Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XIX – Auto-de-fé, de Elias Canetti

canetti auto-de-féElias Canetti foi um judeu búlgaro de nome italiano e origem espanhola que viveu na Inglaterra e escrevia em alemão. Recebeu o Nobel em 1981, tendo iniciado sua carreira literária com seu único romance, este Auto-de-fé (atualmente na Cosac Naify, 631 paginas). Depois, produziu ensaios e algumas peças teatrais.

Aqui, a tradução é de Herbert Caro, o que tem claro significado. Meu velho amigo não costumava entrar em fria. Um dia, em nossas reuniões na King`s Discos com a finalidade de falar de música, o Dr. Herbert Caro disse que a Nova Fronteira estava publicando mais um calhamaço traduzido por ele. Disse que não ficava nada a dever a Doutor Fausto, nem a A Montanha Mágica e nem às outras traduções que ele já fizera. Parece que, naquela altura da vida, ele só traduzia o que queria, e sempre eram grandes obras. Assim que foi lançado, comprei (ou roubei, pois na época era um meliante literário) o livro.

Peter Klein é um eminente filólogo que só existe em função de sua biblioteca. Ele é um misantropo que vê o mundo através de seus milhares de livros, mantendo-se afastado da vida. Um dia, por impulso, este ser enormemente individualista resolve casar com a governanta — afinal, ela era tão competente, arrumava tudo tão direitinho… — , convencido de que esta lhe auxiliaria a manter-se afastado do mundo exterior. Casam-se. Porém, rapidamente o casal se incompatibiliza e Klein é posto no olho da rua. Forçado à vida, o professor parte para conhecê-la, entrando numa espiral auto-destrutiva.

Canetti_EliasLendo assim, parece simples; lendo o livro cruzamos com uma montanha de personagens estranhos. O livro é de 1935, segundo ano do nacional-socialismo de Hitler, e seu entendimento do livro deve ser buscado não apenas naquela Europa, mas também lá longe, na China de dois mil anos atrás. Não esqueçam que Peter Klein é um sinólogo e, há dois milênios, o império chinês foi dominado por um certo Qin Shi Huang. Huang foi quem pacificou os vários reinos em guerra que vieram a formar a China. Também divulgou o confucionismo e construiu um belo exército de terracota para proteger seu túmulo. Qin Shi Huang tinha algo de Hitler no sangue e determinou que todos os livros que discordassem de sua linha filosófica deviam ser queimados. Para o servidor que demonstrasse negligência ou piedade ao punir os portadores de livros proibidos, estava prevista a pena de morte. Depois, Huang achou que as fogueiras de livros não bastavam e decidiu enterrar vivos os aproximadamente 500 intelectuais e alquimistas do reino, só para deixar claro seu apreço pela opinião alheia e pelo debate franco e aberto de ideias.

Huang e Hitler, Hitler e Huang. Como escreveu Felipe de Amorim em seu extenso e pessoalíssimo comentário sobre Auto-de-fé, o tema de Canetti é o embate entre o totalitarismo e a liberdade intelectual, descrita numa linguagem colorida e com farpas para todos os lados. Os personagens deste estranho livro interagem, mas não dialogam efetivamente, pois cada um deles está fechado em seu próprio mundo e em suas metas individualistas. Falam e não se ouvem uns aos outros. Eles não conseguem, em momento algum, estabelecer uma compreensão concreta do outro, nem do mundo.

Canetti era um apaixonado pelo tema da formação de grupos populares e da comunicação entre seres humanos. Sua maior obra de ensaios, Massa e Poder, deseja compreender como pessoas pretensamente racionais podiam subitamente se transformar em uma coletividade enfurecida cheia de paranoia, medo e voracidade. Quem manda e quem obedece, quem deve ser exterminado e quem deve sobreviver? Enfim, como se obtém e se perde o poder. “A massa traz sempre vivo em si um pressentimento de desintegração que ameaça e da qual busca escapar através do rápido crescimento”, diz em Massa e Poder. E tudo o que está claramente presente neste ensaio de 1960, aparece de forma alegórica em Auto-de-fé.

Em Auto-de-fé, o ingresso do homem no grupo, na massa, não o torna mais tolerante. Na massa, ele ganha permissão para radicalizar suas opiniões e atos. É este o processo que move as ações dos personagens do romance em sua jornada aniquiladora.

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Guimarães Rosa é — e sempre será! — notícia

Guimarães Rosa é — e sempre será! — notícia

Parece haver uma conjuração em curso. Desde ontem, quando confessei não lembrar bem de Grande Sertão: Veredas, estou recebendo uma série admoestações de queridos amigos. Curiosamente, Paulo Timm (dois links, o que comprova que Guimarães Rosa só pode ser cantado por quem controla dois espaços na internet) não me fez qualquer advertência, mas me mandou um texto sobre Rosa e Grande Sertão, o qual não posso deixar de publicar. Paulo Timm é homem de dois mundos e age de forma exatamente contrária a do meu falecido amigo Herbert Caro. O Dr. Caro viajava para a Alemanha a cada 1º de dezembro a fim de fugir da “canícula”. Voltava a Porto Alegre lá por 31 de março, vivendo dois invernos por ano. Já Paulo Timm busca o calor: vive um verão em Torres (RS) e outro em Covilhã, na Serra da Estrela (Portugal). 

Bem, antes de passar a palavra a Paulo Timm, prometo que vou ler os dois livros que já estão sobre o meu criado-mudo e depois repego o Grande Sertão, OK? E não gritem mais comigo!

.oOo.

“Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranquilos e escuros
como o sofrimento dos homens.”

Então, Guimarães é notícia em destaque?

Por quê…?

Aconteceu alguma coisa? Ganhou o Nobel de Literatura Post Mortem? A patrulha descobriu que ele era racista, homofóbico, ou vice-versa?

Nada disso, apenas Guimarães — eterno — e uma resenha ao léu no Blog do Milton Ribeiro, que não resisti a comentar. Daí a cobrança dele por esta aventura que se segue: falar sobre o maior autor moderno do país. Aquele que ultrapassou o modernismo e o regionalismo para entronizá-los na literatura mundial, com a mesma envergadura de “Cem Anos de Solidão”. Talvez mais original, mais ousada. Advirto o editor: – Não sei nada de literatura, a não ser como leitor. Penso comigo: – Devorei a “Biblioteca Lar Feliz” que minha mãe, professora primária em Santa Maria, guardou com tanto zelo, até morrer. E havia outra coleção: “Terremarear”… Como esquecer esses nomes todos? Mas, curiosamente, lá não havia muitos clássicos. Até hoje não li sequer um livro de Shakespeare. Conheço-o, como diria Machado, de vista e de chapéu. Ainda assim, pra mó de me compreenderem saibam que “ Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória.”  No Cícero Barreto e Colégio São Luiz, em Santa Maria, anos 1950/53. E o fiz até cansar, porque era muito fraquinho, não dava pra esportes coletivos, mal brincava na rua. Sempre escutando minha mãe: ” Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim”.

Mas Milton me anima: — Trata-se de depoimentos, fã clube!

Levo medo. “Abriu em mim um susto. Mal haja-me!”  Afinal respondo:  :“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só : o Que-Diga.”

“Parece até que ficou o feliz, que antes não era…”

Pois assim funciona o Guimarães, pra mim:  Como um desencontro de palavras  que escorre em melodia, como a fala de todo mineiro. Outra lógica.

Decididamente, me retombo como água caindo em cachoeira. E me vou, retórico, vaidoso e despido de vergonhas a caminho da crônica, embebido de diadorices .

