Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan

Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan

Um livrinho estupendo. Pelo nome, não parece, mas Nurit Bensusan é brasileira, bióloga, e tem alguns livros publicados e premiados — sempre sobre questões socioambientais. Este é seu primeiro livro de ficção e ele não trata diretamente de problemas ligados à biologia ou ao ambiente.

No Alto de Pinheiros — bairro da elite paulistana –, um sem-teto chamado Raimundo vive solitário numa praça próxima a uma sinagoga e a edifícios residenciais. Como não incomoda, mora na praça também sem ser importunado. Mas um dia ele pede para que o rabino distribua alimentos para os pobres. A proposta é aceita. É um estranho pedido de quem não fala com quase ninguém, parece viver de ar e que passa seus dias escrevendo em cadernos e mais cadernos. A aceitação por parte do rabino também é inesperada. A partir deste ponto, a ação bondosa vira problema, pois os habitantes do bairro nobre não veem aquilo com bons olhos.

É esquisita aquela gente que vem pegar comida, eles sujam tudo e, mesmo que o rabino contrate pessoas para fazer a limpeza diária, não adianta, os moradores querem o fim daquilo. Ou seja, a fila de famintos tem que ser retirada dali. Mesmo as domésticas e diaristas acham que aquilo não é para aquela região. Ou seja, o preconceito de classe é algo mais complexo e enraizado do que parece. Acionado, o poder público, representado pela subprefeitura, manda acabar com a distribuição de alimentos sem maiores explicações. Claro, no Brasil há um acordo tácito de tratar de modo diferente as pessoas em razão de sua situação econômica e acesso a bens de serviço. As pessoas de baixa renda “não devem” ter acesso aos mesmos espaços daquelas que são das “classes mais altas”, os pobres devem viver em isolamento social, não precisam ser vistos. O livro também explora o rabo preso de religiosos e alguns dos moradores dos elegantes edifícios. E mais não conto…

Com quantos rabinos usa a primeira pessoa do singular, porém com muitas vozes solistas, à exceção do personagem principal, que só escreve em seus cadernos e não tem revelados seus diálogos com os rabinos — um verdadeiro achado na construção do clima. A polifonia é geral, a dissonância idem. O curioso é que poucos gritam, tudo é um sufoco surdo, é como se estivéssemos assistindo um bando de mímicos em ações não tão cômicas assim. Bensusan rege seu coral com um grande virtuosismo, fazendo com que a ficção efetivamente arranhe a realidade. E, curioso, há espaço para humor no livro.

Recomendo muito.

Nurit Bensusan: escrevendo como Raimundo

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Bamboletras recomenda Roth, grafitti e filósofas

Bamboletras recomenda Roth, grafitti e filósofas

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Philip Roth (1933-2018)

Olá!

Talvez pela primeira vez na história desta newsletter, não colocaremos nenhum livro de ficção em nossas sugestões, culpa dos bons lançamentos em outras áreas. O primeiro é uma suma dos ensaios sobre literatura de Philip Roth. É imperdível, garanto-lhes. O segundo é um belo estudo visual sobre o grafitti porto-alegrense. E o terceiro, mais uma narrativa do extraordinário Wolfram Eilenberger, desta vez sobre o principal grupo de filósofas que surgiu na primeira metade do século passado.

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Por que escrever? Conversas e Ensaios sobre Literatura (1960-2013), de Philip Roth (Cia. das Letras, 568 páginas, R$ 89,90)

Reunindo mais de trinta ensaios, entrevistas e discursos, Por que escrever? traz aos leitores um Philip Roth raro e igualmente excepcional. Fora dos artifícios do romance, ele aqui está mais próximo de si mesmo. Philip Roth foi um dos mais notáveis escritores de língua inglesa do século XX. Dono de uma carreira literária incomparável, dedicada sobretudo à ficção, ele ainda nos legou uma extraordinária coleção de textos não ficcionais — muitos deles para responder a provocações de toda natureza, agradecer o recebimento de algum prêmio ou chorar a morte de um amigo. O resultado dessa produção é uma série de declarações e comentários sobre seu trabalho e dos escritores que admirava, seu processo criativo e a cultura americana. Último volume da obra completa do autor publicado pela Library of America antes de sua morte em 2018, Por que escrever? traz o indispensável de sua não ficção, reunida pela primeira vez em livro: estudos sobre a obra de Kafka e os judeus na literatura, palestras sobre os seus romances mais polêmicos e balanços de uma vida dedicada à escrita.

Poalaroiddes Urbanas, de Breno Serafini (Parangolé, 189 páginas, R$ 69,00)

O livro celebra a capital dos gaúchos a partir do registro de sua arte urbana, principalmente graffitis, que foram captados pelo celular do autor. Nesse sentido, Poalaroides faz um inventário de dez anos de registro fotográfico, com uma variedade de autores e formatos que representam hoje o que a cidade tem de mais significativo nessa arte. O que iniciou como um registro solitário, cotidiano, no final contou com a curadoria visual do artista visual Luís Flávio Trampo, uma referência na arte do graffiti porto-alegrense. O curador comenta a força desse movimento cultural no sul do Brasil. “Essa arte sem fronteiras tem como uma de suas principais características a fácil integração de seus adeptos, que são como agentes multiplicadores dessa manifestação popular. As intervenções nas ruas de Porto Alegre vão além da tinta spray. Muitos artistas (ativistas) usam diversas técnicas e suportes para registrar sua arte, seja colando adesivos e cartazes, seja pintando de uma forma livre. Muros que embelezam e denunciam, expressando uma cidade que pulsa e vibra.”

As Visionárias, de Wolfram Eilenberger (Todavia, 400 páginas, R$ 84,90)

A década de 1933 a 1943 marcou um dos capítulos mais tenebrosos da humanidade. Em meio ao horror da ascensão do nazismo e da carnificina da Segunda Guerra, quatro mulheres — Simone de Beauvoir, Simone Weil, Ayn Rand e Hannah Arendt — libertaram-se dos grilhões do gênero e provaram que a emancipação do pensamento podia ocorrer mesmo em meio a situações extremas. Com grande habilidade narrativa e um equilíbrio magistral entre a apresentação biográfica e a análise acurada de ideias, Wolfram Eilenberger nos oferece a história de quatro vidas hoje legendárias que, em meio à convulsão, mudaram nossa forma de entender o mundo e lançaram as bases para uma sociedade muito mais livre. Seus reflexos chegam até os nossos dias em temas como gênero, identidade, religião, liberdade, sexo e autonomia.

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Judee Sill (1944-1979)

Nascida em Oakland, Califórnia, perdeu o pai, Milford “Bun” Sill, morto devido a uma pneumonia em 1952,e o irmão ainda bem jovem. Sua mãe, alcoólatra, se casou novamente com Ken Muse, um dos responsáveis pela animação de Tom e Jerry. Judee nunca aceitou o fato de sua mãe ter se casado com ele, pois ela não simpatizava sua postura autoritária. Como que por vingança, passou a andar com turmas rebeldes, se envolveu com crimes e drogas (heroína). Correram boatos que Judee chegou a se prostituir para bancar o consumo de drogas. Foi presa uma vez, e na cadeia, conseguiu largar o vício. Decidiu também começar a compor. Era uma pianista e guitarrista talentosa. Ela foi influenciada em suas composições por Bach e Ray Charles. Fez uma viagem de carro cruzando os EUA, com duas garotas, quando tinha 19 anos. Nessa viagem, obteve mais contato com o mundo musical. Quando voltou, conheceu David Geffen, que contratou Judee para gravar um disco pela sua nova gravadora — a Asylum Records. Através de Geffen, Judee conheceu Graham Nash, que produziu o primeiro single para seu disco – Jesus was a crossmaker. Seu primeiro disco, de nome Judee Sill (1971), foi aclamado pela crítica, mas vendeu pouco.  Perfeccionista confessa, Judee podia levar um ano para escrever uma música. Algumas canções ficaram conhecidas por gravações feitas por outros artistas, como a própria Jesus, que foi regravada pelo The Hollies, e Lady-O, pelo The Turtles. O segundo disco, Heart Food, foi lançado em 1973. Infelizmente continha o mesmo problema que o primeiro, não conseguindo muitas vendas, apesar da alta qualidade. Sua fama foi diminuindo, até que ela desapareceu quase que por completo do cenário musical. Não se tem certeza do que aconteceu depois, mas é certo que ela retornou à heroína. Deve ter se envolvido também com cocaína. Morreu de overdose em 23 de novembro de 1979, aos 35 anos.

