Divagando sobre Tchékhov e sobre a mais narrada das mortes

Divagando sobre Tchékhov e sobre a mais narrada das mortes
Olga Knipper e Anton Tchékhov
Olga Knipper e Anton Tchékhov

A morte de Tchékhov no balneário de Badenweiler é uma das mais recontadas da historia da literatura. Parece haver enorme sedução na cena do escritor moribundo, com sua mulher, seu médico, o estudante que chegou para ajudar e a garrafa de champanhe. Quem pediu a bebida? O médico ou Tchékhov? A sedução é tanta que o grande Raymond Carver escreveu um conto, Três rosas amarelas, no qual narra a cena, só que cheia de detalhes inventados. Talvez isso tenha nascido da narrativa de Olga Knipper, atriz e mulher do escritor. Em seu relato, a cena é contada com tanto, mas tanto romantismo que não parece verdadeira. O russo era um escritor que se caracterizava pela falta de artifício e de idealização dos personagens, pilares de um modelo de escrita totalmente ignorados por Olga em seu texto.

Não é estranha a admiração de Carver pelo russo. Basta ler ambos. Indiscutivelmente, o país onde mais profundamente influenciado pela prosa direta de Tchékhov foi os Estados Unidos, onde a afetação não desfruta de muito prestígio. Suas histórias da Rússia Czarista parecem as de um sujeito nascido para a pobreza, mas Tchékhov, neto de um escravo que comprou sua liberdade, acabou homem rico. Foi filho de um dono de armazém, terceiro de seis filhos, chefe de família — cuidava dos irmãos com especial cuidado –, estudou medicina, exerceu-a, parou de praticá-la para apenas escrever, apesar de nunca ter se sentido parte do mundo literário.

Tchékhov, segundo Tolstói, que não é exatamente uma besta para descrever pessoas, seria um homem “doce como uma mulher” e é crível que tenha dito em seu leito de morte que “fazia muito tempo tempo que não bebia champanhe” e mais crível ainda é que o médico o tenha servido, pois sabia da morte inevitável pela tuberculose. Estávamos em 1904. O detalhe do último suspiro e do voo da rolha… Mas voltemos a Tchékhov.

Os personagens de Tchékhov são cheios de boas intenções sobrecarregadas de estupidez, inatividade e finalidade. Ele é moderno em sua concisão, pouca adjetivação e principalmente na recusa em explicar o mundo. Confrontado com as idéias de Tolstoi — o qual em seus textos parece ter resolvido todos os impasses da humanidade — , Tchékhov era um apresentador de realidades complexas e insolúveis que habitam uma dentro da outra. Também defendia, uma novidade na época, os efeitos benéficos da ciência e do progresso.

Por que amamos tanto Tchékhov? Por que as pessoas fazem cara de “coisa fofinha” quando falam nele? Isso ocorre porque ele é o fundador do escritor moderno que não julga os personagens, deixando-os falar sua própria língua? Mas isso não comportaria uma certa dureza narrativa? E o que transparece da doçura de Tchékhov em seus textos? A pensar.

Tchékhov e Tolstói
Tchékhov e Tolstói

Deputado Van Hattem pode pagar até R$ 1 milhão em indenização por atropelamento com morte

Deputado Van Hattem pode pagar até R$ 1 milhão em indenização por atropelamento com morte

Vítima faleceu depois de sete meses internada. Ação tramita no STJ

Da Rádio Guaíba | Por Vitória Famer

Familiares de Adair Wiest seguem esperando respostas da justiça sete anos depois que o pai da família faleceu em decorrência de um atropelamento às margens da BR 116, em Ivoti, no Vale do Sinos. Segundo os familiares, o homem morreu, aos 41 anos, sete meses após o incidente, causado, segundo eles, pelo hoje deputado estadual Marcel Van Hattem (PP). O advogado da família, Marcelo Bastos, estima que se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerar procedente a ação movida pelos parentes, a indenização pode chegar a R$ 1 milhão.

Marcel Van Hattem em foto retirada de seu material de campanha
Marcel Van Hattem em foto retirada de seu material de campanha

Adane Wiest, filha de Adair, contou que o pai retornava de moto de Novo Hamburgo, próximo das 15h, quando percebeu, quase chegando em casa, que uma peça do veículo havia caído às margens da rodovia. Como a casa ficava a aproximadamente 40 metros da BR 116, Adair resolveu deixar a moto em casa e retornar a pé até o acostamento da estrada para procurar a peça. Nesse ponto, ele foi atropelado, em 9 de outubro de 2006.

A família relata que Van Hattem chegou a parar o veículo para prestar socorro à vítima e a ir, no mesmo dia, com os pais, visitar a família de Adair no hospital. No entanto, depois, tudo mudou.

“Ele não nos procurou mais, disse que não podia ajudar e nem acionar o seguro do carro porque ele não foi o culpado, que meu pai que teria invadido a pista e que, por isso, ele teria atropelado meu pai. Não prestou nenhum auxílio. Na época eu não trabalhava, eu tinha 17 anos, meu irmão era menor (tinha 12 anos). A gente vendeu o que tinha e o que não tinha dentro de casa. Precisávamos de fralda e de óleo. Quantas vezes fomos conversar com o Marcel e ele prometia que ia ajudar e não ajudou. Nem visitar meu pai ele foi. Meu pai ficou em coma quase sete meses. Por quase três meses o pai ficou em um lar, porque o hospital não tinha mais o que fazer. Então, é como se tivesse que esperar ele acordar. Ele teve traumatismo craniano. Mandaram ele embora. A casa era um valor absurdo. Fomos conversar com o Marcel. Ele nem bola”, desabafou Adane.

Antes da morte de Adair, o Ministério Público ingressou com uma ação criminal contra Van Hattem. Mas, segundo Marcelo Bastos, a indignação da família é pelo fato de o atual parlamentar não ter respondido pelo homicídio, somente pelas lesões corporais leves, o que tramitou no Juizado Especial Criminal.

“Quando há um atropelamento com morte, quem tem que tratar disso é o Estado. Não é a parte que promove uma ação. E o que se tem no caso concreto, é que o deputado respondeu apenas pelas lesões corporais leves. Tanto é que esse processo tramitou no Juizado Especial Criminal, que trata apenas de lesões leves. A questão do homicídio decorrente do acidente de trânsito não foi apurada. Essa é a indignação da família”, explicou Bastos.

Além disso, a família ingressou com uma ação cível contra Marcel, em 2007, que já foi considerada procedente em duas instâncias da justiça, permanecendo a decisão de culpa. A família pede indenização e danos morais pela morte de Adair. O recurso tramita no STJ, em Brasília. Mas, segundo o advogado da família, a Corte não discute a culpabilidade do motorista. Agora, a discussão é apenas com relação ao valor da indenização.

O deputado respondeu que o acidente ocorreu pelo fato de Adair ter invadido a pista. Van Hattem disse que repudia a ação da família da vítima, que foi até a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, na semana passada, e solicitou a abertura de um investigação sobre o fato, ocorrido há quase oito anos. Apesar de ter sido considerado culpado no âmbito cível, Van Hattem criticou o sistema do Judiciário. Segundo ele, o cível anda “descolado” do criminal.