Grande Sertáo, Veredas foi o melhor romance que li:  Lhe digo, à puridade.- Pois não sim…?”

A primeira vez na juventude e não consegui entender nada. Nem o título. Sertão, pra mim, ficava no Nordeste do país: “Vidas Secas”, “O Cangaceiro”, “O Pagador de Promessa”. Glauber, “Os Retirantes”. Guimarães não é minero?, perguntei ao Fabinho, um de meus gurus, comunista visceral, com quem repartia o verdadeiro “aparelho” na Demétrio Ribeiro, 1094. Meados da década de 60. Aliás, outro cadáver da ditadura. Homenagem. Ele me disse que sim, mas não explicou mais. Tudo é e não é…” Passei décadas sem voltar ao livro. Mas, perto dos 60 anos, fui morar num ermo de Goiás: Olhos d‘Água. Afinal, um homem nessa idade “ carece de aragem de descanso. Solito e Deus. Cuidando de plantar mandioca, cuidar das galinhas e fazer poesia. Cansado de guerra!

“Sofro pena de contar não….Melhor se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandio-brava, que mata?

Lá convivi com muitas gentes oriundas das Gerais, pessoas simples, rudes e sábias. E também com um mineiro, meu senhorio, Betão, de Cordisburgo, cidade de Guimarães, cujo pai havia sido dele colega. Eu lhe ensinei a tomar chimarrão nas madrugadas, ele me devolvia com mineirices.  E susseguinte… sem remediável, ”percebendo a maneira curiosa de toda aquela gente pensar e falar, ocorreu-me voltar ao “Grande Sertáo”. Pois “ponho primazia é na leitura — eu gosto muito de moral — ajudo com meu querer acreditar. De sorte que carece de se escolher. Que no causo, é reler com o jeito, agora, de poder entender. Porque aprendi com aquela gente do Planalto Central, que o excesso de argumentos e a falta de jeito falecem a razão. Que redescoberta! Comecei a entender tudo. Há sertão nas Gerais, um sertão misterioso e encharcado durante as águas, que são abundantes; há uma filosofia popular profunda entre mineiros e goianos (estes, dizem, mineiros fugidos depois de matar alguém…) Hoje, Grande Sertão, é um dos meus livros de cabeceira. Vez por outra roubo-lhe uma expressão. Ou um parágrafo inteiro – aí cito…-. E coisa incrível: Oferecendo-me para ler em grupo com algumas pessoas o livro, aqui em Torres, descobri duas mulheres devotas da obra, uma psicóloga, Angela, a outra professora, Vera. Nem precisou reler o livro com elas. Elas o sabiam melhor do que eu… Coisas deste mundo que ninguém, nem o mais o desinquieto, desentende… “Só um e outro, um em si juntos. O viver em ponto sem parar (consegue). Coração-mente. Pensamento. Avançam parados dentro da luz.

Parece que aqui, mesmo com o mar a tiracolo, com a Serra Geral subindo ao longe, também tem sertão…Pois ele está é dentro da alma de cada um de nós.

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O Lacaio e a Meretriz, de Nina Berberova

O Lacaio e a Meretriz, de Nina Berberova

Nossa, este livrinho — são apenas 62 páginas — da Nova Fronteira é bem ruinzinho. Lançado em 1989, narra a história de Tânia, uma russa bonita e de seios grandes que foge da Revolução Bolchevique pelo Japão, chegando em 5 páginas à Paris. Aparentemente, ela não tem nenhuma opinião sobre a Revolução. Desinibida, rouba o pretendente da irmã, o qual morre logo após o casamento. deixando nossa personagem principal à deriva na capital francesa, à procura de um marido que lhe pague as contas. Ele vem na figura de um garçom também fugido de St. Petersburgo e ela passa a detestá-lo por sua incompetência em ganhar dinheiro. Ele rasteja, dizendo adorar a mulher. Deprimida, já gorda e decaída ela segue o roteiro óbvio. Fujam!

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Kafka y Praga, de Harald Salfellner

A edição da Vitalis

Este livro foi publicado em português pela editora carioca Tinta Negra, mas eu desconhecia a existência da obra. Vi-a pela primeira vez em fevereiro deste ano, no bairro judeu de Praga. Eu estava na lojinha de uma sinagoga e Franz Kafka y Praga (Vitalis, 120 páginas) estava lá em checo, alemão, inglês e espanhol. Comprei imediatamente a tradução hermana. O livro é bom e inclassificável. É um livro de viagens, mas também tem muito de história e de literatura. Quando digo que tem muito, quero dizer que é muito mesmo. Ou seja, o livro desagradará o turista desinteressado em Kafka ou alguém que não quer saber da história de Praga. Os inversos, em qualquer sentido, também são verdadeiros. O livro sustenta-se firmemente nestas três pernas. Por isso é tão curioso e talvez por isso seja tão lido e vendido em lojinhas de turistas e em livrarias.

Os diários e cartas de Kafka comprovam uma importante relação com a cidade, um verdadeiro amor. Há relatos de caminhadas longuíssimas, roteiros, descrições de locais, de parques, de ruas, de casas, do Castelo de Praga — onde ele, por um período, escreveu à noite numa tranquila ruela do castelo, fechadíssimo em um pequeno quarto de uma casa alugada por sua irmã, pois precisava de silêncio para trabalhar –, além de  subidas pela velha escadaria do castelo, missão que fazia diariamente e que não é para qualquer sedentário. É um belo livro, com centenas de fotos, algumas infelizmente colorizadas.

Em Kafka y Praga, o escritor pode ser visto de uma perspectiva diferente. Céus, quantas vezes aquela família se mudou, quantos endereços, pareciam gostar de carregar coisas! Outras coisas que, acho, não se notam em seus livros, são a profunda ligação do escritor com a cultura judaica, tão importante em Praga, e suas amizades com muita gente. Eu sempre tive a impressão de um escritor insular, kafkianamente ensimesmado, quase apartado do mundo, lendo A Metamorfose entre risadas para poucos conhecidos, mas Kafka dava palestras, ia quase diariamente a cafés e namorava bastante. Vender livros era o que não conseguia… E procurava com grande afinco um lugar tranquilo para escrever e reclamava, ao menos em seus diários, que os vizinhos, todos e via de regra, eram sempre insuportáveis. Só havia barulho no mundo. Salfellner também conta a luta dos checos — às vezes nas ruas — para afirmarem sua cultura e língua em uma cidade de pesada presença alemã. Lembrem que o escritor ainda escrevia em alemão e até hoje, na cidade, as pessoas que desejam falar conosco tentam em primeiro em checo e depois a pergunta é Sprechen sie Deutsch? Parece que a segunda língua é o inglês só para os mais jovens e para os que se envolvem com o turismo.

Enfim, se você quer um livro de curiosidades sobre Kafka e sobre a história de Praga na virada do século, este é bem bom. Mas, se você estiver indo a Praga, não deixe de adquirir o livro do Lonely Planet sobre a cidade. Este sim é indispensável.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XVII – O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov

Capa de O Mestre e a Margarida, edição da Alfaguara

Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida não apenas por minhas conversas com os amigos russos da Ospa, mas no reflexo da obra na cultura mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock, que não viveu para ouvir, homenageia Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.