Sill é um dos cults favoritos para aqueles que descobrem seus raros discos esgotados. Há uma força que atrai algumas pessoas para Sill — raramente seus fãs são casuais. Sua vida foi fascinante e tumultuada. Ela roubou lojas de bebidas e postos de gasolina quando era uma adolescente viciada em drogas. Aprendeu a tocar órgão no reformatório e passou um bom tempo na prisão. Era abertamente bissexual em uma época em que até Freddie Mercury estava no armário.

Mas o que interessa é que a música melódica e estranha de Sill é muito boa. Abaixo, dois belos exemplos da música de Sill: The Kiss, de seu segundo LP, e Jesus Was a Cross Maker, do primeiro.

The Kiss

Love rising from the mists,
Promise me this and only this,
Holy breath touching me, like a wind song
Sweet communion of a kiss

Sun sifting through the grey
Enter in, reach me with a ray
Silently swooping down, just to show me
How to give my heart away

Once a crystal choir
Appeared while I was sleeping
And called my name
And when they came down nearer
Saying, dying is done,
Then a new song was sung
Until somewhere we breathed as one
And still I hear their whisper

Stars bursting in the sky
Hear the sad nova’s dying cry
Shimmering memory, come and hold me
While you show me how to fly

Sun sifting through the grey
Enter in, reach me with a ray
Silently swooping down, just to show me
How to give my heart away

Lately sparkling hosts
Come fill my dreams, descending
On fiery beams
I’ve seen ‘em come clear down
Where our poor bodies lay,
Soothe us gently and say,
Gonna wipe all your tears away
And still I hear their whisper?

Love, rising from the mists
Promise me this and only this,
Holy breath touching me, like a wind song
Sweet communion of a kiss

Jesus Was a Cross Maker

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin’ low for me

One time I trusted a stranger
Cuz I heard his sweet song
And it was gently enticin’ me
Tho there was somethin’ wrong,
But when I turned he was gone.

Blindin’ me, his song remains remindin’ me,
He’s a bandit and a heart breaker,
Oh, but Jesus was a cross maker.

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin’ low for me

He wages war with the devil
A pistol by his side
And tho he chases him out windows
And won’t give him a place to hide,
He keeps his door open wide

Fightin’ him he lights a lamp invitin’ him,
He’s a bandit and a heart breaker,
Oh, but Jesus was a cross maker

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin’ low for me

I heard the thunder come rumblin’
The light never looked so dim
I see the junction git nearer’
And danger is in the wind
And either road’s lookin’ grim
Hidin’ me, I flee, desire dividin’ me,
He’s a bandit and a heart breaker.
Oh, but Jesus was a cross maker
Yes, Jesus was a cross maker

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin’ low for me

One time I trusted a stranger
Cuz I heard his sweet song
And it was gently enticin’ me
Tho there was somethin’ wrong
But when I turned he was gone
Blindin’ me, his song remains remindin’ me,
He’s a bandit and a heart breaker,
Oh, but Jesus was a cross maker.

Discografia:
— Judee Sill (1971) (Asylum)
— Heart Food (1973) (Asylum)
— Dreams Come True (2005) (Water — trabalho inacabado)
— Mas o Youtube traz o que segue:

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Heinrich Biber (1644-1704): Battalia à 10 (1673)

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Atrás do balcão da Bamboletras (XLV)

Atrás do balcão da Bamboletras (XLV)

O telefone toca:

— Livraria Bamboletras.

— Boa tarde, vocês têm o livro do Santiago, “Caderno de Desdenho”?

— Olha, acabou de acabar.

(risadas)

— Ah, que pena!

— Mas pera aí porque ele costuma almoçar aqui do lado e, se tivermos sorte, eu pergunto se ele tem o livro em casa.

Saio da livraria ainda falando no telefone e lá está o Santiago Neltair Abreu almoçando e pontificando com amigos.

— Santiago, tu tem o teu livro em casa? Os nossos acabaram!

— Tenho sim, Milton Ribeiro. Te levo 5 depois do almoço.

— É que tem uma moça que quer dar de presente para um gaúcho que está fazendo aniversário e que mora há décadas em Fortaleza.

— Qual é o nome do cara?

Eu pergunto no telefone.

— É R., Santiago.

— Diz pra ela que ele vai receber um com dedicatória.

Depois vocês pensam que é fácil ser livreiro…

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As Rãs, de Mo Yan

As Rãs, de Mo Yan

Mo Yan (1955) foi o primeiro autor chinês a ganhar o Prêmio Nobel da Literatura, em 2012. Seu nome verdadeiro é Guan Moye. O pseudônimo significa “Não fale” e surgiu durante o período revolucionário da década de 1950, quando seus pais o instruíram a não falar tudo o que pensa quando em público. Curiosamente, ele costuma ser descrito como “um dos mais famosos, banidos e pirateados escritores chineses”. Sem piratarias, foram publicados dois de seus livros no Brasil. O excelente Mudança (Cosac Naify) e este As Rãs (Cia. das Letras).

As Rãs fala de um tema especialmente complicado para o chineses: a gestão e a aplicação da política de controle da natalidade na China — apenas um filho por casal, sistema imposto por décadas. As mulheres grávidas do segundo filho eram forçadas a abortos, muitas vezes sofrendo perseguição policial. Os casais que conseguiam se esconder e tinham mais de um filho eram punidos com severas multas. Como consequência, existem, hoje, cerca de 90 milhões de filhos únicos na China. Eles são conhecidos como “pequenos imperadores”. Em outubro de 2013, no entanto, o governo chinês aboliu a lei em razão do envelhecimento da população, passando a permitir até dois filhos por família. Mas as regras anteriores ofereciam uma série de exceções e ambiguidades. Por exemplo: em grande parte da China rural, a maioria das famílias podia ter um segundo filho, se o primeiro fosse mulher…

O sistema quebrou a tradição chinesa de grandes famílias, fato que, segundo o governo, perpetuava a pobreza no país. Em razão da implementação da política, o número de casos de aborto e abandono de crianças aumentou significativamente, principalmente aquelas do sexo feminino. O governo, porém, preferiu não levar em conta os desdobramentos negativos do programa, apenas se importando com os números. A ordem era de reprimir. Famílias foram arruinadas, casas que escondiam mulheres grávidas foram literalmente destruídas e muita gente morreu nas mãos de autoridades locais que cumpriam as políticas de planejamento familiar de forma cruel e violenta.

Paradoxalmente, Mo Yan descreve tudo de forma simples e bem-humorada, até com certo afastamento, misturando habilmente a para nós curiosa tradição e cultura locais com dramas humanos universais. Nas mãos de um mestre, tal composto resulta em grande e impactante literatura, que percorre a história da China desde a invasão japonesa (1937) até o boom econômico do século XXI.

Em As Rãs, o narrador é o sobrinho de uma enfermeira do Partido Comunista que é capaz dos maiores esforços para evitar o nascimento de segundos filhos numa comunidade rural do interior do país. O autor dirige sua narrativa a um professor de literatura japonês que o incentiva a escrever uma peça de teatro sobre a tal tia.  No geral, o relato aponta — sem julgamentos — o problema. A tia é o tremendo braço do poder naquela localidade. “Não me importo de ser a malvada, alguém sempre terá de ser a malvada. Sei que vocês já me condenaram ao inferno! Uma comunista não acredita nessas coisas, uma materialista de verdade não tem medo de nada!”, diz a tia.

Mentira. O arrependimento dela aparece aqui e ali, principalmente em sua velhice, delineando algumas dúvidas de ordem moral. A linguagem de Mo Yan é falsamente ingênua, contando tudo a certa distância e como se não entendesse bem o que diz. Mas o naive vai ganhando tons escuros e estranhos. Coisa de mestre. Coisa de quem não fala, mas diz. Diz muito e com alta arte.

Mo Yan

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Bamboletras recomenda Faróis, Ritos e um romance sobre jovens

Bamboletras recomenda Faróis, Ritos e um romance sobre jovens

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Recebemos quase 100 exemplares do livro sobre os Faróis do Rio Grande do Sul e vendemos todos em 4 dias! O livro é deslumbrante! Neste nosso “recomenda”, este livro é acompanhado pelo relançamento de um romance do Prêmio Nobel de Literatura de 1983 William Golding e pelo surpreendente Cinco ou seis dias, um grande achado da Dublinense. Sim, o recomenda de hoje está muito bom!