“Cível, infelizmente, anda totalmente descolado do crime, do processo. O advogado, eu repito, no mínimo está orientando mal os seus clientes dizendo que não fui bem investigado. Isso é mentira. Aconteceu tudo que tinha que acontecer do âmbito das autoridades policiais. Ele está tentando fazer um caso político, inclusive, em cima dessa situação. Mas o cível é um processo separado”, expôs o deputado.

O deputado ainda apontou considerar que a família esteja se utilizando politicamente do caso. A família rebate, assegurando que ingressou com ações contra Van Hattem antes mesmo de ele ser deputado estadual.

A família acrescentou que, na próxima quarta-feira, vai comparecer à reunião da Comissão de Direitos Humanos do legislativo gaúcho.

Albert Camus

Albert Camus

Alguma coisa em O homem que amava os cachorros me lembra Camus.

A morte de Camus, num medíocre acidente de automóvel, aos 46 anos, lembra Moscou. Só hoje descobri que não apenas eu faço a relação. O escritor e tradutor checo Jan Zabrana sugere a possibilidade de que Camus tenha sido assassinado por ordem do Ministro das Relações Exteriores da URSS, Dmitri Shepilov, em retaliação à oposição aberta que o escritor vinha fazendo ao país — particularmente no artigo publicado na revista Franc-Tireur de março de 1957, em que atacava pessoalmente o ministro, responsabilizando-o pelo que chamou de “massacre”, durante a repressão soviética à Revolução Húngara de 1956.

Em sua crítica, Camus citara o poeta americano Walt Whitman. Afirmara “sem liberdade, nada pode existir”. Ganhou assim, a inimizade de stalinistas e de simpatizantes da URSS. Olivier Todd, no livro Albert Camus — Uma Vida (Record, 877 páginas), relata o acidente:

A vinte e quatro quilômetros de Sens, na Rodovia 5, entre Champigny-sur-Yonne e Villeneuve-la-Guyard, o Facel-Véga, depois de uma guinada, sai da estrada em linha reta, se arrebenta contra um plátano, ricocheteia para cima de uma outra árvore, se desmantela. Michel Gallimard sai gravemente ferido — morreu cinco dias depois –, Janine ilesa, Anne também. O cachorro desaparece, Albert Camus morreu na hora. O relógio do painel é encontrado bloqueado às 13h55. A seus amigos, Camus dizia com frequência que nada era mais escandaloso do que a morte de uma criança e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel.

camus

Claudio Abbado (1933-2014)

Claudio Abbado (1933-2014)

O imenso regente Claudio Abbado morreu esta manhã em Bolonha. Tinha 80 anos. Ao longo da sua carreira, iniciada em 1958 na Filarmônica de Nova Iorque, Abbado, que não gostava que lhe chamassem maestro, foi diretor do Scala de Milão (1960-1986), da Ópera Estatal de Viena (1986-1989) e da Filarmônica de Berlim (1989-2002), tendo ainda regido as sinfônicas de Chicago e Londres e sido o catalisador do festival de Lucerna. Viveu durante vários anos com a violinista russa Viktoria Mullova, existindo um filho dessa ligação. Em 1997 atuou em Lisboa à frente da Filarmônica de Berlim. Em 2004 fundou em Bolonha a Orquestra Mozart, que dirigiu até morrer. A degradação do estado de saúde levou-o a cancelar concertos agendados para as próximas semanas, na Itália e fora do país. No verão do ano passado, a Itália fez dele senador vitalício.

Abbado em 2010
Abbado em 2010

O 31 de outubro que não é mais de Drummond, nem de Fellini

O 31 de outubro que não é mais de Drummond, nem de Fellini
Não lembro de que ano é a foto, mas acho que eu estava na faixa dos 30 e ela na dos 60, pois tínhamos exatos 30 anos de diferença.
Não lembro de que ano é a foto, mas acho que eu estava na faixa dos 30 e ela na dos 60, pois tínhamos exatos 30 anos de diferença.

O 31 de outubro já foi, para mim, apenas a data de nascimento de Carlos Drummond de Andrade. Apenas? Depois, passou também a ser a data da morte de Federico Fellini. Pois é. Porém, no ano passado, a data ganhou novo significado; afinal, em 31 de outubro de 2012, às 6h20, faleceu minha mãe. É estranho como lembro absolutamente de todos os que lá foram, dos sentimentos externados e de algumas piadas, as quais ficaram muito mais engraçadas contra um ambiente de luto. Lembro com carinho do encontro da Inah — velha empregada de minha mãe — com minha filha Bárbara. Vi como as lágrimas brotaram imediatamente dos olhos da Bárbara, saudosa das amadas sopas que comeu por toda sua infância. Lembro de comportamentos fora do tom daqueles que não percorreram todo o período do Alzheimer de D. Maria Luiza. Nós estávamos tristes e aliviados. O sofrimento da doença fora imenso e ninguém estava muito desesperado com aquele final que livrava minha mãe de enorme desconforto, apesar de todos os cuidados. Nem sua alimentação era autônoma e as dificuldades respiratórias eram severas. Lembro do dia. Do incrível preço do caixão. Das perguntas que sobre se minha mãe realmente desejara a cremação enquanto estava lúcida. Da escolha da caixinha onde seriam colocadas suas cinzas. De ficar em casa sem ter nada o que fazer enquanto não iniciava o velório. Da música de Chopin que ela amava e que acompanhou o caixão. Da conversa com o padre, ao qual explicamos que ela apenas discretamente religiosa. Das várias histórias contadas a respeito de minha mãe. De seus clientes que diziam que ela fora a melhor dentista que tiveram. Dos que perguntavam como fora toda a evolução da doença e ouviam minha voz (ou a da minha irmã) em piloto automático. Dos constrangidos que não sabiam cumprimentar com “Meus pêsames”, nem com “Lamento muito”, e que ficavam em silêncio ou diziam “Tudo bem?” (e ficavam ainda mais atrapalhados). Daquela noite. Dos dias posteriores. De buscar a caixa com as cinzas e de notar como era pesada e não me causava emoção.

Foto: Augusto Maurer
Foto: Augusto Maurer

Porém, esquecida de tudo isso, hoje fui acordado por uma voz me dizendo: “Dois meses”. E só pude sorrir ante o novo e delicado significado da data. E o espumante já está aguardando a noite.

Elliott Carter (1908-2012)

Elliot Carter

Faleceu ontem em Nova Iorque o compositor americano Elliot Carter poucos dias antes de completar o seu 104º aniversário. Carter é alguém muito particular: conseguia ser totalmente atonal e manter grande lirismo.

Ele foi extremamente produtivo em seus últimos anos. Publicou  mais de 40 obras, entre seus 90 e 100 anos e mais de 14  depois que ele fez 100 em 2008, sem baixar a qualidade. Nas entrevistas abaixo, Carter nos ensina um monte de coisas.

http://youtu.be/Zzs8Ov2p-Rc

A morte de minha mãe e a eutanásia ausente

Minha mãe em 2007.

Este blog serve para várias coisas. Há as resenhas, as mulheres, o futebol, o cinema, as provocações e piadas, alguns comentários objetivos, mas quem tem um blog sempre acaba fazendo textos pessoais ou deixando escapar opiniões que jamais externaria em um meio mais formal, como, por exemplo, um jornal. Como minha mãe morreu na quarta-feira passada, 31/10, é natural que faça comentários sobre isso em meu espaço. Quanto mais não seja pela simples razão de que,  obviamente, é um dos assuntos mais presentes em meus pensamentos nestes dias.