Em vida, tudo que o ucraniano Bulgákov (1891-1940) desejava era sair de Moscou e da União Soviética. Escreveu mais de uma centena de cartas a Stálin, justificando-se e pedindo permissão para deixar o país. Afinal, se tudo o que escrevia era proibido, era um inútil para a URSS. Tanto escreveu cartas que acabou recebendo um telefonema do próprio Stálin: este lhe oferecia um emprego num teatro, para o qual deveria escrever pecinhas tranquilas com seu indiscutível talento — e Stálin sabia reconhecer quem o tinha —  e referendava o “desejo” de não ver o escritor fora do país. E Bulgákov sobreviveu escrevendo umas poucas peças de sucesso para o teatro, além de adaptar para o palco Dom Quixote e Almas Mortas.

Bulgákov brincando de Koroviev: censura e cartas a Stálin

Ele começou a escrever o romance em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, só sua mulher e amigos sabiam da existência do romance.

Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o Samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova versão — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor. A vida era assim na URSS.

O livro é digno da história contada por minha amiga bielo-russa Elena Romanov (aqui em uma versão livre e talvez equivocada de minha lavra…):

— Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland “Manuscritos não ardem” é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é “Ánnuchka já derramou o óleo”, para dizer que o cenário da tragédia está montado.

O jovem Bulgákov e um daqueles escritores russos

As cenas de Pôncio Pilatos, do teatro, do belíssimo voo de Margarida e do baile eram conhecidas de mim por serem citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa. Digo tudo isto porque é triste ver O Mestre e Margarida, obra muito popular em vários países, ignorada no Brasil.

Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.

Bulgákov e esposa em 1937. Ele tinha uma Margarida que era pura poesia.

A ação do romance ocorre em duas frentes: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Koroviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua. Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que aqui vive uma atordoante e espetacular série de cenas hilariantes.

Homenagem do Google aos 120 anos de nascimento de Bulgákov em 2011

Como veem, em Moscou o diabo está casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram toda a sua incrível criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas, fora de dúvida, a base de criação de Bulgákov é seu conterrâneo Gógol.

O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira á Rússia soviética ou como crítica da superficialidade das pessoas. Bulgákov não é tolo: não há nostalgia da Rússia czarista. E mais: Woland não está em oposição direta a deus, mas como o ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas (concordo muito). Porém, as punições de Woland são desconcertantes.

Agora é só ler, né? A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica.

Finalmente tranquilo: Mikhaíl Afanasyevich Bulgákov em Kiev

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A Acompanhadora, de Nina Berberova

Comprei este livro lá em 1989 — a edição é de 1988, da Nova Fronteira — e ele ficou na estante me esperando por todo esse tempo. Lamentável.

Peguei o livrinho de 69 páginas em razão de seu tema: o ódio, tão presente em O Anão, que comentei há poucos dias.

Sonetchka é uma pianista feia, sem graça e sem especial talento. Na União Soviética pós-revolucionária, ela encontra trabalho junto à cantora Maria Nikolaevna Travina, que se torna sua protetora. E passa a viver muito bem, com casa, comida e dinheiro. E a odiá-la por comparação. Enquanto a cantora é brilhante e brilha, ela é apagada e opaca. Para piorar, é filha ilegítima, fato condenável na sociedade pré e pós revolucionária. Viver sob a luz ofuscante da outra é-lhe insuportável. Juntas, partem para o exílio e, tanto mais a pianista depende da cantora e se afasta da família na URSS e da mãe, mais a odeia. O ciúme nunca é racionalizado, mas vinganças são planejadas. O vou-acabar-com-ela é o tom da novela. O que há de excepcional no romance é o vazio de Sonetchka, patético exemplo de pobreza intelectual.

Nina Berberova nasceu em 1901, exilou-se na França em 1925 e foi para os EUA em 1950. Foi descoberta apenas nos anos 80 como se fosse um novo Nabokov. Não é. A acompanhadora é apenas um bom passatempo.

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El Fútbol a Sol y Sombra, de Eduardo Galeano

Uma de muitas observações sobre o futebol:

Por mais que os tecnocratas o programem até o mínimo detalhe, por muito que os poderosos o manipulem, o futebol continua querendo ser a arte do imprevisto. De onde menos se espera salta o impossível, o anão dá uma lição ao gigante, e o negro mirrado e cambaio faz de bobo o atleta esculpido na Grécia.

Sobre Obdulio Varela, após o Maracanazo:

Ao final do jogo da Copa de 1950, ao ser abordado por jornalistas, respondeu: “Foi casualidade”. À noite, foi beber cerveja com brasileiros, abraçados aos vencidos, sem se identificar.

Sobre Didi:

Didi jogava quieto. Mostrando a bola dizia: — Quem corre é ela.

De Eduardo Galeano, em El Fútbol a Sol e Sombra

Ganhei do meu filho o pequeno volume ao lado da Siglo Veintiuno Editores. Nunca pensei que me divertiria tanto. Futebol ao Sol e à Sombra — lançado no Brasil pela L&PM — não é apenas um livro sobre futebol, é uma autêntica demonstração do amor e da rica vivência de um grande intelectual com o esporte, mas… Também não é apenas isso, no fundo é uma maravilhosa coleção de textos laudatórios e elegíacos ao futebol. Quem, como eu, gosta de destacar frases especiais dos textos que lê, vai encher o saco de tanto sublinhar.  Parece que Galeano não cansa de criar frases perfeitas.

O livro é feito de crônicas que abarcam o futebol desde a pré-história na China, passando por sua consolidação da Inglaterra, sua vinda para a América do Sul e para o mundo, até a Copa de 1994. Trata dos grandes craques e dos fracassados, do grandes vencedores e dos derrotados, da pureza de um Garrincha à corrupção de Havelange e Blatter. Tudo de uma forma tão inteligente que vai ser difícil seguir lendo alguns colunistas que andam por aí. Galeano, é claro, não fica apenas no futebol, mas o projeta e o expande para todos os lados. Verdadeira aula prática sobre o gênero da crônica, este livro de 1995 é obrigatório até para quem detesta o jogo.

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Kaos e outros contos sicilianos, de Luigi Pirandello

Minha arte é cheia de compaixão por todos aqueles que iludem a si próprios. Mas, é inevitável, que esta compaixão seja seguida pelo escárnio feroz a um destino que condena o homem à mentira.

Luigi Pirandello

Aqui nós podemos esquecer a Itália que vota em Berlusconi. Kaos e outros contos sicilianos (128 páginas, Nova Alexandria) é uma coletânea que acompanha a escolha das histórias para o belo filme de 1984 dos Irmãos Taviani, chamado Kaos. Os cinco contos apresentados no filme estão neste volume: O Outro Filho, O Mal da Lua, O Vaso (A Bilha, no livro), Réquiem e Colóquio com a Mãe. De quebra, no livro a gente ganha outro Colóquio, o tragicômico Ao Valor Civil, o curioso A Morta e a Viva e o emocionante e perfeito A Viagem.

Eu poderia apenas usar apenas dizer uma pequena expressão e estaria justificada toda a minha admiração por este livro: são contos encharcados de humanidade da primeira à última letra. Todos. Mas também são boas histórias de um extraordinário escritor muitas vezes esquecido pela modernidade. A tradução de Fulvia Moretto é igualmente excelente. Vale a compra.

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Nove Noites, de Bernardo Carvalho

Este livro é certamente um dos melhores romances brasileiros deste século. Romance? Pois é. Eu concordo com Bernardo Carvalho ao qualificá-lo assim, até porque falar em biografia romanceada seria reduzir a obra. Fiquemos com romance então.

