‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

‘Como fazemos com o sexo e a religião, não gostamos de falar sobre a memória’: a pianista Angela Hewitt fala sobre como ela mantém a sua em forma

A pianista reflete sobre as extraordinárias exigências de memória demandadas dos solistas de concerto e como ela continua a treinar esse músculo

Por Angela Hewitt
Traduzido do The Guardian

Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota’… Angela Hewitt. Fotografia: Keith Saunders

Acontece com todos os pianistas: aquele momento aterrorizante quando você está no palco e não consegue se lembrar do que vem a seguir. Certa vez, meu ex-professor, Jean-Paul Sévilla, estava tocando as Variações Goldberg de Bach quando, ao final da Variação 7, não conseguia se lembrar como começava a Variação 8. No momento em que ele saiu do palco para encontrar sua partitura, ele lembrou, mas sua noite já estava arruinada. Depois aconteceu de Vlado Perlemuter sair de casa para a sala de concertos, quando questionado pela esposa se tinha esquecido de alguma coisa, um amigo lhe disse brincando: “O começo do concerto!” Quando, algumas horas depois, Vlado subiu ao palco em Paris para executar o Quarto Concerto para Piano de Beethoven (que começa com um solo de piano famoso), ele não conseguiu encontrar as notas. Minha própria vez chegou quando eu tinha 50 anos, tocando o Cravo Bem Temperado de Bach (todas as quatro horas e meia dele) de memória em Stuttgart. Foi parte de uma turnê mundial na qual toquei aquela obra gigantesca 56 vezes em 26 países. Naquela noite, no entanto, entrei errado na grande fuga em Lá menor do Livro 1 e não consegui encontrar como sair… Eu tive que levantar para ir buscar a partitura. Você se sente muito envergonhado — mas somos apenas humanos e às vezes isso acontece.

No geral, fui abençoada com uma memória excelente — suponho que alguns diriam até prodigiosa, já que executei as obras solo completas para teclado de Bach (com exceção de A Arte da Fuga), as 32 sonatas de Beethoven e quem sabe quantos milhões de outras notas da memória ao longo dos anos. Sempre pensei que seria uma boa ideia medir meu cérebro antes de memorizar todo aquele Bach e depois novamente para ver como ele havia se desenvolvido e mudado. Tarde demais agora. Aos 64 anos, ele definitivamente está diminuindo, e a memorização tornou-se uma atividade muito consciente, frustrante e demorada. Mas continuo nisso porque a memória é um músculo que precisa ser constantemente usado.

Quando você é um jovem pianista, a memória vem quase sem pensar. Uma grande parte dela é memória reflexa; acrescente a isso a memória auditiva (especialmente se, como eu, você tivesse ouvido absoluto), a memória visual (alguns pianistas, como Yvonne Loriod, que era casada com Olivier Messiaen, tinha uma peça memorizada depois de olhá-la apenas uma vez) e a memória de associação, e você tem um processo relativamente rápido.

Digo que eu “tinha” afinação perfeita porque ela diminuiu com a idade. Quando criança, eu conseguia nomear instantaneamente todas as notas, mesmo nos acordes mais complicados. Agora preciso de tempo para pensar nisso. A tonalidade perfeita está relacionada à memória: se uma fica fraca, o outra também. Todo mundo de uma certa idade que já encontrou esse problema. Isso torna a memorização uma tarefa muito mais complicada.

A memória é um assunto sobre o qual não gostamos de falar – é como o sexo, o amor e as crenças religiosas – muito provavelmente porque temos medo de perdê-la. É preciso coragem para admitir até para si mesmo que sua memória está falhando. Muitas vezes, amigos ou familiares percebem primeiro. Não devemos nos sentir envergonhados, mas sim abraçar esse sinal normal de envelhecimento e fazer tudo o que pudermos para manter nosso cérebro vivo. Fico chateada quando não consigo lembrar onde coloquei meu cartão de embarque, como aconteceu esta manhã em Heathrow (apenas para encontrá-lo no compartimento externo da minha mala, onde devo tê-lo colocado cinco minutos antes), quando não me lembro se tomei minha pastilha diária de TRH (terapia de reposição hormonal) — agora há algo que ajuda mulheres mais velhas com memória! –, e quando cometo o mesmo erro repetidamente ao aprender uma nova peça.

No verão passado, fui presidente do júri da competição de Bach em Leipzig, na qual os competidores podiam escolher se tocariam de memória ou com a partitura. (Com a partitura hoje em dia significa principalmente “com um iPad” acrescentado de um pedal para virar as páginas na tela, embora um concorrente tenha usado o aplicativo que permite fazer uma careta facial para virar a página – algo que achei profundamente desconcertante). Na idade deles, eu nunca teria sonhado em usar a partitura, mesmo para complicadas peças contemporâneas. No entanto, alguns deles o fizeram. Eles não poderiam ter gasto o tempo extra necessário para memorizar a música? Sei que a tendência hoje em dia é dizer que não importa, mas sei que quando consigo realizar algo com segurança de memória, isso me dá uma sensação maravilhosa de liberdade e realização.

Angela Hewitt se apresentando na sala de concertos St George em Bristol. Fotografia: Stephen Shepherd/The Guardian

Uma das falhas mais comuns dos pianistas é que passamos muito tempo tocando as notas e pouco tempo pensando no que estamos fazendo. “Pense 10 vezes e depois toque uma vez” já dizia o sábio Franz Liszt, que balbuciava mais notas por minuto do que qualquer outro (e que, junto com Clara Schumann, foi o primeiro pianista a tocar de memória – ato considerado arrogante pela público da época). Na verdade, o melhor trabalho de memória é feito longe do teclado – apenas olhando a partitura, memorizando seu dedilhado, as harmonias, os lugares onde é fácil errar, os intervalos, quantas notas há em um acorde, a dinâmica, o fraseado; nada é simples ou evidente demais para passar despercebido. Você deve se visualizar tocando a peça sem estar em um teclado. Então depois vá, toque e você ficará surpreso com o progresso que você fez.

Mesmo quando você está muito concentrado, o cérebro é constantemente assaltado por pensamentos estranhos e muitas vezes tolos. Como um pianista tocando de memória, você se treina para lidar com isso. Eu chamo isso de modo de dupla concentração. Tosse da plateia (as pessoas percebem que apenas uma tosse no lugar errado pode facilmente derrubar tudo?); o inevitável celular (sigo como se nada tivesse acontecido, senão piora as coisas); até uma vez tive um besouro subindo lentamente pelo meu braço nu durante uma fuga de Bach. Você tem que ser capaz de contar com sua concentração para passar, não importa o que aconteça.

Você também deve se treinar para pensar no que vem depois na partitura ou na memória — mesmo que apenas por uma fração de segundo. À medida que o cérebro envelhece, isso se torna ainda mais difícil, mas necessário. Acho que é por isso que os pianistas mais velhos em geral (Martha Argerich sendo a exceção) tendem a tocar mais devagar do que os mais jovens, para quem a velocidade costuma parecer o objetivo final. É também por isso que, como público, ficamos mais perturbados com os andamentos rápidos à medida que envelhecemos. É demais para nossos cérebros mais lentos processarem.

Aos 20 anos, morei no estúdio de um artista acima de uma filial do Banque Nationale de Paris por dois anos. O pessoal do banco sabia que eu era a única tocando no andar de cima, praticando, e eles afirmaram não se importar, exceto quando eu “tocava a mesma coisa repetidamente”. Para roubar uma observação do ator Roger Allam, a palavra francesa para ensaio é “répétition”, e é isso que você precisa fazer. Arranje um piano silencioso se isso deixar sua família ou vizinhos loucos; Costumo ter um em quartos de hotel quando estou em turnê.

Tocando com a Aurora Orchestra em Kings Place em Londres. Fotografia: www.kingsplace.co.uk/kplayer

Outra coisa que você pode fazer para treinar o cérebro é pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Você pode praticar isso estando em um restaurante lotado e ouvindo duas ou mais conversas simultaneamente. Você precisará disso se estiver tocando uma fuga de Bach, que pode ter até cinco vozes, cada uma tão importante quanto a outra. Quando subo no palco, lembro-me de “cantar” cada nota; na verdade, quando pratico, estou constantemente cantando, tentando imitar a voz humana em um instrumento cujos sons são produzidos por martelos batendo nas cordas. Ao cantar, envolvo minha concentração e minhas emoções, assim como minha memória. Ao contrário do meu compatriota Glenn Gould, quando estou no palco ou em um estúdio de gravação, faço isso silenciosamente.

Se tudo isso soa muito cansativo então, acredite, é mesmo. Faça pausas quando sentir que seu cérebro está cansado e certifique-se de que ele receba todos os nutrientes de que precisa. Álcool e pílulas para dormir não ajudam – e é por isso que evito o primeiro e me recuso a usar o segundo. Nos bastidores das salas de concerto, tenho os alimentos para o cérebro prontos: sardinhas enlatadas, abacates, manteiga de amendoim, biscoitos de centeio, mirtilos, bananas e muita água.

Muitas vezes ouço as pessoas dizerem que não conseguem mais memorizar nada. Sim, mas você realmente tentou? Se você não é músico, pegue um poema, uma receita ou o telefone dos seus melhores amigos. Acima de tudo, não desista. Conheça o seu cérebro e trabalhe nele.

Sempre digo que não conseguiria decorar as obras completas de Bach e ter quatro filhos. Isso teria sido impossível. Eu não tenho nenhum. Mas tive uma vida maravilhosa na companhia de algumas das maiores mentes que já existiram, e para eles, e para meus pais músicos que me colocaram na frente de um piano de brinquedo aos dois anos de idade, eu sou para sempre grata.

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O entusiasmo fundamentado (para o 80º aniversário de Maurizio Pollini)

O entusiasmo fundamentado (para o 80º aniversário de Maurizio Pollini)

Stefano Russomanno

Quando Maurizio Pollini venceu o Concurso Chopin de Varsóvia em 1960, fê-lo com uma maturidade musical que surpreendeu o júri. “Esse garoto toca melhor do que qualquer um de nós”, comentou Arthur Rubinstein na época. O controle técnico e intelectual que esse jovem pianista de 18 anos exibia em cada canto da partitura revelava uma capacidade de análise muito superior não apenas à média de seus contemporâneos, mas à de muitos talentosos intérpretes. Pollini aprofundou-se na essência do texto musical para revelar a lógica de sua construção, a coerência de sua estrutura e a precisão de seu ditado. Ainda assim, a música não era para ele um terreno governado pelas leis do determinismo impassível. Suas versões transmitiam um vigor na expressão de frases e ritmos que despertavam o entusiasmo do ouvinte.

Há algo de didático no estilo pianístico de Pollini no mais alto sentido da palavra. Interpretar, para o pianista italiano, implica ao mesmo tempo em esclarecer, explicar, fornecer ao público um fio condutor que lhe permite compreender os motivos pelos quais a música flui de uma determinada forma. O componente emocional, sempre essencial, deve vir acompanhado do elemento analítico e racional para alcançar a plenitude da mensagem na consciência auditiva.