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Faróis do Rio Grande do Sul, de Cláudio Tarta (Panorama Crítico, 254 páginas, R$ 100,00)

Um livro lindo e um grande sucesso! Este projeto aborda a iluminação das rotas náuticas costeiras e lacustres e o seu papel no desenvolvimento regional e econômico desde a época da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. O extenso registro fotográfico dos faróis da região, com enfoque nos seus aspectos artísticos e paisagísticos, além dos detalhes de sua estrutura interior e dos seus equipamentos seculares de iluminação, demonstra, de maneira inédita em nossa literatura, a preocupação com uma obra completa e que contribua para a preservação desses patrimônios históricos e arquiteturais. O livro traz, ainda, entrevista com o último descendente em atividade de uma geração de faroleiros que marcou a história do Rio Grande do Sul, resgatando essas figuras míticas que, anonimamente e com muita dificuldade, vêm dedicando suas vidas ao árduo e solitário trabalho de iluminar o caminho dos navegantes.

Ritos de Passagem, de William Golding (Alfaguara, 216 páginas, R$ 69,90)

William Golding — Prêmio Nobel e autor do clássico O Senhor das Moscas — mergulha fundo na alma humana para revelar seu lado mais sombrio. Em Ritos de passagem, vencedor do Booker Prize em 1980, o autor mescla a forma epistolar à narrativa histórica para mostrar as fissuras que surgem das diferenças de classe e de cultura. Um romance extraordinário. Em uma viagem à Austrália, no início do século XIX, Edmund Talbot mantém um diário, no qual narra suas aventuras para entreter o tio que ficou na Inglaterra. Talbot é um jovem com uma carreira promissora à frente, no serviço público da Coroa Britânica. Cheio de mordacidade e algum desprezo, ele relata o dia a dia dos marujos e oficiais e descreve os emigrantes em busca de uma nova vida. A bordo de um navio da Marinha inglesa, tripulantes e passageiros têm de conviver em um espaço exíguo, e a tensão entre eles parece cada dia maior. E, aos poucos, os companheiros de viagem começam a exibir sua verdadeira — e sombria — natureza. A situação se agrava quando o jovem e aparentemente ridículo reverendo Colley atrai a antipatia e animosidade dos marinheiros, e a vergonha e humilhação podem se tornar mais perigosas do que o próprio oceano.

Cinco ou seis dias, de Danich Hausen Mizoguchi (Dublinense, 192 páginas, R$ 59,90)

Um livro muito interessante sobre juventude e escolhas. João e Dante são dois amigos recém-saídos da universidade no despertar dos anos 2000. São idealistas e cheios de planos. Enquanto Dante acredita que pode fazer sua parte através de uma empresa inovadora, João tenta entender o mundo a partir da vivência nas ruas. De um lado, a ideia de que uma mudança real possa acontecer de dentro do sistema; do outro, o estado de constante vigilância e o medo de quem decidiu se juntar ao elo mais frágil da sociedade. Entre ideais compartilhados e ações opostas, os dois tentam manter a amizade e os sonhos enquanto lidam com a… falência das suas escolhas.

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Meu Sonho de Cinema — Um velho Bergman que nunca deixei de amar

Do blog do Merten por Luiz Carlos Merten

Em 1966, em Porto Alegre, comecei a escrever sobre cinema – há 56 anos! Muitos de vocês, a maioria?, nem eram nascidos. Em 1974, já estava na Folha da Manhã há bem uns quatro anos. Foi quando estreou Gritos e Sussurros. Havia visto a obra-prima de Ingmar Bergman numa viagem que Doris, minha ex, e eu fizemos a Buenos Aires. O filme causou-me verdadeira comoção. Entrou na mira da censura do regime militar, e quase foi proibido por causa de duas ou três cenas, incluindo aquela em que a personagem de Ingrid Thulin faz um corte na própria vagina com um caco de vidro. Na estreia, veio-me um desejo. Criei um ABC de Bergman para falar, não apenas de Gritos e Sussurros, mas para contextualizar o filme na obra do grande autor sueco. O texto foi publicado em dezembro de 1974 na Folha da Manhã. Integra a seleção de textos que escrevi na imprensa gaúcha e foram reunidos pela Prefeitura de Porto Alegre na Coleção Escritos de Cinema. O volume chama-se Um Sonho de Cinema e, no twitter, vocês vão ver a capa. Rocco e Seus Irmãos! Nos créditos do livro consta meu nome junto ao de Clarice da Silva Alves, na rubrica Seleção e Organização dos Textos. Até onde me lembro, dei carta branca para que ela, e talvez o Marcus Mello, fizessem o que bem entendessem. Fizeram um lindo trabalho. O livro está aqui na minha estante. Vilmar Ledesma me estimulou a republicar textos que são viscerais da minha juventudse. Quem eu era, e quem sou. Começo com esse Bergman. Ao mestre, todo meu carinho. Se interessarem a vocês, pretendo prosseguir com os Escritos, uma vez por semana, que tal?

ARTE-BELEZA-CRIAÇÃO, O ABC DE GRITOS E SUSSURROS

A de ANDERSSON, Harriet. É a atriz que faz Agnes, a personagem cujo sofrimento está no centro do filme. Quando Gritos e Sussurros começa, Agnes está à morte. Suas duas irmãs vieram de longe para assisti-la e se revezam com a empregada, à beira do leito. Era intenção de Bergman evitar todo sensacionalismo na descrição deste leito de morte, o que não o impede de dar uma dimensão patética à figura de Agnes. O rosto crispado de dor, a expressão assustada de quem expõe seu sofrimento ante os olhos dos outros e ao mesmo tempo, certa satisfação de menina rejeitada, que cresceu sozinha e finalmente se descobre no centro de todas as atenções, tudo isso encontramos na personagem de Agnes. Ao criá-la, Harriet Anderson se revela uma extraordinária atriz. Tão perfeita, que corta a respiração do público na cena (dolorosa) da sua “morte”.

B de BERGMAN, Ingmar. Cineasta sueco de 56 anos, nascido em Upsala. Uma carreira polêmica: Bergman foi endeusado pela crítica no Festival de Cannes de 1956, enterrado pela mesma crítica no início dos anos 60. Uma década mais tarde, foi aplaudido de pé pelo público e pelos críticos presentes ao Festival de Cannes de 1973, onde Gritos e Sussurros, exibido fora de concurso, foi considerado a obra-prima do Festival. A abundância de filmes de Bergman (34 em menos de 30 anos de carreira), não é um sinal de facilidade mas, pelo contrário, o resultado de um paciente trabalho de construção intelectual. Cineasta do sexo e também da alma, ele foi muitas vezes acusado de colocar seus temas acima do tempo, de dar-lhes uma dimensão subjetiva e até metafísica. É que Bergman reflexiona os grandes temas da humanidade: a angústia metafísica do homem frente aos mistérios da vida e da morte, do amor e do sexo, da alegria e do sofrimento.

C de CENSURA. Desta vez , para louvar. A mesma censura que mantém afastadas das nossas telas algumas das obras primas mais importantes produzidas pelo cinema mundial nos últimos anos, desta vez houve por bem permitir que Gritos e Sussurros não apenas fosse apresentado, como também fosse apresentado inteiro (que milagre!), à admiração do público. Este respeito (raro!) pela figura de um artista nós gostaríamos de ver aplicado não somente a Bergman, mas também a Stanley (A Laranja Mecânica) Kubrick, Bernardo (Último Tango em Paris) Bertolucci e muitos outros cujas obras estão proibidas no Brasil.

D de DEUS. Desde o seu primeiro trabalho cinematográfico importante, o roteiro de A Tortura do Desejo, de Alf Sjoberg, e depois, através de seus 34 filmes, Bergman, filho de pastor protestante, raramente deixou de perguntar: Deus existe? Esta interrogação apareceu, quase sempre sem resposta, nas entrelinhas de histórias sobre amores juvenis, casais em crise, doença, velhice, solidão e morte. Entre o silêncio de Deus e os tormentos do sexo, Bergman construiu uma obra polêmica, onde só de vez em quando, na fonte que brotava ao final de A Fonte da Donzela, pode-se encontrar uma resposta divina para os anseios espirituais dos seus personagens.