Nove Noites (2002) narra os acontecimentos que redundaram no suicídio — anunciado desde a primeira página — do antropólogo norte-americano Buell Quain, em agosto de 1939, entre os índios krahô. Carvalho desconhecia a existência de Quain até maio de 2001, quando leu uma referência ao cientista num artigo. O que segue é uma busca em todas as direções pela história e motivações do suicida. A busca leva Carvalho ao interior de Tocantins e a Nova Iorque. Todas as suposições, erros e hipóteses, algumas desvairadas, criadas pelo autor, resultam num…. romance, é claro.

O livro possui luz própria, mas para caracterizá-lo talvez fosse adequado dizer que é uma mistura de Joseph Conrad com Bruce Chatwin. E não pensem que Nove Noites seja inferior aos modelos que trago, ele é, sim, obra de primeira linha, para se ler com entusiasmo. É fascinante a forma como Bernardo de Carvalho se coloca no livro: sem nenhum heroísmo, com muitos medos e de uma forma até irritante. Acho que esta esquisita obra sem gênero definido, estranha reportagem que cabe perfeitamente sob o guarda-chuva do romance, vencedora do Prêmio de Literatura da Biblioteca Nacional e do Portugal Telecom, veio para ficar. Excelente e grudento livro, para ser bebido rapidamente em sôfregos goles.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XI – Orgulho e Preconceito, de Jane Austen

O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste de nossos amigos e de qualquer outra coisa que não possamos definir.

E. M. Forster – Aspectos do Romance

Publicado pela primeira vez em 1813, Orgulho e Preconceito é o romance mais popular de uma autora que viveu apenas 41 anos, tendo escrito apenas outros cinco, todos excelentes: Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815) e os póstumos A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818).

É compreensível a insistência do cinema em adaptar os trabalhos de Austen. Numa camada mais superficial, sua literatura trata de temas simples e universais dentro do cenário da pacata sociedade rural pré-vitoriana. São romances de costumes. As moças estão sempre à procura do amor e de um bom casamento, enquanto os mais velhos pensam no dinheiro e nas conveniências. Todos os conflitos são aparentemente fúteis, mas aí é que entra a autora. Austen tem um tom delicioso para contar suas histórias. Ela não faz comédia, mas é engraçada; expõe dramas, mas não é trágica; é grave, porém leve. A ação é posta em movimento pela tensão variável entre poucos personagens e pela intervenção de outras. O romance não deixa transparecer seu esquema por trás de diálogos absolutamente fluentes e de uma narradora de tom zombeteiro. Num espaço rural limitado, as pessoas fazem visitas, vão a bailes, tomam chá, enganam umas às outras, armam situações e divagam sobre suas vidas e planos. O refinado humor da escritora se manifesta em tudo: ameniza os dramas, diverte-se com os personagens e faz humor.

Em Orgulho e Preconceito, a maior fonte de humor é a convivência doméstica do casal Bennet, pais das cinco irmãs casadouras. Expliquemos a história do romance sem prejudicar a leitura de quem não o conhece. Os personagens principais são Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy. Nada mais típico e copiado: Darcy é um rico nobre e Elizabeth é a moça da pequena nobreza rural inglesa que parece apenas esperar a dádiva de um marido. Só parece. Pois Elisabeth é muito inteligente, crítica e unicamente a culpa em relação à família a faria casar com o primeiro que aparecesse. Ou nem isso, como veremos. Aliás, em sua família, apenas ela, sua irmã mais velha (Jane) e o ultrassarcático papai Bennet têm comportamentos razoáveis. A mãe só pensa em livrar-se das filhas e as outras irmãs — talvez com a exceção da moralista e puritana Mary — podem ser sintonizadas na mesma faixa da mãe. Para catalisar ainda mais a histeria familiar, há o fato de que a lei inglesa proibia que mulheres herdassem quaisquer patrimônios. Isto significa que, quando da morte de Mr. Bennet, a casa e a pequena propriedade familiar iria para um primo e as mulheres da família ficariam sem renda. Ora, você já conhece este enredo? Sim, claro, Austen foi imitadíssima, sem sucesso. Elizabeth e Mr. Darcy se conhecem e a primeira impressão é de antipatia mútua. Nos encontros seguintes, pouco a pouco, Darcy começa a ver em Elisabeth uma moça bem longe das simplesmente casadouras, reconhecendo um espírito crítico que lhe agrada inteiramente.  O Preconceito do título do romance é principalmente dele e é o primeiro a lentamente cair. Darcy chega a declarar seu amor, mas é rechaçado pelo Orgulho de Elizabeth. Como quase sempre, a personagem feminina é muito mais fascinante do que a masculina. Incompreendida ao impor dificuldades a um rico casamento, Elisabeth só encontra respaldo em seu pai, o sarcástico. Mr. Bennet é um excêntrico que se refugia em seus estudos para não ter de conviver com a mulher, mas que apoia incondicionalmente Elisabeth.

Além do conflito principal, Jane Austen traz uma galeria de personagens perfeitamente construídos — a tia hostil, a irmã fujona, Jane — que, acompanhados de seus draminhas, interferem com Darcy e Elisabeth. Os personagens nos proporcionam renovado prazer cada vez que aparecem. Seus diálogos nos conduzem naturalmente de um assunto a outro, fazendo de Orgulho e Preconceito um dos ápices da literatura mundial. Uma vez, ao ser perguntado sobre o maior casal da literatura, votei em Elisabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy, o que provocou certo desconforto em quem esperava Beatrice Portinari e Dante Alighieri, dentre tantos outros. Acharam que eu me utilizara de um lugar-comum. Mas que culpa eu tenho de Orgulho e Preconceito ser um daqueles casos em que qualidade e popularidade permaneceram juntas?

Austen nunca casou, sempre morou com os pais na casa acima (hoje sede do Museu Jane Austen, claro). Escrevia seus romances no quarto e tinha pudor de quando alguém abria a porta — escondia imediatamente seus cadernos. Sua vida não teve grandes acontecimentos e ela ficou para titia. Porém, se você ler por aí que ela teve um caso com sua irmã Cassandra, esqueça. Uma vez, Paulo Francis deu demasiada divulgação a um artigo da imprensa marrom inglesa: Was Jane Austen gay? Era uma mero chute, mas Francis descobriu que Jane dividira por décadas a mesma cama com Cassandra — ambas solteironas — e levou a coisa à sério. Ignorando que este era um costume da época, a ex-batata inglesa do Manhattan Connection fez uma festinha com seus amigos a respeito.

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Dois updates mais do que pertinentes:

1. Um novo show da Nikelen nos comentários:

Querido Milton, desde que comecei a comentar aqui, fiz a autocrítica de que meus comentários acabaram ficando longos demais. Porém, desta vez, você me obriga.

Conheci Austen já em idade avançada. Estava no início do doutorado, presa no Rio de Janeiro (entendam isso como quiserem), e, após o dia lendo para a tese, restava apenas a TV aberta e andar por um cubículo de pouco mais de 30 m2. Então, resolvi tapar minhas falhas literárias, fui a um sebo e me muni de Austen, Henri James, e versões adultas de Sabatini e Dumas (até então eu apenas lera as versões juvenís da Ediouro).

Esperava que Austen fosse um pouco massante, qual minha surpresa quando me vi as gargalhadas com Orgulho e Preconceito. Foi mais do que amor à primeira vista, foi o início de uma devoção. Pode parecer exagerado para quem não leu, mas eu explicarei meus pontos. Já até ameacei amigos que me franziram a testa perguntando: “é bom?” Até hoje nenhum dos meus convertidos se arrependeu de dedicar longas e perfeitas horas a Miss Austen. Por isso, adorei sua resenha e concordo quanto à sua escolha quanto ao maior casal da literatura.

