu com o nariz numa poça d`água de uns 10 centímetros. A consequência é que morreu afogado no meio da rua, bem longe do Sena.
Sua música é muito boa, de uma gravidade e dramatismo muito particulares. Se Proust fosse compositor, talvez soasse como Chausson: lírico, apaixonado, mas sem grandes gestos. Chausson escreveu bem e pouco, pois, antes de bater a cabeça, passava a maior parte de seu tempo nos salões de Paris, com artistas célebres como Odilon Redon e Vincent d’Indy. Como os poetas que frequentava, parecia buscar a palavra perdida sob a onda invasora do cientificismo da virada do século. A Chausson só faltou tempo para que se tornasse um dos mais importantes autores de sua época. Este Concerto, originalmente para piano, violino e quarteto de cordas, é sua obra-prima. A peça é longa, de mais de 40 minutos, e foi levada com grande senso de estilo e competência pela orquestra.
O Divertimento K. 136, de Mozart, tem três movimentos — rápido-lento-rápido, à maneira da sinfonia italiana. É o primeiro de um grupo de três divertimentos, também conhecidos como Sinfonias de Salzburgo. Essas obras se destacam das sinfonias restantes de Mozart na medida em que são escritas apenas para cordas. Um outro ponto que separa essas composições das outras Sinfonias de Mozart é que elas são compostas apenas em três, em vez dos quatro movimentos habituais. Aqui, não existe um minueto como terceiro movimento. E, finalmente, a forma compacta de três movimentos distingue ainda mais as Sinfonias de Salzburgo de outros Divertimentos e Serenatas de Mozart, que possuem mais movimentos ou formas mais livres. É Divertimento, é Mozart, então parece leve, mas é ousado e arrojado.
Lavard é um especialista em Mozart. A interpretação fluiu muito bem, com a orquestra animada, trocando sorrisos entre si, num clima de bom humor que parecia por si só empurrar a música.
Na área de quartetos de cordas, é fácil fazer a contabilidade de Ravel: tal qual Debussy, ele escreveu somente um, mas que quarteto! Ravel foi um daqueles raros grandes criadores que se revelam desde as primeiras obras: na Habanera dos Sites Auriculaires, por exemplo, escrita quando o compositor tinha apenas vinte anos de idade, a personalidade do autor já estava bem definida.
Ravel e sua geração contribuíram para que a música saísse do armário, de seu mundo isolado, para uma atmosfera mais ampla, onde pudesse se relacionar com outras artes. Ele foi um músico poeta, bastante incompreendido por seus contemporâneos. Já nossa época o colocou no merecido Olimpo. O maravilhoso e difícil Quarteto de Ravel é menos radical do que o de Debussy de dez anos antes. É puro Ravel, mas talvez ele não existisse a influência de “Debbie You See”. Aliás, mesmo caso do primeiro quarteto de Bartók. Mas o de Ravel é o meu preferido dos três, muito mais melodioso do que os outros. A transcrição de Lavard para orquestra é uma preciosidade.
Passando a régua, afirmo-lhes que a Salzburg Chamber Soloists fez um concerto de altíssimo nível. Os caras tocam com tesão, alegria, musicalidade e grande técnica. A sonoridade é muito bonita, os ataques são fulminantes e exatos. A cada obra foi dada sua personalidade. Chausson, Mozart e Ravel são muito diferentes entre si e foram tratados distintamente. Na orquestra, há músicos fantásticos como os violinistas Lavard Skou Larsen e Emeline Pierre, a violoncelista Marion Platero e outros que não saberia citar por desconhecimento. (O que foi aquilo que fez o Moisés Irajá dos Santos no bis de Piazzolla?). Foi inevitável sair feliz do TSP, quase comemorando o que raramente se ouve neste canto do mundo, tão esquecido da cultura.