Gritos e Sussurros prossegue com interrogação, mas mostra que Bergman talvez não esteja mais tão angustiado ante a perspectiva de não encontrar uma resposta. A comovida oração que o pastor recita, encomendando a alma de Agnes a Deus é o momento culminante de uma enquete desenvolvida pelo cineasta ao longo de seus 34 filmes. Mas embora sem uma resposta divina, Gritos e Sussurros revela um Bergman mais sereno, menos desesperançado: a esperança, aqui, nasce não de um sinal de Deus mas da solidariedade entre os humanos. Esta esperança nós encontramos no momento em que Karen (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullman) rompem com seu silêncio e se tocam, se falam, ou então na outra cena, sublime, em que Ana (Kari Sylwan) toma sem seus braços a moribunda Agnes para que ela possa descansar em paz.

E de ESTILO, E de EVOLUÇÃO. Ao longo de sua carreira, é sensível a evolução de Bergman, o seu progressivo domínio sobre a linguagem cinematográfica. Na fase mais recente, a construção dos filmes torna-se mais harmoniosa: há um dosado controle do simbolismo e um abandono consciente da iluminação expressionista que caracteriza Noites de Circo, O Sétimo Selo, O Silêncio ou A Hora do Lobo. Para resumir tudo em poucas palavras: a composição da imagem em densidade ou profundidade. É a fase da maestria de Bergman, a fase de A Paixão de Ana, de A Hora do Amor e, sobretudo, deste esplêndido Gritos e Sussurros.

F de FOME. O sexo e a fome, já se sabe, são dois problemas fundamentais do homem. Na Suécia, país onde o povo não se martiriza pela fome, o sexo terminou assumindo uma importância crucial. Sem problemas materiais a infelicitá-los, os suecos acharam no sexo a sua fonte de martírio. O cinema e o teatro da Suécia, as peças de Strindberg, os filmes de Bergman, Alf Sjoberg e Mai Zetterling mostram isso.

O tema da fome é essencial em Gritos e Sussurros, mas é uma fome desesperada de amor, de carinho e comunicação. Ela aparece não apenas na impotência de Agnes frente à doença que devora suas entranhas, mas também na dureza das linhas do rosto de Karen, na futilidade de Maria e na própria força física que emana da figura de Ana, levando-a a ninar o corpo de Agnes, numa inesquecível recriação da Pietá.

G de GRITOS. Há no filme os gritos e os sussurros. Uns e outros calam fundo no público. Se o grito é a expressão da cólera contra a própria infelicidade, o sussurro é como um gemido arrancado ao fundo da alma. O grito fere o ar como uma punhalada, uma chicotada e uma agressão, o sussurro dilacera as entranhas. Bergman mostra.

H de HUMILHAÇÃO. Bergman sempre foi sensível ao tema da humilhação. Todo mundo ainda se lembra, por certo, da cena inicial de Noites de Circo, quando o palhaço era humilhado publicamente, ao carregar o corpo da mulher que tentara o suicídio, por entre os soldados com quem ela o enganara. O próprio sistema burocrático, Bergman assinalava recentemente, é feito de humilhações que alguns homens têm de sofrer nas mãos de outros.

A humilhação, como tema bergmaniano, não poderia estar ausente das imagens de Gritos e Sussurros. Aparece na cena em que Karen corta a vagina com um caco de vidro, para ilustrar, mais do que o desprezo e o ódio pelo marido, o desprezo e o ódio por si mesma. Aparece na cena em que o médico recusa o oferecimento de Maria. Aparece, em alguns momentos, na passividade com que Agnes aceita o seu destino cruel, a dor e o sofrimento.

I de INFÂNCIA. Em muitos filmes de Bergman, respiramos a nostalgia da infância. Um dos grandes momentos de Morangos Silvestres e de toda a carreira do cineasta foi, sem dúvida, aquele que mostrava o velho professor Isaak Borg abandonado no jardim de infância, chamando o seu amor de juventude (Sara! Sara!). Em Gritos e Sussurro, Agnes evoca suas tristes memórias de infância, quando a sua mãe (a deusa Liv Ullman, morena) passeava no belo jardim da casa, quase indiferente aos pedidos de atenção da filha. Num outro extremo, Ana sofre a perda da filha. É por isto, porque uma busca a mãe que não teve e outra a filha que perdeu, que Agnes e Ana estabelecem uma corrente de compreensão e solidariedade.

 

L de LIÇÕES. Num artigo publicado na revista francesa L’Express, logo após o Festival de Cannes do ano passado, o crítico e cineastra François (A Noite Americana) Truffaut assinalou as três grandes lições de Bergman em Gritos e Sussurros: liberação dos diálogos, nitidez radical da imagem e primazia absoluta ao rosto humano. As três colocadas a serviço de um notável estudo da mulher frente aos temas do amor, sexo, dor, sofrimento, vida e morte.

Gritos e Sussurros não é uma peça de literatura, mas é um filme que se compõe de palavras sinceras, de coisas ditadas e silenciadas, de confissões e confidências. O próprio Bergman é o autor dos diálogos deste filme, que contém algumas das falas mais bonitas que o público já ouviu no cinema. Gritos e Sussurros coloca o nome de Bergman entre os dos chamados cineastas “construtores” da imagem (Hitchcock, Eisenstein, Fritz Lang): não há nada no filme que ele não tenha querido mostrar.

Finalmente, Gritos e Sussurros devolve ao rosto humano todas as suas modulações expressivas. Nunca, desde os tempos do dinamarquês Carl Theodor Dryer, com sua obra-prima do cinema silencioso, A Paixão de Joana D’Arc, uma câmera se aproximou tanto do rosto humano. Em cena, estão quatro mulheres: seus rostos são os territórios percorridos pela câmera de Bergman, que devolve ao rosto humano sua primazia. Gritos e Sussurros é uma impressionante sucessão de olhos, bocas, orelhas: olhos que falam, bocas que silenciam, ouvidos presos ao inexorável tic-tac dos relógios que anunciam o tempo, e a morte.

M de MORTE. O problema da morte está ligado ao problema do tempo. A luta do homem contra a morte sempre foi uma luta contra o tempo, no sentido de preservar a vida. No filme de Bergman, Agnes morre mil vezes, a cada tic-tac do relógio que aproxima o momento do desenlace. Bergman nos faz sentir a opressão do tempo desde as cenas iniciais: depois dos planos do jardim, banhado pela luz do amanhecer, penetramos na casa, na atmosfera carregada do quarto, onde os relógios anunciam a Agnes que ela superou mais uma noite. Inicia-se um novo dia na corrida da personagem contra a morte.

N de NYKVIST, Sven. É o fotógrafo preferido de Bergman, premiado pela Academia de Hollywood em 1974 pelo seu trabalho neste filme. A ideia de Gritos e Sussurros nasceu, segundo Bergman, de uma imagem: as quatro mulheres num quarto vermelho. A cor era muito importante: vermelho sempre foi para Bergman, a cor da alma. Por quê, nem ele sabe. Mas foi por isto que ele exigiu de Sven Nykvist um tratamento impressionante de cor. Preto, branco, muito vermelho, são as cores que vemos em Gritos e Sussurros.

Outros detalhes também teriam que ser resolvidos através de uma estreita colaboração entre o cineasta e o diretor de fotografia. Bergman não queria determinar exatamente a época da ação, mas queria dar ao público, uma sugestão de sensualidade. Tudo isto ele conseguiu graças ao trabalho de um senhor fotógrafo, Sven Nykvist.

P de PIETÁ. Todo mundo sabe o que é a Pietá. É uma composição de pintura ou escultura que representa a Virgem, sozinha ou acompanhada com o corpo do Cristo morto. Depois das obras medievais (a famosa Pietá de Avignon), o tema tornou-se frequente sobretudo no Renascimento. Na escultura, a obra mais famosa é a Pietá de Miguel Ângelo, na Catedral  de São Pedro.

Bergman quis fazer a sua Pietá e fez Gritos e Sussurros, colocando Agnes num retorno da própria morte, nos braços de Ana, onde ela finalmente encontra a paz. Momento sublime de cinema, momento inesquecível de significação humana: Ana descobre o seio e envolve Agnes em seu calor. É assim que Agnes encontra a tranquilidade da morte. Esta cena tem uma dimensão fantástica: o milagre que leva à paz. P de Pietá, P de paz reencontrada.

S de SYLWAN, Kari. É a atriz que faz Ana, a empregada que mora sozinha na casa com Agnes. Ana é uma camponesa de beleza um pouco rude. Mas é uma das mais impressionantes figuras de mulher criadas por Bergman. Com uma silhueta barroca, lembrando vagamente a figura física de Simone Signoret, é no seu terno regaço que ela acolhe a moribunda Agnes. Curiosa relação, a destas duas mulheres: uma, Agnes, que não teve da mãe a atenção que queria; a outra, Ana, perdeu a filha querida. É isto afinal de contas, que as aproxima.