E acredito que Elizabeth é, igualmente, uma das mais fantásticas heroínas já escritas. Ela não é uma mocinha romântica (esse papel é da sua irmã Jane). Elizabeth sabe ser maliciosa, dura, debochada, sem deixar de ter um bom coração. Envergonha-se de sua família, mas ama-os a ponto de defendê-los mesmo com seus imensos defeitos. O que poucos notam é o quão revolucionário é este romance para a época e as pessoas para quem foi escrito. Ele é a reivindicação de uma possibilidade de escolha que nem as mulheres, nem os homens tinham em sua época. Embora publicado no início do século XIX, o romance é de fins do século XVIII, e está ancorado numa moral em que a família e as convenções ditam as escolhas e os destinos.

Mas Austen pega seus dois personagens principais – cheios de dúvidas e de contradições, quase incapazes de um comportamento retilíneo – e os faz rebeldes para o mundo em que vivem. Elizabeth é uma rebelde nata. Não quer se submeter a um homem apenas para ter um marido. Ela quer alguém que a respeite como o pai a respeita (um Édipo bem resolvido, eu diria), e tem o apoio do pai – que a considera acima de todas as filhas por ver nela uma mente irmã.

Mas Darcy? Darcy é aparentemente convencional, preso aos costumes e a sua posição (embora de uma antipatia pouco aceita naquela sociedade, mesmo de alguém tão rico. Até Mrs. Bennet o esnoba por isso). E aí, de repente (ou lentamente como narrou o Milton), Mr. Darcy também se torna um rebelde (contra si mesmo, como ele afirma) e passa a querer o que não lhe seria permitido.

O romance não é apenas uma aula sobre o convencionalismo inglês, mas também sobre uma revolução nos costumes, marca desta virada de século. A família nuclear começa a deixar de ser vista como uma entidade reprodutora de pessoas para abastecer linhagens, passa a ser vista como um núcleo formativo de indivíduos e, nisso, as ideias de harmonia e amor conjugal começam a aparecer. É óbvio que se trata de uma mudança de longa duração. Daí o elemento revolucionário do romance de Austen (escrito no princípio desta transformação).

Ahh Milton, eu iria longe aqui, muito longe. Há tanto o que falar de Mr. Bennet e sua posição ambígua de crítica sem nada transformar. Ou da insuportável Lydia, cuja tagarelice vazia faz nossa mente voar para fora do papel e quando retornamos, percebemos que fomos acompanhados no voo por Elizabeth (tão avessa à futilidades quanto nós). Ou ainda falar sobre Mr. Collins, a realista Charlotte ou Mrs. de Bourgh (entulho de um século precedente), cada um deles, um universo de análise.

Vou apenas, se me permite, discordar de dois pontos em sua resenha. Um: Elizabeth não é plebéia. Ela pertence à pequena nobreza rural inglesa que, em tese, poderia sim se casar com a alta nobreza, embora isso não fosse visto como conveniente para quem estava no andar de cima.

Dois: não acho Mary uma precursora dos nerds. Ela é uma jovem moralista, leitora ávida dos textos protestantes e metodistas da época, que tentavam regrar as vidas das pessoas conforme uma rígida postura puritana. Sempre acho uma pena que Mr. Collins não a tenha escolhido, mas… o final feliz não é para todos.

Um grande abraço e obrigada por não deletar este comentário exagerado.

2. E outro da Emma Thompson quando da entrega do Globo de Ouro de 1995. Ela se faz de… Jane Austen:

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): X – Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Li Madame Bovary apenas uma vez e acho que não preciso de outra para colocar o livro em minha antologia. Se o ser humano é uma coisa eternamente insatisfeita, aqui temos o microcosmo da infelicidade feminina e da desilusão romântica. Não vou contar em detalhes a história do livro, mas esta foi tão imitada e recontada que não guarda mais nenhuma novidade. É o romance que fundou o realismo em 1857 e, assim como a cabeça do Quixote estava cheia de romances de cavalaria, a de Emma Bovary estava lotada de romances sentimentais. Emma casa-se com o médico Charles Bovary, insípido e apaixonado por ela. O tédio insere-se de tal forma na relação que ela passa a detestar o marido. A progressão do tédio e sua transformação em desinteresse e depois ódio são contadas por um autor absolutamente impecável e no perfeito domínio de seus meios. Nada parece estar fora do lugar, nenhuma palavra. Dividido em três partes, como um concerto, demonstra como Emma permanece insatisfeita mesmo após o nascimento da filha e de seus apenas prometedores adultérios.

Na época em que foi publicado, Madame Bovary causou escândalo e foi julgado por obscenidade. Quando perguntaram a Flaubert quem era a protagonista que tinha sido descrita com tamanha perfeição e riqueza de detalhes, o autor respondeu ao tribunal com a célebre frase que diz tudo: “Madame Bovary c`est moi!”.

E era. Flaubert passou mais de uma década observando, apurando, polindo, reescrevendo e inaugurando o realismo na literatura. Flaubert foi absolvido no ridículo processo, mas não foi perdoado pelos puritanos, que não conseguiam admitir o tratamento cru dado ao tema do adultério e pelas críticas implícitas ao clero e à burguesia, ambos desprezados por Flaubert. Mas esqueçam o fundador do realismo, o processo e tudo o que cerca Bovary. O livro é antes de tudo um texto admirável, construído com arrebatador virtuosismo; um texto trabalhadíssimo onde não se notam sinais do suor do autor. Tudo flui, tudo ganha seu devido ritmo e todo detalhe jogado ali é significante e contribui para a narrativa. Talvez Madame Bovary seja a maior das aulas práticas de narração.

James Wood escreveu em Como funciona a ficção que “Tudo começa e tudo termina com Flaubert”. Discordo. A literatura moderna recebe notável impulso com Flaubert, mas já começara com Stendhal. E não termina no autor de Bovary, como diz a frase de efeito de Wood. Porém, para usar uma palavra que está na moda, Madame Bovary é um romance verdadeiramente incontornável.

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Os Quatro Encontros, de Henry James

(Sem spoilers).

Os Quatro Encontros (Clube do Livro, 1986, 144 páginas) reúne três novelas de Henry James escritas na prosa e com a sutileza extraordinariamente bem trabalhadas do autor anglo-estadunidense. As três histórias têm como elo situações e desenlaces desconcertantes.

A primeira novela, Os Quatro Encontros narra, como diz o título, quatro encontros bastante espaçados no tempo entre um homem e uma mulher e como uma nesga de assunto avança entre eles. Só que aquela nesga de conhecimento em comum de certa forma os define. Depois é a vez de O Discípulo, história da relação entre um aluno, seu tutor e a família decadente que mal e mal o paga. É arrebatadora a forma com que James descreve o ambiente de fim de festa daqueles aristocratas. O volume é finalizado com a melhor história, O Mentiroso, onde o personagem principal é um militar que simplesmente não consegue parar de inventar histórias. Um dia, ele, espécie de Dorian Gray, pousa para um retrato, no qual o artista faz de tudo para deixar clara sua personalidade. E consegue. O final da história é sensacional. O curioso é que O Mentiroso (The Liar) foi publicado em 1888 e O Retrato de Dorian Gray em 1890… Wilde não copia James de modo algum, mas alguma inspiração veio dali, tenho certeza.

A tradução é bem mais ou menos.literatura

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O Véu Pintado, de William Somerset Maugham

Abro espaço para uma resenha escrita por minha filha Bárbara, de 18 anos.