Foram tantas emoções… Entrei num camarote lateral do Theatro São Pedro, olhei para baixo, observando a plateia presente, e lá estava minha ex-ex toda sorridente. Ergui os olhos e, bem na minha frente, no camarote oposto, estava minha ex com má cara. Estava começando a ficar desconfiado de uma armação cósmica quando olhei ainda mais para cima e vi que ali se encontrava a PMDB. Então, notei que minha companhia no camarote era, nada mais nada menos, do que a atual cônjuge do ex-marido de minha futura mulher, Elena, que estava no palco.
Eu pensava que era o James Stewart de A Janela Indiscreta, assistindo não a um desfile de paixões amorosas, mas a uma fusão de passado, presente e futuro… Quando já sentia um gesso em minha perna, a qual já começava a coçar à espera de Grace Kelly… Quando conjeturava sobre o mito de que, na hora da morte, a gente revê toda nossa vida… Bem, então, no final do concerto, vieram três trompetistas da orquestra para trombetear junto ao meu ouvido, pois Sibelius quisera colocá-los fora do palco. Adivinhem onde eles escolheram ir? Do meu ladinho, ora! Ainda bem que sou um sujeito brando, ameno e pacífico, nada paranoico e sempre disposto a achar graça de tudo. Ou seja, se não fosse o bobo alegre que sou, sucumbiria aos fatos.
Bem, o programa da noite:
Pietro Mascagni: Preludio e Intermezzo “Cavalleria Rusticana”
Erich Wolfgang Korngold: Concerto para violino
Maurice Ravel: Ma Mère l’Oye
Jean Sibelius: Karelia Suite
Regente: Valentina Peleggi
Solista: Cármelo de los Santos (violino)
O concerto iniciou por uma abertura, o que é uma redundância apenas aparente. Nas garrafas, a diversão começa para abertura da tampa; já nos concertos, a diversão não precisa começar por uma abertura, como a Ospa infelizmente convencionou para 2015. O Preludio e Intermezzo de “Cavalleria Rusticana” foi a mais feliz das aberturas de concerto deste ano, o que não é grande mérito, é mais ou menos como ganhar por 2 a 1 da União Frederiquense. Mas pudemos ver uma novidade no palco, o trabalho claro da maestrina Valentina Peleggi.
Intermezzo: minha opinião sobre maestrinas foi dada quando fiz a tradução deste belíssimo texto de Barbara Hannigan. Concordo inteiramente com ela e vou tratar Peleggi sem citar mais o fato de ela ser uma mulher no pódio. Deveria ser normal.
O Concerto para violino de Erich Wolfgang Korngold é mal disfarçada música para cinema. Nos anos 30 e 40 do século passado, o austríaco Korngold trabalhou em Hollywood fazendo música para filmes. Suas trilhas sonoras impulsionavam adequadamente as cenas e eram bem recebidas por diretores e público, o que o tornou famoso nos EUA. É óbvio que conheceu Bernard Herrmann, autor da banda sonora de A Janela Indiscreta. Mas não conheceu John Williams, autor do bis, a canção-tema de A Lista de Schindler. Nestas duas intervenções, o violinista Cármelo de los Santos foi impecável, mostrando-se um cantor muito superior àquilo que cantava, obras dispensáveis.
Conforme o esperado, a melhor peça da noite foi Ma Mère l’Oye (Mamãe Gansa), de Ravel, um sujeito que, assim como Brahms, era infalível. A peça foi escrita originalmente em 1910 para piano a quatro mãos, como um presente a duas crianças próximas do compositor, Mimie e Jean Godebsky. Foi inspirada em contos de fada de Charles Perrault e da condessa d’Aulnoy. A Mamãe Gansa não é um personagem ficcional específico, ela representa as mulheres contadoras de histórias, normalmente mães, na época. É uma atividade gloriosa. Um ano depois, em 1911, a peça foi orquestrada e ampliada pelo próprio Ravel, que a transformou num balé. Aqui, a segurança e os gestos claros de Valentina Peleggi — às vezes apenas um olhar mais significativo — fizeram a diferença, ao lado do flautista Artur Elias e do corne inglês de Paulo Calloni.