T de THULIN, Ingrid. A atriz que faz Karen. Mais velha que Agnes, ela casou com um burguês rico e hoje acumula ódio ao marido e desprezo por si mesma. Ingrid Thulin, uma excelente atriz, é conhecida do público não só por suas participações em filmes de Bergman, mas também por seus papeis em filmes de Vincente Minnelli (Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse) e Luchino Visconti (Os Deuses Malditos). Nenhum destes diretores, porém, nem o próprio Visconti, usou tanto a dureza das linhas do seu rosto. Como Karen, ela projeta uma imagem de pedra: a expressão crispada mal dissimula a violência que ela contém e que a destrói internamente. Mas quando esta natureza se liberta e Maria e ela se entregam a um diálogo cheio de ternura, percebemos o que existe de desolador na sua dureza. Quando o filme termina, Karen voltou a ser o que era. É isto, mais que o silêncio de Deus, que atormenta Bergman hoje em dia: a facilidade com que as pessoas se transformam em carrascos de si mesmos.

U de ULLMAN, Liv. Uma atriz que parece funcionar só nos filmes de Bergman (seus papeis em Hollywood foram desastrosos, ou quase isto), Liv interpreta duas personagens em Gritos e Sussurros. Morena, ela é a mãe, sempre vestida de branco, presença majestosa, envolta numa certa melancolia; como Maria, a mais nova das três irmãs, ela aparece com os cabelos ao natural, castanhos.

Maria é outra personagem bem pintada: é a mulher-criança, mimada, que acha que o mundo deve funcionar à medida dos seus caprichos, sexuais inclusive. Numa cena, ela é comparada a uma boneca: nisto não vai exagero nenhum de Bergman. Quando Agnes a chama para acudi-la no momento trágico de sua morte, Maria foge, Karen também foge, só Ana terá a coragem necessária para enfrentar a situação. Liv Ullman recebeu o prêmio da crítica de Nova Iorque por sua interpretação em Gritos e Sussurros. Qualquer uma das quatro mulheres do filme mereceria a distinção: ao premiá-la, os críticos nova-iorquinos certamente estavam destacando sua beleza, ou o duplo papel.

V de VIDA. O que existe de mais belo em Gritos e Sussurros é que, afinal de contas, este filme sobre a morte termina nos falando sobre a vida. A última imagem é retirada de um trecho do diário de Agnes, que Ana lê após a sua morte. É aquele em que Agnes diz de sua satisfação por receber a visita das irmãs e diz mais, que os passeios que elas fizeram pelo jardim da casa, acompanhadas por Ana, foi um dos momentos mais felizes de sua vida. Na tela, vestidas de branco, contra o verde fundo da relva, aparecem as quatro mulheres. A felicidade, comenta Agnes, é feita de momentos assim. Bergman escolheu esta imagem para encerrar a sua obra-prima. É com ela que o cineasta equilibra todos os instantes dolorosos que vimos antes. Uma imagem serena de vida, com força suficiente para purificar a alma do público.

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Cancele Putin, não a Rússia

Cancele Putin, não a Rússia

O repúdio ao ataque à Ucrânia pelo governo russo não deve ser confundido com a penalização a seus artistas e atletas

CHRISTOPH DE BARRY (AFP)
No El País
Tradução do blogueiro

As ações que condenam a guerra contra a Ucrânia também chegaram ao mundo da cultura e do esporte. Os ministros da Cultura da UE concordaram na semana passada com “a suspensão de projetos e iniciativas culturais e esportivas em andamento” envolvendo a Rússia e com o cancelamento de eventos programados. No comunicado do ministério espanhol, tanto federações quanto clubes são instados a não tomar medidas contra quem rescindir seus contratos com clubes russos ou prejudicar aqueles que decidem suspender atividades programadas com equipes convidadas da Rússia ou da Bielorrússia.

A aplicação dessas medidas é clara em relação às instituições oficiais russas, mas essa clareza desaparece quando desce à infinita variedade de situações individuais que a atividade cultural e esportiva promove. Será necessário ser particularmente escrupuloso para não incorrer na estigmatização de qualquer atleta, artista, músico ou escritor russo como porta-voz ou representante do presidente Vladimir Putin. Qualquer erro nessa área desafiaria o valor da medida e transformaria os países europeus em repressores indiscriminados daqueles que, na realidade, podem ser aliados ativos contra Putin. Os exemplos já divulgados são relevantes e começaram com a renúncia de artistas de alto nível a representar oficialmente a Rússia na Bienal de Veneza em abril. Nem a sua curadora artística, a lituana Raimundas Malasauskas, aceitou a encomenda porque “esta guerra é política e emocionalmente insuportável”. A resposta interna também foi importante. Houve até um manifesto contra a guerra assinado pelos diretores do teatro Bolshoi em Moscou e do teatro Alexandrinsky em São Petersburgo, Vladimir Urin e Valery Fokin, juntamente com artistas como o violinista Vladímir Spivakov ou o ator Oleg Basilashvili.

Não são casos únicos, mas são os que mostram a existência de uma oposição proeminente dentro do país que também precisa de ajuda como a resistência antifranquista, ao mesmo tempo em que um novo exílio na Europa já começou: aquele que escapa de Putin. Esses e outros nomes devem servir como antídotos para a associação preguiçosa entre a cultura russa e a invasão da Ucrânia lançada por um presidente autocrático . O nobre espírito que anima a medida está destinado a prejudicar Putin sem que esse boicote prejudique também a atividade de artistas, criadores e atletas fora das delegações oficiais russas.

A cultura do cancelamento é em si um esporte arriscado, mas arruinar a vida profissional e artística daqueles sem vínculos com Putin seria um grave erro. Apoios como uma bolsa para estudos adicionais fora da Rússia ou ajuda financeira para um projeto artístico não devem ser evidências suficientes para cancelar seus beneficiários sem incorrer em traços xenófobos ou dolorosamente simplistas. O cuidado requintado na aplicação dessas medidas, tanto no campo cultural quanto esportivo, terá que ser o critério central para que a condenação da agressão de Putin contra a Ucrânia não condene a cultura russa fora da Rússia à miséria.

Vladimir Spivakov: culpado de nada

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Bamboletras recomenda a rua, disfarces e Diderot

Bamboletras recomenda a rua, disfarces e Diderot

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Olá!

Novamente, três notáveis livros com pouco a ver entre si. O primeiro é um lançamento, uma estreia de autor gaúcho. O segundo é um clássico esquecido — foi publicado há sete décadas e caiu no limbo. E o terceiro é a revisão da vida de um gênio absoluto.

Uma excelente semana com boas leituras!

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A Vida Disfarçada de Contos, de Sandro Farias (Ed. do autor, 150 páginas, R$ 38,00)

Mosaico é uma arte feita com pequenos pedaços de materiais que são minuciosamente encaixados para formar um todo. Como num mosaico, A Vida Disfarçada de Contos tem oito contos (ou episódios) com ligações entre si e que conduzem o leitor a caminhar sobre a fronteira entre veracidade e fantasia. Paixões mal resolvidas, rodas de samba, apostas feita na mesa do bar, amizades, a magia da cidade grande ou as lendas do Partenon em Porto Alegre — estes são alguns dos elementos que o autor explora. Com prosa coloquial, Farias apresenta histórias que puxam o leitor para dentro do livro, criando um ambiente onde ele, repentinamente, vê-se torcendo por uma aposta, escrevendo cartas de amor ou desejando o improvável.

A Rua, de Ann Petry (Carambaia, 352 páginas, R$ 139,90)

Publicado em 1946, A rua, de Ann Petry (1908-1997), tornou-se rapidamente o primeiro romance de uma autora negra a bater a marca de 1 milhão de exemplares vendidos nos Estados Unidos – e bateu com folga: vendeu 1,5 milhão de cópias. A autora nem sempre foi devidamente lembrada, apesar de ter alcançado um equilíbrio raro: uniu observação social implacável a características do melhor thriller, sendo comparada a clássicos do romance policial como Raymond Chandler e Patricia Highsmith. Mais de sete décadas depois de sua primeira edição no Brasil, o romance de Ann Petry recebeu nova tradução. A maior parte do enredo se desenvolve em uma rua, a 116th Street, que tem papel-chave na vida da protagonista, Lutie Johnson, que tenta sobreviver com um filho de 8 anos no tumultuado bairro nova-iorquino do Harlem. Nas palavras de Tayari Jones, “a 116th Street é a resoluta antagonista e representa a intersecção entre racismo, sexismo, pobreza e fragilidade humana”. 