Por Bárbara Jardim Ribeiro

William Somerset Maugham

Filho de pais britânicos, W. Somerset Maugham nasceu em Paris, em 1874. Na época, quando um homem nascia em território francês, era obrigatório fazer o serviço militar anos mais tarde. Portanto, seu pai, Robert Ormond Maugham, fez com que S.M. viesse a nascer na embaixada britânica da França – território tecnicamente inglês – para que este não precisasse se envolver em futuras guerras.

Perdendo a mãe com seis anos e, logo depois, seu pai, S.M. caiu nos braços de seu tio Henry, que o mandou para um internato na Inglaterra; onde, por ser ridicularizado em razão de seu sotaque, desenvolveu uma gagueira, que o acompanhou pelo resto da vida. Foi uma criança tímida e reservada, e logo aprendeu (talvez pela sua origem inglesa) a ter um humor sarcástico. Característica que acompanha personagens de seus livros como o clássico O véu pintado (1925).

O filme de 1934

Neste livro, S.M. consegue esculpir personagens muito complexas e trazer a tona seus sentimentos mais profundos e extremos. No prefácio, o narrador – imediatamente o identificamos como o autor – diz ter se inspirado numa personagem do Purgatório de Dante: Pia, cujo marido suspeita que fora infiel e a leva para seu castelo de Maremma, onde confia que os ares insalubres irão adoentá-la e, por fim, matá-la. É um plano de vingança atribuído a fatores externos, ou seja, tiram-lhe toda a responsabilidade por sua morte. Contudo, em ambas histórias – tanto na de S.M. quanto na de Pia – a vingança perfeita não acontece.

S.M., numa linguagem simples mas concisa, narra a história de Kitty, uma bela, fútil e cobiçada jovem da alta sociedade inglesa. Tem uma irmã mais jovem, cuja beleza não chega perto da de Kitty; uma mãe que apenas se preocupa com sua aparência e em arranjar um bom partido para as filhas; e, por fim, um pai que serve apenas como renda monetária. A nossa heroína, então, passa sua juventude negando pedidos de casamento (se tornando um fardo para a família) até o dia em que sua irmã aceita uma boa proposta. Kitty, aturdida com o fato, aceita se casar com um bacteriologista que não o ama, Walter.

A capa da recente edição da Record — bem pior que a da antiga que li, da Coleção Catavento, da Editora Globo.

Walter é um homem tímido, porém de grande inteligência e ainda maior capacidade de amar – sabe que se casou com uma tola que o acha entediante, mas está satisfeito em poder amá-la. Entretanto, como o marido de Pia, também é capaz de odiar além do limite.

Após dois infelizes anos de casamento, Kitty comete adultério com Charlie, homem importante na política e detentor de um apelo sexual irresistível, fazendo com que Kitty se apaixone cegamente sem perceber o homem dissimulado que é. Num dos inúmeros encontros clandestinos, o casal de amantes acaba sendo descoberto por Walter, que, calmamente, reúne provas contra Kitty e a propõe uma solução drástica.

À medida em que a leitura avança, Kitty começa a aprender mais sobre a dicotomia das personalidades dos dois homens. Está presa a um homem que, antes, a amava incondicionalmente e, agora, vem mostrando desejar a morte dela ao querer a levar a uma situação de perigo. E apaixonada por um homem que parece gostar dela, mas gosta mais dele mesmo; pois ela dramaticamente descobre que ele não tem a menor preocupação com ela nem a intenção de ajudá-la. Mostrando-se, também, experiente em se desviar de situações como aquela.

O véu pintado é um clássico do século XX, que originou três filmes: um em 1934, por Ryszard Boleslawski; outro em 1957, por Ronald Reame; e mais um em 2006, por John Curran. É um texto fluído e rápido, entretanto – como aconteceu comigo – capaz de emocionar pela sua crueza.

O excelente filme de 2006, chamado tolamente no Brasil de “O Despertar de uma Paixão”, com Naomi Watts e Edward Norton (clique para ampliar).

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Amsterdam, de Ian McEwan

Divertidíssima e nada esquecível novela de humor negro de Ian McEwan, Amsterdam (Companhia das Letras, 2012, 192 páginas, trad. de Jorio Dauster) foi escrito imediatamente antes do clássico Reparação. O livro inicia durante o funeral de Molly, mulher fascinante e de muitos casos amorosos, que teve a vida interrompida por uma doença degenerativa. Na cena, conhecemos os quatro homens em torno dos quais girará a trama. Todos são ex-namorados de Molly à exceção de um, que é o marido que cuidou dela durante a enfermidade. Os dois principais personagens são Vernon Halliday, o editor do Judge, um jornal inevitavelmente decadente, e Clive Linley, um compositor cheio de belas intenções cujo epigonismo é delatado pelo sobrenome do personagem, buscado nos dois Thomas Linley, filho e pai, Younger e Elder. Também temos o marido George, e Garmony, que ascendeu ao cargo de Ministro de Relações Exteriores do Reino Unido.

Os amigos de juventude Clive e Vernon passam por crises pessoais. Clive é um compositor erudito inglês — aí já está uma piada muito inglesa — que deve finalizar imediatamente uma encomenda: uma certa Sinfonia do Milênio. Vernon, precisando alavancar seu jornal, está à voltas com um daqueles escândalos que fazem a alegria e o dinheiro dos tabloides ingleses: deverá publicar fotos aquelas comprometedoras e acabar com a carreira de um político?

Muitas vezes, duas crises separadas acabam se unindo para provocar uma briga. Por motivos éticos, Clive opõe-se radicalmente à publicação das fotos e desentende-se com Vernon. “Por causa disso”, entra em crise criativa e afasta-se para as montanhas, onde presencia uma cena de violência em que não intervém, dando a Vernon motivos para discutir asperamente com ele, por motivos éticos. Há uma reconciliação fingida e uma cena final de hilariante humor negro.

Em Amsterdam, McEwan traça cuidadosamente uma inteligente parábola moral, cheia de ambição e narcisismo, ambos toldados pela morte e ornamentados pelo glorioso e comedido senso de humor do autor. Novela excelente. Se fosse você, leria agora.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): IX – Berlim Alexanderplatz, de Alfred Döblin

Berlim Alexanderplatz (1929) tem como sub-título A história de Franz Biberkopf. Nada mais  correto, é isto mesmo que o livro conta com surpreendente riqueza de detalhes e de vozes. A história se passa na Berlim do final dos anos 20 do século passado. Na época da ação, a Alemanha estava no período entre guerras. A Primeira Guerra Mundial acabara há 11 anos e  a economia alemã recuperava-se lentamente dentro da República de Weimar. Menos de cinco anos depois viria o governo nazista. O livro inicia com a saída de Biberkopf da prisão de Tegel, onde ficara por quatro anos após matar a amante.

A vida pós-prisão de Biberkopf é narrada de forma estupenda através de vários narradores e com o auxílio de notícias retiradas de jornais da época. Em montagens impressionistas, também são utilizados dados estatísticos, placas de rua, propagandas, canções da época, informações sobre tarifas. O personagem principal nada tem de especial — é um sujeito grande e forte que vive de biscates numa Alemanha empobrecida a qual não compreende e que é indiferente a ele. Biberkopf cumpriu sua pena e, na volta, tenta manter-se na linha.