A função foi finalizada pela alegria nórdica da Suíte Karelia. Não, não cairei no mau gosto de fazer um trocadalho do carilho com o título da peça do finlandês que completa 150 anos de nascimento este ano.
Esta suíte é um dos primeiros trabalhos de Sibelius e é muito popular. Ele tinha especial afeto pela região da Karelia (ou Carélia), que é pouco habitada e fica bem na fronteira com a Rússia, banhada em parte pelo Báltico. Em anos anteriores, ele havia encontrado inspiração na música local e, depois, até passou sua lua de mel lá. O caráter simples da música é deliberado: a intenção estética é a de capturar a pureza da base folclórica. É claro, sabemos que Sibelius foi um mega-nacionalista.
É curioso, no Sibelius, quando os três trompetes, los tres amigos, subiram até o meu camarote para me mostrar que aquela não era uma noite qualquer, pude ouvir e separar perfeitamente o som de cada um deles. E é notável a leveza, delicadeza e profundidade do som de Elieser Ribeiro.
À saída, na porta do teatro, a Sofia Cortese nos proporcionou enorme alegria ao chegar para a Elena e dizer de forma espontânea algo mais ou menos assim: como é bom te ver tocar, a tua figura, a tua postura, são muito bonitas de se ver. De minha parte, eu concordo integralmente e acrescento que ela é bonita de se ouvir, também.
O concerto começou muito bem. Na plateia do Theatro São Pedro, duas mulheres me pediram para que lhes tirasse uma foto. Tirei bem mais de uma. Elas estavam felizes, ornamentadas pelo velho edifício e pelos músicos que se preparavam para o concerto no palco. Ao verem o resultado, voltaram para falar comigo. Estavam encantadas. Disseram que eu lhes dera a coisa mais bonita que elas tinham. Fiquei comovido. A noite prometia.
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Mas começo por um fato de antes do concerto: a entrevista que o Diretor Artístico da Ospa concedeu recentemente à ZH. Não entendi porque Evandro Matté irá convidar apenas nomes inéditos para reger a orquestra nos próximos meses. Ele disse que deseja “oxigenar a lista dos maestros convidados e dos solistas”, evitando aqueles que tenham se apresentado com a orquestra nos últimos três anos. Tento interpretar e não consigo entender porque Lavard, Rauss, Teraoka, Volkman, Nakata, Hahm, Levin ou Vigil não possam retornar em futuro próximo. São excelentes regentes que fizeram bons trabalhos. A opção pelo novo, nestes casos, não me parece a melhor.
Pior: é um crime que gaúchos que estão se consagrando no exterior — como Lavard Skou-Larsen, que acaba de arrasar com a Royal Flemish Philharmonic, de Antuérpia, e Tobias Volkman, que fez o mesmo na semana passada com a Sinfônica de Brandemburgo — não possam ser reconvidados. É gente talentosa, nascida aqui, com parentes na cidade, que conquista o mundo, mas que não pode mostrar-se em sua cidade. (OK, sei que o Tobias é de NH ou de São Leo).
Isso é tanto mais ilógico quando se pensa que o concurso da Ospa parecia beneficiar os locais…
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O programa de ontem:
Jean Sibelius – Finlândia, op.26 Camille Saint-Saëns – Concerto para violino nº 3 em Si menor, op.61 Maurice Ravel – Pavana para uma Princesa Defunta Nikolai Rimsky-Korsakov – Capricho espanhol, op. 34
Regente: Evandro Matté
Solista: Yang Liu, violinista
Sibelius completa 150 anos de nascimento neste ano. Nada mais natural que a Ospa iniciasse sua temporada com ele. Finlândia é um poema sinfônico escrito em 1899 e revisado no ano seguinte. Foi composto como um protesto contra a crescente censura do Império Russo. Era comum, na época, trocar o nome da obra nos concertos com a finalidade de iludir a censura russa. Isso adquiriu ares de piada. Os títulos com os quais a peça foi mascarada foram muitos: um deles foi Sentimentos Felizes ao Amanhecer da Primavera Finlandesa. A peça traz melodias crescentes e agitadas, evocando a luta nacional do povo finlandês. À medida que vai chegando ao final, a melodia serena do hino da Finlândia é ouvida. O careca alcoolista foi bem representado pela Ospa, mas senti saudades da execução redonda que Nicolas Rauss criou com a mesma Ospa no Colégio Anchieta, se não me engano.