Diderot e a Arte de Pensar Livremente, de Andrew S. Curran (Todavia, 392 páginas, R$ 84,90)

Denis Diderot foi um dos intelectuais mais vibrantes que existiram. E é cada vez mais nosso contemporâneo. O pensador e escritor francês foi petulante ao desafiar muitas verdades de seu tempo. Nesta biografia, Andrew S. Curran descreve a relação atormentada de Diderot com Jean-Jacques Rousseau, sua curiosa correspondência com Voltaire, seus casos apaixonados e suas posições frequentemente iconoclastas. Este livro revela de maneira brilhante como a turbulência pessoal do escritor foi uma parte essencial de seu gênio e de sua capacidade de ignorar e superar tabus, dogmas e convenções. Numa prosa viva e muito bem embasada em pesquisas, Curran traça o itinerário intelectual de Diderot.

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Obras clássicas odiadas por autores famosos (III)

Obras clássicas odiadas por autores famosos (III)

Mark Twain sobre Orgulho e Preconceito

Em uma carta a Joseph Twichell, 13 de setembro de 1898:

Não tenho o direito de criticar livros, e não faço isso, exceto quando os odeio. Muitas vezes quero criticar Jane Austen, seus livros me enlouquecem tanto que não consigo esconder meu frenesi do leitor. Portanto, tenho que parar toda vez que começo. Toda vez que leio Orgulho e Preconceito, quero desenterrá-la e espancá-la no crânio com sua própria tíbia.

Do fragmento incompleto de Twain, intitulado “Jane Austen”:

Sempre que pego ‘Orgulho e Preconceito’ ou ‘Razão e Sensibilidade’, sinto-me como um barman entrando no Reino dos Céus. Quer dizer, eu me sinto como ele provavelmente se sentiria. Tenho certeza de que sei quais seriam suas sensações e seus comentários. Ele certamente torceria o nariz vendo aqueles presbiterianos boníssimos, que iriam rejeitá-lo com autocomplacência. Porque eles não eram da sua turma. É isso.

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Mahler & Mendelssohn (uma contextualização para o próximo concerto da Ospa)

Mahler & Mendelssohn (uma contextualização para o próximo concerto da Ospa)

O primeiro concerto da Ospa deste ano tem um programa muito interessante. Muito interessante em parte… Sob a regência de Evandro Matté, serão interpretadas a Sinfonia Nº 1 de Gustav Mahler (1860-1911) e o Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra de Felix Mendelssohn (1809-1847). A última peça foi programada em substituição ao Concerto para Piano de Ravel. Realmente, é uma pena que o pianista de Ravel tenha ficado doente, porque o Concerto do francês é muito mais interessante do que o do alemão. Mas a Sinfonia de Mahler vale tranquilamente a ida à bela e renovada Casa da Ospa. Abaixo, alguma coisa sobre ambas as obras.

A Sinfonia Nº 1 de Mahler

Uma caricatura de Gustav Mahler conduzindo sua Sinfonia nº 1 (imagem de 1898)

A Sinfonia nº 1 em Ré Maior de Gustav Mahler, também conhecida como “Titan”, foi composta entre janeiro e março de 1888 em Leipzig, embora o trabalho utilize temas e ideias de composições anteriores. Em 1889, no programa da estreia, sob regência de Mahler, ela não foi chamada de sinfonia, mas de “Poema Sinfônico em Duas Seções”. O trabalho foi mal recebido. Sua segunda apresentação só ocorreu três anos depois em Hamburgo, após Mahler fazer grandes revisões no trabalho. Mahler seguiu revisando o trabalho até que a partitura foi finalmente publicada em 1899, dez anos depois.

Na época da composição, Mahler trabalhava como regente assistente no Teatro Municipal de Leipzig, onde trabalhou de agosto de 1886 a maio de 1888. Como dissemos, as primeiras sinfonias de Mahler muitas vezes incorporam ideias musicais baseadas em obras anteriores. O compositor escreveu a Natalie Bauer-Lechner: “Compor é como brincar com blocos de construção, onde novos edifícios são criados repetidamente, usando os mesmos blocos. De fato, esses blocos estão lá, prontos para serem usados”.

Voltemos à estreia. Ela foi um desastre: Mahler havia apresentado ao público um poema sinfônico programático, mas nenhuma nota explicava o programa. Isso causou muita confusão e aborrecimento entre o público, que ficou particularmente perplexo com a mudança extrema e dramática de humor estabelecida pela marcha fúnebre. O que é a música programática? É uma obra musical que visa contar uma história, ilustrar ideias literárias ou evocar cenas pictóricas. A música de programa foi introduzida pela primeira vez pelo compositor húngaro Franz Liszt.

Para a estreia, Mahler descreveu a obra como um “Poema Sinfônico em Duas Seções e acrescentou “Titan”. Na segunda apresentação, ela foi chamada apenas de “Poema Sinfônico” e na terceira ficou simplesmente como “Sinfonia em Ré Maior, Titan. Da quarta apresentação em diante, Mahler passou a chamá-la apenas como “Sinfonia em Ré Maior. Fim.

Após o fracasso da sinfonia na estreia em Budapeste, a obra permaneceu intocada por três anos. Mahler começou a fazer revisões da sinfonia entre janeiro e agosto de 1893. Ele regeu a nova versão da sinfonia em 27 de outubro de 1893, em Hamburgo. Essa apresentação foi um sucesso, recebendo críticas amplamente positivas.

Mahler procurando um rumo para sua Sinfonia

Mahler fez mais alterações para uma apresentação em Weimar, como parte de um festival de música organizado por Richard Strauss. A performance recebeu uma reação controversa, como evidenciado por uma carta de Mahler a um amigo: “Minha sinfonia foi recebida com furiosa oposição por alguns e com total aprovação por outros. As opiniões se chocaram de maneira divertida, nas ruas e nos salões”.

Mahler conduziu uma quarta apresentação da sinfonia em 16 de março de 1896 em Berlim. Nesta, ele removeu o segundo movimento, “Blumine”, e descartou todos os aspectos programáticos da obra.

O tal movimento “Blumine”: as três primeiras apresentações da Sinfonia Nº 1 continham um segundo movimento semelhante a uma serenata, intitulado “Andante” ou “Blumine”. Este movimento recebeu duras críticas e acabou sendo suprimido para sempre. Deste modo, a primeira sinfonia de Mahler foi tocada como uma obra de quatro movimentos desde a quarta apresentação.

(Mas esta bela gravação aqui traz o polêmico Blumine).

Então, a versão publicada da primeira sinfonia de Mahler consiste de quatro movimentos. É curioso ler o que Mahler escreveu em seu programa inicial: “No primeiro movimento somos levados por um humor dionisíaco, jubiloso, que ainda não foi quebrado ou embotado por nada.” O deletado Blumine foi descrito como um “episódio de amor”. O scherzo: “o jovem rapaz que perambula pelo mundo é muito mais forte, mais áspero e mais apto para a vida.” A marcha fúnebre: “Agora ele encontrou um fio de cabelo em sua sopa e sua refeição está estragada”. O final seria “A súbita explosão… de desespero de um coração profundamente ferido e partido”.

Pois é, melhor considerar a obra como música absoluta.

Aqui, uma excelente versão da Sinfonia Nº 1 de Mahler.

Mahler dando um rolê pelas montanhas

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O Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra de Mendelssohn

Se Mahler compôs sua Sinfonia Nº 1 em Leipzig, o mesmo ocorreu com este Concerto, mas as semelhanças param por aí. No ano de 1835, Mendelssohn aceitou o convite para dirigir a Sociedade dos Concertos da Gewandhaus, de Leipzig. A cidade tinha um significado especial para o compositor. Lá, um século antes, vivera seu ídolo maior, Johann Sebastian Bach. O ambiente de Leipzig inspirou Mendelssohn a compor uma grande obra de estilo bachiano, o Oratório São Paulo, concluído em 1836. A obra foi executada durante o Festival de Birmingham de 1837, na Inglaterra. Nessa ocasião, Mendelssohn também estreou seu “Concerto para piano N° 2”.  Este concerto foi estreado lá com o próprio Mendelssohn ao piano.