Escura, grave e escrita em tom menor, a obra-prima de Döblin tem a característica de ser muito visual. Tanto que Rainer Werner Fassbinder a reconstruiu minuciosamente no cinema em filme de 15 horas e 41 minutos. O filme — que também é excelente — é uma transposição COMPLETA e arrebatadora do livro. Vale a pena ver — aliás, além da biblioteca, é o que estou fazendo nestes dias …

Para ler Berlim Alexanderplatz há que ter atenção: apesar de muito claro e linear, o autor mistura as falas dos personagens com a narrativa e os pensamentos dos personagens. Com a leitura, fica cada vez mais fácil. Apesar de ter um personagem principal, Berlim Alexanderplatz é um irrepetível mosaico polifônico onde várias vozes e informações se cruzam para contar uma história do submundo da Berlim do final dos anos 20. Nada dá muito certo para Biberkopf, herói, símbolo e vítima da cidade, mas o livro de Döblin é uma espetacular lição de arte narrativa.

P.S. — Caminhante Diurno, uma antiga discussão nossa: aqui temos um enorme romance e um filme de igual tamanho. OK, o filme tem 941 minutos, mas e daí?

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Decupagens assim, de Ronald Augusto

No dia 8 de novembro, escrevi no meu Facebook:

Feliz.

Pois, mesmo cansado, resolvi ir à Feira para conhecer o Ronald Augusto. Para dizer a verdade, achei que seu livro “Decupagens assim” fosse de poesia. Mas não, era um livro de crítica. Como os ônibus de Porto Alegre são lentos, pude ler quatro pequenos ensaios capazes de incutir entusiasmo no mais cansado dos interessados em cultura. Comecei pelo surpreendente “O substrato moral dos vencedores de prêmios literários”. Não pude deixar de rir com as reflexões de Ronald, exatas e sobre as quais jamais tinha pensado. Depois, concordei com suas observações sobre a qualidade da música de Paul McCartney, na qual vemos méritos artísticos além do que deveríamos, se considerássemos o estigma de comercial que o cantautor carrega há meio século, acho. Depois, reli o conhecido “Dá licença meu branco!” sobre o racismo em Monteiro Lobato e terminei com outro que compara Beyoncé e Tina Turner. Não adianta, quando o cara tem equipamento de verdade, ele destrincha o sacro e o secular com a mesma classe, graça e inteligência.

Cito os ensaios assim porque eles podem ser lidos no blog do Ronald.

E, quando chego em casa, louco por um algo doce, minha filha tinha feito um bolo. Reclamar do quê?

.oOo.

Agora li todo o livro e não pretendo divergir de mim. O primeiro exercício crítico de Ronald Augusto, Decupagens Assim (Letras Contemporâneas, 2012, 191 páginas), é entusiasmante por alguns motivos a mais que não coloquei acima. Chega a provocar um sorriso no leitor a minuciosa forma com o que o autor decupa cada um de seus temas. Ao invés de ater-se apenas ao leito principal, Augusto visita as margens dos assuntos, às vezes realizando buscas pelo interior. Não, ele não se perde. O que desejo dizer é que o cara sobra. Sua análise da obra de Jorge Ben revela uma finura não encontrável nas redondezas da crítica cultural. Eu até acho aquilo de Jorge Ben, mas nem chego a imaginar por quê. Na minha ignorância eurocêntrica, ignorava o que era o jongo. O mesmo vale para a constatação da decadência de Caetano Veloso e para o pasmo com a fama de Mia Couto. O prazer da decupagem é tão grande que Ronald retorna duas vezes a temas já esmiuçados a fim de fazer mais. E o prazer da leitura garante-se com textos surpreendentemente legíveis para a complexidade de alguns tópicos. Aprendi um monte.

Indico fortemente a quem gosta de cultura e de discuti-la sem esquemas preconcebidos.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): VIII – Uma Confraria de Tolos, de John Kennedy Toole

Como os que aqui me antecederam, também vou negar o título da coluna. Não se trata do melhor livro que li até hoje, mas certamente o colocaria numa lista de dez melhores. Pois Uma Confraria de Tolos é uma obra-prima absoluta, uma obra-prima total e injustificadamente pouco lida em nosso país.  Duvida? Procure no Google críticas a respeito de A Confederacy of Dunces para conferir que não estou nada sozinho em minha avaliação.

Tenho uma velha edição dos anos 80 da Record, que relançou o livro recentemente na coleção BestBolso. Certa vez, ao citar o livro em meu blog, recebi um comentário de uma leitora que morava no interior da Paraíba. Ela me contou que antes morava em São Paulo, onde lera a Confraria nos anos 80. O livro ficara por lá, mas agora tinha um filho que era um grande leitor e ela PRECISAVA apresentar o livro a ele.

Não sou uma pessoa que mereça a canonização, mas sei reconhecer alguém que precisa de auxílio. Fiquei comovido com o pedido, pois sei a falta que a leitura da Confraria faz a alguém que conheça o livro. Como a Estante Virtual ainda não existia, empreendi uma busca entre os sebos de Porto Alegre. Encontrei o livro e o mandei para a leitora aflita. Ela me agradeceu dizendo que me amava, adorava e que intercederia por mim nem que fosse no juízo final, coisa na qual ela não acreditava, mas que enfim, daria um jeito de interceder.

O tamanho do erro de negligenciar Uma Confraria de Tolos é difícil de caracterizar, mas vamos lá. Começarei pelo título. John Kennedy Toole devia estar consciente da qualidade de seu romance, senão não basearia o título de seu romance de estreia numa citação clássica de um dos maiores escritores de todos os tempos, Jonathan Swift: “Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo, você vai reconhecê-lo por um sinal: todos os tolos se juntam contra ele”. Outro motivo de buscar inspiração em Swift é que Toole escreve um romance como eram as histórias do inglês: hilariante de cabo a rabo.

Mas também é muito triste, muito sério, louco, amargo e especialmente inteligente. Uma genial tragicomédia.

Seu protagonista, o hoje célebre — fora do Brasil — Ignatius J. Reilly, é um ser excêntrico, às vezes repugnante. Ele está por seus 30 anos, é um glutão obeso e mal-humorado que mora com a mãe e vive amaldiçoando o mundo moderno. Ignatius leva a frase de Swift a sério: ele é um anti-herói nascido na época errada, que se considera sempre perseguido por idiotas.

Uma Confraria de Tolos se passa em New Orleans nos anos 60. Como o romance Dom Quixote, é picaresco. E, se o personagem de Cervantes ia atrás de aventuras, Reilly é um preguiçoso, excêntrico e idealista atrás de emprego. Durante suas caminhadas, às quais foi atirado pela mãe, que não o suporta mais em casa — e que o acusa de encher a atmosfera de gases intestinais — , ele vocifera contra tudo e contra todo o tipo de modernidade. Walker Percy, em seu prefácio para o livro, descreve Ignatius como um “pateta genial”. Trata-se de um passadista jovem. Desdenha a cultura da modernidade, especialmente o pop. Tal desprezo torna-se sua obsessão: por exemplo, ele vai ao cinema a fim de zombar dos filmes e expressar sua indignação com a falta de “teologia e geometria” (?) do mundo contemporâneo.

Ele prefere a filosofia escolástica da Idade Média, em geral, e a filosofia de Boécio, em particular. No entanto, aprecia muitos dos confortos e conveniências modernas, enquanto observa o funcionamento de sua válvula pilórica, que reage fortemente a todos os incidentes.

Os outros personagens principais do livro, Myrna Minkoff e Irene Reilly, são esplendidamente construídos e, se é difícil dizer mais, explico o motivo: Uma Confraria de Tolos é o mais engraçado dos livros e não devo contar suas piadas neste espaço. Por exemplo, seus encontros com a polícia… Não, melhor não ir adiante.

Reilly tem muito de Toole. O autor também sofreu com uma mãe dominadora e tinha uma visão pessimista de um mundo que não entendia.