Bá, eu estava com fome. Enquanto isso, pensava que Camille Saint-Saëns fora um sujeito feliz. Foi organista, pianista, caricaturista, cientista amador, apaixonado por matemática e astronomia, comediante amador, folhetinista, crítico, viajante e arqueólogo. Também gostava de viajar. Movido por impulsos súbitos, fazia excursões repentinas às partes mais distantes do planeta. Visitou a Espanha, as Canárias, o Sri Lanka (Ceilão), a Vietnã (Cochinchina), o Egito, e esteve várias vezes na América. Deu concertos em lugares exóticos como o Rio de Janeiro e São Paulo em 1899. A morte pegou-o numa cama de hotel em Argel.
O Concerto n° 3 para Violino e Orquestra foi escrito em 1880 especialmente para o célebre Pablo de Sarasate, para quem Saint-Saëns já havia escrito seu Primeiro Concerto. O primeiro movimento me pareceu de execução tediosa. Quando terminou esta parte da música, o governador Sartori e o Secretário de Cultura Victor Hugo prorromperam em aplausos, no que foram seguidos por boa parte da plateia. Sorridente, o Secretário batia delicadamente no próprio peito, como se tivesse sido atingido no coração. Bem, deixa pra lá, o governador certamente não sabe que não se aplaude entre os movimentos. Yang Liu e o regente Matté ficaram duros, esperando o entusiasmo arrefecer.
Tenho para mim que Sartori, que fala em parcelar os salários do funcionalismo público estadual, resolver parcelar o Concerto para Violino. Se ele insistir nesta ideia de pagar aos poucos, sugiro que a Ospa toque seus concertos também de forma parcelada.
Mas o fato é que o Concerto de Saint-Saëns melhora a partir do segundo movimento. E Yang Liu deu-nos uma magnífica interpretação do movimento central e do final. Saint-Saëns tem outros concertos cujos movimentos finais são superiores ao inicial. Mereceria revisão.
O intervalo foi penoso com a fome apertando. O melhor momento foi quando a Elena saiu do palco e veio me fazer um carinho. Minha vizinha de cadeira disse: “Como a sua esposa é linda!”. Ninguém duvida.
A impressionista Pavane pour une infante defunte (Pavana para uma Princesa Defunta) foi composta em 1900, quando Ravel tinha vinte e cinco anos. Devido à origem basca, Ravel tinha uma predileção especial pela música espanhola. A pavana é uma tradicional e lenta dança espanhola, que gozou de popularidade entre os séculos XVI e XVII. A peça foi escrita em 1899 para piano, durante os estudos do compositor no Conservatório de Paris. Ele a orquestrou em 1910. Segundo ele, ela não evoca nenhum momento histórico. É apenas a dança de uma jovem princesa imaginária na corte espanhola. Também, segundo o compositor, a música não deve levar o ouvinte a pensamentos funéreos. Ravel afirmou que o motivo do título da peça era porque gostava do som da combinação das palavras “infante défunte”… É uma música levada pelos sopros e o trompista viking Alexandre Ostrovski esteve nostálgico e parisiense como devia.
O esparramado Capricho Espanhol, Op . 34, foi composto em 1887 por Nikolai Rimsky-Korsakov. Como título demonstra, é baseado em melodias espanholas. Dã. O título original russo é ainda mais claro: Capricho sobre temas espanhóis. Como Rimsky-Korsakov era oficial da marinha russa, costumava viajar um bocado — ainda mais do que Saint-Saëns. Entre 1862 e 1865, o cara revirou o mundo. Na Espanha, passou algumas semanas em Cádiz, fascinado pela cultura e pelas mulheres locais (isso é invenção minha). Assim como Sheherazade, a peça tem um importante e belo solo de violino. Aliás, o Capricho foi inicialmente concebido como uma fantasia para violino e orquestra.
