Mesmo que só a conheça pelo Facebook, é um privilégio ser amigo de Asli Berktay. A Elena certamente concorda. Nunca nos vimos pessoalmente, mas talvez possa escrever algumas linhas mais ou menos objetivas a respeito dela. Ela nasceu na Turquia e é doutora em Estudos Latino-americanos pela Tulane University (EUA). Penso que é historiadora — sim, não tenho certeza — mas é tão multi-facetada que pode ser o que quiser. Escreve sobre antropologia, política, música, literatura, gatos e o escambau, sempre com extremo conhecimento. Como eu, detesta as pessoas que chutam sobre qualquer assunto. (Lembro de uma postagem irritada onde reclamava das pessoas que “podiam se permitir pensar e falar qualquer coisa”). Tem trinta e poucos anos e fala sei lá quantas línguas, mas não de um jeito estropiado, como vocês poderão notar pelo texto abaixo, escrito por ela em português. Diz que é “possuidora desesperada de Wanderlust, existindo entre a África, o Brasil, as costas do Caribe e do Egeu”. É realmente complicado explicar Asli, tal é a amplitude da moça. Ainda mais que creio ter lido que ela aprendeu a ler em francês… E que gostava de jogar futebol… Tenho em meu micro vários de seus textos, pois não quero perdê-los no pântano volátil do Facebook. Mas querem saber porque acho estranho apresentar a Asli? Porque seu currículo não me interessa. Me interessa o que ela compartilha com um monte de gente, incluindo eu e a Elena. Me interessa a poesia do que escreve e a beleza de suas fotos, onde se vê claramente sua inteligência e seu interesse por tudo. Abaixo, ela escreve uma crônica familiar que toca em sua formação, principalmente a literária. Achei interessante porque minha mãe falava em “arte perecível” e mandava eu ler ou ouvir apenas coisas de mais de 30 anos. Isto é, aquelas tivessem sobrevivido a este período. Era uma variação sobre o padrão de qualidade defendido pela avó da Asli. Ah, e minha mãe também jamais diria “merda”.
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Hoje acordei com uma recordação vívida de algo ocorrido há mais de 20 anos. Eu deveria ter 12 ou 13 acho, e estava com a minha avó paterna durante o verão na casa de férias dela em Bodrum. Sim, Bodrum, aquele balneário onde foi encontrado o corpo de Aylan Kurdî. Eu passava umas três semanas com ela cada verão, e o nosso ritmo era quase sempre o mesmo, alternando-se entre o mar, a comida, e longas horas de leitura. Minha avó e o marido dela, o meu avô nunca conheci, eram comunistas ardentes que espalharam uma forte disciplina comunista a todas as partes das suas vidas, e sobretudo na educação dos filhos. Meu pai pegou bastante disso também e eu passei pelas consequências. Já não sobrava muito ao nascimento da minha irmã quando eu já tinha quase 15 anos, e ela só conheceu a nossa avó no final da vida dela, quando ela já estava condenada à cama. Mas eu sim peguei a minha dose dessa disciplina.
Bom. Então, essas longas horas de leitura não eram livres, claro. Eu sempre tinha listas, livros que precisava ler para completar a minha educação. Naquele verão, a necessidade que via a minha avó era mais forte ainda, pois aquela Asli adolescente tinha começado de ler histórias de horror e tal, assim como outras coisas que a minha avó considerava de baixíssima qualidade. Então, ela decidiu que aquele verão ia ser de literatura russa. Com 12 anos, eu já tinha lido os “mais clássicos” para assim dizer: Tolstoy, Dostoyevski, Pushkin, Pasternak. Os textos integrais claro, o oposto teria sido inimaginável. Lembro muito bem que após ter terminado Doutor Jivago, as únicas imagens que ficaram na minha mente eram de frio e um monte de gente tomando vodka. Quando não tinha vodka, eles bebiam álcool isopropílico. Vá entender o sentido que faz de dar um livro desses a uma menina de 11 anos!!
Então naquele verão a minha educação de literatura russa era para ser completada. Começou por Chekhov que eu gostei bastante, e incluiu uma tortura demorada dos quatro volumes de And Quiet Flows The Don (para nós, O Don Silencioso) de Sholokhov. Não faço ideia de como foi traduzido ao português. E uma vez parado o devagar e difícil fluxo do Rio Don, chegou a hora de Lermontov. Naquela hora, a menina de 12 ou 13 anos já estava de saco cheio mesmo. E Lermontov chegou com umas imagens horrorosas de cossacos torturados, um com a orelha cortada por aqui, outro sem língua por ai. Violência por todas partes, sangue correndo em todas as direções. Já era a hora de uma conversa séria com a minha avó. Então me preparei, aperfeiçoei o argumento de “se você não quer que eu leia livros de crime por causa da violência e o horror, o quê será isso” e a enfrentei. Fiz um belo discurso de uns vinte minutos, fiquei satisfeita, achando-me muito convincente.
A minha avó ouviu tudo, me olhou por uns minutos, sorriu e foi procurar um dos meus livros de crime/horror de baixa qualidade. Disse que o tinha trazido com ela para quando esse momento chegar. Ao me passar o livro, ela afirmou que ia chegar o dia em que eu ia saber diferenciar entre horror de alta e de baixa qualidade. Ela queria, pelo menos, ter-me apresentado a essa primeira categoria. Também, ela sabia que eu sempre ia gostar da segunda categoria também, que isso fazia parte da minha natureza. E que eu sempre ia ser uma pessoa diversificada, e muito dividida. Mas a responsabilidade dela era me apresentar o padrão de qualidade, para eu logo poder saber quando lia merda, assistia merda, ou fazia merda, que aquilo era merda mesmo. Claro que para ela, o que era “merda” não estava aberto a discussão, ela sabia o que era merda e o que não. E mulher fina que ela era, ela não disse merda, mas já sabia que a expressão que eu ia usar um dia ia ser essa. Concordou que merecia um descanso, então me deixou ler merda à vontade por um tempo. Lembro que, depois desses dias, voltei para Lermontov e acabei de ler os três livros que tínhamos trazido à praia. As únicas imagens que realmente ficaram comigo são ainda de cossacos torturados e de paisagens de desolação. A saudade que sinto pela minha avó, por outro lado, é enorme, e cheia de imagens cada vez mais vivas…