Sem encontrar uma editora para publicar o livro e sofrendo de graves crises de depressão, Toole cometeu suicídio em 1969, aos 31 anos. Sua mãe encontrou uma cópia do manuscrito entre os papéis do filho e lutou por muitos anos para conseguir uma editora. Uma Confraria de Tolos foi finalmente publicado nos Estados Unidos em 1980. No ano seguinte, Toole ganhou um Pulitzer póstumo. Nada mais merecido.

Durante o verão passado, minha filha de 17 anos pegou casualmente o livro em nossa biblioteca. Dias depois, ela voltou com uma pequena e significativa frase: “Pai, foi o melhor livro que li até hoje”.

Eu não disse?

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Os loureiros estão cortados, de Édouard Dujardin

O belíssimo livro da editora Brejo

Édouard Dujardin é o inventor do monólogo interior, também chamado de fluxo de consciência. A técnica, cuja invenção e utilização são normalmente atribuídas a Joyce, foi creditada pelo irlandês a Dujardim (1861-1949), assim como também parte de sua inspiração para escrever Ulysses. E paramos por aí, pois o livro do simbolista francês não tem nada a ver com uma leitura de Joyce. Apesar de ser bem mais que um tuíte, o livro de Dujardin está mais para a curiosidade histórica ou para uma aula de como tudo isso começou. Publicado em 1888, Os loureiros estão cortados (Brejo Editora; 2005; 117 páginas) acompanha os pensamentos de um jovem que, durante seis horas, caminha por Paris à espera de sua amante. A história é interessante, pois o homem morre de medo da bela mulher que o suga financeiramente.

É um bom livro, simples, fácil de ler, mas é arqueologia literária, trampolim para escritores maiores, como Woolf, Faulkner, Joyce e meio mundo. O engraçado é que o autor francês definiu seu achado:

Discurso sem interlocutor e não pronunciado através do qual um personagem exprime seus pensamentos mais íntimos, mais próximos do inconsciente, anteriores a qualquer organização lógica, isto é, no seu estado original, por meio de frases diretas reduzidas à sintaxe mínima, de maneira a dar a impressão de não terem sido elaboradas.

Menos, Dujardin, menos. Quem conseguiu foram outros. Teu texto parece prosa poética. Menos.

P.S. — Ah, a capa do livrinho é linda!

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Esquina maldita, de Paulo César Teixeira

Delicioso relato sobre uma das mais frutíferas esquinas de Porto Alegre. No encontro entre as avenidas Osvaldo Aranha e Sarmento Leite, havia quatro bares que eram frequentados por universitários e intelectuais durante as décadas de 60 e 70. Dentre eles, havia um jovem homônimo que por ali esteve em incontáveis noites entre os anos de 1975 e 1982, sempre fiel ao Alaska e a seu garçom Isake, todos abençoados pelo seu Alfredo, que comandava tudo lá do fundo. Esquina Maldita (Libretos, 2012, 215 páginas) analisa cada um dos bares, suas histórias, características e personagens. Considerando o que é hoje a vida cultural de Porto Alegre, pode-se dizer sem exageros que quase todo mundo que hoje tem entre 50 e 70 anos formou-se na Esquina, mais exatamente no Alaska. Como escreve o autor Paulo César Teixeira, havia dois grandes grupos naqueles bares: o dos que pretendiam transformar o mundo e o dos que propunham revolucionar a própria vida. Diria que havia um terceiro, o dos agentes da ditadura, que nos visitavam, revisitavam e revistavam-nos com enorme frequência. Foi uma época da qual não me arrependo.

Minha memória conta que eu ficava entre os dois grupos descritos pelo Paulo. Estava encantado pela recém descoberta liberdade sexual e mobilizado pela necessidade de mudar o país. Muitos de meus parceiros de mesa foram para a luta armada; outros não. O jornalista Carlos Leonam inventou um termo genial para caracterizar “o meu tipinho”: eu fazia parte da esquerda festiva — estudantes, artistas e intelectuais que davam palpites sobre tudo e brigavam com aqueles que tomavam parte em ações contra o regime militar, defendendo outros gêneros de mobilizações. Hoje, ânimo serenado, admito que preferia derrubar o governo em bares e festas, às vezes aos cochichos para que os possíveis ratos não ouvissem, às vezes em brindes ruidosos. Depois, com os anos, as mulheres começaram a aparecer por lá e a expressão de Leonam deveria ser de alguma forma ampliada.

Sim, tergiverso. Afinal, estou aqui é para dizer que Esquina Maldita é uma belíssima crônica de uma época que mudou a cara de Porto Alegre. Talvez isso sirva como espantalho para meus sete leitores, mas confessarei: fui entrevistado durante a pesquisa de Paulo César e estou lá em três trechos.

(Acho que aprendi a falar sobre literatura dentro do Alaska. Saía de lá quase todas as noites discutindo alguma coisa pela Osvaldo Aranha. Lembro de observar, bêbado, as palmeiras ao vento, iluminadas. Lembro de muito mais. Inclusive de discutir Faulkner com uma menina loira nos anos 70. Eu era razoavelmente efetivo porém tímido — ou enrolado. Quando chegamos à aquele ponto onde a Osvaldo Aranha entorta, próximo da Garibaldi, ela me disse para eu parar de falar de Luz em Agosto e de O Som e a Fúria. Em seguida, perguntou quando nós iríamos para “as vias de fato”. Assim era a Esquina Maldita).

Ontem foi a noite de autógrafos do livro — estive lá. Hoje, há o complemento necessário: um pós-lançamento no Bar do Marinho (Sarmento Leite, 964). O evento está recebendo o nome de Confraternização e Homenagem ao Isake, o genial e memorioso garçom do Alaska.

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O livro das coisas santas, de Carlos Mota de Oliveira

Este livro me foi enviado pelo poeta e amigo Fernando Monteiro com o seguinte recado: “Vosmicê vai adorar este anticlericalíssimo livro!”. E gostei mesmo. E dei risadas ou sorri dentro dos ônibus onde o li. O livro das coisas santas (Editora Fenda, Lisboa, 1995) tem apenas 150 páginas, mas há nele 258 capítulos, um dedicado a cada Papa. Como já tivemos 265 Papas, há um pequeno capítulo para praticamente cada um deles. Os capítulos consistem de trechos escritos pelos Santos Padres, ou depoimentos ou pequenas histórias que caracterizam o Bobão da vez. Há sequências absolutamente hilariantes, absurdos difíceis de se acreditar, mas que, quando fazemos uma breve conferência nas Histórias dos Papas disponíveis na rede, ficamos sabendo que o português Carlos Mota de Oliveira não está mentindo, apenas descrevendo as ações do santo homem sob  uma perspectiva mais real. Homens como nós, há papas para todos os gostos. Austeros, sexualmente ativíssimos, violentos, assassinos, guerreiros, santos, gays como Martinho IV (1281-1285), simplesmente doidos varridos, os Papas são sempre engraçados. Como  o seríssimo Papa Paulo VI (1963-1978), ao explicar a uma alegre delegação de padres africanos que lhe chegaram de Angola para uma visita, que ser um sacerdote é não ser um chocolate. “O sacerdote, mesmo os africanos, devem ser escutados pela congregação, nunca saboreados”.

Livro ideal para dar de presente àquele seu amigo católico. Faça-o já. Há seis exemplares disponíveis na Estante Virtual. A capa é maravilhosa ao demonstrar já de cara a irresistível pedofilia dos castos homens da igreja.

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