A morte de minha mãe veio após longa doença e acredito que seu sofrimento deveria ter sido mais curto, ou seja, deveria ter sido dada à família a opção da eutanásia. Ela faleceu aos 85 anos e sofria, desde 2004, de uma doença muito parecida e irmã do Mal de Alzheimer: a Demência por Corpos de Lewy. Vários amigos que tiveram casos de Alzheimer ou de Lewy me alertavam para eu me preparar. Em fevereiro de 2007 — após uma queda em casa — ela passou a não mais caminhar. Também deixou de construir uma frase de mais de quatro palavras, raramente com sentido. Certa vez, chamei-a aqui de “minha bobinha feliz”. Ela vivia uma vida de total dependência, mas parecia satisfeita. Sua grande alegria era comer e nisto não se diferenciava muito de mim… Só que a doença seguia seu devastador curso e ela passou a simplesmente não interagir com as pessoas, até comer comia de olhos fechados. E, a partir de maio de 2011 — um ano e meio atrás — foi-lhe tirada sua única alegria.

Como ela não se dava conta mais de mastigar e engolir, parte do alimento ficava por muito tempo em sua boca e acabava indo para o pulmão. Este passou a funcionar muito mal. A asma eventual que ela sempre teve passou a ser regra. Eram várias nebulizações por dia, mas isso é apenas uma parte do problema. Foi-lhe colocada uma sonda. A comida passou a vir de uma garrafa plástica que ficava no alto de sua cadeira ou da cama e a ela ganhou um tubo de oxigênio para poder respirar.

Ou seja, minha mãe não interagia — foram meses e meses de visitas em que ela ficava de olhos fechados e, quando os abria, não acompanhava as pessoas, nem quando dirigíamos a palavra a ela — , não sentia o gosto de sua derradeira alegria — a comida — e respirava com auxílio de aparelhos. Uma mulher que era um furacão, como escreveu minha mulher no post abaixo, perdera toda a dignidade. Como se não bastasse, volta e meia agitava-se muito e confusamente, pois, apesar do oxigênio auxiliar, tinha fortes  crises asmáticas. Seu estado variava entre a completa apatia e zero de interação — suas maiores reações eram à temperatura da água durante o banho — e o sofrimento visível. Tinha a impressão de que ela gostava de ser beijada nas bochechas e na testa, mas é claro que nisto havia muito de desejo meu.

Digam-me, por favor, para que tudo isso? Por que minha mãe teve que sofrer tanto? Sei que não é permitida a eutanásia em nosso país, mas passei os últimos 18 meses querendo que ela fosse sedada e que fosse permitida à natureza agir. Era de opinião que deveriam cessar todas as ações que tivessem como objetivo prolongar sua vida. Todos trabalhavam em torno dela como se ela fosse se recuperar, mas só havia sofrimento naquela pessoa que mal parecia ser a Maria Luiza que conhecíamos. Durante o período, ela foi extremamente bem tratada. O pessoal da Villa Argento fez um trabalho magnífico. Ela passava todo o tempo deitada ou sentada, amarrada para não cair. Apesar disso, recebia tais cuidados que nunca teve escaras ou quaisquer sinais de mau tratamento. Minha irmã e eu sempre concordamos em lhe dar o mesmo que ela sempre nos deu, ou seja, tudo o que fosse possível, mas nunca imaginei aquele cenário. Este era o do sofrimento diário e confuso. Ela devia não entender de onde via a dor, o desconforto e a impossibilidade de respirar.

Para que meus sete leitores tenham uma ideia: na última visita que fiz a ela, acompanhado de minha filha e de minha mulher, ambas saíram de lá chorando. E, na minha opinião, ela estava muito bem naquele dia, respirava sem muito ruído e, bem, era um corpo tranquilo. Só. Como estava acostumado a coisas muito piores — grande agitação e forte asma — estava saindo de lá quase feliz, o que é um conformismo absurdo. Através de minhas acompanhantes, vi o estado de minha mãe.

Mas lhes digo uma coisa: toda vez que ia lá — não ia todos os dias — , mesmo que parecesse normal, acabava o dia em frangalhos. Alguma coisa do que via lá acabava penetrando em mim de tal forma que ia dormir mais cedo. Com certa indignação misturada à ironia (sou assim e não vou mudar), pensava: “hoje fui ver minha plantinha e fiquei desse jeito. Que merda”.

Passei meses desejando que alguém pudesse realizar NÃO um ato que provocasse a morte, mas nenhum que a impedisse. Porém, é claro, a Dra. Maria Luiza foi até o último dia segundo as regras da “ética” vigente. Tal fato tornou seu fim muito mais longo e sofrido para todos, principalmente para ela.

O Brasil dos anos 30, um país tão gentil

Não pretendo discutir a justiça da morte de Lampião e seu grupo, mas dar uma olhada na forma com que as autoridades policiais agiam nos anos 30. Faroeste total. Os adversários políticos de Getúlio Vargas o pressionavam por permitir a existência de Lampião. Então, Getúlio fez uma pressãozinha sobre o interventor de Alagoas, Osman Loureiro. Este prometeu promover ao posto imediato da hierarquia o militar que trouxesse a cabeça de um cangaceiro. Antes, o governo baiano já tinha tentado ajudar o ditador gaúcho, apesar da polícia saber que o grupo encontrava-se entre Alagoas e Sergipe.

Porém, na verdade, Lampião e a maior parte de seus comandados encontravam-se acampados em Sergipe, na fazenda Angicos, no município de Poço Redondo. As forças de Alagoas — sim, dentro de Sergipe — agiram guiadas pelo coiteiro Pedro de Cândido e os cangaceiros não tiveram tempo de esboçar qualquer reação. Ele chegaram às 5h30 da manhã de 28 de julho de 1938. Ao todo foram 11 cangaceiros mortos, entre eles Lampião e Maria Bonita. Foram decapitados e depois houve uma verdadeira caçada ao “patrimônio” dos cangaceiros. Joias, dinheiro, perfumes e tudo mais que tinha valor foi alvo da rapinagem promovida pela polícia.

As cabeças dos 11 cangaceiros do grupo de Lampião estiveram embelezando as escadarias da Prefeitura de Piranhas (Clique para ampliar)

A exposição acima ainda seguiu para Santana do Ipanema e depois para Maceió, onde os políticos puderam tirar proveito dela. Acima, Lampião, Maria Bonita, Luiz Pedro, Quinta-feira, Elétrico, Mergulhão, Enedina, Moeda, Alecrim, Colchete e Macela.

Rei Juan Carlos vem aí, já avisei à Juno para não andar na rua

Minha cachorra pastor alemão, a Juno, é adestrada, mas acho que ela não entendeu quando lhe disse para se cuidasse, afinal, o Rei matador de animais vem aí. Enquanto a Espanha debatia-se com a crise, há algumas semanas o rei mandava um elefante calar-se na África, conforme a bela e macha foto abaixo.