Em alguns momentos do Capricho, as cordas da Ospa foram cada uma para um lado para reunir-se novamente ali na esquina. Mas nada de assustar. Há muitos solos na obra. Augusto Maurer (clarinete), Omar Aguirre (primeiro violino), Paulo Calloni (corne inglês), o viking (trompa), Artur Elias (flauta) e Wenceslau Moreyra (violoncelo) estiveram muito bem. Talvez apenas o solo de Aguirre merecesse uma cintura mais solta. Mas a alegria e luminosidade de peça de Korsakov estavam lá. Acho que Evandro Matté estava tão feliz com o bom final do concerto que se esqueceu de pedir para Artur Elias erguer-se a fim de receber seus aplausos. Estou certo?
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Adendo: sou totalmente favorável à nomeação dos concursados da Ospa. Reclamei muito do Concurso realizado no ano passado, mas, já que este foi válido, penso que as vagas devam ser preenchidas o mais rapidamente possível. Aliás, de minha perspectiva pessoal, o concurso teve momentos que se inscreveram entre os mais patéticos de minha vida, como aquele em que um membro da Associação de Funcionários da orquestra ligou para o Sul21dizendo que eu estava atacando a Ospa, a Secretaria de Cultura e, consequentemente, atrapalhando a reeleição de Tarso Genro. Muita loucura, né? Imagina se eu, com meu pequeno blog, tenho o poder de intervir numa eleição para o Governo do Estado. Ao final, o cara pedia a retirada dos posts e minha cabeça. Algo me diz que fui chamado de psolento…
Gosto e preciso de meu emprego. E não tenho estabilidade. Minha chefe ouviu tudo aquilo, me chamou e disse que tinha mais o que fazer do que ouvir aquele tipo de coisas. Eu que desse um jeito de o cara não telefonar mais. Não fiz nada, mas o cidadão não voltou a ligar. Foi uma ação maldosa e inexplicável, inspirada, pirada e repirada sei lá por quem ou o quê.
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Milton Ribeiro foi ao concerto às suas próprias expensas.
É claro que se trata de gosto pessoal. Por exemplo, jamais colocaria Debussy no mesmo ofurô de vulgaridade onde sufoca Rachmaninov. Reconheço os méritos do francês apesar de seus efeitos sobre mim, pois, se há trabalho e suor para criar aquelas coisas, elas têm igualmente o condão de me fazer viajar. Pode acontecer de eu pensar em coisas que podem ser boas como os planos para escrever uma resenha leve, informativa e agradável sobre a Sagração da Primavera. Mas pode me ocorrer fazer uma prosaica revisão dos compromissos de amanhã. Debbie, you see, convida ao sonho, convida a divagações bem longe dele. O concerto da última terça-feira da Ospa, continha um bonito concerto de Mozart (Concerto para Flauta, Harpa e Orquestra, K. 299), um Ravel (Le Tombeau de Couperin), porém dois dramins debussyanos: os Noturnos, para orquestra e coro feminino, e as Danças Sacra e Profana, para harpa e orquestra.Read More
Foi um excelente concerto, pena a falta de um café no local, o Auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa. A noite começou com o bom gosto de não haver discursos. Foi uma surpreendente renúncia num dia em que a Ospa tinha assinado o contrato para o repasse das verbas necessárias para a construção de sua Sala Sinfônica. Já houvera discursos pela manhã no Palácio Piratini, claro, mas a gente sabe como alguns políticos gostam de falar e refalar. Acho que o Assis Brasil não aderiu 100% à classe, o que não deixa de ser um raro caso de belo conservadorismo. Outra surpresa foi o grande público. O que não faz um estacionamento próximo, não? Ali na UFRGS a coisa é duríssima para estacionar. Talvez o simples fato de estarmos na frente de uma praça, com todo seu entorno “estacionável”, tenha trazido um grande público. E havia um programa popular, equilibrado e de bom nível, mesmo que eu esteja de saco cheio de ouvir Quadros de uma Exposição.