A obra foi escrita logo após a lua de mel do compositor. Ele escreveu em carta para um amigo: “Eu gostaria de escrever um concerto para a Inglaterra e não consigo. Quero saber o motivo pelo qual isso é tão difícil para mim”. As dificuldades de Mendelssohn — reputado pianista que costumava compor muito bem e de forma rápida e inventiva — provavelmente se originaram de um desejo de se destacar no novo trabalho, escrito expressamente para o Festival, e assim impressionar o público inglês. A tarefa é atestada pelo fato de que existem mais versões autografadas para o Concerto do que para qualquer outra composição sua. O trabalho durou de abril até o início de setembro de 1837 — um exagero para os padrões de Mendelssohn. Em outubro, ocorreu uma segunda apresentação no Gewandhaus de Leipzig. Mesmo depois da segunda apresentação, ele continuou a trabalhar na partitura, entregando uma partitura final a seus editores só em 12 de dezembro. Depois da publicação, os problemas continuaram: Mendelssohn ficou descontente com o resultado, reclamando, entre outros assuntos, que a página de rosto estava em francês e não em alemão. O compositor Robert Schumann, na sua crítica, chamou-a de “uma obra menor”. Acertou em cheio. Infelizmente, teremos um Mendelssohn mais ou menos no retorno da Ospa. A única coisa que me agrada é o movimento lento. O resto nem parece o Felix de sempre.

Aqui, uma excelente versão deste concerto meia-boca de Mendelssohn.

Mendelssohn descabelou-se para escrever seu Concerto Nº 2

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Bamboletras recomenda Ernaux, Isabel Allende e a poesia de Gontijo Flores

Bamboletras recomenda Ernaux, Isabel Allende e a poesia de Gontijo Flores

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Annie Ernaux

Olá!

Mais um livro da ficção memorialística da excelente Annie Ernaux. Este tem início em 1963, quando Ernaux, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal na França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que tenta destrinchar neste livro quarenta anos depois. Também sugerimos o último lançamento de Isabel Allende — mais uma história super bem contada de mulheres — e também a surpreendente poesia de Guilherme Gontijo Flores.

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O Acontecimento, de Annie Ernaux (Fósforo, 80 páginas, R$ 54,90)

Em 1963, Annie Ernaux, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal na França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que tenta destrinchar neste livro quarenta anos depois, quando já é uma das principais escritoras de seu país. Com a ajuda de entradas de seu diário e de memórias há muito guardadas, Ernaux reconstrói seu périplo solitário para realizar um aborto clandestino. Ao refletir sobre a onipresença da lei e seu imperativo sobre o corpo feminino, Ernaux nos apresenta mais uma face da mescla indissociável do íntimo e do coletivo tão característica de todo o seu percurso literário. A jovem acaba na ala de emergência de um hospital. Anos se passam sem que ela tenha coragem de revisitar o episódio.

Violeta, de Isabel Allende (Bertrand Brasil, 322 páginas, R$ 59,90)

Violeta nasceu em 1920, a primeira menina de uma família com cinco filhos, quando ainda era possível sentir os efeitos da Grande Guerra a da gripe espanhola, que chegara ao seu país pouco antes do seu nascimento. A família saiu ilesa destas crises, mas não conseguiu enfrentar a seguinte. A Grande Depressão transformou totalmente a vida urbana que Violeta conhecia. Sua família perdeu tudo e foi forçada a se mudar para um local remoto. Lá, ela cresceu e terá seu primeiro pretendente. Violeta narra sua história em uma carta dirigida à pessoa que mais ama, contando decepções e casos amorosos, momentos de pobreza e riqueza, perdas e alegrias, tendo por pano de fundo grandes eventos históricos: a luta pelos direitos das mulheres, a ascensão e queda de tiranos e, afinal, não uma, mas duas pandemias.

Potlatch, de Guilherme Gontijo Flores (Todavia, 128 páginas, R$ 59,90)

Potlatch é uma palavra chinook, uma família de línguas indígenas da América do Norte. Ela define uma cerimônia em que membros do grupo investiam numa troca violenta de oferendas e presentes. O título deste livro de Guilherme Gontijo Flores de alguma maneira define sua própria lírica — ao menos neste conjunto luminoso de poemas. Dividido em quatro seções — “A parte da perda”, “Colheita estranha”, “Três estáticas” e “Cantos pra árvore florir” —, Potlatch é o breviário portátil de poemas tão meditativos quanto sensuais, tão afiados quanto encantatórios; tão pessoais quanto marcados por uma visão contundente da História e da nossa relação com a natureza que insistimos em destruir.

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Nem doeu (autopornografia), de Otto Guerra

Nem doeu (autopornografia), de Otto Guerra

Um livro engraçadíssimo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na cachaça e na cerveja. Sim, verdade!  Autopornografia? Nem tanto assim. O cineasta e escritor Otto Guerra disse que escreveu este livro de memórias antes “antes que a bebida levasse todos os seus neurônios”. Pelo descrito no livro, faz sentido. Pela lógica do autor, não. Ele disse mais, disse que seu livro “é um estudo sobre como ser álcooldidata no cinema”. OK, ele gosta de trocadilhos — eu também! –, só acho que o segundo parece ser mais verdadeiro que o primeiro.

Nem doeu tem 130 páginas. Não é, portanto, algo como Em busca do tempo perdido nem em postura nem em proporções. Otto respeita a cronologia, mas só nos apresenta os melhores e decisivos lances, refletindo, de forma sempre hilária, sobre sua vida, trabalho e amores — materiais e imateriais. Já na epígrafe, Otto dá o tom, citando o grande Domingos de Oliveira: “O humor é a única forma de falar sério da vida”. E a única forma para Otto viver seria desenhando. Desde pequeno ele fazia isso e quase apenas isso dentro de uma família onde o padrão era ser médico, advogado ou engenheiro. Só que o menino Otto conseguiu levar o quarto da infância — cheio de papel e lápis de cor — para a vida. E depois tratou de animar seus desenhos.

Otto é autor de diversas animações como Rocky & Hudson- Os Caubóis Gays (baseado nas tiras de Adão Iturrusgarai), Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll (baseado nos personagens do cartunista Angeli), Até que a Sbórnia nos Separe e A Cidade dos Piratas. Sua produtora faz tanto comerciais quanto animações para o público adulto.

As histórias contadas em Nem doeu mostram claramente uma trajetória coerente, se bem que muito alcoolizada. Sua vida artística e profissional são a mesma coisa. A pessoal também. Ele conta que desanimou nos anos 90, quando fez cerca de 600 comerciais. Mas que seu cinema embalou com Wood & Stock e não parou mais.

Bem, mas tergiverso: o que interessa no livro é o documento humano e o texto extremamente cômico para contar os sucessos e desgraças de uma vida de 65 anos. Não, isto não é para qualquer um.

O sexo? A autopornografia? OK, há bastante, mas acho que aqui ele se superestimou…

Eu gostei e recomendo!

Otto Guerra, o alcoolista lúcido / Foto de Marcelo G. Ribeiro para o JC

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Obras clássicas odiadas por autores famosos (II)

Obras clássicas odiadas por autores famosos (II)

Charlotte Brontë sobre Orgulho e Preconceito

Em carta a G. H. Lewes (amante de George Eliot), 12 de janeiro de 1848:

Por que você gosta tanto da senhorita Austen? Estou intrigada. O que o induziu a dizer que preferia ter escrito Orgulho e Preconceito ou Tom Jones do que qualquer um dos romances de Walter Scott? Eu não tinha lido Orgulho e Preconceito até ler essa sua frase, e então peguei o livro e estudei. E o que eu encontrei? Um retrato daguerrotipado (de daguerreótipo, antigo aparelho fotográfico inventado por Daguerre 1787-1851, físico e pintor francês) preciso de um rosto comum; um jardim cuidadosamente cercado e altamente cultivado, com bordas próximas e flores delicadas — mas nenhum vislumbre de uma fisionomia vívida e brilhante — sem campo aberto — sem ar fresco — sem colina azul — sem nada bonito. Eu dificilmente gostaria de viver entre suas damas e cavalheiros em suas casas elegantes, mas confinadas. Essas observações provavelmente o irritarão, mas eu correrei o risco.

Agora, eu posso entender a admiração por George Sand. Ela é perspicaz e observadora.

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10 coisas que talvez você não saiba sobre Laranja Mecânica

10 coisas que talvez você não saiba sobre Laranja Mecânica

Do Cinèfilos del Mundo

Laranja Mecânica é sem dúvida uma das obras-primas do grande Stanley Kubrick. A história de Alex e seus drugues é baseada no romance homônimo do escritor inglês Anthony Burgess.