Na juventude, o pobre Juan Carlos matou um irmão num episódio de Caim e Abel muito mal explicado. Alfonso veio a falecer devido a um acidente envolvendo uma arma na Villa Giralda, a casa de veraneio da família no Estoril, em Portugal. Foi um acidente, dizem, mas há dúvidas. A arma estava sendo manuseada por Juan Carlos no momento do acidente. O tal irmão era o predileto de D. Juan (o então rei exilado da Espanha), que ficou destroçado pela perda. Sua mãe, dona Maria, caiu doente, em depressão. No velório do filho, o rei, arrasado, ainda insistiu: “Jura que você não o matou de propósito?”. Mesmo com a morte do irmão, Juan Carlos, o filho superficial, “incapaz de ler um livro”, segundo familiares, segue matador, amante das armas. Assim, meio que renegado pelo pai, o jovem Juan tornou-se filho adotivo de um grande homem, o ditador Francisco Franco… 

Esta flor de pessoa, chega ao Brasil amanhã, em visita oficial.

A morte de Milton Ribeiro

O Escrivão de Polícia sentou-se à mesa e escreveu:

Por ser provocador, por não acreditar em deus, por ter dito isto sempre, por sentir-se superior a quem acredita, por gostar desmedidamente de mulheres, por gostar muito de música, por gostar desmedidamente de literatura, por amar o S.C. Internacional, por ser um glutão, por gostar desmedidamente dos amigos, por defendê-los das iniquidades, por não ser acomodado, por incomodar a acomodação de outros, por gostar de rir desbragadamente, por correr sem ser atleta, por ler mensagens de outros grupos no Facebook, por gostar desmedidamente de cinema, por gostar de criticar internamente, por gostar de externar tais pensamentos em palavras por escrito, por amar Bach, por sofrer eventualmente de hipobachemia, por ser gentil, por ter a baixa auto-estima diagnosticada três vezes e nunca ter se tratado, por não perder piadas, por rir fora de hora, por admirar os seios das mulheres, por desprezar suas bundas, por nunca torcer pela Seleção Brasileira, por manter um blog anônimo, por ser estar sempre insatisfeito, por ter roubado muitos livros, por ter sido processado inutilmente uma vez, por ter sido processado inutilmente duas vezes, por dormir cedo, por acordar às 6h, por nunca ficar doente, por gostar de Bergman e Tarkovski, por ter tido dois filhos, por amá-los incondicionalmente, por ter sido mau aluno, por ter sido o melhor da turma, por dever, por bocejar sem tapar a boca, por enfiar o dedo no nariz quando sozinho, por tomar muitos banhos, por peidar ruidosamente pela manhã, por ter conseguido tocar a sétima de Bruckner de e na cabeça quase sem nenhum erro e no tempo total certo, por ler tudo sobre estética literária e musical, por achar que o Fausto de Mann é maior de todos os livros, por fazer os outros falarem desbragadamente, por desbragadamente ouvi-los, por muitas vezes detestá-los, por ter tantos livros, por ter muitos CDs, por querer mais, por querer mais dos outros, por não querê-los, por trepar pouco, por não ler todos os e-mails que recebe, por nem sempre atender o telefone, por gostar de caminhar, por caminhar pelas ruas como se fosse um personagem de Machado, por ser irônico e debochado com quem conhece, por fazer o mesmo com quem não conhece, por pensar mal das pessoas, por gostar de volantes que saibam jogar e centroavantes fincados, por ter conhecido Londres e Verona, por achar todas as orientais feias, por mentir em coisas sem importância, por exagerar, por não gostar de óperas, por ter opinião, por ter interrompido seu trabalho voluntário — o maior trabalho político que uma pessoa sem talento pode cumprir — , por esquecer de fumar os charutos cubanos que tem em casa, por fazer comentários com nomes falsos, por não gostar de dançar, por gostar que orquestras toquem música escrita para orquestras, por querer os roqueiros tocando rock e os sambistas samba, por todos os pecados que cometeu, por todos os que cometeria, por uma série de motivos que seria longo explicitar e, fundamentalmente, por roncar à noite, sua mulher, de forma inteiramente justificada, coberta de razões, matou-o a golpes de machado na madrugada de ontem.

E, por minha mulher estar fazendo Direito, servi de modelo para um assassinato perpetrado pela fictícia filha, repetidamente abusada, de um fictício cidadão de São Vendelino (imigração italiana) que já olhava a fictícia neta com certo interesse. O sangue era ketchup. Como o vermelho estava muito claro no primeiro momento, fui besuntado também de molho choio — a garrafa está na primeira foto, ao fundo. Os cortes foram feitos com batom. Por mentir a seus sete leitores.

Adendo: não tem muito a ver com a minha história, mas abaixo está o depoimento improvisado, após apenas uma leitura, da vizinha. Tudo isso para o trabalho de aula. Vejam a notável atuação de sua colega Roberta Reginato — sem letras duplas, mas nascida em Cacique Doble (RS).

Pelo telefone

O que há de ficção neste texto de Fernando Monteiro? Olha, acho que bem pouco… Retirado daqui. Ah, Monteiro está publicando Mattinata.

– Alô (com indisfarçável má vontade)… Te disse pra não telefonar. Nunca.
– Sei disso. Só que…
– “Só que” nada, pô. Vou desligar.
– Ouve, primeiro. É sobre a loura.
– Pior ainda. Esse assunto é outro Vietnam, aqui dentro.
– Vietnam que vai piorar. Nas próximas horas.
– Cara, cê tá onde?
– Que pergunta é essa? Brentwood. Em frente da casa da vagabunda, onde montamos a…
– Não sei de nada. Não sei com quem tô falando, nem conheço loura nenhuma.
– Frescura. Ouve, que é melhor. Ela pirou.
– Novidade nenhuma. Frank me disse.
– O quê?
– Que ela pirou. Aliás, sempre foi pirada…
– Aquele cantorzinho sabe de merda nenhuma.
– Você não diz que ela “pirou”? Então, ele sabe.
– Pirou m-e-s-m-o, eu quis dizer. Não é só uma frase.
– Que fase?
– Frase. Não é só conversa fiada, isso dela pirar. Tô falando de loucura mesmo… Ela tá lá na casa, deitada, sem tomar banho…
– Grande novidade.
– Pera aí. E menstruada sem tampão…
– Pô.
– Isso num é nada. Espera pra ouvir o resto.
– Devia tá dopadinha, quetinha, isso sim. A gente paga a porra de um médico…
– A mulher ficou fora de controle, Bob. Agora, ela ficou.
– Como assim? Conheço a doida bem demais.
– Conhece nada…

(Silêncio, logo depois que surgem uns ruídos de telefonia)

– Que é isso? Tá escutando?…
– Sei lá. Te disse pra não ligar.
– Desligo?
– Pera aí. Vou dar outro número.
– Pra ligar?
– Anota, engraçadinho: 33-07-66-02.
– DF?
– Claro, né? Saigon é que não é.

