Rafael Gutierréz (*), Jornal do Brasil
RIO – Comecei a ler Roberto Bolaño em uma tarde de março de 2001 em Bogotá, quando minha amiga D. me pôs nas mãos um livro grosso de cor cinza. A imagem da capa era a de três homens jovens, usando chapéus e uma roupa elegante, que caminham por uma praia vermelha, enquanto no fundo se vê o mar de um azul intenso e uma montanha. Quando me entregou o livro, D. disse: “Lê isto. É a melhor coisa que leio há muito tempo”. Confiava no critério de minha amiga, que antes já havia recomendado outras leituras reveladoras.
Sua recomendação não me decepcionou e nos dias seguintes, ou melhor, nas noites e madrugadas seguintes (pois era o único tempo disponível para ler que na ocasião me deixava um trabalho burocrático tedioso e extenuante em um escuro ministério colombiano) li em êxtase Os detetives selvagens. A partir desse momento, continuei procurando e lendo com ansiedade os demais livros escritos por Bolaño. Nenhum deles me pareceu tão bom quanto Os detetives, até ler sua ambiciosa obra póstuma e inconclusa 2666, publicada em 2004.
Em uma entrevista para a edição mexicana da revista Playboy, realizada poucos meses antes de sua morte – em 15 de julho de 2003, aos 50 anos – Bolaño diz que, se não fosse escritor, seria detetive de homicídios para voltar sozinho, à noite, à cena do crime, e não se assustar com os fantasmas. Pois bem, acredito que, em 2666, ele volta ao lugar do crime e finalmente enfrenta os fantasmas. Dois tipos de fantasmas: aqueles que rodeiam a vida do escritor e a solidão do ato da escrita; e aqueles que estão do lado do mal e da violência (e que talvez possam ser os mesmos, como fica sugerido em várias de suas obras).
O primeiro tipo de fantasma aparece em 2666 na história do escritor alemão Benno von Archimboldi que ocupa, basicamente, a primeira – “A parte dos críticos” – e a última parte do romance. Na história de abertura, quatro críticos literários europeus tornam-se amigos ao estudar a obra do misterioso escritor que, apesar do reconhecimento da crítica e de ter sido indicado várias vezes ao Prêmio Nobel, nunca aparece em público; ninguém conhece detalhes de sua biografia. Bolaño descreve as tensões que constituem o campo literário, não a partir da perspectiva dos escritores e poetas marginais, como fez em Os detetives selvagens, e sim do ponto de vista dos estudiosos da literatura, com suas brigas e conspirações intelectuais, embora destacando a amizade e o amor que surge entre eles. De certo modo, esta primeira parte pode ser lida também como uma história de amor (não um triângulo, mas um quadrado amoroso com final inesperado).
“A parte de Archimboldi”, última do texto, está construída como um romance de formação e narra a história de vida do escritor alemão Hans Reiter (que usa o pseudônimo de Benno von Archimboldi), nascido em 1920. Como em outros de seus romances e contos, Bolaño constrói a figura do escritor como um ser marginal, errante e melancólico, afastado dos centros de poder do campo literário e político. Na visão de Bolaño, o verdadeiro escritor estaria próximo de algo que foge ao literário. Talvez por isso, na história de Reiter, a experiência (sobretudo a participação na Segunda Guerra) é definitiva para seu futuro como escritor. Esta parte do romance está atravessada por questões literárias: de onde vem o impulso da escrita? Vale mais a leitura ou a experiência para escrever uma obra-prima? Qual deve ser o lugar do escritor e suas relações com editores e leitores?
A história do escritor alemão e a história dos críticos têm seu ponto de encontro na cidade imaginária de Santa Teresa (nome fictício de Cidade Juarez, localizada na fronteira entre o México e os Estados Unidos, marcada tragicamente pelos milhares de assassinatos de mulheres que vêm acorrendo desde 1993). Os críticos viajam a Santa Teresa ao serem informados de que, possivelmente, ali se encontra Archimboldi. O escritor alemão deseja encontrar seu sobrinho, acusado de ser o autor ou pelo menos de participar daqueles crimes.
No ar estranho da cidade e do deserto que a rodeia, confluem os fantasmas da violência retratada por Bolaño com técnica hiper-detalhista que simula os informes forenses para descrever, em cadeia, os corpos das mulheres assassinadas. “A parte dos crimes” é a mais extensa e a mais arrepiante do romance pela acumulação de mortes e pela aparente ausência de explicação e de sentido para tanta violência. Machismo, narcotráfico, pornografia snuff são algumas das possíveis causas dos crimes, mas nenhuma delas consegue explicá-los por completo.
O que flutua como uma sombra em toda a narrativa é precisamente a pergunta sobre a origem e a causalidade ou casualidade do mal (tema caro a Bolaño e que aparece em seus primeiros textos). Esta parte pode ser lida como um romance policial, inclusive com a participação de um detetive americano com aparência de Sherlock Holmes. Mas, em 2666, os crimes são impossíveis de resolver, deixando no fim uma sensação de impotência e desolação.
Duas histórias, centradas em Santa Teresa, completam as cinco partes do romance: a do professor de filosofia chileno Amalfitano (que compartilha com Bolaño alguns rasgos biográficos); e a história do jornalista americano Oscar Fate.
O professor chileno é um personagem perdido, exilado e próximo à loucura. Em sua cabeça confluem, delirantemente, a filosofia e a história política do século 20. Escuta vozes permanentemente e, em suas noites de insônia, realiza estranhas performances no pátio de sua casa inspirado em instalações de Marcel Duchamp. Apesar do humor e da ironia presentes na história de Amalfitano, o que predomina é um clima de tristeza, melancolia e medo, pois ele teme, o tempo todo, pela vida de sua filha em Santa Teresa.
Cada parte do romance parece nos levar por questões centrais da história do século 20, formando um grande painel histórico-ficcional. No caso do jornalista Oscar Fate, entramos na história do partido dos Panteras Negras através da voz de Barry Seaman, um de seus fundadores. No meio da reportagem sobre Seaman, Fate é obrigado por sua revista a cobrir uma luta de boxe em Santa Teresa e, quase por azar, fica envolvido com a investigação dos crimes.
Embora existam pontos de contato entre todas as histórias, cada parte do romance pode ser lida de forma independente (e Bolaño queria que fosse assim, publicadas com intervalos de um ano para assegurar o futuro econômico de seus filhos). Porém, em conjunto, constituem uma das empresas mais impressionantes da narrativa contemporânea, uma imersão profunda pelos labirintos da criação literária e uma aproximação nada modesta ao mal absoluto.
Em 2666 convivem todas as obsessões bolanianas: a relação entre literatura e vida, a pergunta pela origem do mal e da violência, a proximidade entre literatura e perversão. Escrito com uma prosa direta e objetiva, através da acumulação de histórias e digressões, e apesar de sua longuíssima extensão, Bolaño consegue prender o leitor como só os grandes mestres da narrativa conseguem.
(*) Escritor e crítico literário. Doutor em literatura pela PUC-Rio.
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