Uma das marcas de Pollini é sua maneira de estabelecer seus programas de recitais. Neles, o pianista italiano tem-se caracterizado por misturar frequentemente peças do repertório clássico e romântico com obras do século XX (ou seja, de todo o século XX, não apenas das primeiras décadas). Para Pollini, a criação musical é um continuum que não conhece fraturas, uma forma de pensar os sons e, portanto, é errado isolar certas linguagens como se fossem compartimentos estanques. Seus esforços foram na direção oposta: mostrar o que é clássico nas páginas contemporâneas e o que é contemporâneo no repertório clássico. Assim surgem os chamados “Projetos Pollini”, nos quais o diálogo entre o passado e o presente ocorre da forma mais natural. Pode acontecer, por exemplo, que o público tenha ouvido na mesma noite o Hammerklavier de Beethoven e a Sonata para piano nº 2 de Boulez (uma obra que Pollini tocava de cor em sua época de ouro).

Precisamente o Hammerklavier, gravado em 1976, é uma amostra ideal das abordagens de Pollini. Principalmente a fuga final, que talvez seja o momento culminante de sua versão. Para além do espantoso controle técnico, à disposição de poucos pianistas, Pollini conduz o ouvinte pelos meandros do contraponto e revela toda a modernidade do pensamento beethoveniano, a forma revolucionária como o compositor molda os materiais (sublinhando, por exemplo, o carácter quase estrutural dos trinados) e seu revolucionário conceito sonoro, onde o discurso musical parece às vezes transfigurado em termos de pura energia.

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Daniil Trifonov: “Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo”

Daniil Trifonov: “Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo”

Nacho Castellanos e Rafael Ortega Basagoiti
Tradução livre de Milton Ribeiro

Ele saiu sem quase respirar. Ele havia acabado seu concerto com a OCNE (Orquesta y Coro Nacionales de España) e imediatamente se reuniu com a SCHERZO para esta entrevista. Daniil Trifonov voltou a Madrid inesperadamente para substituir Mitsuko Uchida. Ele ficou surpreso ao ver a sala com pessoas… Até sua voz falhou quando ele se referiu à emoção que sentiu ao ouvir aplausos. Um gesto tão simples, tão espontâneo, mas que agora é raro.

Em sua agenda, está o retorno ao Ciclo dos Grandes Intérpretes da Fundação Scherzo no dia 24 de março. A arte da fuga, aquele bastião intransponível da história do teclado, será o protagonista de um recital dedicado a J. S. Bach. Quando ele fala sobre Bach, sua voz fica aveludada, até soa solene. É um compositor que o acompanha desde pequeno. Chegou a hora de dialogar com o gênio de Eisenach, que por mais de 20 anos permaneceram em estúdio, em viagens pelos palcos pelo mundo. Trifonov encontra Bach,  ou  Bach encontra Trifonov . Julgue por si mesmo!

Como você se sente sobre a experiência de concerto neste mundo regido por máscaras e géis hidroalcoólicos?

É algo que muda de acordo com o destino. No final de janeiro, por exemplo, fiz um show na Alemanha sem plateia. Mas agora eu vim para a Espanha e posso tocar com uma orquestra sinfônica em um auditório lotado. Portanto, as circunstâncias são específicas de cada país e as medidas que são adotadas variam dependendo de onde você for. Há concertos que são cancelados, outros podem ser transmitidos e depois há a sorte de fazer concertos com público.

Há poucos minutos você tocou com a OCNE o Concerto para Piano e Orquestra Nº 1 de Beethoven. Coincidentemente, na última entrevista que você concedeu ao SCHERZO, em 2017, comentou que compositores como Beethoven, Bach ou Brahms ainda estavam distantes, não sentia que era chegado o momento de mergulhar na sua música. Em 24 de março você enfrentará A Arte da Fuga de Bach no Ciclo dos Grandes Intérpretes. O que mudou desde 2017 para que você de repente encontre a proximidade ou a perspectiva de mergulhar na sua música?

Bach é um compositor que sempre me acompanhou e acompanha. Quando eu era estudante em Moscou, lembro-me de passar horas e horas ouvindo sua música. Da mesma forma que Beethoven, é um compositor inevitável na carreira de qualquer músico. O fato de eu não tocar certos compositores em público não significa que não o faça na esfera privada. O que é novo para mim é Brahms. Recentemente, estive trabalhando no Primeiro Concerto para Piano que apresentei no ano passado em Rotterdam e agora estou me aprofundando em sua terceira sonata para piano, que gostaria de poder incluir em meu repertório nos próximos meses. A Arte da Fuga é um trabalho que venho desenvolvendo nos últimos dois anos, cujo estudo tem sido muito intenso. Pode-se dizer que é o primeiro grande trabalho em que realmente desenvolvi em estudo integral, passando dias e dias sem tocar mais nada, refletindo sobre a partitura. Isso é algo que só acontece comigo com Bach. Geralmente, meus ouvidos e mãos precisam de recessos quando estou estudando. Mudo a peça que é objeto de estudo e depois retorno. Mas com Bach o tempo não passa. Com Bach, o tempo não existe. Ou talvez aconteça tão rápido que nem sei.

Qual a importância da obra A Arte da Fuga em 2021?

Eu acredito fervorosamente que A Arte da Fuga é um ciclo. Há teóricos que acreditam que ela foi composta mais como um exercício composicional do que como uma obra a ser executada diante de um público. Para mim, é impossível pensar que Bach compôs uma de suas melhores criações como um mero exercício. Existem seções de tal calor que é difícil acreditar que seus propósitos fossem mais didáticos do que artísticos. É um dos ciclos mais complexos que existem. Sua estrutura beira a perfeição – se é que isso existe em nossa arte. A maneira pela qual os diferentes contrapontos ocorrem é esmagadoramente lógica: as primeiras onze fugas seguem a ordem estabelecida por Bach e as demais foram ordenadas por seus filhos após sua morte.

Você começa seu concerto em Grandes Intérpretes com a transcrição para a mão esquerda de Brahms de Ciaccona em Ré menor BWV 1004 de Bach. É curioso que você tenha escolhido esta transcrição em vez da de Busoni, mais difundida em nossos tempos …

Ambas as transcrições são maravilhosas, mas Brahms alcança algo que vai além da mera transcrição. Brahms pega a partitura original de Bach e, sem perder nenhum detalhe, a faz soar no piano como está. Sem adicionar mais virtuosismo do que o original. Mas vai além do fato musical e decide mergulhar no fisiológico: usa apenas a mão esquerda, como se as 88 teclas do piano se transformassem no braço de um violino. A distância entre notas e intervalos é diretamente proporcional à de um violino. É uma transcrição muito complexa, que chega a exaurir a mão esquerda. Todo o peso cai sobre ela. Não é uma peça que você pode tocar duas vezes seguidas. Brahms inclui esta transcrição em seus Estudos, porque realmente é um feito técnico para a mão esquerda.

Da mesma forma que Chopin adapta o bel canto ao piano, Brahms tenta adaptar o canto do violino ao piano …

Sim, mas neste caso a forma como Brahms se aproxima dos intervalos do violino, o caminho que ele decide seguir é muito visual. Se você ver um violinista tocar essa Chaconne e depois ver outro tocar a transcrição de Brahms, você encontrará inúmeras semelhanças na forma de interpretá-la: gestos, movimentos, posições… Tem algo que lhe diz que essa transcrição não é apenas música, vai além!

Quão importante você diria que a música de Bach, e mais especificamente A Arte da fuga, tem dentro da escola russa de piano?

Quando eu estava no conservatório, era nosso costume aprender pelo menos um prelúdio e fuga de Bach a cada ano. Ele foi o único compositor que, ano sim, ano também, fazia parte do nosso aprendizado. Muitos pianistas russos dedicaram parte da carreira à música de Bach: Sergei Babayan, Evgeni Koroliov, Konstantin Lifschitz… Todos eles encontraram em Bach um caminho a seguir na sua maturidade musical.

Nestes tempos, o solista costuma ter apenas um ou dois ensaios com as orquestras antes dos concertos. Existem intérpretes (por exemplo, o seu compatriota Sokolov) que consideram isso insuficiente para uma interpretação satisfatória. Como você vê essa situação? Você discute sua visão da peça de antemão com o diretor para aproveitar ao máximo o tempo de ensaio?

Sou um daqueles performers que gostam de experimentar no palco e também tenho a sorte de os diretores geralmente serem bastante flexíveis quanto a isso. Eu confio na interação. Não importa quantas tentativas sejam feitas, não importa quais restrições existam. O importante é conversar com a orquestra, ouvir os músicos e que eles te escutem. O resto é uma circunstância típica da época em que vivemos. Cada concerto tem seu universo e cada ensaio suas diretrizes a serem seguidas. Mas vamos confiar no diálogo entre músicos. É a única coisa que realmente importa.

Suponho que após esses meses de confinamento, você poderá desenvolver um pouco mais sua carreira de compositor …

Durante o confinamento, o que realmente me envolvi foi no trabalho e na aprendizagem de ser pai… Eu estava aprendendo um novo repertório e escrevia algo, mas não gastei muito tempo nisso.

Você acha que a indústria da música está pronta para essa dualidade intérprete-compositor ou exige produtos específicos e mais do mesmo?

Não é algo que eu tenha pensado. Ainda não tenho composições próprias o suficiente para gravar um álbum. Em um futuro? É possível, mas devo continuar a descobrir os grandes compositores, interpretá-los, estudá-los e, se tiver sorte, entendê-los. Escrever é algo que muitos intérpretes fazem em segredo. Mas daí para a publicação de um álbum com nossas composições, é um outro passo.

O que você diria que não funcionará na música clássica em 2021?

São tantas coisas que não funcionam e é tão complexo mudá-las… Acreditamos que a internet é uma coisa real, que o streaming é um futuro imediato, mas não sabemos se as pessoas querem assistir a um Concerto ao vivo. Você pode imaginar uma turnê de concertos em streaming? Seria um total absurdo. Há pouco tempo, antes de sair para tocar com a OCNE, eu estava em meu camarim assistindo a uma apresentação ao vivo que Martha Argerich estava dando de Hamburgo. É incrível pensar que a centenas de quilômetros de distância, posso desfrutar de um espetáculo ao vivo segundos antes de chegar a minha vez de fazer outro. É uma experiência maravilhosa. Mas isso nunca substituirá o real.

Como podemos ajudar a música clássica a estar mais próxima do público mais jovem?

Em primeiro lugar, suponha que não existe uma fórmula mágica que encha os cinemas com pessoas com menos de 30 anos. E também temos que perceber que nem todo mundo lê grandes obras da literatura, nem todo mundo gosta de passar as noites em museus olhando pinturas ou assistindo a filmes clássicos. E a partir disso, é hora de aceitar que nem todos os jovens vão ouvir música clássica. Temos que facilitar o acesso? Sim. Devemos trabalhar para que a música tenha um papel fundamental na educação? Também. Mas, além do que podemos fazer, cada um é livre para escolher. O gosto pela música clássica é uma escolha. Existem pessoas que sentem enorme curiosidade por ela e outras nunca a sentirão. A vida é uma busca contínua por experiências. Quem busca a beleza acaba encontrando. Tudo que você precisa descobrir é onde procurar.

Para concluir, o que você pediria do futuro?