O solista era o extraordinário Alejandro Drago que… bem… Já tocara o solo introdutório da Tzigane sábado em minha casa. Fazer o quê? E o regente era novamente o uruguaio Federico “Asterix” García Vigil. Ou seja, a margem de erro era mínima.
Não sou nada apaixonado pela Introdução e Rondó Caprichoso, Op. 28 de Camille Saint-Saëns, mas é claro que uma execução convincente mata muitas restrições. Já a Tzigane de Ravel é uma peça espetacular, cheia de virtuosismo, originalidade, liberdade e sensualidade. Se você estava nas redondezas e perdeu este concerto… Olha, só tenho a lamentar. É uma peça de aproximadamente dez minutos, talvez simples para a orquestra, mas o solista Drago e leitura compreensiva de Asterix fizeram toda a diferença. Foi um momento para se guardar bem na memória e confesso que meus olhos ficam marejados com a lembrança das retomadas rítmicas da peça que Ravel escreveu orginalmente para piano e violino, mas que cuja melhor versão é a ouvida ontem. Quem perdeu o concerto… E a entrada era franca, tchê!
Após o intervalo (e ainda sem café), veio Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky, na versão orquestral de Ravel. É uma grande e exigente orquestração. A Ospa saiu-se maravilhosamente, com destaque para os metais — não sei o nome do trompetista que arrasou ontem. A obra ficou muito popular a partir dos anos 70, com dois discos best sellers: a versão algo abusiva do grupo de rock progressivo Emerson, Lake & Palmer e o disco da DG com Karajan e a Filarmônica de Berlim desta mesma versão dos Quadros e com um complemento igualmente matador — o Bolero de Ravel. Foi um dos discos mais vendidos da história da Deutsche Grammophon.
Agora, olhem esta foto e me digam que não é o Asterix:
Eu estava cansadíssimo. Trabalhei demais hoje. Porém, a noite começou a ficar animada no intervalo do concerto… Opa, já chegamos ao intervalo? Pois é, é que as duas peças iniciais de Ravel não me interessaram muito, aliás não me interessaram nem naquela caixa de 3 CDs onde o Abbado rege toda a música orquestral do francês. Acho um saco as tais Alborada del Gracioso e a Ma Mére L´oye. E cansado a coisa fica ainda pior. Imaginem que dormi na Mamãe Gansa… Sim, amo Ravel, mas não aquelas peças. Ah, esses repertórios…
No intervalo, começamos a rir. Era impossível não achar graça nas duas senhoras que analisavam o cabelo de todas as moças da Ospa. Elas reclamaram do cabelão de uma violinista loira que antes usava cachos, elogiaram a (bielo)russa que antes usava o cabelo armado e que agora adotara o soltinho descabelado — uuuuh, fica muito melhor! Falaram também da elegância de suas mãos. Criticaram de forma violenta, acerba mesmo, a monotonia de quem nunca muda o cabelo. Qual é a graça? Mulher tem que arriscar!
Na segunda parte do concerto, o Arthur Elias — que não teve o penteado comentado e estava no papel de fauno — deu um show no Prélude à l’après-midi d’un faune, obra difícil, gostosa de ouvir e onde a orquestra saiu-se muito bem. Eu já estava acordado. Chamei o Arthur de fauno porque no poema de Mallarmé, o fauno toca uma flauta e eventualmente excita-se e persegue algumas ninfas. Ele não pegou nenhuma.
O melômano que vos escreve faria vários reparos à interpretação de La Mer — houve um momento especialmente descontrolado na região dos violoncelos — , mas que diabo, é música ao vivo e estas coisas acontecem. Ouvi falar que houve poucos ensaios em relação à dificuldade do programa.
(Sempre penso que o movimento Sirènes está no La Mer (O mar tem sereias, correto?), mas ele finaliza Nocturnes. Não esquece mais disso, Milton!).