O filme é um cult absoluto e uma obra obrigatória do cinema moderno. Cada vez que vemos este filme somos surpreendidos pela sua estética que de certa forma toca em algo do surrealismo, mas o que é mostrado é muito real — é uma história do ser humano e da sua natureza violenta, autodestrutiva e dominante.

Laranja Mecânica também pode ser visto como a definição perfeita do conceito de “Karma” no mundo do cinema, já que Alex vai refazer seus passos e viver como vítima o que fazia quando era um vitimizador.

Aqui deixamos algumas curiosidades sobre este grande filme.

1- O título original A Clockwork Orange é mencionado apenas duas vezes ao longo do romance, mas em nenhum lugar momento do filme. Anthony Burgess, disse que o nome foi derivado de uma antiga expressão cockney (a gíria do sul de Londres), “tão estranho quanto uma laranja mecânica”.Há também quem interprete o título como “O homem mecânico” porque acredita-se que laranja na verdade venha do termo ourang, palavra da Malásia, onde Burgess viveu por vários anos, que significa pessoa.

2 – O leite que os drugues bebiam tinha que ser trocado constantemente porque coagulava devido ao calor dos holofotes, e já sabemos o quão perfeccionista era Kubrick, que gastava enorme tempo para filmar suas cenas exatamente conforme desejava.

3- Kubrick, em sua maneira particular de dirigir atores, ao saber que Malcolm McDowell tinha pavor de répteis, obrigou-o a conviver com uma cobra de estimação para capturar a tensão interna que Alex devia ter ao atuar.

4- O filme custou 2 milhões de dólares e arrecadou 40 milhões, dos quais 40% foram para Kubrick. Ele cuidava os direitos de sua obra com total zelo, por isso impôs condições bastante severas às produtoras.

5- A inspiração do romance é baseada em um evento real muito trágico. Em 1944, durante uma viagem à Malásia, 4 soldados americanos estupraram e espancaram brutalmente a esposa de Anthony Burgess. Sua esposa estava grávida e perdeu o bebê. Baseado neste fato e cheio de fúria, ele escreveu o romance.

6- A lendária cena de Alex cantando a música Singing in the rain foi improvisada por Malcolm McDowell. Kubrick pediu para ele cantar na cena e McDowell disse que cantou a única que sabia… Kubrick gostou tanto que pagou US$ 10.000 pelos direitos da música para preservar a cena.

7- Kubrick era fã do Pink Floyd e queria usar a música do álbum Atom Heart Mother no filme, mas não chegou a um acordo satisfatório para os direitos de uso.

8- O filme fez com que as vendas de discos de Beethoven aumentassem muito na Inglaterra, principalmente entre os jovens.

9- David Prowse, que interpreta o fisiculturista que carrega o homem na cadeira de rodas, também interpretou Darth Vader. Quando filmou Laranja Mecânica, ele garante que acabou incrivelmente exausto por repetir n vezes a cena em que teve que carregar o homem.

10- Alerta de spoiler: no final da novela, Alex volta a ter uma gangue e a agir da mesma forma que antes, mas percebe que esta vida não o satisfaz mais e acaba abandonando-a. Kubrick omitiu esse final porque sua intenção era outra.

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Eu e meus foras

Eu e meus foras

Como todo mundo está fazendo, agorinha eu e Elena falávamos sobre a Ucrânia quando eu comecei a citar os ucranianos que conhecia. E eu citei Shevtchenko, goleador no Milan e grande jogador de futebol.

Minha mulher me olha com aquele ar de desalento sem fim, pois pensava que eu, um (pseudo)erudito, falava de Tarás Hryhórovych Shevtchénko, o maior poeta do país.

Na opinião dela, isto é como conhecer Beethoven só como o cachorro do filme. E, para mim, taras sempre foi outra coisa.

Tarás Hryhórovych Shevtchénko (Moryntsi, 1814 — São Petersburgo, 1861)

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Bamboletras recomenda livros pra todos os gostos (ou quase todos)

Bamboletras recomenda livros pra todos os gostos (ou quase todos)

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Elsa Morante (1912-1985)

Olá!

Nesta semana, sugerimos 3 livros muito bons e diferentes entre si. Um romance da enorme Elsa Morante, um HQ baseado em um livro de grande sucesso e um clássico de sci fi de dos anos 50. Bem, tem pra todos os gostos.

Excelente semana com boas leituras!

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A Ilha de Arturo, de Elsa Morante (Carambaia, 384 páginas, R$ 99,90)

Elsa Morante (1912-1985) costumava dizer que, no fundo, se sentia “um menino”. E afirmou certa vez, parodiando Flaubert, “Arturo sou eu”. Referia-se ao personagem narrador de A ilha de Arturo – memórias de um garoto, uma assombrosa evocação da infância e da puberdade. Figura fundamental e singular da vida intelectual na Itália do pós-guerra, Morante não teve, em vida, o reconhecimento merecido fora de seu país, em parte pela discrição pessoal e em parte por sua história de vida, pois as luzes eram mais dirigida a seu marido, Alberto Moravia. A ilha de Arturo se passa às vésperas da Segunda Guerra Mundial em Procida, ilha na região de Nápoles em que o personagem vive uma vida de liberdade e imaginação, sem escola, mas plena de livros e natureza selvagem. A mãe do garoto de 14 anos morreu no seu nascimento e o pai, Wilhelm Gerace, que ele idolatra acima de todas as coisas, passa grande parte do tempo em viagens misteriosas que alimentam os devaneios de Arturo. Um grande livro!

Tragédia da Rua da Praia, de Rafael Guimaraens e Edgar Vasques (Libretos, 60 páginas, R$ 45,00)

Tragédia da Rua da Praia, de Rafael Guimaraens, relata uma história real ocorrida em setembro de 1911. Quatro misteriosos estrangeiros assaltam uma casa de câmbio na Rua da Praia e se envolvem em uma fuga enlouquecida pelo Centro de Porto Alegre, a pé, de carruagem, de bonde e até a bordo de uma carrocinha de leiteiro. O episódio abala profundamente o cotidiano da cidade, suscitando pânico na população, disputas políticas e guerra de versões entre os jornais. Enquanto os ladrões são perseguidos, dois empresários produzem um filme que irá estrear dez dias após o assalto em quatro sessões diárias no Cine-Theatro Coliseu. Lançado em 2005, o livro Tragédia da Rua da Praia venceu o prêmio “O Sul, Nacional e os livros”, escolhido pela Câmara Rio-grandense do Livro como melhor narrativa longa. Aqui, a história recebe uma versão em quadrinhos, com desenhos do grande ilustrador Edgar Vasques.

A Nuvem Negra, de Fred Hoyle (Todavia, 272 páginas, R$ 76,90)

Um clássico. Cientistas do Observatório Palomar, na Califórnia, fazem trabalhos de rotina quando são surpreendidos por uma descoberta preocupante. Uma gigantesca nuvem negra de escala planetária está obliterando a luz das estrelas. E, se obliterar a luz do sol, aniquilará a vida no planeta, causando uma extinção pior do que a que extinguiu os dinossauros. Em um misto de hard sci fi com distopia, A Nuvem Negra, publicado em 1957, fala da rotina do trabalho científico e das consequências para a humanidade ao ignorar os avisos da ciência. Hoyle não hesita em tratar dos aspectos mais devastadores do evento que se avizinha, sem deixar de pensar nos tomadores de decisão e nas pessoas que serão impactadas.

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Os livros mais vendidos de fevereiro na Bamboletras

Os livros mais vendidos de fevereiro na Bamboletras

Olá! E o Fischer desbancou o Itamar!

Mais um mês chega ao final — já estamos em março, é inacreditável — e com isso temos a lista dos livros mais vendidos da Bamboletras em fevereiro!

1 – Dicionário de Porto-Alegrês (Luís Augusto Fischer)
2 – Torto Arado (Itamar Vieira Júnior)
3 – Os Supridores (José Falero)
4 – Porto Alegre na Palma da Mão (Ana Paula Alcântara)
5 – Quase (Toda) a Poesia (Juremir Machado da Silva)
6 – Lula, a Biografia Vol.1 (Fernando Morais)
7 – Mas em que Mundo tu Vive (José Falero)
8 – O Avesso da Pele (Jeferson Tenório)
9 – Tudo é Rio (Carla Madeira)
10 – Tudo Sobre o Amor (Bell Hooks)

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