(Curto intervalo)

– Alô.
– Pronto. Vai, fala.
– O que foi aquilo?
– Menor ideia. Isso aqui é vizinho do Oval, pô. Todo mundo grampeia todo mundo…
– Eu sei. Trabalhei aí quase a vida toda, lembra-se?
– Pois é. E a loura? Por que você acha que ela pirou mais ainda?
– Hein? A outra linha tava melhor.
– Esta é mais segura.
– Fala mais alto.
– Uma ova. Tenta escutar mais, tira a cera do…
– Não tô escutando quase nada, agora.
– Merda. Não posso GRITAR.
– Agora tô ouvindo.
– A loura. Por que ela parou?
– Parou de quê?
– Você num disse que ela pirou? Ela parou de ser razoável. Com o Jack.
– É pior do que pensam. A gente gravou ela dizendo que vai falar. Tudo.
– Tudo o quê?
– Tudo.
– …
– Alô?
– Sobre o quê?
– Sobre a ligação com vocês.
– Pera aí… Que ligação?
– Dela. Contigo e com teu irmão.
– Com o Presidente?
– É. Com o Procurador e com o Chefão.
– Não tem “chefão” aqui.
– Tem.
– Você tá falando do Presidente dos Estados Unidos, idiota.
– Teu irmão sempre armou. É doente pela coisa.
– Cala a boca.
– Vi Jack de cueiro. Você nem era nascido ainda. Vão pra merda, os dois.
– …
– Alô.
– Escuta. Tás falando o que não dev…
– Entende, Procurador, vou soletrar: num-dá-mais-tempo. Só isso.
– Pra quê?
– Cê num tava querendo “conversar” com ela de novo? Não dá mais.
– Claro que dá. Nem que tenha que bater na suja.
– Já falei: ela pirou. MM pirou. Diz até que abortou.
– Como é?!
– Tô falando: ela pirou.
– Para de falar “ela pirou”. Que negócio é esse de aborto?
– Ela está disposta a jogar merda toda no ventilador, Robert. Sério. E basta ela fazer uns telefonemas, convocar os putos da imprensa…
– Pô. A merda cobre.
– Então. E enche o Oval (e o país inteiro): de sujeira, de esperma, de droga, de Sam Giancana…
– Esse tá ferrado, o sacana.
– Tá nada. O Sam tá é muito puto com vocês dois…
– Me respeita, cara. E respeita o Presidente.
– Cacete que eu respeito. Dois fudedores comendo todo mundo…
– Cala essa boca.
– VOCÊ me escuta, garoto. Os dois armam, e sobra pra quem? Pra mim. Pro “tio” velho.
– O que é que ela quer? Dinheiro?
– Ela tem.
– Uma merreca.
– Mas assim mesmo ela não quer mais merreca de grana, santo deus. Entende isso, cara. Nem tudo é dinheiro.
– Ô “São Franciscuzinho”, desembucha de uma vez. O que é que a porra da mulher tá querendo?
– O que ela quer? Ela quer ferrar.
– Alô?
– FERRAR. Ela quer isso! Chamar todo mundo, dizer: “sabe quem me come? Eles, os dois…”
– Isso é loucura. Fica calmo.
– Foda-se. Tô calmíssimo. E vendo ela aqui, na minha frente, pelo monitor. Tá possuída, a doida…
– Desliga…
– Desliga o quê? Meu monitor?
– O telefone! VOCÊ tá gritando, cacete.
– É ela que vai gritar. Pra todo mundo ouvir. Jornal, rádio, TV, o escambau…
– …
– Vai gritar que quer casar com o Jack Grandão.
– …
– “Happy birthday Mr. President”… (canta em falsete, irônico)
– …
– Parece até que eu posso ver o casalzinho, e Bob, o mister Procurador… de padrinho.
– CALA A B-O-C-A.
– Eu to avisando: essa mulher é pior que um ataque de míssel russo.
– Deixa eu falar com o Jack.
– Agora?
– Agora. Ele tá vindo pro Oval. E já tá encarando…
– O quê?
– A solução.
– Final?
– Hum-hum.
– Aquela?
– Você próprio acaba de dizer que ela agora ficou doida pra ferrar todo mundo.
– Tá gravado aqui. Posso mandar a fita.
– Manda não. Tu tem razão. Agora, tem é que parar essa desgraçada.
– Bom, isso aí já é falar como homem. Nembutal?
(Silêncio, por um momento)
– Bob? Alô?…
– Tô aqui.
– Nembutal?
– É. Nembutal. Mas, SL. Serviço limpo.
– Autópsia, tudo garantido?
– Cem por cento. Altamente profissonal, nem preciso dizer.
– Sim, mas olha que é a MM, hein? Num é uma qualquer, como aquelas que…
– Escuta, eu vou desligar. Tá ficando perigoso. E Jack chegou lá no Salão. Acendeu a luzinha aqui.
– E o irmãozinho vai falar claro com ele?
– Vou. Mas ele mesmo já tinha pensado em se livrar agora, bem antes da campanha.
– Ok. E eu fico esperando autorizar “despirar” a loura forever?
– Fica. Mas isso não vai ser pelo telefone.
Um click, desligando.

NB:
A atriz Marilyn Monroe, de 36 anos, foi encontrada morta em menos de 24 horas depois dessa conversa por mim transcrita na manhã de 10 de agosto de 1962.
Os jornais informaram mais ou menos assim: “MM faleceu enquanto dormia em sua casa de Brentwood, na Califórnia, aparentemente por efeito de um dose letal de barbitúricos ingeridos pela atriz com a intenção de acabar com a própria vida…”
E hoje está até na geleia geral da Wikipédia: “Ninguém sabe de fato o que aconteceu naquela noite. Ouviu-se o barulho de um helicóptero. Uma ambulância foi vista esperando fora da casa dela antes que a empregada desse o alarme. As gravações de seus telefonemas e outras evidências desapareceram. O relatório da autópsia foi perdido. Toda a documentação do FBI sobre sua morte foi suprimida e os amigos de Marilyn que tentaram investigar o que aconteceu receberam ameaças de morte”.

Eu não vou prantear Chico Anysio

A Salomé de Chico Anysio: linha direta com a ditadura

O que posso fazer? Sempre achei o cara um saco, chato mesmo, o rei do humor rasteiro. Quando era criança e ainda via a Globo, gostava mais de Jô Soares. Chico Anysio era… cansativo, extremamente cansativo naquela eterna criação de tipos que logo se esgotavam e que acabavam repetidos ad nauseam. Criou 200 personagens, cada um com uma piada.

Lembro de algumas coisas, mas principalmente de minha opinião sobre a personagem Salomé, a velhinha que falava ao telefone com o presidente Figueiredo, tratando-o por João Batista e deixando o equino mandatário mais deglutível à população. Lembro como ele parecia bem acomodado durante o regime militar na Globo, mas não sei de maiores detalhes. Lembro também de seu ressentimento contra os novos humoristas como a turma do Casseta & Planeta. OK, eles não eram grande coisa, mas Chico ficou muito puto quando foi encostado pela Globo em favor dos meninos liderados por Bussunda. Mais cômico e estranho foi seu casamento com a ex-ministra de Collor Zélia Cardoso de Mello.

Aliás, há um episódio muito repugnante, ocorrido durante a campanha Collor X Lula. Ele tinha um espaço de stand-up no Fantástico. Então, em pleno calor da campanha, lá foi ele ajudar Collor: contou que D Marisa não poderia ser primeira dama porque o Planalto tinha muitas janelas de vidro e ela não resistiria a limpá-las todas. A Globo o adorava, claro. Era o retrógrado engraçado, o conservador popular. Como os textos que aprovava não eram suficientemente cômicos — pois humor à favor é complicado de aguentar — ,  Anysio passou superfetar novos personagens sob o filtro de seu talento de ator e, principalmente vocal. A propósito, Chico tinha excelente voz e sabia como usá-la. Era o que tinha de melhor.

Acho estranho que toda essa gurizada o esteja chamando de grande mestre do humor, etc. Na verdade, tiveram a sorte de vê-lo quando eram crianças. Todo mundo tem saudades da infância. Na minha opinião, Chico Anysio é um subproduto do monopólio da Globo. Ela era o humor que havia disponível. O ídolo poderia ser outro, mas ele teve sorte de estar lá no momento certo.

Infelizmente, não descansará em paz. Quem vê TV deverá ser invadido por homenagens ao grande homem. Estou fora dessa, ainda bem.

Gustav Leonhardt (1928-2012), morre um mensageiro de Bach

Não direi que foi uma grande perda porque sua grande obra está aí disponível. QUE GRANDE VIDA teve o cravista, regente, organista e musicólogo Gustav Leonhardt!

Ele foi um dos principais impulsionadores da interpretação histórica da música antiga, tendo influenciado diversas gerações de músicos. Leonhardt estudou na Schola Cantorum Basiliensis, na Basileia (Suíça), com Eduard Müller. Depois atuou como docente em Viena e em Amsterdã, tendo sido um dos pioneiros na gravação da obra de Bach, com seus registros das Variações Goldberg e da Arte da Fuga no início da década de 1950.

Gustav Leonhardt virou referência na interpretação e direção de um grande repertório de música de câmara, orquestral e vocal da Renascença, do Barroco e do Classicismo. Junto com Nikolaus Harnoncourt, Leonhardt empreendeu a primeira gravação integral das cantatas de Bach em instrumentos históricos, um projeto que demandou quase 20 anos de trabalho e que está documentado na caixa Bach 2000, disponível no PQP Bach. O artista também gravou a Paixão segundo São Mateus, a Missa em si menor, o Magnificat, os concertos e grande parte da obra de Bach. Foi colocaborado do Collegium Aureum e fez o pepal de Bach num filme de 1968, Crônica de Anna Magdalena Bach., de Daniele Huilet and Jean-Marie Straube (na época aluno de Leonhardt, Bob van Asperen foi Johann Elias Bach e Nikolaus Harnoncourt o Príncipe de Anhalt-Cöthen).

http://youtu.be/3SioCmZfwdE

Paralisados antes de você ver o filme, Gustav Leonhardt e Nikolaus Harnoncourt

Como escreve o site da revista inglesa Gramophone, a lista de discípulos de Gustav Leonhardt equivale a um “Who’s Who” da excelência do teclado, reunindo nomes como Bob van Asperen, Christopher Hogwood, Philippe Herreweghe, Richard Eggar, Ton Koopman, Andreas Staier, Pierre Hantaï, Skip Sempé e muitos outros. Além de seu trabalho na música de Bach, o repertório de Leonhardt ia desde a música elizabetana para teclado até Mozart, mas a ênfase sempre foi no período barroco. Gravou 150 CDs, 70 deles em gravações solo para a Vanguard, Telefunken/Teldec, Deutsche Harmonia Mundi, Harmonia Mundi, EMI Electrola, Seon, RCA, Philips, Virgin Classics, Sony Classical and Alpha.

Com informações da Concerto

Hoje, os 70 anos da morte de Virginia Woolf

Meu querido Leonard.

Tenho a certeza de que estou enlouquecendo novamente: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Comecei a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor.

Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia querer. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser.

Não consigo ler.

O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom.

Quero dizer isso — toda a gente sabe. Se alguém pudesse ter-me salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.

V.

Virginia Woolf em 1902

Os dias 30 e 31 de julho de 2007 foram …

… muito estranhos. No dia 30 morreu Ingmar Bergman e, no dia seguinte, Michelangelo Antonioni. Fiquei meio perdido.

Ingmar Bergman (1918-2007)

Após produtiva existência, faleceu hoje pela manhã o maior diretor e autor de cinema de todos os tempos, Ingmar Bergman. O anúncio foi feito pelo Real Teatro Dramático da Suécia. Ele morreu em sua casa, em Faro. Pior notícia é difícil.

Nascido a 14 de Julho de 1918 em Uppsala, a norte de Estocolmo, Ingmar Bergman realizou ao longo da sua extensa carreira mais de 40 filmes, entre os quais se destacam Mônica e o Desejo (1951), “O Sétimo Selo” (1956), “Morangos Silvestres” (1957), “O Rosto” (1958), “Persona” (1966), “Gritos e Sussurros” (1972), “Sonata do Outono” (1978), “Fanny e Alexander” (1982) e “Sarabanda” (2003), além do esplêndido roteiro de “Infiel” (2000), de Liv Ullmann.

O cinema de Bergman vai muito além da simples diversão ou deleite, ele desperta reflexões sobre a vida, suas representações e o próprio homem. Eram os atores quem faziam os filmes de Bergman, eram eles quem davam vida a seus filmes e poderíamos dizer que eram suas feições a razão de seus filmes.

Além da sua obra cinematográfica, Bergman foi durante toda a vida um homem de teatro, tendo encenado numerosas peças, nomeadamente as do seu ídolo de juventude, August Strindberg. Foi no entanto o cinema o seu meio de expressão de eleição. “Fazer filmes é para mim um instinto, uma necessidade como comer, beber ou amar”, declarou em 1945.

Cineasta das mulheres, como alguns o consideravam, proporcionará os melhores papéis a atrizes como Maj Britt Nilsson, Harriet Andersson, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Eva Dahlbeck, Ulla Jacobsson e Liv Ullmann. Teve casos amorosos com várias das suas atrizes, casou-se cinco vezes e teve nove filhos.

<em>Que o cinema seja o meio que me expresso é absolutamente natural. Fiz-me compreender numa língua que passava ao lado da palavra de que carecia, da música que não sabia tocar, da pintura que me deixava indiferente. Subitamente tive a possibilidade de me corresponder com o mundo numa linguagem que literalmente fala da alma para a alma, em termos que, quase de maneira voluptuosa, escapam ao controle do intelecto.</em>

Filmografia principal:

2003 – Sarabanda
1986 – Documentário sobre Fanny and Alexander
1984 – Depois do ensaio
1982 – Fanny e Alexander
1980 – Da vida das marionetes
1978 – Sonata do outono
1977 – O ovo da serpente
1976 – Face a face
1974 – A flauta mágica
1973 – Cenas de um casamento
1972 – Gritos e sussurros
1971 – A hora do amor
1969 – O rito
1969 – A paixão de Ana
1968 – Vergonha
1968 – A hora do lobo
1966 – Persona (Quando duas mulheres pecam)
1964 – Para não falar de todas essas mulheres
1963 – O silêncio
1962 – Luz de inverno
1961 – Através de um espelho
1959 – A fonte da donzela
1958 – O rosto
1957 – Morangos silvestres
1956 – O sétimo selo
1955 – Sorrisos de uma noite de amor
1955 – Sonhos de mulheres
1953 – Noites de circo
1952 – Mônica e o desejo
1952 – Quando as mulheres esperam
1949 – Prisão
1948 – Música na noite
1946 – Chove em nosso amor
1945 – Crise

Michelangelo Antonioni (1912-2007)

Este blog não tem o menor interesse em especializar-se em obituários, mas o que podemos fazer se, nesta semana absurda, morrem Bergman e Antonioni, o último citado há três dias por seu Blow-up e por Vanessa Redgrave na minha rubrica (como os portugueses a chamam) Porque hoje é sábado? Mas deixemos para falar em A Noite e no ocaso do grande cinema em outro dia.

Posts de 30 e 31 de julho de 2007 em meu antigo blog…

Michael Jackson é um vírus / Semelhanças

Sim, e meu antivírus já ficou todo eriçado com a possibilidade de ele penetrar em meu notebook, mesmo ele sendo um Dell púbere de mais de três anos.

Michael Jackson era um gênero de ruína moderna que nunca conseguiu me interessar. Mesmo com toda a sedução que a palavra “decadência” possui para todos os leitores, Jackson parecia estar em outro mundo, só compreendido por Liz Taylor e seus fãs. Além do embranquecimento, do nariz de múmia, das bolhas (pois ele dormiu em bolhas de vidro numa época, não?), de balançar bebês em sacadas, de comprar e perder os direitos sobre a obra dos Beatles, das acusações de pedofilia, do casamento com a filha de Elvis Presley, do seu sítio Peter Pan-like, do casamento com sua enfermeira e de um monte de loucuras, pijamas, roupas, fantasias e excentricidades, o que havia nele? Ah, também tinha sua belíssima dança e, lá atrás, bem lá atrás, talvez alguma música.

Delas só consigo lembrar de Thriller e Black or White e mesmo assim só acho legal os videoclipes. Caetano Veloso costumava cantar Billy Jean, porém, francamente, nunca entendi direito a melodia, até porque nunca ouvi o original. Sou um ET que quase só ouve eruditos — agora mesmo estou ouvindo Fasch — e jazz. Além do mais, não compreendo um negro que fica branco, alegadamente em razão do vitiligo. Aliás, toda sua figura transformada por operações, mais a roupa, o rancho e a cobertura insistente da imprensa, sempre me mostraram que Michael era um jeca enlouquecido.

O fim de Michael Jackson e o de Farrah Fawcett, aos 50 e 62 anos, não me causam nenhuma comoção, mas fico encasquetado com uma coisa: são ídolos que explodiram quando eu já tinha idade para rejeitá-los. Ou seja, são pessoas para mim muito jovens e próximas de meus 51 anos.

-=-=-=-=-=-=-

Ontem, estávamos vendo As Confissões de Henry Fool e meu filho apontou semelhanças entre:

O ator James Urbaniak (figura comum nos filmes de Hal Hartley) e Dmitri Shostakovich

De novo, como contraprova:

E, em linha menos artística, Mahmoud Ahmadinejad e eu:

Para que recontar os votos, porra?

Mario Benedetti (1920-2009)

A Meg me avisa que um dos escritores que mais amo morreu ontem em Montevidéo aos 88 anos. Claro que foi uma vida longa, prolífica e deveríamos ficar felizes com uma existência assim, só que Mario Benedetti, mesmo em seus livros mais políticos, tinha uma voz tão próxima do leitor, tornava-se tão íntimo de nós, que é impossível não se sentir triste por ele, pela literatura, pelo Uruguai e por nós, que vamos ficar privados de sua companhia. Gosto muitíssimo dele e agora improvisarei qualquer coisa em sua memória.

Rodolfo Nin Novoa, presidente em exercício do Uruguai, María Simon, ministra da Cultura, e Ricardo Ehrlich, prefeito de Montevidéu estão preparando seu velório no Palácio Legislativo e seu sepultamento no Panteão Nacional.

A Agência EFE publicou a seguinte nota, de Juan Antonio Sanz:

Montevidéu, 17 mai (EFE).- O escritor uruguaio Mario Benedetti deixa atrás de si uma rica obra, na qual os mais de 80 romances, ensaios, contos e poemas escritos mostram o compromisso social e a coerência de alguém que acreditou “na vida e no amor, na ética e em todas essas coisas tão fora de moda”.

“Ele sempre disse que se sentia mais poeta que outra coisa”, afirmou a biógrafa do escritor, Hortensia Campanella, quando apresentou, há alguns meses, o livro “Mario Benedetti. Un mito discretísimo”.

Na obra, ela traça a trajetória de um dos mitos da literatura hispano-americana do século XX e talvez a consciência poética de todo um continente.

Essa poesia se transformou no único pilar para enfrentar seus últimos anos, após a morte da esposa, Luz López, em 2006, sua companheira há mais de seis décadas e a melhor crítica do poeta.

Benedetti teve “uma vida que foi perseguindo a utopia e que, por isso mesmo, encontrou na poesia sua melhor expressão, ou pelo menos, a mais querida, a mais autêntica”, explicou Campanella.

Joan Manuel Serrat, Daniel Viglietti, Pedro Guerra, Rosa León, Juan Diego ou Nacha Guevara são só alguns dos cantores que deram voz aos versos de Benedetti.

A poesia, dizia Benedetti, é “um sótão de almas”, uma “claraboia para a utopia” e “uma drenagem da vida/ que ensina a não temer a morte”.

Foi também o martelo que lhe permitiu forjar uma carreira literária ligada às profissões mais diversas: empregado de uma oficina, taquígrafo, caixa, vendedor, contador, funcionário público, tradutor e jornalista, antes de se dedicar ao que mais gostava.

“Quando tenho uma preocupação, uma dor ou um amor, tenho a sorte de poder transformar em poesia”, afirmava.

Títulos como a primeira obra do autor, “La víspera indeleble”, os “Poemas de la oficina”, “Rincón de Haikus”, os grandiosos três “Inventarios” ou as “Canciones del que no canta” foram coroados no ano passado com seu último poemário, “Testigo de uno mismo”.

Este livro era “um pouco o resumo de uma carreira poética extraordinária”, com todos os grandes temas da poesia universal transbordando pelas páginas, como disse a romancista Sylvia Lago.

Além disso, nesta obra já se pressentia o final dos dias do escritor, pois ele dizia claramente que se sentia só sem sua amada Luz e com um mundo reduzido: “Chega a noite e estou só/ me aturo a duras penas/ o bom amor a morte o levou/ e não sei para quem seguir vivendo”.

A poesia também deixou muito espaço para a prosa na obra de Benedetti e, assim, seu principal romance, “La tregua”, é uma das luzes da literatura do continente, com mais de 140 edições em 20 idiomas desde que foi publicado, em 1960.

O poeta também dedicou tempo aos contos, nos quais “cada palavra tem valor por si só” e, sobretudo, “têm a ver com os sentimentos”, como explicou em 1998.

O conto “é o gênero mais gratificante, tanto para o autor quanto para o leitor”, pois, “desde tempo imemorável, as pessoas gostam de que lhes contem coisas, e alguns gostam de contá-las”, dizia o autor de “Geografía”, “La vecina orilla” e “Montevideanos”.

Tanto a prosa como a poesia de Benedetti foram reconhecidas amplamente, e isso é atestado por prêmios Ibero-americano José Martí (2001) e Internacional Menéndez Pelayo (2005).

Em sua última aparição pública, em dezembro de 2007, Benedetti recebeu a Ordem Francisco Miranda, dada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, na Universidade da República do Uruguai, aclamado pelas centenas de estudantes que reconheciam no poeta um ícone nacional.

Chávez reconheceu o autor de “Gracias por el fuego” como um ícone da esquerda latino-americana, pelo compromisso social que refletiu em sua vida, com o exílio durante a ditadura uruguaia na Argentina, em Cuba e na Espanha, e, sobretudo, em sua obra.

“A consciência é a única religião”, chegou a dizer este crítico da “grande hipocrisia que rege toda a vida política” e da globalização, à qual chamou de “ditadura indiscriminada, que cada vez conduz mais ao suicídio da humanidade”.

Em declarações à Agência Efe em junho de 2002, Benedetti explicava que, apesar de “os poetas não terem capacidade de influir nos Governos”, “atingem o cidadão comum, e, às vezes, servem para esclarecer uma dúvida, para dar uma tímida resposta a uma pergunta de alguém”.

Há alguns meses escrevi uma resenha a respeito de seu grande ensaio sobre a mediocridade, o romance A Trégua.

E, em meu blog anterior, publiquei duas resenhas curtas:

Eu já deveria ter lido Gracias por el fuego há muitos anos. Afinal, tudo o que do uruguaio Mario Benedetti me caiu nas mãos foi apreciadíssimo. Durante a Feira do Livro de Porto Alegre, descobri que havia uma edição em pocket da L&PM e finalmente o adquiri. É um livro político que trata do tema da frustração e do conformismo ou impotência frente à realidade, mas também é um romance psicológico que trata da baixa auto-estima. A obra foi censurada durante as ditaduras no Uruguai, na Argentina e na Espanha e diria que nunca estes governos foram tão exatos ao identificar algo que os explicasse e ameaçasse. A relação de Ramón Budiño com seu pai é a analogia perfeita dos métodos utilizados pelos regimes ditatoriais e uma aula sobre corrupção. Nada mais atual. Sem palavras de ordem, sem discursos datados e fora de hora, o livro tem boa trama e convence por seus personagens bem construídos e por sua humanidade. E traz, como sobremesa, uma figura de mulher absolutamente irresistível: Dolly, ou Dolores, para os íntimos. É uma pena que não tenhamos no Brasil uma obra sobre os tais “anos de chumbo” que chegue aos pés de Gracias por el fuego.

A Borra do Café, do uruguaio Mario Benedetti (Record) é um livro fácil de ler, daqueles de levar na mão de um lugar a outro. A princípio, parece ser um livro de crônicas, mas estas começam a completar-se e a ter continuidade formando um curioso romance feito de mosaicos. É notavelmente bem escrito e — por que não? — montado. Destaque para as descrições das primeiras experiências sexuais do personagem principal e para o ambiente da Montevidéo dos anos 30 e 40.

Termino este obituário com outro, escrito por Benedetti. O refinado escritor era capaz de momentos de ódio, como quando festejou a morte de Ronald Reagan. Leiam:

A Ronald Reagan, a la muerte de un canalla

OBITUARIO CON HURRAS, de Mario Benedetti

Vamos a festejarlo
vengan todos
los inocentes
los damnificadoslos que gritan de noche
los que sueñan de dia
los que sufren el cuerpo
los que alojan fantasmas
los que pisan descalzos
los que blasfeman y arden
los pobres congelados
los que quieren a alguien
los que nunca se olvidan
vamos a festejarlo
vengan todos
el crápula se ha muerto
se acabó el alma negra
el ládron
el cochino
se acabó para siempre
hurra
que vengan todos
vamos a festejarlo
a no decir
la muerte
siempre lo borra todo
todo lo purifica
cualquier día
la muerte
no borra nada
quedan
siempre las cicatrices
hurra
murió el cretino
vamos a festejarlo
a no llorar de vicio
que lloren sus iguales
y se traguen sus lágrimas
se acabó el monstruo prócer
se acabó para siempre
vamos a festejarlo
a no ponermos tibios
a no creer que éste
es un muerto cualquiera
vamos a festerjarlo
a no volvermos flojos
a no olvidar que éste
es un muerto de mierda

Em português:

OBITUÁRIO COM HURRAS, de Mario Benedetti

Vamos lá, vamos festejá-lo
estão todos convidados
os inocentes
as vítimas lesadas
os que gritam de noite
os que sonham de dia
os que sofrem no corpo
os que alojam fantasmas
os que pisam descalços
os que blasfemam e ardem
os pobres congelados
os que amam alguém
os que nunca se esquecem
vamos festejá-lo
estão todos convidados
o crápula morreu
acabou-se a alma negra
o ladrão
o porco
acabou-se para sempre
viva
estão todos convidados
vamos festejá-lo
para não dizer
que a morte
apaga sempre tudo
tudo purifica
num dia qualquer
a morte
não apaga nada
ficam
sempre as cicatrizes
viva
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não chorar como de hábito
que chorem os que são como ele
e que engulam suas lágrimas
foi-se embora o monstro magnata
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
sem ficar mornos
sem acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
sem ficar frouxos
sem esquecer que este
é um morto de merda

Um morto de merda é tudo o que Mario Benedetti não é. Em 2006, Benedetti perdeu sua esposa, que se chamava Luz e com a qual era casado desde 1946. Nunca se recuperou. Luz o acompanhou no longo exílio pela Argentina, Peru, Cuba e Espanha. Benedetti afirmava que a literatura era “um sótão de almas”, uma “clarabóia para a utopia” e “uma drenagem da vida que ensina a não temer a morte”.

Atualização das 7h20: aqui, um excelente texto sobre Benedetti. E aqui, imagens — quase todas recentes — do velhinho.

Ingmar Bergman, J. S. Bach e minha separação

Sempre tive desmedida admiração por J. S. Bach e Ingmar Bergman. O que não sabia, até uns anos atrás, era da admiração que Bergman nutria pelo alemão. Nos livros do diretor sueco há muitas referências a Bach e não são observações triviais ou superficialmente admirativas, são observações de conhecedor, de alguém que conhece inclusive o simbolismo que perpassa algumas obras.

Ele diz ter utilizado a música de Bach nas cenas mais importantes de seus filmes ou, pelo menos, naquelas em que achava que a atenção do espectador podia ser dividida com a música. A escolha era quase sempre entre Bach ou o silêncio. No livro “Lanterna Mágica”, ele transcreve uma longa conversa que teve com o ator Erland Josephson. Nela, revela que, nos momentos de maior desespero, costumava contar para si mesmo uma história vivida por Bach.

Johann Sebastian havia feito uma longa viagem de trabalho e ficara dois meses fora. Ao retornar, soube que sua mulher Maria Barbara e dois de seus filhos haviam falecido. Dias depois, profundamente triste, Bach limitou-se a escrever no alto de uma partitura a frase que servia para consolar Bergman: Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim.

Bergman escreve em A Lanterna Mágica:

Eu também tenho vivido toda a minha vida com isto a que Bach chama “a sua alegria”. Ela tem-me ajudado em muitas crises e depressões, tem-me sido tão fiel quanto meu coração. Às vezes é até excessiva, difícil de dominar, mas nunca se mostrou inimiga ou foi destrutiva. Bach chamou de alegria ao seu estado de alma, uma alegria-dádiva de Deus. Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim, repito no meu íntimo.

Eu, o limitado Milton Ribeiro, um dos tantos admiradores de Bergman e de Bach, também fiquei repetindo esta frase por muito tempo. Era um mantra que me emocionava, me acalmava e me fazia pensar que a minha alegria ainda estava ali comigo, tinha de estar. É um grito infantil que reconheço e que não me abandonou.