Gostaria que, num futuro próximo, houvesse um acordo internacional para ajudar o setor cultural e musical em sua restauração. Neste momento, cada país faz o que pode, mas não existe um gesto comum que nos una. E é claro que as circunstâncias em cada país são diferentes, mas devemos parar por um momento e tentar colocar ideias e propostas em comum para alcançar a cooperação internacional.

Daniil Trifonov | Foto: Boston Symphony Orchestra

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Villa-Lobos, o índio de casaca tornou-se bandeira e bússola

Villa-Lobos, o índio de casaca tornou-se bandeira e bússola

A jovem repórter pergunta: “O que o senhor está compondo agora?”. O velho Villa para, pensa, dá uma baforada no charuto e responde: “Minha filha, na minha idade eu não componho mais nada, eu estou é me decompondo…”.

Heitor Villa-Lobos: compondo e se decompondo

Heitor Villa-Lobos nasceu em 1887 no Rio de Janeiro e faleceu no dia 17 de novembro de 1959, na mesma cidade. Trabalhou durante a época do nacionalismo musical que começara na segunda metade do século XIX, durante o Romantismo, nos países periféricos da Europa. Na virada do século, o movimento tornou-se mais consistente e pesquisador. O húngaro Béla Bartók, por exemplo, ia a campo viajando pelo interior da Transilvânia, Bulgária, Romênia e Hungria a fim de conhecer a música de sua gente e encantava-se com os ciganos. Stravinsky tentava nos enganar, mas usava carradas de músicas folclóricas em seus primeiros balés. Já a Espanha vinha com todo um time de nacionalistas, capitaneado por Manuel de Falla. Enquanto isso, Villa-Lobos, num primeiro momento, nem precisou viajar para pesquisar. Bastou ser violonista de grupos de chorões em sua cidade natal. Aquilo já era suficientemente exótico e acabou rendendo a série extraordinária dos Chôros.

Antes, de Villa, nossa música erudita não passava de Carlos Gomes e de acadêmicos que copiavam o que os europeus faziam. O nacionalismo trouxe voz própria à produção musical do país. Muitos compositores estudavam música fora daqui e depois voltavam a fim de mesclar a música nativa às modernas técnicas de composição aprendidas. Com Villa foi um pouco diferente. Oficialmente, estudava apenas violoncelo, porém, escondido de seus pais, estudava também violão. Melhor esconder mesmo, pois o violão era considerado um instrumento marginal, das ruas, um pobre coitado frente ao aconselhado violoncelo e ao inevitável piano.

O jovem Villa: pesquisas pero no mucho

Um carioca

Apesar de contar com a rica musicalidade carioca ali na calçada de casa, Villa viajava atrás de música pelo Brasil. Dizia ser um índio de casaca — expressão criada pelo poeta Menotti Del Picchia –, mas não parecia tão fanático pela pesquisa quanto seus colegas europeus. Em 1905, visitou os estados do Espírito Santo, Bahia e Pernambuco, passando temporadas em engenhos e fazendas, em busca do folclore e de uma  — por que não? — gastronomia local. Em 1908, chegou à cidade de Paranaguá, estado do Paraná, e cansou. Ficou lá por dois anos, tocando violoncelo para a alta sociedade e violão para os outros. Entre 1911 e 1912 participou de uma excursão pelo interior dos estados do Norte e do Nordeste. Foi nessa viagem que teria conhecido a Amazônia — fato de modo nenhum comprovado – o que marcou profundamente sua obra, segundo ele.

As primeiras composições de Villa-Lobos não diferem das de seus pares, levando o estilo europeu da virada do século XIX para o século XX. Era um sub-Wagner, às vezes um sub-Frank. Depois, evoluiu até um sub-Debussy. Só ganhou voz própria nas Danças características africanas (1914), o que confirmou nos bailados – ainda levemente xaroposos – Amazonas e Uirapuru (1917). Porém, Villa chegou com tudo à década de 1920, compondo os notáveis A Prole do Bebê e as Cirandas, para piano, e o Noneto (1923). Era ainda muito criticado por ter se tornado moderno demais. Mas pouco a pouco ganhava reconhecimento e fama.

Financiado por amigos e pela família Guinle, viajou para a Europa em 1923. Em Paris, tomou contato com a vanguarda musical da época. Lá teve o apoio do eminente pianista Arthur Rubinstein e da soprano Vera Janacópulus. Recebia as pessoas vestido de vermelho na sua sala vermelha. Paris foi um grande sucesso. Em 1927, retornou à cidade para uma temporada de três anos, com a finalidade de organizar concertos e publicar várias obras pela editora Max-Eschig, à qual foi apresentado quando de sua primeira ida à França. Fez mais amigos, e artistas como Magda Tagliaferro, Leopold Stokowski, Maurice Raskin, Edgar Varèse, Florent Schmitt e Arthur Honneger frequentam sua casa e participam das curiosas feijoadas dominicais.

A partir dessa segunda temporada na capital francesa, ganha prestígio internacional, apresentando suas composições em recitais e regendo orquestras nas principais capitais europeias. Causa forte impressão no público e na crítica, ao mesmo tempo em que provoca reações por suas ousadias.

Sala de aula e Canto Orfeônico

O poder

Villa é às vezes acusado de ter sido apoiado pelo regime de Getúlio Vargas. As relações entre o poder e os músicos e atores sempre deram pano pra manga. Compositores, por exemplo, necessitam de orquestras para divulgar seus trabalhos. Quem tem as melhores? E quem tem os melhores teatros? Mas, sim, talvez Villa tenha sido apoiado demais.

Com o patrocínio do Estado Novo, ele desenvolveu amplo projeto educacional, em que teve papel de destaque o Canto Orfeônico, e que resultou na compilação do Guia prático (temas populares harmonizados). Em 1931, o maestro organizou uma concentração orfeônica chamada “Exortação Cívica”, com 12 mil vozes. Dois anos depois, assumiu a direção da Superintendência de Educação Musical e Artística. A partir de então, a maioria de suas composições se voltou para a educação musical. Em 1932, o presidente Vargas tornou obrigatório o ensino de canto nas escolas e criou o Curso de Pedagogia de Música e Canto. Em 1933, foi organizada a Orquestra Villa-Lobos.

Em 1936, apresentou seu plano educacional em Praga e depois em Berlim, Paris e Barcelona. Já era um cidadão do mundo, compondo muito e sendo convidado para apresentar suas obras no circuito erudito mundial.

O compositor e os inseparáveis charutos

Obra

Mas falemos um pouco sobre as principais obras do compositor. A criatividade selvagem dos anos 20 – que produziram as Serestas, os Chôros, os Estudos para violão e as Cirandas para piano – foi seguida de um período “neobarroco” – em resposta ao neoclassicismo de Stravinsky –, cujo carro-chefe foi a espetacular série de nove Bachianas brasileiras (1930-1945), para diversas formações instrumentais. As Bachianas são conhecidas até de quem não convive com a música erudita, tal é seu uso por artistas populares – Milton Nascimento, Edu Lobo, Tom Jobim – como em propagandas do governo. A mistura de Villa com Bach gerou um dos sons mais autenticamente brasileiros que existem.

Apesar da extraordinária produção para orquestra, suas 12 Sinfonias não são grande coisa.

Já a música para piano é incontornável, mesmo em âmbito mundial. Sônia Rubinsky gravou recentemente a integral de sua obra para piano com enorme sucesso. Foram 8 CDs pela gravadora Naxos. O volume I foi indicado para o Grammy e também foi escolhido pela revista Gramophone um dos cinco melhores lançamentos de 1999. Destaques para Rudepoema (1926), Chôros Nº 5 (1926) e Valsa da dor (1930).

Suas composições para violão também estão entre as principais de sua obra. O Chôros Nº 1 (1924), os 12 Estudos (1924–1929), os 5 Prelúdios (1940) e a Suíte Popular Brasileira (5 peças) (1908-1912 e 1923) fazem parte do repertório habitual do instrumento.

Pouco ouvidos no Brasil, mas presentíssimos no repertório dos quartetos de cordas – principalmente na Europa Oriental – estão seus extraordinários 17 quartetos de cordas (1915–1957).

Alto risco: gravações históricas com o próprio Villa

Há várias gravações com o próprio Villa regendo suas obras, mas estas devem ser ouvidas com moderação. Os grupos nem sempre são bons e há registros das Bachianas, conduzidos pelo compositor, onde reina uma desafinação que certamente o desesperava. As gravações modernas costumam ser melhores do que as históricas.

Em sua imensa obra, o maestro combinou indiferentemente todos os estilos e todos os gêneros, introduzindo sem hesitação materiais musicais tipicamente brasileiros sobre formas tomadas de empréstimo à música erudita ocidental. E o contrário também.

Sua influência sobra nossa cultura musical foi notável. Impossível saber quantas citações musicais recebeu, desde os Beatles que o citaram em I am the Walrus até uma infinidade de referências feitas por compositores cultos nacionais, hoje entrincheirados na Biscoito Fino e nas gravadoras alternativas. Villa-Lobos foi autor de mais de mil obras. Um décimo bastaria para fazê-lo imortal. Hoje seu legado é “bandeira e bússola”, como sintetizou o violinista Turíbio Santos, responsável, aliás, por uma das melhores interpretações de sua obra para violão.

Um câncer matou Villa-Lobos em 17 de novembro de 1959, no Rio de Janeiro.

Villa mandando ver no violão

Era um espetáculo. Tinha algo de vento forte na mata, arrancando e fazendo redemoinhar ramos e folhas; caía depois sobre a cidade para bater contra as vidraças, abri-las ou despedaçá-las, espalhando-se pelas casas, derrubando tudo; quando parecia chegado o fim do mundo, ia abrandando, convertia-se em brisa vesperal, cheia de doçura. Só então percebia que era música, sempre fora música.

Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada quando Villa-Lobos morreu

Fonte consultada: Site do Museu Villa-Lobos

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Amanhã, quarta-feira, às 12h30, a estreia do Kandinsky Trio, do qual trazemos amostras

Amanhã, quarta-feira, às 12h30, a estreia do Kandinsky Trio, do qual trazemos amostras

Pois amanhã teremos pela primeira vez o Kandinsky Trio tocando publicamente. Será no Foyer do Theatro São Pedro, às 12h30, com entrada franca. Eles ensaiaram sempre lá em casa e minha participação foi imensa. Eu lhes trazia guloseimas da rua, fazia café e servia. Além disso, gravei (mal) os dois trechos dos ensaios que estão abaixo. Só assim eles ensaiavam.

André Carrara (piano), Marjana Rutkowski (viololncelo) e Elena Romanov (violino) | Foto: Milton Ribeiro
André Carrara (piano), Marjana Rutkowski (viololncelo) e Elena Romanov (violino) | Foto: Milton Ribeiro

O recital será curto, coisa entre 40 e 45 minutos, conforme exige o TSP para este horário do meio dia. Pena, porque eles têm um Trio de Haydn também. O trio gostaria que o público pensasse que sua denominação fosse derivada dos estudos com cores e sons realizados pelo mestre da pintura Wassily Kandinsky (1866-1944), mas é mentira. A verdade é que o gato da Elena dormiu uma noite ao lado do violoncelo da Marjana e acabou homenageado. Cuidou bem do instrumento. O gato chama-se Wassily Kandinsky em razão da admiração da Elena pelo pintor e por causa de sua cauda, que lembra um pincel.

O trio é formado pelo pianista mineiro André Carrara, pela “minha” violinista bielorrussa Elena Romanov e pela violoncelista porto-alegrense Marjana Rutkowski e o programa terá:

Trio Elegíaco Nº 1 em sol menor
de Sergei Rachmaninov

Trio Nº 1 em ré menor para violino, violoncelo e piano, Op. 49
de Felix Mendelssohn

1 Molto allegro ed agitato
2 Andante con moto tranquillo
3 Scherzo
4 Finale

Minha preferência vai para a obra-prima de Mendelssohn, mas ouvi tantas vezes a obra da juventude de Rachmaninov — ele escreveu este trio aos 19 anos — que acabei gostando dela, com seu início de relógio estragado e sequência de absoluta paixão. O moço tinha sofrido uma desilusão amorosa e estava mal. Foi saudável ao não se matar e escrever um Trio Elegíaco. Já o Mendelssohn é esplêndido e eu gravei os finais do primeiro e segundo movimentos. Estão nas telas abaixo. São três minutinhos de cada um, mas valem a pena.

A Elena não queria que eu divulgasse porque o som está ruim, metálico, duro. A Marjana quis mostrar e o Carrara também mandou botar na roda, mas foi analítico ao dizer que falta equalização à coisa. Ele explicou que tem pouco violoncelo, um pouco mais de piano e violino OK. Disse que o fato da Elena tocar em pé num teto baixo, cria um anteparo reflexivo… Bem, eu não entendo disso. E ele completou dizendo que, diante dessas condições, a gravação era boa.

O Trio Nº 1 em ré menor para violino, violoncelo e piano, Op. 49, de Felix Mendelssohn foi concluído em 23 de setembro de 1839 e publicado no ano seguinte. É uma das obras de câmara mais populares de Mendelssohn e é reconhecida como uma de suas melhores composições. A princípio, o compositor estava inseguro sobre a qualidade do trabalho e pediu conselhos a outro compositor, Ferdinand Hiller, que sugeriu pequenas alterações na parte de piano. A versão revista foi enviada a Schumann, que declarou ser Mendelssohn “o Mozart do século XIX, o mais iluminador dos músicos.”

O Trio Elegíaco Nº 1 em sol menor, de Sergei Rachmaninov, foi escrito entre os dias 18 e 21 de janeiro de 1892 em Moscou, quando o compositor tinha 19 anos. O trabalho foi estreado em 30 de janeiro do mesmo ano, mas a primeira edição Veio à luz apenas em 1947. O Trio Elegíaco não tem número de opus designado e foi concebido em apenas um movimento, em contraste com a maioria dos trios de piano, que têm três ou quatro. Rachmaninov escreveu um segundo Trio Elegíaco em 1893, logo após a morte de Tchaikovsky.

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Cravo ou piano?

Cravo ou piano?

Admirador de Gustav Leonhardt e de Glenn Gould, Jacques Drillon abre mais uma vez o debate, não se afastando de nenhuma das interrogações estilísticas, práticas e mesmo morais.

Tradução de Evandro Martini, a partir do original na Diapason francesa.

Há cerca de 40 anos, uma questão espinhosa era debatida: Bach deve ser tocado no piano ou no cravo? A verdade estava escondida em algum lugar, e precisava ser descoberta. A questão se colocava à parte do debate sobre instrumentos antigos e orquestras historicamente informadas. Como se Bach tivesse um lugar especial na história, e merecesse um tratamento especial. É verdade que ninguém teria a ideia de escolher Kandinsky ou Mondrian para ilustrar a capa de um registro de Couperin ou Buxtehude, enquanto com a Arte da Fuga — música “abstrata”, “Feita para ser lida mais do que tocada” — isso acontecia regularmente…

cravo

Assim como a dimensão política do debate sobre os instrumentos antigos (conservadorismo / progressismo, direita / esquerda) era evitada, e como a dimensão econômica também nunca foi tocada (e eram enormes os interesses financeiros em jogo), o aspecto estilístico de “Bach-no-piano” foi cuidadosamente evitado. Como se Bach estivesse fora dos estilos, fora da história, fora da geografia: como se sua música, e Gould o afirmou, “transcendesse questões de evolução”. É por isso que tudo era “possível” com Bach: tocá-lo com vibrafone, orquestra, quarteto de saxofones. Sua música “resiste a tudo”, lê-se ainda às vezes

Aprendemos, nos últimos quarenta anos, que não era verdade. Nós sabemos hoje o quanto a Itália e a França entram na música de Bach, que é possível classificar por épocas, cidades de residência. E a Arte da Fuga pode ser vista como uma homenagem ao contraponto do passado, contra a música da moda no fim da vida de Bach.

Portanto, a questão permanece: piano ou cravo? Os argumentos se empilham: a polifonia seria mais clara no piano, a dança seria mais natural ao cravo; os ornamentos vêm mais facilmente para o cravo, no piano parecem fora de lugar; a dinâmica está presente na própria escrita da música para cravo (três notas tocadas juntas soam mais alto do que uma), e o piano adiciona dinâmicas artificiais, ou então se limita a um mezzo forte constante e entediante; o temperamento desigual do cravo melhor reflete os tons que o temperamento equalizado do piano; o baixo continuo no piano é simplesmente ridículo, e cantores ou instrumentistas preferem o acompanhamento do cravo; a música de Bach é essencialmente articulada enquanto o piano prefere o fraseado. E por aí vai…

O piano é derrubado por essa série de argumentos. O único aparentemente em seu favor, a clareza da polifonia, não resiste por muito tempo: Leonhardt, ou Koopman, ou Hantaï fazem uma polifonia perfeitamente clara no cravo.

Várias respostas são fornecidas pelos defensores do piano:
1. Não importa, eu faço como eu quiser.
2. Um bom pianista é melhor do que um mau cravista.
3. Eu tenho um piano em casa, não tenho um cravo.
4. É possível tocar Bach no piano de forma “historicamente informada”.
5. Colocar um instrumento de salão no Carnegie Hall?

E nossos debatedores não se entendem. Só que Glenn Gould não se importa. Enquanto outros pianistas passaram a nos servir um Bach morno, preocupados com um estilo “correto”, Gould negou a sua existência. Para ele, o estilo não existe. E é porque ele o declara ilegítimo, como um tribunal é declarado incompetente, que Gould é interessante. Outros pianistas sabiam e ainda sabem que o olho do estilo os examina. Eles tocam Bach com medo e fazendo concessões (por exemplo se abstendo do pedal e seguindo o tratado de C.P.E. Bach). Gould considera os críticos com indulgência e diversão: há muito tempo ele se liberou desse superego esterilizante, triste, mal humorado. Gould está tão longe destas questões! Ele não faz parte do debate, ele o recusa, foge. Na realidade, é o único pianista a interpretar Bach no piano: os outros tocam no não-cravo.

Gould e Bach

Mas Gould não pode ocupar todo o horizonte: nós continuamos a ouvir outros artistas, a ir ao concerto. É preciso agir como se Gould não existisse: temos de voltar para a terra e considerar a questão sob o ângulo trivial do trabalho, da rentabilidade musical, do custo-benefício. No piano, tocar sem dinâmica exige um investimento técnico considerável, articular sem afetação é um desafio, tocar rapidamente sem legato é horrivelmente difícil. Em suma, entendemos que o investimento pianístico para se tocar Bach é de ordem diferente do investimento cravístico. No cravo, basta encostar nele para encontrar o que procuramos. Ao piano, é preciso cavar profundamente. A rentabilidade é baixa, quase insignificante, mas a exploração da matéria-prima Bach tem esse preço. É uma situação comparável ao mercado de petróleo: antes, a exploração de alguns campos não era rentável; o preço do petróleo subiu, a exploração se tornou viável e todo o mundo compra gasolina mais caro. Se alguém quiser Bach no piano, tem que pagar o preço.

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A Pequena Missa Solene numa bela noite na Santa Teresinha

A Pequena Missa Solene numa bela noite na Santa Teresinha

No calor de ontem em Porto Alegre, decidimos enfrentar a Igreja Santa Teresinha. O concerto estava marcado para às 20h30, mas o alta temperatura do dia permanecia nos prédios e em nossos corpos. Tudo ficou justificado logo no começo do concerto, durante os primeiros e perfeitos acordes de Rossini. O programa continha apenas uma obra, a Pequena Missa Solene de Rossini (1792-1868). Há anos adoro esta obra. Escrita para um agrupamento inacreditavelmente pequeno de coro, solistas, piano e harmônio, a Missa parece destinada ao riso. Mas isto só até a música começar. A abertura, utilizada com notável sensibilidade por Pedro Almodóvar em seu filme A Má Educação (cena das crianças fazendo ginástica na escola, lembram?), é linda e tem a propriedade de instalar-se em nossa cabeça de uma forma difícil de controlar… É um dos pecados da velhice de Rossini. Explico.

Rossini começou a escrever música muito jovem. Era prolífico e compunha, em média, duas óperas por ano. Escreveu 40 delas entre 1810 e 1829. Então, aos 37 anos — enfadado do frequente contato com cantores temperamentais e diretores de teatro ainda piores –, parou de trabalhar seriamente com música, tornando-a um divertimento pessoal. Riquíssimo e célebre, dedicou-se ao lazer e a um irônico e gentil convívio com todos, itens nos quais era mestre. Costumava promover grandes festas em sua casa. Ali, bebia-se champanhe, vinho, comia-se esplendidamente e ouvia-se música. Às vezes, Rossini apresentava ao piano peças de certo compositor anônimo. O compositor ressurgiu surpreendentemente aos setenta e poucos anos publicando duas extraordinárias peças sacras — o Stabat Mater e a Petite Messe Solennelle (Pequena Missa Solene) –, além de peças para piano. Tais obras foram agrupadas sob o título genérico de Péchés de vieillesse. O pecado apresentado ontem foi escrito em 1863 especialmente para a consagração da capela privada da condessa Louise Pillet-Will.

O time todo esteve impecável sob a regência de João Paulo Sefrin. Os solistas foram Rosemari Oliveira (soprano), Angela Diel (mezzo-soprano), Maicon Cassânego (tenor) e Daniel Germano (baixo), com Cristina Caparelli (piano) e Alexandre Frietzen (harmônio). O coral era o Madrigal Presto.  Ou seja, dificilmente daria errado.

Olha, foi muito bonito, muito prazeroso, raramente sinto tal prazer estético. Os bancos duros da igreja, o calor, o som dos ventiladores, nada atrapalhou. Vou bastante a concertos e creio ter sido este um dos dois melhores deste segundo semestre em Porto Alegre.

O grupo da Pequena Missa Solene
O grupo da Pequena Missa Solene

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Andante con moto do Trio, Op. 100, de Schubert

Andante con moto do Trio, Op. 100, de Schubert
Franz Schubert
Franz Schubert

O Trio Wanderer é formado por três músicos franceses que se conheceram em Paris, no Conservatoire National Supérieur de Musique. Depois, o pianista Coq estudou com Menahem Pressler do Beaux Arts Trio, enquanto Phillips-Varjabédian e Pidoux com membros do Quarteto Amadeus. E como deu certo!

Ouçam e vejam abaixo sua interpretação para o famoso 2º movimento (Andante con moto) do Trio, Op. 100, de Schubert.

Jean-Marc Phillips-Varjabédian, violino
Vincent Coq, piano
Raphaël Pidoux, violoncelo

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Ospa é coadjuvante em bom show dedicado a Geraldo Flach

Ospa é coadjuvante em bom show dedicado a Geraldo Flach
Toca-discos da Philips: o meu era azul e branco
Toca-discos da Philips: o meu era azul e branco

Quando começou o show do último domingo no Araújo Vianna, lembrei de um toca-discos portátil azul e branco da Philips que ganhei de meus pais nos anos 70. Funcionava com 4 pilhas grandes e também ligado na luz. A tampa tinha um alto falante acoplado. Não dava para afastar muito a tampa do prato — o fio que os ligava era curto (ver foto ao lado) e ficava pelo lado de dentro quando se fechava a malinha. Era muito bonito, moderno e eu o carregava orgulhosamente para a casa de amigos, acompanhado de meus poucos discos. Bastaram 5 segundos para que o querido aparelho me viesse à memória. Onde andará hoje? Ele tinha um som de… vitrola, parecido com o que ouvi no início do concerto. Depois, o som amplificado da orquestra oscilou para melhor, mas nunca foi tudo aquilo.

Era natural, pois, que a Ospa não brilhasse muito no último domingo. Esta série do Araújo Vianna poderia ser chamada de “A Ospa convida”, porque a orquestra sempre será auxiliar para o brilho de solistas populares armados de instrumentos mais adequados ao espaço. Prova disso disso é o Cultura RS, espaço da Secretaria da Cultura do RS no Facebook. Um amigo me chamou atenção: das muitas fotos do show, apenas uma é da orquestra. Bem, o concerto aconteceu e foi excelente, mas apenas em razão da extraordinária banda formada por Cristian Sperandir (piano), Ricardo Arenhaldt (bateria), Ricardo Baumgarten (baixo) e Fernando do Ó (percussão). Ainda tivemos as participações dos cantores Luciah Helena e Marcelo Delacroix, músicos de raro brilho.

Foi um evento curioso. Olhei para os lados, o publico básico era o da Ospa, mas tinha muito mais gente. Muitos alunos de música estavam lá, além de frequentadores do Parque da Redenção e turistas com máquinas fotográficas. Movimentou muita gente mas não acredito que aquele formato crie público para a orquestra. Cria para a banda, a real estrela do show. Por isso, os músicos populares gostam tanto dos crossovers. É uma ótima divulgação. Claro, essa coisa de tocar Beatles in Concert promove… os Beatles. O Música de Filmes provoca lembranças de imagens de prazer cinematográfico na plateia. Os caras saem de lá com cenas na cabeça, loucos para rever os filmes, basta ouvir os comentários na saída. O fato gerador é o filme e o ponto de chegada também.

Como diz a música de Gil, eu tiro os outros por mim. Comecei a amar a música pelo Concerto de Brandemburgo Nº 3 e pela Sinfonia Nº 10 de Shostakovich. O primeiro me mostrou como um tema pode ser apresentado de muitas maneiras diferentes — pareceu uma interessante metáfora ao adolescente que eu era –, o segundo me assustou pelo poder de evocar o sofrimento de um povo. E ambos sugeriram um sistema linguístico como o da literatura, foco principal de minha modesta vida de sempre. Não creio que no Araújo Vianna, com som deficiente e protagonismo alheio, alguém vá se apaixonar pela orquestra como acontecia nos saudosos Concertos para a Juventude da época de meu toca-discos. Só a música erudita promove a música erudita, diz minha militância.

Porém, não obstante o caráter secundário da orquestra, gostei do show. Pelo que pude ouvir, os arranjos eram interessantes, assim como a música de Geraldo Flach. Mas olha, valeu pelo quarteto, que é sensacional, e por Marcelo Delacroix, que é mesmo estupendo.

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Bartók e Martinů por Sara e Rauss em Montevidéu

Bartók e Martinů por Sara e Rauss em Montevidéu
Orquestra Filarmônica de Montevidéu com Nicolas Rauss e Sara
Orquestra Filarmônica de Montevidéu com Nicolas Rauss e Sara Davis Buechner

Há uma semana, logo após Martha Argerich e Daniel Barenboim reunirem-se no Colón em Buenos Aires, ocorria um concerto de primeira linha em Montevidéu, onde me encontrava. O programa era espetacular, totalmente fora do habitual:

Bélá Bartok: Concerto para Piano N°2
Bohuslav Martinů: Sinfonia N° 4

Nicolas Rauss
Sara Davis Buechner, piano

Além da presença do excelente maestro Nicolas Rauss, havia a solista Sara Davis Buechner. O convite a ela era um ato de justiça artística, pois trata-se de uma pianista de espetacular técnica e grande sensibilidade. Acontece que ela passou por uma cirurgia de mudança de sexo em 2002. Ela era David Buechner. Sara não gosta do termo “transexual”, e diz ficar “levemente irritada” quando referida como tal, afirmando que viver como mulher era a única maneira honesta de viver sua vida. Talvez em função do preconceito, tenha se dedicado mais ao ensino e às gravações do que aos palcos. Ela dá aulas na University of British Columbia, no Manhattan School of Music e na New York University e tem 16 CDs em sua discografia.. Sara escreveu sobre suas experiências em um artigo de 2013 no New York Times.

Sua presença no Concerto de Bartók foi luminosa e talvez seja importante dizer que eu nem sabia ainda da questão trans. Como o concerto é muito — muitíssimo — percussivo, Sara mandou bala fazendo os gestos largos e algo teatrais dos percussionistas (ver foto). Seus braços subiam e desciam em amplos movimentos, trovejando os acordes do sensacional concerto. Para interpretá-lo, Rauss mudou todas as posições da orquestra. No lugar dos primeiros violinos estavam as flautas com os clarinetes logo atrás. Do outro lado, no lugar onde estão normalmente os violoncelos, estavam os dois trompetistas com os trombones logo atrás.

Perguntei ao maestro — que regeu as duas obras de cor — sobre este posicionamento. Ele me disse que Ádám Fischer montou a Budapest Festival Orchestra desta forma para executar este concerto de Bartók, no que foi imitado por Simon Rattle em um concerto em Rotterdam. O motivo é simples, explicou Rauss: neste concerto os sopros dialogam com o piano e as cordas têm participação muito pequena. O resultado artístico foi grandioso. O acústico também foi interessante, com as cordas surgindo de forma fantasmagórica no movimento central.

Como bis, Sara Buechner interpretou de forma belíssima uma obra para piano do uruguaio Eduardo Fabini, que arrancou, literalmente, suspiros da plateia.

Divulgar Bohuslav Martinů é um apostolado de Nicolas Rauss. Antes de atacar a sinfonia Nº 4, o regente contou uma pequena história. Uma vez, perguntaram a um de seus professores na Suíça do que alguém precisaria ser dotado para ser músico. Precisaria ser dotado de ouvido? De ritmo? De grande habilidade? Não, segundo o professor, precisaria apenas ser dotado de prazer. E Rauss voltou-se para a orquestra e tratou de mostrar o que era esse tal de prazer. E mostrou! Sinfonista nato, o checo Martinů é realmente um compositor subestimado.

A sinfonia é muito interessante, prazerosa e bonita. Com os quatro movimentos clássicos, foi composta em Nova Iorque em abril de 1945, quase ao final da Segunda Guerra. É feliz e cresce a partir de um único motivo. O primeiro movimento flui natural e liricamente, apresentando variações. O segundo movimento é um Scherzo, marcado pelo perfume da Boêmia presente em algumas obras de Dvořák. O terceiro movimento, lento, é dominado pelas cordas e o finale é uma enérgica reformulação do material anterior. Dito assim, não dá a ideia da fluência e da beleza da sinfonia, né?

Assistir este concerto foi um dos melhores momentos de nossas férias de dez dias. Infelizmente, não conseguimos falar com Rauss antes do concerto devido a uma dor lombar que o maestro sentiu após o ensaio de sexta-feira e que o manteve no hotel durante o fim de semana. Não deve ter sido prazeroso, mas Bartók e Martinů deixaram-no rapidamente curado.

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Breve registro de um recital inesquecível de André Carrara

Breve registro de um recital inesquecível de André Carrara
Eu e Elena no recital de André Carrara | Foto: Augusto Maurer
Eu e Elena no recital de André Carrara | Foto: Augusto Maurer

Não há exagero no título. Na última quinta-feira (9), no inacreditável horário das 17h30, assistimos o recital do pianista André Carrara no Auditório Tasso Correa, do Instituto de Artes da Ufrgs. Para os padrões do local e apesar do horário, tinha muita gente na plateia. Foi uma noite que poderia ser chamada de europeia. Um recital impecável, seguido de um esplêndido jantar. Mas esqueçamos do jantar por ora. Quem conhece Carrara e suas interpretações de Chopin, largou o que estava fazendo e foi até o centro de Porto Alegre para ver de perto.

Em seu recital, ele interpretou, nesta ordem, os quatro Improvisos, os quatro Scherzi e as quatro Baladas do compositor polonês Frédéric Chopin (1810-1849), ícone do piano romântico. São três coleções bem distintas e que compuseram um concerto de crescente densidade emocional.

Chopin era um romântico inovador. Trabalhou novas formas musicais como a Balada, a Polonaise, o Noturno, o Improviso, o Estudo, etc. Carrara deu personalidade clara e própria a cada quarteto de peças. Em um recital que nunca abandonou o mais alto nível, o grande destaque foram as Baladas. A poetisa Orides Fontela devia estar presente ali, pois me vieram à mente suas palavras:

Nunca amar
o que não
vibra

nunca crer
no que não
canta

Teve gente bem próxima a mim que chorou. Depois do recital, enquanto jantava, eu refletia sobre a heterogeneidade dos músicos da Ospa, pois, ao lado de Carrara e outros grandes instrumentistas, há outros que têm relações infantis com seus instrumentos. Imaginem que Carrara tocou tudo de cor, sem recorrer a partituras!

Não sou um grande adepto do romantismo, mas há casos em que somos convencidos de nossos erros de forma tão cabal que só nos resta a vergonha. Na última quinta-feira, Carrara fez nossa noite, nosso dia e nossa semana e seria injusto que eu, que publico tanta besteira, não escrevesse estas linhas sobre aqueles sublimes 90 minutos que ecoam até agora.

Como disse Carrara nesta entrevista: “O repertório erudito é música para ‘gente grande’. Para ser apreciado, exige um estado reflexivo que está sendo cada vez mais esquecido. Estamos muito reativos e pouco reflexivos. Tem um sentido expressivo na música que estamos perdendo”. Recuperamos algo deste sentido na última quinta-feira.

Carrara mandando bala no IA | Foto: Augusto Maurer
Carrara mandando bala no IA | Foto: Augusto Maurer

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Em noite de protesto contra a opressão russa, a Ospa fez uma bela visita à Escandinávia

Em noite de protesto contra a opressão russa, a Ospa fez uma bela visita à Escandinávia
Escondemos a jovem careca do grande Alexandre Dossin
Respeito: escondemos a jovem careca do grande Alexandre Dossin

Seria um exagero chamar a noite de ontem, no Salão de Atos da UFRGS, de escandinava. Estava até quente. Logo na entrada, fui chamado para uma conversa com o Diretor Artístico da Ospa, Evandro Matté. Acho que faremos entrevista com esclarecimentos e notícias mais amplas até o fim de semana de 11 e 12 de julho. Foi um bom diálogo do qual participou o superintendente Araquém Idiart Gomes.

O programa do concerto era formado apenas por obras lá do norte: afinal, Alfvén foi sueco; Grieg, norueguês e Sibelius, finlandês. O maestro Henrik Schaefer é alemão e já foi o mais jovem membro da Orquestra Filarmônica de Berlim, tendo assumido uma das violas aos 22 anos. Já o pianista Alexandre Dossin é brasileiro, gaúcho de Porto Alegre. Sejamos mais específicos:

Programa

Hugo Alfvén: Midsommarvaka
Edvard Grieg: Concerto para piano, op. 16
Jean Sibelius: Sinfonia nº 2, op. 43

Regente: Henrik Schaefer
Solista: Alexandre Dossin (piano)

Vivem muito esses escandinavos e Hugo Alfvén morreu aos 88 anos. Tendo por base a bagunça aprontada ontem, devia ser um sujeito alegre, amante da bebida e de outros prazeres. Tocava violino na Royal Opera de Estocolmo e — calma — sua Midsommarvaka não representa nenhuma ofensa, é apenas uma encantadora Vigília da meia-noite (Rapsódia sueca n° 1, op. 19). Certamente inédita em nossa cidade, foi a melhor abertura de concerto de 2015. Uma música feliz, mesmo com alguns episódios lentos. Alfvén foi também pintor e escritor (dos bons).

Ai, o Concerto para piano, Op. 16, de Grieg. De novo! Em 22 de agosto de 2014, a Osesp apresentou este Concerto no Theatro São Pedro com o pianista Dmitry Mayboroda sob a regência de Marin Alsop. No dia 11 de novembro do ano passado, a Ospa voltou a apresentar o mesmo concerto com a pianista Hyejin Kim e o maestro Shinik Hahm.

Grieg foi tio de Glenn Gould e viveu menos do que Alfvén e Sibelius. Ficou 64 anos entre nós, deixando-nos uma obra romântica de excelente qualidade. Seu Concerto para Piano está entre os mais populares do gênero. Acho-o muito parecido com o de Schumann. O de Grieg era um grande sucesso na casa de meus pais, ambos dentistas e pianistas amadores. Conheço cada notinha dele. A interpretação de Dossin-Schaefer talvez tenha sido a melhor das três que tivemos em Griegópolis no último ano. O primeiro movimento, tocado em andamento mais rápido e menos derramado, tornou-se digno e adequado a meu desamor pelo ciclamato. Mas, meus caros, de vez em quando o piano desaparecia sob a orquestra e creio que não adianta culpar a acústica por isso. Ninguém mais cai nessa. É mesma coisa que os violinos não tocarem juntos e culparem o teatro. Nada a ver. Mas curti muito a interpretação da trilha sonora de Intermezzo, mesmo sem a presença de Ingrid Bergman.

O bis de Dossin foi o Noturno Nº 1 de Chopin. Foi uma interpretação perfeita — contida, sem exaltações nem demasiados tremeliques líricos. Dossin é um desses santos de casa que fazem milagres, a exemplo de Lavard Skou-Larsen e Tobias Volkmann.

Creio que a segunda é a mais popular das sinfonias de Sibelius, apesar de que a melhor, disparada, seja a sétima, que será apresentada pela Ospa na próxima terça-feira. A segunda é uma bela e difícil sinfonia. Houve desencontros e erros muito claros em vários solos. Aqui, tivemos efetivamente algum prejuízo pela má acústica da Ufrgs. O som dos baixos, por exemplo, caía como pedras aos nossos pés. Escrita na Itália logo após a composição do poema sinfônico Finlândia e estreada em Helsinque em 1902, esta sinfonia foi um acontecimento nacional. Numa época de invasão e opressão russas, ela foi ouvida como representação sonora do nacionalismo finlandês. Quando de sua estreia, foi tocada quatro vezes em oito dias. Mas não se precisa saber de tudo isso para gostar dela, a música sobrevive tranquilamente sem o contexto de sua origem..

Seu formato é aparentemente tradicional — são quatro movimentos com os dois últimos tocados sem interrupção, como a Quinta de Beethoven. Nela, Sibelius abusa das repetições e de fragmentar melodias. É estranho como ela lembra Bruckner ao mesmo tempo que trai o carolão austríaco. Se Bruckner busca e alcança a divindade, Sibelius é muito mais realista, mostrando-nos quão vasto é o frio de seu pais. Aliás, esqueci de dizer que Sibelius viveu 92 anos, foi alcoolista e deprimido por boa parte de sua vida, desistiu de compor ali pelos 50 anos e isto foi lamentável, pois era um sujeito original e de grande talento. Fazer o quê?

Em um conjunto com alguns destaques negativos facilmente identificáveis — de uma forma geral, havia muitos solos neste concerto — o clarinetista Samuel de Oliveira e o trombonista José Milton Vieira deram um banho de bola. Aliás, espero que o Miltinho esmerilhe na Sinfonia Nº 7 de Sibelius na semana que vem. Há belíssimos solos de trombone na sétima. E que o deixem se sobrepor à orquestra, tocando em altíssimo volume, como fez o trombonista da Filarmônica de Leningrado sob as ordens de Mravinsky. Cumpra-se!

Impossível esconder a careca de Sibelius
Impossível esconder a careca de Sibelius

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A Ospa, Lênin e seus mujiques

A Ospa, Lênin e seus mujiques
Lenin regendo
Lênin regendo
Gian Luigi Zampieri | Foto: Ibraim Leão
O excelente Gian Luigi Zampieri. Mas não é a cara de Lênin? | Foto: Ibraim Leão

Os bolcheviques tomaram de assalto o Theatro São Pedro ontem à noite. Chefiados pelo competente maestro Vladimir Ilitch Lênin, a orquestra tentou fazer com que a plateia saísse com cestas de frutos vermelhos do TSP, mas estes ficaram verdes, carecendo de maior maturidade. Sabemos que a a grande fome russa aceita qualquer coisa, até criancinhas; porém também sabemos — por experiência própria — das dores no estômago causadas por frutas verdes .

O programa não era nenhuma novidade, mas era bom:

Beethoven: Abertura “Coriolano”
Mozart: Concerto para piano K.466
Brahms: Sinfonia Nº 4 Op.98

Regente: Gian Luigi Zampieri
Solista: Daniele Riscica (piano)

A Abertura Coriolano acabou sendo a peça mais redonda da noite. Ela ilustra um episódio épico de Shakespeare com nada rara felicidade. Afinal, falamos de Beethoven. A peça é quase uma demonstração prática sobre o valor do silêncio como elemento de tensão. Uma maravilha onde pudemos ver o bom trabalho de Zampieri.

O Concerto para piano, K.466, de Mozart, foi apenas para cumprir tabela. Foi interpretado pelo jovem e correto Daniele Riscica. Jovem demais, correto demais. Faltou elegância e consistência ao moço de 24 anos. As notas foram dispostas com cuidado, mas sem grande significação. Um amigo achou que a orquestra estava muita alta no Romanze (movimento central do concerto), meio que impedindo nossa audição do pianista. Talvez.

A Sinfonia Nº 4, de Brahms, já teve melhores dias, mesmo com a Ospa. Parece-me que há que fornecer Ritalina (?) para as cordas da orquestra. Os sopros surgem com tesão e afinação, enquanto as cordas vêm mais ou menos hesitantes. Na terminologia da Av. João Pessoa, onde nasci, poderíamos dizer que os sopros jogam “às ganha” e as cordas “às brinca”. Aliás,  ontem, brinquei de acompanhar as mãos esquerdas dos músicos das cordas. Conhecendo muito a sinfonia de Brahms, acredito que, por exemplo, o spalla dos primeiros violinos entrava no momento certo, no que era acompanhado por apenas metade de seu time. Claro que não tocam juntos. Por algum motivo, a interpretação melhorou nos dois últimos movimentos, com destaque para o flautista Artur Elias e o clarinetista Samuel Oliveira.

Acho que a orquestra precisa de mais motivação, motivação musical, olhares musicais, interesses musicais.

P.S. — Ontem, em ZH, o ator e colunista Luiz Paulo Vasconcelos reclamou da ausência de crítica na vida cultural gaúcha. E diz:

Crítica é memória, polêmica, discussão. Troca, argumentação, diálogo. O crítico é aquele que percebe e proclama o novo ao mesmo tempo em que fareja e revela o equívoco e a incompetência. Uma arte sem crítica está ameaçada por perigos avassaladores, mediocridade, estrelismo, fórmulas prontas, modismos e muitas outras coisas que estacionam na periferia da criação artística.

Na mosca, Luiz Paulo.

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André Carrara, a chuva e a Hammerklavier

André Carrara, a chuva e a Hammerklavier
André Carrara: missão complicada lavada a bom termo | Foto: Ospa
André Carrara: missão complicada levada a muito bom termo | Foto: Ospa

Domingo à noite, fomos até a Casa da Música para assistir ao recital do pianista André Carrara. Não era pouca coisa: ele interpretaria a Sonata Nº 29, Op. 106, “Hammerklavier”, de Beethoven, e os 4 Improvisos de Chopin. A chuva fraca daquele fim de tarde estava começando quando Carrara dava início aos primeiros acordes da maior Sonata de Beethoven, com mais de 40 minutos. O Hammerklavier é um problema musical. Pode parecer incrível, mas as Sonatas de Beethoven eram ainda tocadas em cravos na sua época, então, o compositor resolveu alertar que o Op. 106 era para pianoforte ou hammerklavier. A Sonata é considerada a composição mais difícil de Beethoven para piano. Em dificuldade, apenas rivaliza com as 33 Variações sobre um Tema de Diabelli. A sonata foi escrita em 1817-18, e nela surgem pela primeira vez vários dos estilos que se tornariam comuns no período tardio de Beethoven, o dos últimos quartetos: a reinvenção das formas tradicionais, como a forma sonata, um humor súbito e algo violento e as reutilização da fuga.

A disposição dos movimentos, com a troca do scherzo para a segunda posição e a colocação do adágio na terceira, é semelhante a da 9ª Sinfonia e não é absurdo pensar que a Sonata foi uma espécie de ensaio para esta Sinfonia, principalmente se pensarmos nos dois sonhadores adágios, tão longos e belos lá e cá. É uma de minhas peças preferidas, das que tenho a impressão de conhecer cada nota, e eu estava lá por ela, não por Chopin. André Carrara já tinha interpretado a hammer no Salão Mourisco, em Porto Alegre, e no Centro Cultural do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.

Quando começou o primeiro movimento, eu me senti muito feliz e confortado ouvindo a música ao lado de Elena com o som da tranquila chuva que caía lá fora. Sabia que Carrara estava passando extraordinário trabalho, e tinha absoluta certeza de que a posição burguesa de mero receptor pode funcionar muito bem com Chopin, mas que a hammer algum dá trabalho para o ouvinte. É como ler Joyce, requer esforço. Então, me aprumei na cadeira.

Gostei muito da forma como Carrara executou o centro emocional da obra: o belíssimo, longo e triste adágio que os pianistas levam entre 18 e 25 minutos tocando. A interpretação de Carrara foi muito madura. Não é uma peça para amadores. Alguém chamou este movimento de “a apoteose da dor, da tristeza profunda para a qual não há remédio e que não se exprime em desabafos apaixonados, mas no silêncio”. Ou seja, é uma música de grande profundidade que vem logo após um breve scherzo muito zombeteiro, sendo que a junção de ambos funciona como uma desconcertante interrogação. A fuga final recebeu tratamento de luxo de um concentradíssimo e muito musical André Carrara. Garanto-lhes, o moço está em boa forma.

Se não me engano, Nietzsche pediu uma orquestração para a Sonata. Ah, para quê?

Carrara tocou tudo de cor, incluindo os 4 Chopins no final do programa. Bem, eu tenho lá meus problemas com compositores que amam DEMAIS seus instrumentos. Então, por algum motivo, não consigo admirar gente como Chopin, Schumann e Rachmaninov. OK, é uma limitação minha, podem me atirar pedras! Apenas suportei o compositor polonês que a Elena adora e adorou novamente.

É elogiável a iniciativa da Casa da Música de aceitar uma proposta tão radical de programa, mas um Jimo Penetril cairia bem naquela banqueta barulhenta. Quase que eu me propus a ir no Zaffari do Shopping Total ali ao lado. Afinal, foi um tremendo recital.

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Breves e apressadas anotações sobre o concerto de uma Osesp cansada, amassada e perfeita

Breves e apressadas anotações sobre o concerto de uma Osesp cansada, amassada e perfeita
Foto do concerto realizado na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, com o mesmo repertório de Porto Alegre
Foto do concerto realizado na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, co o mesmo repertório de Porto Alegre (clique na imagem para ampliar)

O concerto da Osesp da última sexta-feira no Theatro São Pedro tinha tudo para dar errado. O voo que trouxe a orquestra de Belo Horizonte atrasou 4 horas e eles chegaram em Porto Alegre apenas ao final da tarde. Sendo mais exato, entraram no hotel às 18h com a ordem de que estivessem prontos às 18h15, pois o concerto era às 20h. Ou seja, os músicos chegaram em roupas de viagem, vestiram-se com a maior pressa e foram para o concerto sem descanso, concentração ou banho. Tudo deve ter sido montado muito rapidamente pelo staff da Osesp, pois não houve atraso. Porém, apesar de o programa comemorativo pelos 60 anos da orquestra não ser tudo aquilo…

— Antônio Carlos Gomes: Lo Schiavo: Alvorada
— Edvard Grieg: Concerto Para Piano em Lá Menor, Op.16
— Piotr I. Tchaikovsky: Sinfonia nº 5 em Mi Menor, Op. 64

Dmitry Mayboroda, piano
Marin Alsop, regente

… o resultado artístico foi excelente.

Voltando no tempo, conto que foi curioso o modo como descobri o problema do atraso. Sentado nas galerias do São Pedro, ouvindo e vendo o concerto, logo observei que as mulheres da orquestra não estavam produzidas como o habitual. Mais: notei que algumas estavam vestindo calças jeans pretas. Para os homens, é mais fácil fazer de conta que está tudo normal, basta pentear-se e enfiar um terno preto. Mas as musicistas costumam vir vestidas para matar. Não era o caso e logo pensei que tinha ocorrido algum problema. Bingo! O paradoxal era que via um grupo alegre, feliz até, trocando sorrisos e tocando com precisão e talento. Então, o primeiro elogio vai para o profissionalismo da orquestra que, mesmo cansada e apertada no pequeno palco do nosso querido São Pedro, foi com tudo.

Quando a Osesp iniciou a Alvorada de Carlos Gomes, pudemos sentir uma categoria à qual não estamos habituados. Estava tudo afinadinho, o uníssono vinha claro, sem percalços. Parecia que eu estava em outra cidade que não Porto Alegre. A Osesp veio nos mostrar que, aos 60 anos de vida, é mesmo o melhor conjunto orquestral do país. No intervalo, um amigo dizia-se esmagado em seu provincianismo. Que bobagem. Mas posso afirmar que há maior cultura e conhecimento naqueles músicos, algo que não se obtém simplesmente da habilidade, do esforço hercúleo ou do grito.

Detesto o concerto de Grieg, mas com um solista como Dmitry Mayboroda e uma orquestra daquelas, a gente quase se convence de que o concerto é legal. Porém, alguma coisa em Mayboroda fazia-me pensar que estava ouvindo mais o compositor russo czarista Griegov e não Grieg. Só que, como disse, estava apaixonado demais pelo som e vagava de forma acrítica.

Na Sinfonia de Tchaikovsky, quaisquer resistências caíram por terra. Foi uma apresentação entusiasmada e eletrizante. Achei maravilhosos os solos de trompa e a interpretação de uma das obras mais redondas, bem desenvolvidas e acabadas do compositor russo. Tchai disse horrores a respeito dela:

A sinfonia é muito colorida, pesada, hipócrita, medíocre geralmente desagradável​​. Com a exceção de Taneyev, que insiste que a quinta é minha melhor composição, todos os meus amigos honestos e sinceros pensam mal dela. Poderíamos dizer então que eu fracassei, que estou acabado como compositor? Já começou o meu fim?

Para variar, falava totalmente sem razão. Há grande poesia na Quinta Sinfonia e Marin Alsop a trouxe por inteiro para nós, juntamente com a Osesp. Quando eu falo em poesia, falo daquele momento, daquele movimento, contexto ou clima de revelação que pode estar presente na música, no cinema, na literatura; enfim, em qualquer forma de arte. Digo até que, se não houver poesia, o cinema não é cinema, o teatro não é teatro, a música não é música. E, como começo a divagar, deixo vocês por aqui, reafirmando que foi uma bela noite.

Ah, e no bis bateu um pé de vento!

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Ospa em noite de trocadilhos fáceis e de um flute hero

Ospa em noite de trocadilhos fáceis e de um flute hero
Após o concerto de ontem, a Ospa mereceria este sorriso e charuto do mestre.
Após o concerto de ontem, a Ospa mereceria este sorriso e charuto do mestre.

Não terei tempo para escrever com maiores cuidados a resenha do concerto de ontem à noite no Salão de Atos da UFRGS. Então, vou iniciar pelo final: foi muito bom. O maestro Carlos Prazeres entregou-se à música e o resultado foi bom para mim e para todos. Mas poderia ter sido ainda mais satisfatório… O público cometeu um grande erro. O excelente pianista georgiano Guigla Katsarava daria seu bis se voltasse pela terceira vez ao palco, puxado pelos aplausos. É a praxe, gente! E falamos com ele! Como o pessoal cessou de aplaudir logo após a segunda entrada, ficamos chupando o dedo. Ele tocou maravilhosamente o Concerto para piano nº 1, Op. 23, de Pyotr Ilyich Tchaikovsky.

Este concerto abriu a função. Foi composto entre novembro 1874 e fevereiro de 1875 e revisto no verão de 1879 e novamente em dezembro de 1888. É uma das mais populares composições de Tchaikovsky e está entre os mais conhecidos concertos para piano. Embora a estreia tivesse sido um sucesso de público, os críticos não ficaram nada felizes. Um deles escreveu que “não estava destinado a se tornar famoso”. Errou feio.

A execução da obra foi magnífica. Katsarava  trouxe um sotaque autenticamente russo a Tchaikovsky. A orquestra esteve muito bem e, logo após o segundo movimento, anotei apressadamente no programa: “Klaus Volkmann, que bonito, que delicadeza! Javier tb mto bem!”.

O feito de Klaus é digno de nota, ainda mais que eu soube depois, através de fontes ligadas à orquestra, que ele tinha deixado cair no chão o estojo de sua flauta, avariando o instrumento. Imaginem que ele tocou num INSTRUMENTO EMPRESTADO do segundo flautista! Com todos os solos que fez — era uma noite em que Klaus seria especialmente exigido — e com a extraordinária qualidade deles, dá para se ter uma ideia da magnitude do feito. Poucos conseguiriam. É como se ele tivesse saído do banco de reservas, após longa lesão, para virar o jogo. Porra, Klaus, foi demais!

Depois veio Batuque, de Alberto Nepomuceno (1864-1920), espécie de micro-Bolero de Ravel. O cearense Nepomuceno tem o mérito de ter sido um dos precursores do nacionalismo musical, que explodiu mesmo com o talento de Heitor Villa-Lobos

Por falar nele… E veio a melhor peça da noite, o Choros N° 6, de Villa-Lobos. Escrita para orquestra em 1926, a peça só foi estreada no Rio em 1942. É irresistível. Meus sete leitores sabem, tenho o coração duro e o derramamento de mel promovido por Tchaikovsky apenas me agradou parcialmente. Gostei mesmo foi do Choros, espécie de passeio musical — de trem, como Villa gostava de trens! — por bairros e cidades da periferia do Rio de Janeiro. É uma obra de primeira linha, com episódios muito belos, seresteiros, carnavalescos, chorados e contrastantes. O que anotei apressadamente no meu programa? “Klaus de novo, abrindo maravilhosamente os trabalhos. Não esquecer do Calloni (corne-inglês), do Tiago (trompete), o belo sax soprano do Carlos Gontijo e o clarinete do Samuel de Oliveira.”. Porra, Klaus!

Grande concerto.

Ao centro da foto, Elena Romanov, com Klaus logo atrás.
Ao centro da foto, Elena Romanov, com Klaus logo atrás, à direita | Foto: Olga Markelova Medeiros

Programa:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Concerto para piano nº 1, Op. 23
Alberto Nepomuceno: Batuque
Heitor Villa-Lobos: Choros n° 6

Regente: Carlos Prazeres
Solista: Guigla Katsarava (piano)

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Londres, 21 de fevereiro: Cadogan Hall, o passeio final e a saudade antecipada

Londres, 21 de fevereiro: Cadogan Hall, o passeio final e a saudade antecipada

Depois da Tate Modern, fomos caminhar pela cidade em direção à loja da Twinings, que está desde 1706 na Strand. Eu namoro uma bielorrussa e as pessoas deste país não vivem sem chá. Nós tínhamos que comprar muitos chás, sacolas e sacolas, entendem? Abaixo, vemos a Strand, onde a Elena ainda permanecia faminta, lembram? E chega de perguntas. É um recurso de baixo nível.

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Então nós entramos num pequeno restaurante tailandês. A qualidade da comida era fantástica e o preço melhor ainda. Nossa fome ajudava, é claro. Das janelas do pequeno restaurante, víamos uma Igreja Ortodoxa Romena ao lado do prédio mais simpático do mundo. Ele abriga várias publicações. Não perguntei se eles queriam um correspondente no Brasil porque seria muito melhor ser correspondente do Brasil em Londres.

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E então, chegamos à Twinings. Ah, se soubéssemos que aquele chá de gengibre era o que era! Teríamos comprado centenas deles! Compramos tanto chás que ganhamos um monte de brindes. Um destes foi bebido por mim hoje. Eu dizia para a Elena: estamos pegando muita coisa, menos, Elena. Ah, arrependo-me. A loja é pequena. Apenas um longo corredor, mas a enorme variedade de cheiros não deixa ninguém dotado de nariz indiferente.

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Já estava dando aquela tristeza. Afinal, íamos abandonar no dia seguinte um local que tínhamos adorado e onde passamos dias felizes. Avisei a Elena que a Temple Station era ali perto. Nós iríamos pegar o metrô para deixar os chás no hotel antes do concerto da noite. Mas o caráter romântico de minha amiga impediu a bobagem. Ela me perguntou se eu me incomodaria de seguir carregando as duas sacolas de chá e, à minha resposta negativa, propôs um passeio. Três viagens à Londres me deixaram com bom conhecimento da geografia da cidade. Então, dobramos á esquerda e fomos para as margens do Tâmisa a fim de fazer nossa despedida.

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Era um final de tarde. As pessoas caminhavam bem mais apressadas do nós. Muitos saíam do trabalho com calções e camisetas e faziam uma corrida até em casa. (Lá, eles vendem umas mochilas que não apenas envolvem o ombro como são amarradas na barriga. Os caras vestem aquilo, mais calções, tênis e botam pra correr. O número de corredores é alto: a cada minuto, passavam uns 5 por nós).

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Estávamos nostálgicos, refazendo o circuito mais turístico da cidade. A Elena dizia que não queria mais ir para Paris, ríamos.

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Londres deve ser mesmo a melhor cidade do mundo. Tem tudo lá em grande quantidade e a preços acessíveis, basta usar a cabeça. Desde concertos até roupas, desde a comida até o transporte, tudo pode ser barato. Os concertos mantêm cadeiras para quem é apaixonado mas não pode pagar muito; as roupas são muito baratas em lojas como a Primark e assemelhadas; a comida pega-se no super e come-se no quarto com o vinho vendido e garrafas individuais; o transporte pode ser todo feito pelo Underground, ônibus e barcos, basta comprar o passe semanal da Oyster; os bens culturais estão todos à mão. Para melhorar ainda mais, os grandes museus são gratuitos, até a Wallace Collection é gratuita. Não tínhamos visitado todos os lugares que desejávamos e isso nos dava uma leve angústia, apesar do fato de que o que fizéramos fora bem feito.

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Londres, 19 de fevereiro: Hyde Park e Southbank Center

Londres, 19 de fevereiro: Hyde Park e Southbank Center

Dia 19 foi um dia quase comum. Um dia de quem não tem maiores pressas. Estávamos em férias, certo? E, depois de ouvir Maurizio Pollini, tudo parecia menor. Ficamos na cama mais do que o esperado para quem está fazendo turismo. Conversamos muito, fazendo uma clara opção por nós e pelo turismo sinfônico. Depois, quando descemos, soubemos que poderíamos nos mudar para um quarto melhor. Maravilha. A mudança foi realizada e fomos passear no Hyde Park.

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Como disse, nosso hotel é muito bem localizado e fizemos quase tudo a pé neste dia. Atravessamos calmamente o Hyde Park. Acima, The Albert Memorial, o monumento que fica na frente do Royal Albert Hall, às margens do parque.

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Demos voltas e mais voltas.

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E preparamos a saída do parque pela Oxford Street a fim de chegarmos até a Primark. Afinal, Londres é uma cidade onde as roupas são muito baratas quando comparadas com os preços gaúchos e brasileiros. Aliás, acho que é uma boa viajar com duas mudas de roupas e malas vazias para lá. Ah, as malas também têm preços baixos. Acho que uma parte do custo da viagem pode ser obtido NÃO COMPRANDO nada de vestuário no Brasil, deixando tudo isso para Londres. Falo sério.

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À noite, para variar, voltamos a nosso turismo sinfônico, novamente no Southbank Center. Após meses ouvindo cordas discretamente problemáticas, foi um bálsamo para nossos ouvidos a perfeição da Filarmônica de Londres tocando música russa. Abaixo, o programa.

Mily Balakirev: Islamey, oriental fantasy
Aram Khachaturian: Piano Concerto
Vasily Kalinnikov: Symphony No.1

London Philharmonic Orchestra
Osmo Vänskä conductor
Marc-André Hamelin piano

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Não apenas a orquestra se mostrou espetacular como também o solista Marc-André Hamelin. Mas… vejam bem: no dia anterior tínhamos visto Pollini, então qualquer pianista nos pareceria apenas correto, normal. Mas… vamos lá. E não foi apenas isso: a orquestra, dirigida pelo finlandês Osmo Vänskä, tocou os russos como estes devem ser tocados. (Um dia, um amigo me disse que em sua orquestra havia dois arpistas, um italiano e outro russo. O primeiro tocava tudo como se fosse Verdi e o segundo tudo como se fosse Tchaikovsky). Bem, eles tocaram os russos adotando o sotaque russo e isto diz muito sobre a qualidade e o profissionalismo do conjunto àquilo que interpreta. A gente se sente respeitado e fica muito mais feliz.

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No final, minha bielorrussa — mesmo com Pollini na memória — prestou sua homenagem à Hamelin e ao armênio Khachaturian. E, falemos sério, que grande compositor foi Vasily Kalinnikov! Sua Sinfonia Nº 1 é grandíssima música.

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Ouça antes de morrer, amigo

Ouça antes de morrer, amigo

O 3º Concerto para Piano e Orquestra de Béla Bartók tem um primeiro movimento (Allegretto) que vou lhes contar. Não é só ela que gosta…

Com András Schiff (piano) e a City of Birmingham Symphony Orchestra (CBSO) sob a direção de Sir Simon Rattle.

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Ospa em noite de programa perfeito

Ospa em noite de programa perfeito

A Ospa acertou no ângulo. Há problemas com os locais de ensaio e de apresentações? A programação de 2013 teve que ser toda alterada, sofrendo uma espécie de downsizing? A construção da Sala Sinfônica está atrasada? Sim, sem dúvida, mas nada disso atrapalhou a criatividade de quem programou a gloriosa função de ontem à noite, toda feita de obras de primeira linha. Confiram na lista abaixo.

Ricardo Castro – Samba nº II para Orquestra
Sergei Prokofiev – Concerto para piano nº 3
Wolfgang Amadeus Mozart – Sinfonia nº 36

Regente: Roberto Tibiriçá
Solista: Alexandre Dossin (piano)

Ricardo Castro (1981) foi um dos vencedores do Concurso Ospa para Jovens Compositores. Eu me preparei para encará-la com certa indulgência por tratar-se, afinal, de um jovem compositor. Mas era desnecessário. O Samba Nº II é bom demais, é música muito bem escrita e pensada. São vários temas — alguns de aparência vetusta — que vão discutindo, argumentando e adequando-se um ao outro até se engalfinharem num samba rasgado. O parentesco com Villa-Lobos é bastante claro, mas a visitação a um de nossos ritmos mais importantes — também o caso dos Choros de Villa — também é uma questão de inteligência histórica, pois a maioria dos compositores do passado, começando lá na Idade Média, fizeram constantes visitas à música popular. Afinal, como se fizeram Bartók e Stravinsky, para não ir mais longe?

Dos cinco concertos para piano escritos por Prokofiev, o terceiro é o meu preferido. Na verdade, é uma das obras de minha preferência absoluta. Muito contrastante — com passagens líricas e dissonâncias espirituosas, principalmente em seu movimento central –, irradia grande vitalidade. Uma verdadeira proeza de Prokofiev, que ainda mantém notável equilíbrio entre o solista e orquestra. Ao contrário dos concertos para piano criados por muitos de seus antepassados ​​românticos, a orquestra não está lá para apenas dar brilho ao piano, mas para desempenhar papel ativo.

O pianista Dossin: show de bola
O pianista Dossin: show de bola

Alexandre Dossin foi um solista extraordinário. Demonstrou claramente que seus anos russos (ou seriam soviéticos?) não foram em vão. Tenho a lamentar apenas certo empastelamento causado pela acústica da Reitoria da Ufrgs. O toque sutil de Dossin, quando vinham junto com o som da orquestra, muitas vezes perdia-se nos enganadores meandros do auditório e, com efeito, nem sei se no final do primeiro movimento havia mesmo alguém(ns) muito errado na orquestra ou se estava sendo iludido por não ouvir bem o piano nos forti, tutti, essas coisas. O fato mais importante é que a Ospa enfrentou uma obra complicada, saindo-se muito bem. Ah, Dossin deu três bis. O melhor foi um Tchaikovsky que quase me destruiu. Depois, a coisa ficaria bem mais simples e eufórica, apesar de igualmente trabalhosa.

Linz

No dia 3 de Novembro de 1783, Wolfgang Amadeus Mozart terminou a composição da Sinfonia Linz, que seria estreada logo no dia seguinte. A sinfonia é uma pequena joia composta em apenas 3 dias. Sem um tema grudento ou excepcionalmente melodioso, é genial e atlética. Sua história é curiosa: Mozart estivera com a esposa Constanze por alguns meses em Salzburgo. Em seu retorno a Viena, passou por Linz, onde ficaram hospedados na casa do Conde Thun-Hohenstein. Comovido com a hospitalidade do mesmo, Mozart retribuiu a gentileza, aceitando apresentar uma nova obra. Como não levava nenhuma sinfonia no coldre, resolveu criar uma novinha em folha para o concerto, que iria se realizar quatro dias depois. Desta forma, a estreia da Sinfonia Nº 36, de Mozart, teve lugar em Linz. Adivinhem qual foi o apelido que ela ganhou? Acertou quem respondeu Linz!

Trata-se de uma sinfonia feliz e gentil, o que permitiu ao maestro Roberto Tibiriçá brincar bastante com os músicos, principalmente com os primeiros violinos, os condutores da obra em âmbito sonoro. Ele pulava, dançava, sorria, agachava-se e torcia-se todo. Loucura? De modo algum. Estava apenas retirando com empolgação o melhor da orquestra — o que fez por todo o concerto — , além de encarnar o espírito de uma sinfonia feliz que deixou todo sorridente à saída do concerto.

Estávamos tão felizes que, ao final do concerto, cantei para o violoncelista Philip Gastal Mayer, mais conhecido como Phil:

Phil maravilhááááá, nós gostamos de você!
Tiú, tiú, tiú, tiú, tiú, tiuru, tiú
Phil maravilhááááá, faz mais um pra gente vê!
Tiú, tiú, tiú, tiú, tiú, tiuru, tiú

Acho que ele riu só para ser simpático.

E bem, diante da ausência do fotógrafo oficial deste blog, Augusto Maurer, utilizaremos dois registros vindos da assessoria de imprensa da Ospa:

Foto: Giovanna Pozzer
Foto: Giovanna Pozzer
Foto: Giovanna Pozzer
Foto: Giovanna Pozzer

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