Fiquei estarrecido ao ler atentamente a programação da OSPA até o mês de setembro. Nenhum Mahler, nenhum Shostakovich, nada de Bartók, só para dar alguns exemplos, poucos autores estreantes e brasileiros e raros programas com obras realmente diferentes. Ignoro quem faz a programação, mas sei que é alguém muito conservador, quem sabe um chato.
Os programas dos quais gostei são quatro. No dia 29 de abril, um domingo, às 11h, há um Concerto para Juventude que achei interessante:
Elgar: Concerto para Cello, Op. 85 Ney Rosauro: Concerto para vibrafone e orquestra Rimsky-Korsakov: A Grande Páscoa Russa
Ouço bastante as coisas do Rosauro e tenho uma estranha tara pela Grande Páscoa Russa. Depois, lá em 5 de junho, às 20h30, há a Missa Solene de Beethoven. O único problema é que será lá na Igreja da Ressurreição, onde os fiéis, em seu desespero pela salvação, aceitam sentar em cruéis bancos de madeira. Como meu Para encarar, almofada é o mínimo.
Ludwig van Beethoven: Missa Solene, Op. 123 em Ré Maior
Uma semana depois (12/6), voltamos ao Auditório da Reitoria da UFRGS para um bom programa:
Aaron Copland: El Salon Mexico Richard Strauss: Quatro Últimas Canções (Vier Letzte Lieder) <— Sergei Prokofiev: Sinfonia nº 1 (Clássica), Op. 25 Igor Gandarias (Guatemala): Desde la Infancia César Guerra-Peixe: Museu da Inconfidencia
E, no fim do mês, no dia 26/6, novamente na UFRGS, mais um dos bons:
Maurice Ravel: Alborada Del Gracioso Jaques Ibert: Concerto para Flauta Claude Debussy: Prelude a L´après Midi dun Faune Claude Debussy: La Mer
Em 3 de julho, há outro quase só francês e bem legal
Maurice Ravel: Tzigane – Rapsódia para Violino e Orquestra Camile Saint-Saëns: Introduction et Rondeau Capriccioso, Op. 28 Mussorgski (Ravel): Quadros de uma Exposição
Depois, até setembro, nada me seduziu. Há uma verdadeira epidemia de Tchaikovskis e Rachmaninoffs, compositor que parece estar recebendo uma bisonha homenagem este ano. Mas não é seu centenário nem nada. Já imaginaram se fosse?
P.S.– Vitor Necchi entra em campo para dizer que há um Mahler (a Sinfonia Nº 7) em novembro. Erro nosso.
Bem, ficarei fora da cidade e desconectado durante o fim de semana. Deixo com vocês o belo tema do movimento central do Concerto para Piano e Orquestra em Sol Maior, de Maurice Ravel. O tema foi esplendidamente utilizado por Alejandro González Iñárritu em Biutiful, filme que acabo de ver. O filme não é tudo isso.
A interpretação abaixo é de Hélène Grimaud, um dos símbolos sexuais e culturais deste ínclito blog, estrela deste Porque Hoje é Sábado e a maravilhosa pianista deste post dominical. O regente é Vladimir Jurowski e a orquestra deve ser a Chamber Orchestra of Europe, calculo.
São fragmentos, mas que fragmentos! Abaixo, a Orquestra Filarmônica de Berlim, regida por Pierre Boulez, dá um show no Finale da Música para Cordas, Percussão e Celesta de Béla Bartók.
E aqui, com Hélène Grimaud ao piano e sob a regência de Tugan Sokhiev, no Concerto para Piano e Orquestra em Sol Maior de Maurice Ravel:
Aqui, com o regente titular Simon Rattle, parte do Finale da Sinfonia Nº 1 de Brahms (notem sua felicidade ao reger uma das melodias mas belas jamais compostas e que foi utilizada no Fausto de Mann):
Novamente com Rattle na Sinfonia Nº 10 de Shostakovich:
E com Gustavo Dudamel na Sinfonia Nº 5 de Prokofiev: