Os sete pecados capitais já foram oito. O oitavo era a Melancolia, entendida no sentido da tristeza profunda, aquela que pode acabar em suicídio, atentando contra a “obra de Deus”. Ou seja, tal melancolia não seria a tristeza comum e inevitável que todos sentem. É a doença da depressão, do isolamento extremo, da tristeza que parece, à pessoa que a sente, sem fim.
Em sua palestra no Fronteiras do Pensamento de 2018, o escritor José Eduardo Agualusa citou o fato da retirada da Melancolia como um dos pecados. Depois, ele entrou em considerações mais literárias sobre a criação e a cura através da literatura. A melancolia, vista como um pecado, é polêmica mesmo, pois ela não depende de um ato, mas de uma condição, de uma postura pessoal, digamos. Não é uma ação, mas uma vivência.
Ela foi colocada como pecado por ser uma insatisfação profunda que, segundo a igreja, surge da percepção errada de que falta sentido à vida. Isso atacaria a religião. Também seria uma forma de não aceitarmos a realidade, de não estarmos contentes com o que temos.
Após uma discussão de séculos, foi o Papa Gregório I quem atualizou a lista de pecados. Na época da criação dos oito pecados, os mais graves eram os mais egocêntricos. Portanto, o orgulho e a vaidade seriam os piores de todos. Logo depois viria a melancolia, pois confundia-se algo que hoje consideramos doença com a “característica extrema” de voltar-se para si mesmo.
A palavra melancolia tem origem grega e significa “bílis negra”. Victor Hugo escreveu que “a melancolia é a felicidade de estar triste”. Não o entendo. Ele devia estar se referindo àquela tristeza leve que nos acomete, não ao estado de paralisia que associamos à depressão.
Depois, a melancolia foi substituída pela preguiça. E o orgulho e a vaidade juntaram-se no pecado da soberba.
Então, ficaram os atuais Soberba, Avareza, Luxúria, Inveja, Gula, Ira e Preguiça.
Milton Nerd dentro do Beira-Rio em construção em setembro de 1968 (eu tinha 11 anos). A época era de ditadura, mas os óculos são do Realismo Socialista.
Eu e minha irmã …
E meu pai, falecido em 1993 e que infelizmente não pode ver Campeão do Mundo o clube que me inoculou com tanta competência.
Orgulho após impedir o octacampeonato do Grêmio (foto de janeiro de 1970, 12 anos)
Um dos cartões-postais de Porto Alegre, localizado no cruzamento da Borges de Medeiros com a Duque de Caxias, o exuberante Viaduto Otávio Rocha abriga lojas de discos, lancherias, sebos, ourives, sapataria, barbearia, lanchonetes, floras e artesanato sob seus arcos e escadarias. Não é um simples viaduto para a passagem de carros e pedestres, pois ele possui, em ambos os lados da avenida Borges de Medeiros, amplas escadarias de acesso até o nível do viaduto, sustentadas por grandes arcadas, sob as estão os pequenos estabelecimentos comerciais e instalações sanitárias que citamos.
É um local de visitação obrigatória para quem procura discos raros em nossa cidade. Ainda no âmbito cultural e ao lado das escadarias, há o lendário Teatro de Arena e teve o Tutti até pouco tempo.
Vitor Murari, do Movimento Amigos do Viaduto, relatou a preocupação do movimento em manter a identidade do local como um ponto de cultura. “Há sempre boatos de que a sistemática que regra a relação dos permissionários com a prefeitura vai mudar, mas atualmente nossa preocupação é mesmo com as infiltrações de umidade”, disse.
“Nós cobramos a manutenção da prefeitura, que é a responsável, mas isso muitas vezes demora”. Vitor trabalha no Espaço Cultural Qorpo Santo, sala 1 do Viaduto, onde comercializa CDs, discos, livros e gibis.
Em 19 de setembro de 2008, uma lei municipal determinou que o espaço público superior do Viaduto Otávio Rocha passasse a ser chamado de “Passeio das Quatro Estações”. Cada uma das quatro escadarias passou a ser identificada por placas com o nome das estações do ano:
— Passeio Verão – com início na Rua Jerônimo Coelho e fim na Rua Duque de Caxias, lado direito do Viaduto, no sentido norte-sul,
— Passeio Outono – com início na Rua Jerônimo Coelho e fim na Rua Duque de Caxias, lado esquerdo do Viaduto, no sentido norte-sul,
— Passeio Inverno – com início na Rua Duque de Caxias e fim na Rua Coronel Fernando Machado, lado direito do Viaduto, no sentido norte-sul,
— Passeio Primavera – com início na Rua Duque de Caxias e fim na Rua Coronel Fernando Machado, lado esquerdo do Viaduto, no sentido norte-sul.
História
O Viaduto Otávio Rocha foi inaugurado em 1932. As obras começaram em 1926, durante o mandato do intendente Otávio Rocha (1924-1928), apesar de já estarem previstas no Plano Diretor de 1914. A decisão de abrir a Avenida Borges de Medeiros, ligando o Centro à Zona Sul da cidade, e construir o Viaduto foi de Otávio Rocha e do presidente do Estado, Borges de Medeiros. Naquela época, o número de porto-alegrenses não ultrapassava os 200 mil.
O projeto é dos engenheiros Manoel Itaquy e Duílio Bernardi. Os elementos ornamentais foram criados pelo escultor Alfredo Adloff. A estrutura do Viaduto é de concreto armado, sendo que o vão central mede 19,20 m. “Por suas marcantes características arquitetônicas e urbanas, bem como pela sua relevância sócio-cultural, o Viaduto foi tombado como patrimônio de Porto Alegre em 1988”, afirma Flavia.
O ator Paulo José, que ajudou a criar o Teatro de Equipe e em 1961 trocou o Rio Grande do Sul pelos palcos paulistas, lembrou do Viaduto Otávio Rocha, no discurso feito em 1999, ao receber da Câmara Municipal o título de Cidadão Porto-Alegrense:
“A família vinha de Bagé, de carro, era noite, eu cochilava no banco traseiro. Acordei quando entrávamos na Avenida Borges de Medeiros, ao lado da Avenida Praia de Belas, e aí eu vi imponente, monumental, maior do que a Igreja Nossa Senhora Auxiliadora e a de São Sebastião juntas, mais alto do que a Ponte Seca, mais bonito do que a casa do meu avô, o Viaduto Otávio Rocha. Depois, pela vida afora, vi outros espaços monumentais impressionantes: a Piazza San Marco, Veneza, o Arco do Triunfo, o Coliseu de Roma, o Palácio de Westminster, mas nenhum deles me fez o coração disparar como aquela visão dos meus oito anos. O Viaduto Otávio Rocha foi o meu primeiro alumbramento.”
Lei do patrimônio
O presidente Getúlio Vargas e o ministro da Educação Gustavo Capanema assinaram em 25 de novembro de 1937 o Decreto Lei número 25, que organiza o patrimônio histórico nacional. A legislação define como patrimônio histórico e artístico nacional “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Hoje, o tombamento de bens materiais imóveis (prédios) e móveis (mobiliário, obras de arte e elementos de uma construção como um lustre, por exemplo) e o registro de bens imateriais (festas, processos de criação, como o de rendas) ocorrem em quatro níveis: municipal, estadual, nacional e internacional, por meio da Unesco. Alguns bens têm sua importância reconhecida em todos ou quase todos os níveis. O Theatro São Pedro, de Porto Alegre, é um dos bens imóveis que estão tombados pela EPAHC – Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre, IPHAE – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul e IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Débora Magalhães da Costa, diretora da EPAHC, lembra que “muito antigamente só bens excepcionais, grandes monumentos, eram considerados patrimônio histórico”. Hoje, diz ela, são enquadrados nesta categoria “bens que fazem parte da vida de uma comunidade, que representam uma comunidade, uma etnia”. Para reforçar esta ideia, tanto Débora quanto Ana Beltrani, coordenadora técnica do IPHAN, citam o tombamento de 48 casas de madeira da cidade de Antônio Prado, na Serra Gaúcha, que contam a história da imigração italiana, feito pelo Estado e a União.
O bem tombado, ressalta Eduardo Hahn, diretor do IPHAE, não “pode ser destruído ou descaracterizado”. Isso não significa que não possa sofrer algumas intervenções, quando necessário, desde que aprovadas pelo órgão responsável pelo tombamento. Débora dá um exemplo: a Casa Torelly, reconhecida como patrimônio histórico pela Prefeitura, em 1987, hoje sede da Secretaria Municipal de Cultura, precisou passar por algumas adaptações para o seu uso atual. “Tombamento – ressalta Eduardo – não é desapropriação. É reconhecimento”.
Responsabilidades e vantagens
O proprietário particular de um bem tombado ou registrado é responsável pela sua conservação, manutenção e recuperação. O Estado, porém, é corresponsável. E, segundo a lei, se o proprietário não tem condições de cuidar do patrimônio, ele deve abrir um processo, provando a sua situação financeira. Neste caso, os cuidados ficarão a cargo do governo municipal, estadual ou nacional.
No caso de ter um imóvel tombado pelo município de Porto Alegre, o proprietário pode escolher entre dois benefícios: solicitar o não pagamento do IPTU ou a transferência do índice potencial construtivo, o que lhe dá o direito de construir em outra parte da cidade o equivalente em metros quadrados que poderia ter construído no local tombado. Neste caso, o imóvel passa para a Prefeitura. Mas, como o município não tem interesse em ficar com os imóveis tombados, a Prefeitura retransmite o prédio para o proprietário por meio de um Termo de Cessão, afirma Débora.
Para as edificações privadas que estão na área de preservação do Programa Monumenta – em Porto Alegre, os arredores das praças da Alfândega e da Matriz — são oferecidos empréstimos a juros baixos para a conservação ou recuperação do local. Eduardo Hahn diz que no caso dos bens tombados pelo Estado, o que os proprietários podem ganhar é a isenção do IPTU, se a prefeitura do município concordar. É o caso dos proprietários das casas de Antônio Prado. O Estado também se propõe a investir por meio de renúncia fiscal, através da LIC – Lei de Incentivo à Cultura. Aí, é preciso ter paciência para fazer um projeto, apresentá-lo à Secretaria da Cultura e esperar pela aprovação.
Fiscalização
Este é um ponto sensível nos órgãos de patrimônio histórico. Todos se queixam de falta de estrutura para fazer uma fiscalização correta. Falta pessoal, faltam recursos, falta transporte. “A fiscalização é feita dentro do possível”, afirma Eduardo. “A equipe do Patrimônio Histórico é muito reduzida”. Ana Beltrani reconhece que nem sempre conseguem fiscalizar os bens tombados no interior do Estado. “Muitas vezes, por falta de carro”, diz.
Apesar da Lei de 1937 prever sanções e multas em réis, a moeda da época, Eduardo declara que atualmente “não há legislação que imponha multa ao proprietário que não cuidar do bem tombado”. Pode ser aberto um processo administrativo e, depois de muito tempo, ele ser condenado a fazer obras. Se provar que não tem recursos para isso, o Estado terá de fazê-las.
Após uma longa trajetória de lutas — muitas delas travadas com armas na mão ou sob tortura –, Diógenes Oliveira ficou famoso no Rio Grande do Sul por uma verdadeira campanha de difamação, cujas acusações jamais foram comprovadas. A enxurrada de denúncias, que incluíam envolvimento com o crime organizado e financiamento de campanhas políticas através do jogo do bicho, vinham em manchetes de capa acompanhadas de fotos. Após mais de cinco anos respondendo a processos, Diógenes livrou-se de todos. Só que a sequência de absolvições eram veiculadas em pequenas notas nas páginas internas. As marcas deste linchamento moral persistem até hoje.
Diógenes, o Guerrilheiro narra mais de meio século de sua vida. Combateu o Golpe de 64, foi preso e torturado. Fez treinamento militar em Cuba. Passou 20 anos no exílio. Morou em dez países diferentes: Uruguai, Cuba, México, Bélgica, Chile, Guiné Bissau, Coreia do Norte, Líbia e China Continental. Teve presença ativa em quatro golpes ou revoluções: no Brasil, Chile, Portugal e Guiné Bissau. Mas suas últimas lutas ocorreram longe das armas: foi como Secretário de Transportes do Prefeito Olívio Dutra, após a intervenção nas empresas de transporte coletivo em Porto Alegre e durante a CPI da Segurança Pública. Nesta entrevista, Diógenes faz um resumo de seus 72 anos de vida.
“Eu tinha um certo pânico de aparecer na imprensa, porque antes era só paulada. Tudo isso era potencializado nas campanhas eleitorais”.
Milton Ribeiro – O sr. foi manchete por muito tempo.
Diógenes Oliveira – É verdade. A RBS me colocou por semanas continuamente na capa de seus jornais, com fotos e grandes manchetes. Sofri um linchamento moral que deve ter sido inédito, porque eu não era político, nunca fui deputado, nunca foi vereador. Foi desproporcional. Por trás de tudo isso, eles queriam o impeachment do Olívio, isso era o que estava na pauta. Queriam nos acusar de ligações com o crime organizado, queriam tirar o governador algemado do Palácio, essa era a intenção dos caras. Meu livro está cheio de informações, mas, por conselhos de amigos, retirei algumas coisas. Se eu abro tudo, seria um Deus nos acuda.
MR – Comecemos então pelo motivo de publicar o livro neste momento.
Diógenes – Este livro está sendo escrito com dez anos de atraso. Se ele fosse publicado no auge da CPI, seria um best seller. Nos primeiros anos destes acontecimentos, fiquei ilhado por ações judiciais. Na porta da minha casa tinha uma fila de oficiais de justiça.
MR – Tinha inclusive a loira.
Diógenes – Ah, é! (risos) A oficial de justiça loira que me visitava! Os vizinhos brincavam que eu andava bancando o garanhão do bairro. Então, na época, não escrevi o livro porque estava muito enrolado judicialmente, levei vários anos para me desenrolar.
MR – Agora o senhor está totalmente livre das ações?
Diógenes – Sim, porque as acusações eram falsas e eu fui absolvido em todas as ações. Uma segunda razão para o atraso do livro é que eu tinha um certo pânico de aparecer na imprensa, porque antes era só paulada. Tudo isso era potencializado nas campanhas eleitorais. Eu não sabia bem o que fazer, se me escondia, se saía à luz do sol. Quando as coisas se acalmaram e meu nome começou a ficar mais, digamos assim, esmaecido, veio a questão da minha anistia. Eu tramitei um requerimento no Ministério da Justiça durante cinco anos e meio pedindo minha anistia, de acordo com a lei. Tarso Genro era ministro naquela época. Bom, quando veio, eu sofri um novo linchamento midiático por parte do Elio Gaspari.
MR – Em que ano foi isso?
Diógenes – Em 2008, 2007. A CPI foi em 2001, no fim do governo do Olívio. Os anos de 2001 a 2006, foram infernais: manchetes, campanhas eleitorais, novas desconfianças e processos judiciais, tudo em paralelo. Quando isso acalmou, veio a minha anistia em portaria publicada no Diário Oficial da União. Aí o Elio Gaspari desencadeou uma campanha midiática muito violenta contra mim. O Juremir Machado da Silva entrou na trilha do Elio Gaspari. A campanha que o Gaspari desenvolveu foi muito sórdida, porque ele tem uma coluna nacional, publica em duzentos jornais pelo país… Eu juntei toda uma papelada para processá-lo, eu já não aguentava mais. Foi minha ex-mulher que entrou na justiça contra ele, contratou o Fábio Konder Comparato e só não colocou o Elio na cadeira porque não quis. E aí ele parou. Hoje estou com 72 anos. Um filho se formou em jornalismo, outro em direito. Os amigos sempre me perguntavam pela biografia. Ano passado estive muito doente, estive mesmo nos umbrais da morte. Então pensei: é agora ou nunca. E aí resolvemos escrever. Antes era muito cedo e depois talvez fosse tarde demais.
“Tu pra padre já não deu, mas pra alienado eu acho que tu também não serve, tu é um guri esperto. Então eu acho que tu vai ser comunista”.
MR – Então vamos voltar no tempo.
Diógenes – Minha família era proprietária de terras, médios proprietários de terra. Eu sou natural de Júlio de Castilhos, antiga Vila Rica, cidade que leva este nome por causa do pai do Antônio Chimango. Ele nasceu lá, o próprio Júlio de Castilhos nasceu lá. Era uma antiga redução jesuítica chamada Nossa Senhora da Natividade. Uma redução que os padres fizeram meio escondida para esconder o gado dos bandeirantes que, quando não conseguiam escravizar os índios, levavam as tropas. Eu não tinha condições de estudar em colégio nenhum, então meus pais resolveram me colocar num seminário, porque era de graça. Mas eu não tinha nenhuma vocação pra aquilo. Fiquei lá uns anos e vim pra Porto Alegre.
MR – A política já fazia parte da sua vida?
Diógenes – Eu tive a sorte de, na minha cidade, haver um único comunista, que era casado com uma prima-irmã do meu pai. O cara me chamou quando soube que eu queria vir para Porto Alegre e disse: “Tu pra padre já não deu, mas pra alienado eu acho que tu também não serve, tu é um guri esperto. Então eu acho que tu vai ser comunista”. E me deu um bilhetinho para que eu procurasse a professora e poetisa Lila Ripoll. Procurei e ela foi minha tutora. Fui pupilo da Lila até depois de entrar para a clandestinidade. Foi ela que me iniciou no marxismo, na bibliografia toda, ela reunia grupos de jovens em sua casa. A Lila era comunista de carteirinha, clássica.
MR – Isso foi o quê, nos anos 50?
Diógenes – Sim, sim. Anos 50. Eu sou de 1942. Tive o privilégio de ter uma boa formação teórica por causa da Lila. Ela era uma pessoa maravilhosa, muito querida pela intelectualidade rio-grandense. Essa foi a minha infância e nisso veio a Legalidade.
MR – O sr. já estava na universidade?
Diógenes – Não, eu era secundarista. Na Rua da Ladeira tinha um colégio, o Monteiro Lobato — não é o de hoje –, onde eu estava estudando. E veio a legalidade, ou seja, a renúncia do presidente Jânio Quadros, aquele tumulto e tal. O Brizola tentou trazer o Jânio pra cá, mas ele tinha outras coisas em vista. E montou-se aqui todo aquele mecanismo de resistência que eu procuro mais ou menos em meu livro. Formou-se um QG da Legalidade onde hoje é prédio do Tudo Fácil. Ali tinha um museu chamado Mata-Borrão. Ali é que se formou o QG da resistência. O movimento da Legalidade foi muito intenso e a participação popular foi muito massiva. Os nossos lideres foram o Pedro Alvarez, o Peri Cunha, que também era coronel, e o Álvaro Ayala. Eu era um pirralho. Tínhamos armas. O Brizola requisitou a produção da Taurus e da Rossi e pegou o que tinha nas casas de caça e pesca. Eu consegui uma pistola italiana para mim, mas a gente desejava mesmo eram os “três oitão” da Taurus. O movimento durou pouco tempo porque o Jango voltou logo. Ele não podia ficar muito tempo fora do país, senão os caras consolidavam outra situação. E ele chegou aqui, se enfurnou no Palácio, não saiu dali, não falou com ninguém, não deu discurso nem nada, fez o acordo do parlamentarismo e foi para Brasília. Depois, ele começou um governo bastante reformista. E nós com uma consciência clara de que haveria, em reação, um golpe militar. Eu tinha dupla militância, militava no Partido Comunista e junto com o pessoal do PTB, do antigo PTB. O PTB sabia que muitos de nós tínhamos essa duplicidade e apoiava. Não houve resistência ao golpe. Nós esperávamos uma ordem, mas o Brizola mandou dispersar todo mundo e entregar as armas. Não queria derramamento de sangue. Ele tinha uma fazenda no Uruguai que ficava na linha imaginária da fronteira. Então, sem sair da propriedade, ele emigrava. E foi o que fez. Emigrou. Nós iniciamos um período muito grave de tentativa de resistência armada ao golpe. Víamos o novo governo como resultado de uma quartelada. Foram inúmeras tentativas, todas elas foram abortadas pelo serviço de inteligência da ditadura e dos Estados Unidos. Não conseguimos nada. Não demos sequer um tiro. Eles abortavam tudo na antevéspera e sempre prendiam as lideranças. Lá por 1965, eu já era conhecido pela repressão e trabalhava na Companhia Estadual de Energia Elétrica.
“Em Montevidéu, concentrava-se a maioria de lideranças. Estavam lá para não serem presos. Dali eu fui para Cuba a fim de fazer treinamento militar”.
MR – Que cargo o sr. ocupava na CEEE?
Diógenes – Eu era escriturário concursado, mesmo sendo secundarista. Tanto que só consegui a anistia por ter sido funcionário da CEEE. Quem me deu a documentação necessária para embasar o pedido foi ninguém menos do que a Agência Brasileira de Inteligência. Eles tinham tudo a meu respeito.
MR – E aí em 1965, com 23 anos, o senhor foi para o Uruguai.
Diógenes – Havia milhares de brasileiros por lá, principalmente marinheiros e sargentos. Porque houve aquela tentativa de revolta dos sargentos em Brasília, depois aquela movimentação toda dos marinheiros no Rio de Janeiro e aquela famosa assembleia do sindicado dos metalúrgicos. Em Montevidéu, concentrava-se a maioria de lideranças. Estavam lá para não serem presos. Dali eu fui para Cuba a fim de fazer treinamento militar. Fiquei lá quase um ano e o meu destino seria uma coluna guerrilheira na Bolívia, bem no local onde Che Guevara veio a morrer. Só não fui porque, quando eu descia Sierra Maestra, surgiu a notícia de que o Che havia sido localizado. E, quando isso aconteceu, os americanos imediatamente fizeram o chamado cerco estratégico, em que não entrava nem saia ninguém da região. O cerco estratégico do Che na Bolívia durou meses. Eu e meu grupo retornamos para Montevidéu e procuramos o Brizola. Ele não queria saber da luta armada. Nós tínhamos muitas armas, armaram-nos muito bem. O Brizola queria que nós nos desarmássemos. Mas a gente saiu de Montevidéu com nossas armas. Viemos para Porto Alegre, mas o pessoal achava que eu era muito conhecido aqui, e me mandaram para São Paulo. Cheguei em São Paulo no ano de 67. Lá estava se reestruturando aquele pessoal todo do Uruguai, depois do recuo do Brizola. A grande maioria daqueles sargentos e marinheiros começou a se reorganizar em São Paulo e fundaram a VPR, Vanguarda Popular Revolucionária. Essa organização surgiu em São Paulo porque lá tinha um forte núcleo operário, oriundo do antigo partidão. Tínhamos a hegemonia absoluta do movimento operário de Osasco e de São Caetano, com bases operárias fortíssimas. E, devido a isso e à presença de sargentos das três armas e de marinheiros, é que se fundou a VPR. Então começamos os assaltos a bancos e aos quartéis.
MR – E em um deles o sr. acabou preso?
Diógenes – Eu fui preso na Praça da Árvore em São Paulo. Fui encontrar um companheiro e a polícia estava bem defronte, numa banca de revistas. Me atiraram na caçamba de uma daquelas caminhonetes Veraneio. Eu fiquei um ano preso, seis meses na solitária. Nem mosquito tinha. Seis meses na solitária.
MR – O sr. foi muito torturado?
Diógenes – Sim. Eu tenho um joelho de titânio, resultado do pau de arara. E o olho… Eu tinha uma prótese no olho. Eles tiraram a prótese para dar choque lá dentro. Fiquei com muitas sequelas, coisas que não vou falar. Estava no Carandiru em isolamento absoluto. Quem ia para lá eram os destinados ao corredor da morte.
“Mas aí não deu porque o Marighela nos avisou: ‘Se vocês continuarem enrolando, o passarinho vai voar’”.
MR – Fale sobre a atuação da luta armada em São Paulo.
Diógenes – Em São Paulo, nossa atuação se caracterizou basicamente por duas coisas: pegar dinheiro dos bancos e armas dos quartéis. O primeiro quartel que nós pegamos foi a guarnição do Hospital Militar do Bairro do Cambuci. Conseguimos um arsenal razoável lá. E aí o comandante ficou uma arara com a gente. Ele disse que os terroristas eram uns covardes, que tinham assaltado um hospital, uma guarnição de recrutas, que “achavam que tinham almoçado o exército mas que o exército iria jantá-los em breve”. A luta armada em São Paulo teve o episódio da morte do capitão Chandler, um americano que era criminoso de guerra do Vietnã. O Chandler operou no Sul do Vietnã. A especialidade dele eram os interrogatórios rápidos. O método dele era o de botar o cara pelado, deitado numa mesa. Aí, encostava uma barra enferrujada no umbigo do cara. A barra tinha uma graduação em escalada métrica. Eles perguntavam: “Onde é que está o fulano?”. “Não sei”. Para cada “não sei” era um centímetro a mais na barriga. Era falar ou morrer, questão de minutos. Os americanos tiraram-no do Vietnã, condecoraram-no como herói da pátria e o mandaram pro Brasil a fim de ensinar essa técnica para a polícia brasileira. Mandaram o Chandler para São Paulo e o Mitrione para Montevidéu. O Mitrione era chamado de “O Professor de Tortura” e foi morto pelos Tupamaros. E nós pegamos o Chandler. Ela já tinha uma sentença de morte no Vietnã. Só não foi executado porque saiu de lá, fugiu. E nós queríamos pegar o cara vivo e para fazer um julgamento parecido com o que os judeus fizeram com Eichmann. Julgaríamos o cara, certamente o condenaríamos à morte e um dia ele apareceria enforcado na Praça da República. Mas aí não deu porque o Marighela nos avisou: “Se vocês continuarem enrolando, o passarinho vai voar”. Ele já estava com a passagem comprada para voltar aos Estados Unidos. E então foi executado.
MR – O sr. saiu da prisão trocado pelo Cônsul japonês, correto?
Diógenes – Isso, pelo Consul Japonês. Tinha um japonês da VPR que estava preso e estava apodrecendo sob tortura. Ele sabia onde é que o Lamarca estava e não falou. Então alguém teve a ideia de sequestrar o Cônsul do Japão pra trocar pelo preso japonês. Foi nessa lista que eu entrei.
MR – E foi para o México…
Diógenes – O exílio é muito longo, vou tentar ser cronológico. Eu fiquei pouco tempo no México, porque o Lamarca nos deu ordens pra ir imediatamente para Cuba. Então, em Cuba, eu recebi a missão de ir para a Coreia do Norte assistir ao Congresso Mundial da Juventude Coreana do Trabalho — não sei se aquilo terá um dia uma solução pacifica porque o ódio acumulado nos dois lados é muito grande. Da Coreia do Norte me mandaram para o Chile, em razão da vitória do presidente Allende. Militei no Partido Socialista chileno. Fiquei dois anos lá e saí depois do golpe. Fui para o México pela segunda vez e pensei que, bem, vou tentar parar um pouco, sossegar o “pito” por aqui. Fui trabalhar na cidade de Puebla, uma cidade colonial histórica muito linda. Eu trabalhava em um banco de fomento ao artesanato. Mas aí houve grandes calamidades naturais no México. A mulher do presidente, que era nossa benfeitora, nos chamou e avisou “olha, nós não vamos conseguir segurar mais vocês aqui. A oposição está muito violenta contra nós e temos muitos chilenos, não param de vir chilenos. Com dor no coração, eu preciso dizer aos companheiros que arrumem um lugar para ir”.
MR – Quanto tempo o sr. ficou no México?
Diógenes – Não chegou a um ano. Porque foram grandes inundações, muitos flagelados, o governo precisava de recursos. A oposição alegava que o governo estava gastando dinheiro com comunista, com terrorista. Os chilenos ficaram por lá, mas os outros não conseguiram. Aí fui morar na Bélgica. Escolhi o país por causa da comunidade diplomática do Benelux – Bélgica, Luxemburgo e Holanda – e em razão da universidade de Louvain, onde fui aluno do professor Ernest Mandel. Mas não terminei o curso porque estourou a Revolução dos Cravos em Portugal. De todas as da minha vida, foi a revolução mais linda que eu assisti. Fracassou porque Portugal entrou no jogo da Guerra Fria, das superpotências e foi trocado por trinta moedas em uma mesa de negociações. A União Soviética ficou com Angola, que tem alguns dos maiores poços de petróleo do mundo e é um território dos diamantes por excelência. E eu fui para Guiné, porque era muito amigo do Amílcar Cabral, tinha feito amizade com ele em Cuba.
“‘Quantas vezes tu já estiveste aqui?’ e eu respondi que tinha perdido a conta. ‘Então tu não volta mais, porque eu não vou mais te atender.’”
MR – Guiné foi uma época feliz de sua vida, não? Lá o sr. sossegou o “pito”?
Diógenes – (risos) Sim, foram oito anos. Guiné era muito pobre, tinha pouquíssimas estradas e ruas asfaltadas, poucas riquezas naturais. Arrumei um emprego no Ministério do Planejamento. Eles tinham um Estado a ser organizado, uma população a ser alfabetizada. Havia alguns cubanos lá, o hospital central era gerido e assistido por médicos cubanos. Guiné só tinha um médico guineense formado. Minha vida era razoavelmente boa lá. Eu me informava das coisas do mundo pelo rádio, não me estressava com horários, a comida era muito boa. Mas fui derrotado pela malária. Fizemos um belo trabalho no governo. Mas, nos últimos tempos da minha presença em Guiné, eu tinha uma média de dois ataques de malária por mês. Eu ia a toda hora para o Instituto de Medicina Tropical de Lisboa a fim de fazer tratamento. Esse instituto tem fama mundial. Foram eles que conseguiram erradicar a doença do sono, a da mosca tsé-tsé. Mas para a malária não conseguiram fazer uma vacina. Então o diretor me chamou e perguntou “Quantas vezes tu já estiveste aqui?” e eu respondi que tinha perdido a conta. “Então tu não volta mais, porque eu não vou mais te atender. Tu não tens cura, tens é que sair da zona infestada”. Não tinha outra solução senão sair. E voltei para o Brasil.
MR – Em que ano voltou?
Diógenes – Muito depois da anistia. A anistia foi em 79, eu voltei para cá no Natal de 83.
“Os funcionários viviam em um regime de escambo, não ganhavam salário, ganhavam mercadoria”.
MR – E entraste no PT.
Diógenes – Aqui em Porto Alegre, me contaram que tinha uma gente nova, de um bancário aí. O bancário era o Olívio e eu fui para o PT. Aí, o Olívio acabou eleito prefeito e eu fui por quatro anos Secretário de Transportes. Foi uma época muito agitada. Fizemos a intervenção no sistema de transportes. O sistema estava podre. Um toco de cigarro furava os pneus dos ônibus. Constatamos que aquelas empresas eram tudo, menos empresas de ônibus. Os ônibus eram um interesse periférico. Eu fui nomeado interventor da Trevo. Os funcionários viviam em um regime de escambo, não ganhavam salário, ganhavam mercadoria. O sistema era de vales. O funcionário pegava um vale para comprar remédio, por exemplo. Eles davam o vale e cobravam juros de 30, 40% ao mês.
MR – O sindicato?
Diógenes – Patronal e pelego. Então o Olívio renovou o sistema. As maiores obras da administração do Olívio na prefeitura foram a renovação do sistema de transportes e o Orçamento Participativo. Ao final do governo Olívio, fui trabalhar na iniciativa privada, abri uma pequena agência de viagens. E veio aquela eleição do Olívio para governador. Quando ele foi fazer a campanha, me chamou pra ajudar a catar dinheiro. Não tínhamos um tostão. Ninguém faz ideia de quanto custa uma campanha política. Por isso, quando ouço falar dos caras que querem o financiamento público de campanha, não digo nada. Isso é pura balela.
MR – Tu foste visto como o grande financista da campanha do Olívio. A agência de viagens era grande? E o Clube de Seguros?
Diógenes – Não, eu apenas sobrevivia daquilo, era uma agência pequena. Hoje, turismo e seguro não são bons negócios. As pessoas fazem tudo no computador. O problema é que o governo do Olívio foi um governo de minoria, de conflito. O Clube de Seguros, ah, o Clube de Seguros! Um companheiro nosso, Daniel Gonçalves, que trabalhava com seguros, disse que “se a gente montar um clube, se fizermos estipulações de seguros, dá pra ganhar bem”. Queríamos fazer apólices em grande escala. Foi assim que o Caburé ficou biliardário. Se eu montar uma apólice de seguro de vida com 200 caras e levar para uma companhia, eles remuneram muito bem.
“Olívio resolveu distribuir essas verbas de forma mais equitativa, mandando-as para os pequenos jornais e rádios do interior do estado. Isso equivaleu a uma declaração de guerra”.
MR – Como começou o rolo?
Diógenes – Tu sabes… As verbas de publicidade são disputadas a tapa pela mídia. Os barões das grandes cadeias acham que seus quinhões devem ser proporcionais aos índices de audiência que são, como sabemos, uma caixa preta. O governo Olívio resolveu distribuir essas verbas de forma mais equitativa, mandando-as para os pequenos jornais e rádios do interior do estado. Isso equivaleu a uma declaração de guerra. Eles queriam tirar o Olívio algemado do Palácio. E o bode expiatório de plantão era eu e o Clube. Nunca fui tesoureiro do partido e nem participei do Comitê Financeiro. Inventaram uma CPI da Segurança Pública. Forjaram uma fita onde havia uma imputação, feita pelo Jairo Carneiro, ex-tesoureiro do PT cooptado por eles, de que eu estava envolvido com o jogo do bicho e o crime organizado. Jairo era o inquirido na fita. Esta fita foi montada por três jornalistas da RBS, uns gurizinhos recém contratados. Um dia, eles resolveram que, para fechar a coisa, faltavam algumas informações. Então mandaram o Jairo Carneiro ao escritório do Daniel Gonçalves com o celular ligado para os caras da RBS ouvirem. O Jairo depois disse para a Justiça que, quando entrou no escritório do Daniel, sentiu-se pegajoso, sujo, nojento, fazendo um trabalho indecente. Afinal, o Daniel é um sujeito digno que sempre o tratara com decência. E ele desistiu. Chegou lá e desligou o celular. Depois mentiu pros caras que tinha acabado a bateria. Mas eles foram ao Ministério Público entregar a fita. E o pessoal do MP respondeu: “Olha, doutor Vieira da Cunha, nós queremos ajudar nessas investigações, são denúncias gravíssimas. Mas o senhor sabe que temos que reduzir a fita a um termo e assinar. O senhor é membro do Ministério Público e sabe que nós não podemos trabalhar só na oralidade. O dono da fita tem que degravar e assinar. Façam isso com urgência e “tragam ontem” para mim.
“O Jair perdeu a compostura e, aos berros, com o auditório da CPI lotado, pedia um ‘detector de mentiras’”.
MR – E eles não entregaram nada…
Diógenes – Claro! E cometeram um grande erro. Em vez de levar a fita para a CPI, falaram com o Jair Krischke, que era o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Ele estava no esquema contra o Olívio. E ele se auto-convocou para uma entrevista com o jornalista Lasier Martins, e disse “Dr. Lasier, quero fazer um comunicado importante ao povo do Rio Grande, mas não vou levar a fita com a comprovação das denúncias”. “Mas como, Dr. Jair?” respondeu o Lasier, “O senhor divulga um caso desses e depois frauda a expectativa criada?”. E o Jair: “Não, vou fazer melhor, vou levar o autor da fita na CPI”. Que era o Jairo. E aí diz o Lasier, “Mas Dr. Jair, não será temerário?”. E ele respondeu “Não, está tudo sob controle”. Foi então que o Jairo chegou lá e desmentiu tudo, revelando a armação da RBS. Eles literalmente enlouqueceram. Ele desmentiu a fita em alto e bom som. O Jair perdeu a compostura e, aos berros, com o auditório da CPI lotado, pedia um “detector de mentiras”. Tudo está contado com detalhes documentais no livro, que termina depois com um capítulo só sobre poesia, para aliviar o leitor dessa sujeira.
MR – E como a Clube de Seguros da Cidadania tinha a sede do Comitê Eleitoral do Olívio?
Diógenes – A sede do Clube foi comprada por nós. O Clube se propunha a fazer estipulação de seguros, que é algo legítimo e legal. Com a receita, nós conseguimos comprar aquela casa na Farrapos e fizemos um comodato com o PT para colocar o comitê do Olívio em nossas salas. Comodato é um aluguel sem ônus: tu te comprometes a manter a casa e pagar os impostos, mas a casa é do outro. Como nós fizemos o comodato, bastava só declarar, porque não entra dinheiro. Eles ficaram malucos, achando que era impossível.
MR – Como se encaixam o jogo do bicho e o crime organizado? Que crime organizado era esse?
Diógenes – Olha, fomos acusados de tudo o que tu possas imaginar. Quando o Jairo Carneiro saiu do PT, antes simulou um assalto ao comitê de campanha. Roubaram só o disco rígido. Imaginem, não pegaram nada, nem a CPU ou monitor quiseram, só o disco rígido. Ali havia orçamentos. Um deles era o dos custos do programa eleitoral na TV, que fora feito junto à Casa de Cinema. Dava um valor redondo de 700 mil reais para o primeiro turno. Claro que nós não tínhamos o dinheiro e pedimos um parcelamento. E a planilha tinha diversas entradas com os nossos pagamentos. Eles mudaram a título da planilha para “Arrecadação do JB (jogo do bicho)”… Veja bem, a CPI tinha como título CPI da Segurança Pública, era pra investigar a situação da segurança pública no estado. E daí derivaram a investigação para cima do Clube, com todas as manchetes em jornais da RBS e a fita gravada. A “prova” era a fita do Jairo, uma montagem. Basicamente, a CPI foi isso.
MR – E hoje?
Diógenes – Hoje tudo passou. Ganhei todos os processos na Justiça e consegui escrever meu livro. Meu advogado me alertou que eles poderiam fazer um mandado de busca e apreensão na sessão de autógrafos em razão da Kalashnikov da capa. Poderiam alegar que é uma afronta ao Estatuto do Desarmamento e apologia à violência. Hoje, sou um velho militante da esquerda e da paz, mas meu livro narra um longo combate, não é um livro água com açúcar para as comadres lerem.
No dia 9 de Novembro de 1989, o Muro de Berlim começava a ser derrubado. Ele existia desde 1961 e tem longa história. Após a Segunda Guerra Mundial, o que restou da Alemanha foi dividido em quatro zonas de ocupação, cada uma controlada por uma das quatro potências aliadas: Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética.
A capital, Berlim, ficava no interior da zona soviética e foi igualmente dividida em quatro setores.
Nos dois anos subsequentes, ocorreram desentendimentos entre os soviéticos e as outras potências de ocupação, incluindo a recusa dos primeiros a participarem dos planos de reconstrução de uma Alemanha autossuficiente. Enquanto isso, Joseph Stalin foi construindo um cinturão protetor da União Soviética através de países satélites em sua fronteira ocidental. O Bloco do Leste — também chamado de Pacto de Varsóvia e no Ocidente de Cortina de Ferro — incluía Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Romênia, Bulgária e Albânia (até meados dos anos 60). Fora do Leste Europeu, Mongólia, Cuba, Vietnã e Coreia do Norte, eram algumas vezes considerados como parte do bloco.
Em 1945, Stalin imaginava — e revelou aos líderes alemães sob seu controle — que enfraqueceria lentamente a posição britânica em sua zona de ocupação, que os Estados Unidos iriam retirar sua ocupação dentro de um ano ou dois e que, em seguida, nada ficaria no caminho de uma Alemanha unificada sob controle soviético.
Nada disso ocorreu e, em 1948, Stalin instituiu o Bloqueio de Berlim, impedindo que alimentos, materiais e suprimentos pudessem chegar a Berlim Ocidental. Os Estados Unidos, Reino Unido, França, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e vários outros países começaram uma imensa “ponte aérea para Berlim”, fornecendo alimentos e outros suprimentos à parte da cidade controlada pelo Ocidente. Em maio de 1949, Stalin acabou com o bloqueio, permitindo a retomada dos embarques por terra do Ocidente para Berlim.
A República Democrática Alemã (Alemanha Oriental ou RDA), a parte da ex-Alemanha controlada pelos soviéticos, foi instituída em 7 de outubro de 1949. Sua autonomia era realmente limitada. O Ministério de Negócios Estrangeiros Soviético concedeu autoridade administrativa a Alemanha Oriental, mas os soviéticos participavam de forma clara e inequívoca das estruturas de administração, assim como da polícia militar e secreta. A Alemanha Oriental era muito diferente da Ocidental (República Federal da Alemanha), que se originou nas áreas controladas por norte-americanos, britânicos e franceses e que se desenvolveu como um país capitalista.
O crescimento econômico da Alemanha Ocidental a partir de 1950 fez com que o padrão de vida no país melhorasse continuamente e muitos alemães orientais sonhassem com uma mudança de ares. Aproveitando-se da zona de fronteira entre as duas Alemanhas, o número de cidadãos da RDA que se deslocaram para a Alemanha Ocidental totalizou 197.000 em 1950, 165.000 em 1951, 182.000 em 1952 e 331.000 em 1953. Uma das razões para o aumento acentuado em 1953 foi o receio que a sovietização se intensificasse. E, dentro de Berlim, as pessoas continuavam “fugindo” para o lado ocidental.
Não se falava ainda na construção de um muro que dividisse a cidade, mas no começo de 1961 intensificaram-se os boatos sobre uma grande obra em Berlim Oriental. Dois meses antes da construção, uma jornalista da Alemanha Ocidental fez uma pergunta sobre um muro a Walter Ulbricht, líder da RDA na época: “Eu não sei nada sobre quaisquer planos, sei que os trabalhadores da capital estão ocupados principalmente com a construção de apartamentos e que suas capacidades estão sendo inteiramente utilizadas. Ninguém tem a intenção de construir um muro”.
Falando desta forma, Walter Ulbricht foi o primeiro político a referir-se ao muro. Os serviços secretos faziam seu trabalho e sabia-se que Ulbricht tinha pedido a Nikita Khrushchev, durante numa conferência dos Estados do Pacto de Varsóvia, permissão para bloquear as fronteiras a Berlim Ocidental, incluindo a interrupção de todas as linhas de transporte público.
A construção do muro
No dia 12 de agosto, o Conselho de Ministros da Alemanha Oriental decidiu usar as forças armadas para fechar as fronteiras e instalar gradeamentos. Durante a operação, na madrugada de 13 de agosto de 1961, os militares bloquearam as conexões de trânsito a Berlim Ocidental . Eram apoiados por forças soviéticas. Todas as conexões foram fechadas.
No mesmo dia do início da construção do muro, o chanceler da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer, dirigiu-se à população pelo rádio, pedindo calma e anunciando uma resposta à altura daquilo que chamou de agressão. Adenauer tinha visitado Berlim havia apenas duas semanas. O prefeito de Berlim, Willy Brandt, protestou energicamente contra a construção do muro e a divisão da cidade, mas sem sucesso. No dia 16 de Agosto de 1961 houve uma grande manifestação com 300 mil participantes em frente do Schöneberger Rathaus, em Berlim Ocidental, para protestar contra o muro. Nada foi conseguido.
A reação dos aliados ocidentais foi débil. Só 72 horas depois chegou um protesto oficial a Moscou. Em razão disso, circulavam rumores que a União Soviética havia garantido que a ação não afetaria Berlim ocidental.
A solução não é muito bonita, mas mil vezes melhor do que uma guerra, disse John Kennedy, presidente dos Estados Unidos.
Os alemães orientais param o fluxo de refugiados e desculpam-se com uma cortina de ferro ainda mais densa. Isto não é ilegal, concordou Harold Macmillan, primeiro-ministro britânico.
Contudo, Kennedy mandou forças armadas suplementares e o vice-presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, acompanhou as tropas, protestando contra o chefe de Estado da RDA, Walter Ulbricht. Ele reagiu. Os ânimos ficaram exaltados a ponto de o comandante soviético na RDA pedir moderação a Ulbricht. Eram tempos de Guerra Fria.
Havia oito passagens de fronteira entre Berlim Oriental e Ocidental e, para passar, era necessário permissão. Morreu muita gente nos 28 anos da existência do Muro. Não existem números exatos porque a RDA não prestava informações sobre incidentes fronteiriços. A ordem era matar quem forçasse passagem. O repertório de mortes é digno de uma tragicomédia. Havia as “mortes convencionais” a tiros durante a corrida. Mas também houve pessoas baleadas após saírem das janelas de seus apartamentos, localizados ao lado do muro, pendurados em cordas. Houve também quedas em balões de gás de fabricação caseira. Por incrível que pareça, esses incidentes eram utilizados pela RDA em sua propaganda para justificar a construção do Muro de Berlim.
De qualquer forma, entre 1961 e 1989, 75.000 conseguiram sair da Alemanha Oriental. A deserção era um crime punido com até 2 anos de prisão. Os membros das forças armadas eram mais severamente punidos, com pelo menos 5 anos de prisão.
O fim do Bloco Socialista
Submetida desde os anos 60 a um longo período de estagnação política e econômica que se explica, em grande medida, pela necessidade de desviar recursos da produção (de implementos, alimentos, etc.) para a indústria bélica, com a finalidade de fazer frente aos EUA, a União Soviética conheceria um rápido processo de transformação a partir da posse de Gorbachev como novo secretário-geral do Partido Comunista, em 1985.
Relativamente jovem em comparação com seus antecessores, Gorbachev tinha 54 anos de idade quando chegou ao poder. Ele lançaria um amplo programa de reformas, visando à renovação política e econômica do país e do bloco comunista. Uma vertiginosa sucessão de acontecimentos, contudo, levaria as mudanças para muito além do que pretendia o próprio Gorbachev.
Seu programa de liberalização apenas tornou mais visíveis problemas que há muito vinham se acumulando: a ineficiência da economia, engessada por um planejamento excessivamente centralizado; o peso dos crescentes gastos militares; a inflexibilidade de uma burocracia estatal de proporções monstruosas, que procurava controlar e regulamentar cada atividade produtiva. Para Gorbachev, só haveria futuro para o socialismo se tal estrutura fosse inteiramente reformulada.
Foi nesse contexto que ele lançou, em fevereiro de 1986, o programa conhecido como Glasnost (“transparência”), visando a combater a corrupção e a ineficiência administrativa dentro do Estado soviético, como parte de um projeto maior de abertura política. E, pouco depois, veio um segundo programa — a Perestroika (“reestruturação”) — visando aumentar a produtividade da economia do país. Além disso, Gorbachev passaria a reduzir gradualmente a ajuda econômica aos países do Leste Europeu e a retirar de lá várias das tropas soviéticas.
A política externa soviética também passou por transformações significativas. Procurando estabelecer um novo padrão de entendimento com os países capitalistas, Gorbachev reuniu-se com o presidente dos EUA, Ronald Reagan, em cinco ocasiões diferentes. Nunca dois dirigentes dos Estados Unidos e da União Soviética haviam mantido tantos contatos diretos. Já no primeiro desses encontros, em novembro de 1985, ambos anunciariam a disposição de reduzir seus arsenais nucleares pela metade, em acordo a ser formalizado futuramente. Reagan, que seguia vendo a União Soviética como “o império do mal”, recuou do compromisso, mas as propostas de desarmamento de Gorbachev lhe valeram uma popularidade que nenhum outro líder soviético havia antes obtido no mundo ocidental. Em sua visita aos Estados Unidos, em dezembro de 1987, ele foi entusiasticamente recebido pelo público norte-americano. Sua esposa, Raíssa Gorbachova, também era personalidade internacional.
Na ocasião, foi assinado um tratado inédito de eliminação de mísseis Cruise e Pershing II norte-americanos, em troca da eliminação de SS-20 soviéticos: tratava-se do primeiro acordo de desativação de toda uma classe de armas nucleares. Um ano depois, em pronunciamento realizado na ONU, Gorbachev anunciaria a decisão de reduzir os contingentes militares soviéticos em 20% — o equivalente a quinhentos mil homens — até o final de 1991.
As reformas de Gorbachev previam também a realização de eleições livres para o Congresso, em março de 1989. Era a primeira vez que os soviéticos iriam às urnas escolher seus representantes. Mas todo esse esforço, que visava a dar novos rumos ao socialismo, passou a enfrentar problemas inesperados: dentro da onda liberalizante, grupos nacionalistas, étnicos e religiosos, sufocados por décadas, voltaram a se mobilizar, reclamando a independência de regiões como a Letônia, a Lituânia e a Estônia. Também nos países do Leste Europeu ressurgiram movimentos a favor da autonomia nacional.
A unidade da União Soviética e do bloco comunista sempre fora garantida por um rígido esquema de centralização política: nas ocasiões em que movimentos colocaram em xeque tal esquema — como na Hungria, em 1956, ou na Tchecoslováquia, em 1968 — os soldados do Exército Vermelho e do Pacto de Varsóvia haviam sido convocados. Agora, porém, isso não parecia mais possível. Um a um, os países do Leste Europeu foram ganhando cada vez mais autonomia em relação à União Soviética, desmontando a ordem construída por Stalin ao final da Segunda Guerra Mundial.
A queda do Muro
Depois de 28 anos de existência, o Muro de Berlim começou a ser derrubado na noite de 9 de Novembro de 1989. Antes da sua queda, houve grandes manifestações. Pedia-se liberdade para ir e vir. Além disto, já estava acontecendo um enorme fluxo de refugiados ao Ocidente nos países satélites.
O impulso decisivo para a queda do muro foi um mal-entendido. Um boato de que o Conselho de Ministros da Alemanha Oriental tinha abolido totalmente as restrições de viagens ao Oeste fizeram milhares de pessoas marcharem aos postos fronteiriços, pedindo sua imediata abertura. Nem as unidades militares, nem as unidades de controle de passaportes haviam sido instruídas.
Era um boato, mas os guardas da fronteira não sabiam o que fazer. A fronteira abriu-se no posto da Rua Bornholmer, às 23h. Mais alemães viram a abertura da fronteira pela televisão e marcharam para lá. Como muitas pessoas já dormiam quando a fronteira se abriu, na manhã do dia 10 de novembro havia grandes multidões querendo passar.
Os cidadãos da RDA foram recebidos com grande euforia em Berlim Ocidental. Muitas boates perto do Muro serviram cerveja gratuita. Pessoas que nunca tinham se visto antes abraçavam-se. Cidadãos de Berlim Ocidental pularam o Muro e foram para o Portão de Brandenburgo, até então inacessível aos ocidentais.
No dia da queda do Muro, em atitude inteiramente inesperada, o violoncelista soviético e estrela internacional Mstislav Rostropovich, saiu sozinho de seu hotel em Berlim com uma cadeira e seu instrumento. Não avisou ninguém de sua intenção de tocar trechos de uma Suíte para Violoncelo Solo de Johann Sebastian Bach bem na frente do Muro. Tornou-se um dos principais símbolos daquele dia.
No mesmo dia, começou a demolição do Muro.
(*) Com compilações de várias fontes. O trecho sobre a decadência do Bloco Soviético foi adaptada a partir de texto do blog História, do professor Sérgio Cabeça.
Nega Lu – Uma Dama de Barba Malfeita é um livro de Paulo César Teixeira que reconstitui a trajetória de Luiz Airton Farias Bastos (1950/2005), homossexual negro que ganhou notoriedade na cena cultural e boêmia da capital gaúcha entre os anos 1970 e 90 como personagem irreverente e inovadora, capaz de antecipar algumas das conquistas sociais e comportamentais que só viriam a se consolidar na segunda década do século XXI.
A Nega Lu surgiu nos bancos escolares do Colégio Infante Dom Henrique, por volta de 1970, época em que Luiz Airton adota o codinome e assume publicamente sua homossexualidade. A despeito da condição de “preto, pobre e puto” (como se autodefinia, com amarga ironia), logo acha lugar na paisagem urbana ao frequentar com estilo espalhafatoso bares, vernissages, shows e concertos no Salão de Atos da UFRGS. “Aonde a gente ia, lá estava a Nega Lu”, escreveu a jornalista Tânia Carvalho. Nega Lu estudou na Aliança Francesa, aprendeu balé clássico com a russa Marina Fedossejeva, ex-bailarina do Kirov (atual Marinski, de São Petersburgo), radicada na capital gaúcha após fugir da Segunda Guerra Mundial.
Cada vez mais integrada à cena cultural, a Nega Lu se destacou nos anos 1970 como solista dos Corais da Ufrgs e da Ospa. “Com essa voz, pode desmunhecar à vontade”, sentenciou o regente Nestor Wenholz ao aprová-la no teste vocal. O timbre grave e retumbante irá pontuar também, na década seguinte, suas performances desbocadas e dilacerantes como crooner da banda de blues Rabo de Galo.
Apesar disso, o palco mais apropriado ao estilo da Nega Lu sempre foi o balcão de fórmica do bar Copa 70, de onde ela puxava um coro de bêbados, marcando o ritmo com o estalar dos dedos, entoando clássicos do jazz, como Summertime, de George Gershwin, até o dia clarear. Nos anos 1990, participou das primeiras Paradas Livres promovidas pela militância gay na capital gaúcha, ao mesmo tempo em que trabalhava como garçonete do bar Doce Vício, um dos pontos mais concorridos do circuito LGBT da cidade.
Escrito a partir do depoimento de cerca de 70 pessoas, o livro aborda ainda as paixões platônicas, os romances arrebatadores e a ciranda de amores casuais da Nega Lu, além de recompor os hábitos e costumes das famílias do núcleo negro do Menino Deus, bairro em que Luiz Airton nasceu e sempre viveu. A obra agrega imagens do acervo pessoal do biografado e de ambientes artísticos e boêmios de seu tempo para oferecer ao leitor um panorama completo da trajetória desta personalidade alegre e anticonvencional, que se transformou em ícone afetivo de sucessivas gerações da capital gaúcha.
Conversei com Paulo César Teixeira, autor de Nega Lu – Uma Dama de Barba Malfeita. Paulo César é um especialista em reconstituir ambientes urbanos a partir de personagens que refletem as transformações globais e delas são protagonistas em âmbito local. Antes, Esquina Maldita, sobre o gueto boêmio de artistas, hippies e ativistas políticos de Porto Alegre nos anos 1960 e 1970, lançado pela Libretos em 2012. Publicou também Darcy Alves – Vida nas Cordas do Violão, biografia do violonista Darcy Alves (falecido em 2015), parceiro de Lupicínio Rodrigues.
Sul21 – Como é que surgiu a ideia de fazer o livro sobre a Nega Lu?
Paulo César Teixeira – Bom, primeiro eu a conhecia e, quando divulgava o Esquina Maldita e falava na Nega Lu era um frenesi, provocava uma reação muito grande. Ela era muito carismática, muito popular.
Sul21 – E onde tu a conheceste?
Paulo César Teixeira – Eu a conheci no apartamento de um amigo ali na Duque de Caxias no final dos anos 70. Ele estudava história na UFRGS, eu fazia jornalismo e em seu apartamento se reuniam muitos estudantes da UFRGS e o pessoal da esquina. Para mim, que tinha 17, 18 anos aquilo foi uma pós-graduação em contracultura. Uma dessas personagens, é claro, era a Nega Lu, que era amiga de infância dele. Mas nunca fui muito próximo dela, até porque havia uma diferença de idade.
INFÂNCIA Pg. 24
Nas tardes quentes de carnaval, as famílias abastadas do Menino Deus levantavam poeira das ruas com os filhos aboletados nos capôs dos automóveis. Até 1955 sem calçamento, a Rua Almirante Gonçalves fazia parte do roteiro seguido de perto pelos moradores das casas humildes. Estes, porém, faziam sua própria festa. Da Rua Barão de Teffé, desciam blocos humorísticos e tribos carnavalescas. Airton de Souza Bastos – pai da Nega Lu –, a quem os amigos apelidaram de Mondongo, por causa do beiço grande, empunhava a bandeira da tribo Os Bororós. “Dançava muito bem, não tinha pra ninguém!”, elogia Iracema. Excitado com a agitação, o menino preto – com sandálias de couro, camiseta e fralda plástica, tudo na cor branca – pulava de alegria na calçada ao ver o pai como um dos protagonistas da folia. Do portão, atenta, a mãe vigiava os passos agitados da criança junto aos dois pés de cinamomo que enfeitavam a frente da casa. Lá pelas tantas, animava-se a enroscar serpentinas junto à cintura e em torno da cabecinha do pequeno. Pronto: estava completa a primeira fantasia da Nega Lu!
Sul21 – Ela morava no Menino Deus, não? A fama da Nega Lu começou no bairro?
Paulo César Teixeira – Ela nasceu e morreu na mesma casa, numa rua atrás do supermercado Nacional. Tudo começou lá. Então o livro não é apenas sobre a figura folclórica da bicha louca dos anos 70. Ela encarnava isso, incorporava isso e até alimentava isso. Mas eu queria ver a pessoa por trás. Por exemplo, ninguém conhecia a família dela. Sabiam que ela morava com a avó, que, aliás, passou sua vida morando com a avó, mas ninguém sabia quem era o pai, a mãe, os irmãos. Ela teve uma irmã de leite, que era vizinha de porta e que era filha de um cara importante do Carnaval de Porto Alegre, o Rubem Santos. E essa senhora, a irmã de leite, gosta de escrever, escreve poesia. E a filha dela, Marguerite, que é cantora, me mandou um e-mail uma vez: “Olha, se tu quiser fazer um livro da Nega Lu, fala com a minha mãe, ela pode te ajudar”. Essa foi minha pista.
Sul21 — Foi tua principal fonte para os anos de formação da Nega Lu?
Paulo César Teixeira – Sim. Essa senhora me escreveu um depoimento numa folha de almaço, escrita a mão, uma coisa linda, onda contava um monte de histórias de infância da Nega Lu. Quem era o pai, a mãe, onde morava, o que fazia quando era criança, na adolescência, nas reuniões dançantes, quando assumiu a homossexualidade. E essa senhora… irmã de leite por quê? Porque a mãe da Nega Lu, que morreu jovem de tuberculose, era uma pessoa doente, não tinha leite. Aí eu entrevistei essa senhora, a mãe de leite da Nega Lu. O livro começa contextualizando o núcleo negro do Menino Deus. Hoje, se a gente fala no bairro Menino Deus, tem uma ideia de um bairro de classe média. E lá existiu e ainda existe um núcleo de famílias negras de descendentes de escravos que se estabeleceram ali. Tem muita macumba, muito carnaval de rua, tudo isso da influência negra. Através dessa senhora, puxo a primeira parte do livro sobre os hábitos e costumes das famílias negras do Menino Deus e de onde surgiu a Nega Lu.
NA ESCOLA Pg. 41
Embora os relatos deem conta de que Luiz Airton não parecia se ofender com as brincadeiras dos colegas a respeito de seu jeito afeminado – “Ele sabia levar as situações com inteligência e respondia sempre com bom humor”, afirma, por exemplo, a professora Beatriz Figueiredo, de Biologia –, é provável que, intimamente, não fosse assim. Ao Jornal do Nuances, ele deixa evidente que, embora não reagisse, sentia-se incomodado:
– Na escola, era muita repressão. A gurizada me chamava de marreca, margarida, mulherzinha e por aí afora. Eu não gostava nada, mas no meu tempo de infância não reagia às provocações.
Sul21 – Onde é que ela estudou?
Paulo César Teixeira – Ela estudou num grupo escolar, o Emílio Massot, e aí foi para o Presidente Roosevelt. Depois estudou no Infante Dom Henrique, que era nos fundos do Presidente Roosevelt. A maioria das pessoas fazia o primário no Roosevelt e o ginásio no Infante. Conheci vários colegas da Nega Lu, gente que conviveu com ela. Foi deste modo que eu consegui o perfil dela como estudante.
Sul21 – E ela já era estigmatizada?
Paulo César Teixeira – Eu entrevistei colegas, professores e a diretora. Todos dizem que ele dava a volta por cima. Tenho certeza que era uma figura querida. Então, quando foi para o curso clássico [correspondente ao Ensino Médio, só que voltado às Ciências Humanas], ele assumiu a homossexualidade e mais, assumiu o codinome de Nega Lu. Há uma entrevista dele, para o jornal Nuances nos anos 90, onde ele conta um pouco do colégio.
Sul21 — Ele participava de festivais de música, não?
Paulo César Teixeira – Sim, ele começou a participar dos festivais de música, porque cantava bem e estávamos bem naquela época dos festivais da Record. Os festivais estavam na moda, cada colégio tinha o seu e os vencedores disputavam uma final no Araújo Vianna. Ele se destacava. O Zé Flávio, dos Almondegas, por exemplo, conheceu a Nega Lu como cantor. Ele cantava mesmo, dava recitais à capela no pátio do colégio, durante o recreio. E vai para a noite, para a esquina maldita e transforma-se numa pessoa conhecida da cidade.
Sul21 – E ele vivia como? Como se sustentava?
Paulo César Teixeira – Bom, ele sempre viveu de biscates. A avó dele sempre segurou tudo. Segurou sempre. Eles não eram miseráveis, mas eram de uma classe média baixa. Os homens da família faziam serviços hidráulicos, o ofício passava de pai para filho. Mas ele era diferenciado. Não sei como, ele estudou francês na Aliança Francesa. Pesquisei na instituição e não existe nenhum registro dele, mas várias pessoas confirmam que ele estudou lá e falava francês muito bem. Uma hipótese é que ele teria estudado como aluno ouvinte. Outra possibilidade, é que o Tatata Pimentel o tenha auxiliado. Tatata era professor do Infante e grande amigo da Nega Lu. Ele (ou ela) tinha a noção de que, por ser negro e pobre, precisava ter cultura, conhecimento, bagagem para poder ser alguém na vida. Ele ensinou isso aos sobrinhos, filhos da irmã dele. Um deles me disse que ele ensinava que ‘’a gente mora num bairro de playboy, então, pra tu não ser rebaixado por eles, tem que aprender política, tu tem que saber música, tu tem que saber o que responder”. Ele aplicava isso para ele mesmo, tanto é que aprende francês.
PROFESSOR TATATA Pg. 41
A Nega Lu não era a única figura que escapava furtivamente ao padrão convencional de masculinidade no Infante Dom Henrique. O professor de francês e inglês Roberto Valfredo Bicca Pimentel, o Tatata Pimentel (falecido em 2012), desfilava no areal do pátio com casacos de cor lilás, antecipando o estilo irreverente com que logo se tornaria conhecido do público como apresentador de televisão. Quem sabe encorajado pelo exemplo de Tatata – nos anos seguintes, eles se tornariam amigos, frequentando juntos redutos da comunidade gay como a boate Flower’s –, Luiz Airton decidiu assumir publicamente sua homossexualidade na escola.
Sul21 — E os biscates?
Paulo César Teixeira – Ela só teve dois empregos com carteira em toda vida. O primeiro deles como cantora de coral. Ela ficou uns oito anos no coral, até o final dos anos 70, e aquilo era uma grana importante para ela, de pouco mais que um salário mínimo. Ao mesmo tempo, ela foi estudar balé clássico com a Marina Fedossejeva. Tem até fotos com ele bem esbelto, dançando. A Marina não cobrava o curso de homens que fossem dançar com ela. Naquela época, o preconceito era muito grande, então ela não cobrava porque precisava deles. As escolas de dança de Porto Alegre disputavam a tapa os homens, porque havia poucos. A turma da Marina fazia espetáculos todo final de ano no Salão de Atos da UFRGS e a Nega Lu participou de alguns deles, mas alguns alunos e ex-colegas me disseram que a russa era racista e tinha uma má vontade muito grande com a Nega. Só o aguentava porque precisava. Outros dizem que não, que ela não era assim. Mas por que a Nega Lu não seguiu carreira no balé clássico se dizem que ela era maravilhosa, que dançava muito bem? Bem, nesta questão ela se dizia uma vítima do racismo.
TESTE VOCAL Pg. 83
Em março de 1971, Luiz Airton compareceu ao Instituto de Artes, local de testes e ensaios do Coral da UFRGS. Quando o viram chegar, alguns rapazes se dirigiram ao regente Nestor Wennholz:
– Maestro, tem um sujeito aí que deseja cantar com a gente, mas é muito desmunhecado, vai ser um desastre, disse o porta-voz dos incomodados.
– Deixa comigo, vou fazer um teste bem difícil, respondeu Nestor, achando graça da situação.
Inesperadamente, o rapaz afeminado saiu-se muito bem ao repetir os sons mais graves do piano. Em seguida, o maestro acelerou a melodia para que ele reprisasse as frases musicais, o que o candidato fez com precisão e desenvoltura. “Agora, vou fazer o teste final”, anunciou Nestor. E largou a nota mais aguda de tenor, que a Nega Lu ricocheteou com naturalidade. O regente virou-se para os moços que antes haviam feito troça e agora, boquiabertos, espiavam pela porta entreaberta da sala:
– Aprovado. Com essa voz, pode desmunhecar à vontade.
Sul21 — E tinha a bebida.
Paulo César Teixeira – Certamente, quem conhecia a Nega Lu sabia que ela bebia muito, não tinha cuidado com o corpo. Ela ficava bebendo até 5 da manhã. Como é que ia ter físico para dançar balé? Então, nos anos, 70 é isso. Ela era bailarina, cantora de coral e frequenta a Esquina Maldita. Nos anos 80, quando acaba o coral, ela vai ser cantora de blues numa banda chamada O Rabo de Galo. E, durante três anos, foi a estrela da banda e fez horrores. Brigava, apaixonou-se por um músico e queria casar com ele. Se ela não gostava de alguém na plateia, xingava. Era uma pessoa difícil e adorável, que não se ajudava. Depois do Rabo de Galo, ela vai dar aulas de dança e etiqueta na escola do Carlos La Porta, que é outro capítulo do livro. Ele se diz o primeiro manequim masculino no Rio Grande do Sul. Desfilou com a Yeda Maria Vargas, foi galã de rádio teatro na Farroupilha. Depois foi pra São Paulo, trabalhou numas novelas da TV Tupi e voltou pra Porto Alegre a fim de fundar uma escola de modelos aqui na Rua da Praia.
BALCÃO DE FÓRMICA Pg. 50
Certa vez, a Nega Lu beijou a boca de um namorado dentro do Alaska, o que enfureceu o dono do bar, Alfredo Ribeiro, habitualmente um sujeito calmo, que mal saía de trás do caixa, mas que naquela noite apanhou a garrafa de cerveja mais próxima com a intenção de estourá-la na cabeça de Luiz Airton. Foi impedido pela esposa Diaci: “Tu vais estragar a tua vida por causa deste louco?”. Após o incidente, a Nega Lu evitou botar os pés no Alaska durante algum tempo. Em contrapartida, no Copa 70, ela se sentia em casa, principalmente depois que o proprietário Carlos Rocha abaixava a cortina de metal, por volta de três horas da madrugada. Ela, então, subia no balcão de fórmica para cantar Summertime, clássico de George Gershwin, carro-chefe do repertório que improvisava para fãs e clientes retardatários até quase o nascer do sol.
Sul21 — Aulas de etiqueta?
Paulo César Teixeira – Sim, o La Porta convidou a Nega Lu para ser professora de dança e boas maneiras. Eu entrevistei uma aluna dele e ela me disse que ele ensinava como comer, como cruzar as pernas, etc. Ele ficou lá de 80 a 98, até fechar a escola. Mas sem carteira assinada. Sobrevivia desta forma. Depois que ele sai do La Porta, vem a última fase profissional dele, que é como garçonete do Doce Vício, um bar GLS que tinha ali perto do Colégio Militar, na Vieira de Castro, onde hoje tem um pub. Ela era garçonete, atendia no balcão, era barman, e porteira… É o segundo emprego dela com carteira assinada. Mas aí começam os problemas de saúde.
A DANÇA DA DEGOLA Pg. 152
Habituada a exibir seus dotes artísticos, a Nega Lu protagonizou uma das cenas mais hilárias do Doce Vício ao subir numa mesa para oferecer à plateia um show particular de dança. Ela própria contou depois aos amigos o que se sucedeu:
– Gente, as pessoas gritavam “Lu! Lu! Lu!”. Eu achei que estava arrasando. Lá pelas tantas, me dei conta de que gritavam para me avisar que a pá do ventilador de teto estava quase me degolando.
Sul21 – Como é que ela se vestia?
Paulo César Teixeira – Ela se vestia como homem. Bem, na banda da Saldanha se vestia de mulher. Mas normalmente se vestia como homem. No Doce Vício, ela começa a dormir sentada. É demitida. O final é triste. A avó morre e ela passa a pedir dinheiro emprestado para comprar remédios. Vira batuqueira. Muito dizem que era uma forma de ganhar um dinheiro. Era cardíaca e obesa. Outros dizem que morreu de aids. Sua irmã me deu o telefone do médico dela. Fui falar com o cara, um infectologista, especialista em aids. Recebi toda a ficha médica. A causa mortis foi um edema agudo do pulmão, mas o médico afirmou que foi por consequência de problemas cardíacos. Ela mal conseguia andar. Porém, quando foi internada por causa do coração, fizeram o exame de HIV e deu negativo. E ela andava pelo corredor da Santa Casa dizendo aos conhecidos que ‘’Quem dá por amor não pega aids’’.
Sul21 — E os amores?
Paulo César Teixeira — Ele era um cara extremamente volúvel, um caçador noturno. Teve amores platônicos. Ele era apaixonadíssimo pelo Leo Ferlauto, depois pelo Careca da Silva. Mas nunca chegou a morar junto com ninguém, sempre morou com a avó. Ele namorava um alemão que era um agrônomo. Ele queria levar a Nega Lu para a Alemanha e ela não quis por causa da vó, que já estava velha. Também foi convidada a morar no Rio de Janeiro nos anos 80, tinha acertado um teste numa escola de balé, mas também desistiu por causa da avó.
PÚBERES RAPAZES Pg. 125
Nunca pairou dúvida de que Luiz Airton fosse um homossexual absolutamente convicto – “Você nasceu no corpo errado”, disse-lhe uma amiga de infância, e ele acreditou piamente –, mas essa constatação não diminui a complexidade da questão. Mary Mezzari assegura que a Nega Lu também se relacionou com mulheres: “Apesar de ser bicha mesmo, não bissexual, a Nega iniciou sexualmente muita gente, inclusive algumas garotas. Mas, naquela época, na hora do pega pra capar, rolava qualquer negócio”. Outro mito a ser desfeito é o de que, nas relações sexuais com homens, exercia um papel exclusivamente passivo. “As pessoas se enganavam com ela. Na hora do sexo, era muito ativa”, comenta Lucrécia. Uma das lendas que a cercam – citada por Lineu Cotrim – dá conta de que, imediatamente após desvirginar púberes rapazes, ela ritualisticamente soltava o bordão:
A humanidade pode ser pior do que você imagina, muito pior.
Terrorismo é definido como “o uso de violência e intimidação na busca de objetivos políticos”. A mídia ocidental gosta de pintar terroristas com rostos morenos, mas uma das mais horríveis campanhas de terror aconteceu no século passado em solo norte-americano — os estimados 3.436 linchamentos de homens e mulheres negros americanos entre 1882 e 1950, com o objetivo de controlar e intimidar a população negra pouco antes libertada. Não muitas coisas são mais perturbadoras do que ser confrontado com a evidência visual do lado sombrio da humanidade, especialmente quando são evidências de um ódio generalizado e da violência de um ser humano para com o outro. Este ódio veio do medo e foi impulsionado pela religião e pela crença de que os assassinatos são atos de moralidade. Esta violência visava intimidar e suprimir quaisquer aspirações que uma comunidade possa ter por igualdade e um futuro melhor.
Quando me deparei com a coleção de cartões-postais norte-americanos de James Allen e John Littlefield, publicada em um livro intitulado Without Sanctuary: Lynching Photography in America, notei quão importante é conhecer essas imagens, hoje mais do que nunca. Esses cartões-postais foram feitos para comemorar eventos que fizeram muitos brancos norte-americanos se sentirem orgulhosos — de sua raça, de sua superioridade, de sua civilização e de sua inteligência. Eles tiraram fotos de suas realizações nojentas e covardes para serem conhecidas e lembradas. Nas costas, eles escreveram para amigos e familiares numa empolgação de sociopatas. Esses cartões-postais capturam turbas testemunhando com alegria o assassinato de rapazes e moças, cujo crime mais grave foi a cor da pele. Os cadáveres pendurados e carbonizados nesses cartões-postais viviam em um mundo que contava os dias até seu assassinato, a partir do momento em que colocavam ar em seus pulmões infantis. Essa história é poderosa, de revirar o estômago e de importância essencial. E o mais impressionante sobre essas fotos é que elas não apagam os perpetradores como muitas histórias e memoriais fazem hoje, preferindo focar em quem foi vitimado em vez de naqueles que orgulhosamente — e com o apoio do governo — torturaram, estupraram e assassinaram pessoas. Os assassinos nessas fotos estão orgulhosos, são homens adultos olhando para a câmera com a convicção sorridente de que o adolescente que eles acabaram de matar, um contra cem, merecia seu ódio, medo e frustração. Nenhum grande júri era necessário; a lei estava nas mãos dos assassinos.
A história não é linear. A história está acontecendo ao nosso redor, o tempo todo. Essas fotos são contexto, são realidade, são fotos do terrorismo norte-americano. Esteja ciente de que essas fotos são repugnantes e muito reais.
Por James Allen
Eu tenho um brique, sou um catador, um colecionador. É minha vida e minha vocação. Eu procuro itens que algumas pessoas não querem ou não precisam mais e os vendo para outros que precisam. As crianças são catadoras naturais. Eu fui uma delas. Eu brincava com isso desde quando colecionava abelhas em potes.
Meu pai trazia para casa sacos de lona estufados com nomes de bancos, sacos de moedas de cobre ou meio dólar e nós, crianças, sentávamos em volta dos montes de moedas como se estivéssemos em volta de uma fogueira e gritávamos sons de bingo quando encontramos alguma moeda especial.
As mães não aconselham seus filhos a serem catadores. Nenhum adulto deseja ser chamado disso. No Sul dos EUA, é um termo pejorativo. É coisa de gente muito humilde e ignorante, talvez ladra. Tenho tentado trazer dignidade a meu trabalho, viajando incontáveis estradas em meu estado natal, adquirindo coisas que creio serem úteis e reveladoras — móveis feitos à mão, potes feitos por escravos, colchas remendadas e bengalas esculpidas. Muitas pessoas que me vendem estão sobrecarregadas de bens, ou prontas para irem para o lar dos idosos ansiando pela morte. Alguns são vendedores são relutantes, outros ansiosos. Alguns são amáveis, gentis e acolhedores, outros são mesquinhos, amargos e meio enlouquecidos pela vida e pelo isolamento. Nos EUA tudo está à venda, até uma vergonha nacional. Um dia, deparei-me com um cartão-postal de um linchamento. Os cartões-postais pareciam triviais para mim, eram produtos de segunda mão. Ironicamente, a busca por essas imagens me trouxe um grande senso de propósito e satisfação pessoal.
O estudo dessas fotos gerou em mim um enorme medo dos brancos, medo da maioria, dos jovens, da religião, dos aceitos. Talvez certo cuidado a respeito dessas coisas já estivesse em mim, mas certamente não tão ativamente como após a primeira visão de um frágil cartão-postal de Leo Frank morto em um carvalho. Não foi o cadáver que me impressionou, foram os rostos delgados como cães de uma matilha, circulando atrás da morte. Centenas de mercados de pulgas depois, um comerciante me puxou de lado e em tom conspiratório me ofereceu um segundo cartão, este de Laura Nelson, presa como uma pipa de papel em um fio elétrico. A visão de Laura criou uma camada de pesar sobre todos os meus medos.
Acredito que os fotógrafos destes cartões foram mais do que espectadores dos linchamentos. A arte fotográfica desempenhou um papel tão significativo no ritual quanto a tortura. A luxúria impulsionou sua reprodução e distribuição comercial, facilitando a repetição infinita da angústia. Mesmo mortas, as vítimas não tinham abrigo.
Essas fotos provocam em mim um forte sentimento de negação e um desejo de congelar minhas emoções. Com o tempo, percebo que meu medo do outro é medo de mim mesmo. Então, esses retratos, arrancados de outros álbuns de família, tornam-se os retratos da minha própria família e de mim mesmo. E os rostos dos vivos e os rostos dos mortos se repetem em mim e na minha vida diária. Já vi John Richards em uma estrada remota do condado, balançando-se em passadas de cavalinho de pau, cabeça baixa, olhos no chão. Já encontrei Laura Nelson em uma mulher pequena e robusta que atendeu minha batida na porta de uma varanda dos fundos. Em seus olhos profundos, observei uma multidão silenciosa desfilar em uma ponte de aço brilhante, olhando para baixo. E na Christmas Lane, a apenas alguns quarteirões de nossa casa, Leo, um menino pequeno, com a fralda da camisa para fora e o boné descentrado, vai para as orações do sábado.
Vamos com uma que quase todo mundo tem dificuldade:
POR QUE/ PORQUE / POR QUÊ/ PORQUÊ – DOMINE A ORTOGRAFIA DE UMA VEZ POR TODAS! 👇
1) Use “por que” (separado, s/ acento) em perguntas: “Por que a Michele recebeu R$ 89 mil do Queiroz?”
2) Use “porque” (junto, s/ acento) em respostas: “Porque eu precisava dar um jeito de receber o $ das rachadinhas”.
3) Use “por quê” (separado, c/acento) quando estiver no final de perguntas, próximo ao ponto de interrogação. “Mas todo mundo sabia que esse traste não valia nada, votaram nele por quê?”
4) Use “porquê” (junto, com acento) quando estiver substantivado. Se não souber o que isso significa, use quando a palavra puder ser substituída por “a razão”. “O combate à corrupção nunca foi o porquê de a elite ter votado nele”.
(Fanfarras. O auditório está animado, aplaude e o programa começa. Adentra o palco um homem grisalho, não de todo acabado. É o Especialista. Ele senta ao lado do apresentador, que fala.)
— Nosso pogrom d`oje traz o Espesializta Milton Ribeiro para nos contar sobre a Esquina Maldita. Boa noite.
— Boa noite, é um praz…
— Claro que é um prazer! Milton, diga-nos: quais foram os bares que formaram a famosa Esquina das avenidas Osvaldo Aranha e Sarmento Leite?
— Ora, primeiro, em 1966, veio o Alaska, depois vieram o Estudantil, o Copa 70 e o Marius.
— Quanto tempo duraram?
— Sei lá. O que sei é que o Alaska fechou em 1985 e o Marius foi adiante por mais um tempo.
— Quem ia ao Alaska?
— A militância d`esquerda.
(Fanfarras. O apresentador levanta-se e grita.)
— Ele acaba de ganhar uma caixa de nosso patrocinador, os cigarros d`Arrabalde, o cigarro d`oômem! Parabéns, Milton.
— Obrigado. Eu estava ligado.
— Bem, podemos continuar.
— O Alaska tinha um garçom que às vezes era acompanhado de um auxiliar meio idiota. O idiota sempre mudava, era de alta rotatividade. O garçom não era nada idiota, seu nome era Isake Plentis d`Oliveira.
(Fanfarras. Porém, o apresentador levanta-se e faz parar tudo.)
— Não, não valeu. Com nomes próprios não vale.
— OK, desculpe.
— Adiante!
— Então o garçom era Isake Plentis de Oliveira, conhecido por apenas por Isake. Quem ia lá era a intelectualidade da esquerda e muitas vezes éramos visitados pela polícia. Obviamente, o DOPS mantinha informantes lá.
— Sempre foi assim?
— Bem, nem sempre. No início era um bar em que as pessoas iam para conspirar ou falar de política, era também quase exclusivamente masculino. Depois, nos anos 70, as mulheres tomaram conta.
— Virou um bar de encontros?
— Não, de jeito nenhum… Foi um bar de resistência à ditadura até a metade dos anos 70, depois virou o local da esquerda festiva. Derrubávamos o governo todas as noites.
— E o que você comia lá?
— A gente comia os pratos mesmo.
(O apresentador ri e aponta para o Especialista. Seu gesto denota quão irresistivelmente engraçado é ele.)
— Os pratos eram o Robertão, o Burguês, o Vietcong e se bebia trigo velho ou batidas de côco e maracujá. Tinha chope, mas eu não tomava chope lá.
— E os outros locais?
— O Estudantil era barato e bagaceiro. As pessoas morriam no Hospital São Francisco e os parentes iam lá se embebedar. Esses momentos eram tristes. Era também o bar dos lixeiros da madrugada. Eles paravam o caminhão e o Ataliba, o garçom, servia cerveja para eles. Esse pessoal não se misturava com os intelectuais do Alaska e vice-versa.
— E o que você comia lá?
— Mulheres, porque o bar tinha dois ambientes. O da frente, com mesas, e o de trás, que era escuro e destinado ao sexo. Do amasso ao coito, podia tudo. Com o tempo, deixei de ir porque eu não era suficientemente promíscuo.
— Trepava-se com estranhos?
— Às vezes.
— E o Copa 70?
— Era um bar d`omossexuais!
(Fanfarras. O apresentador levanta-se e grita.)
— Ele acaba de ganhar mais uma caixa de nosso patrocinador, os cigarros d`Arrabalde, o cigarro d`oômem! Parabéns, Milton.
— Obrigado. Eu fiquei desligado por um tempo mas agora liguei de novo.
— Bem, podemos continuar.
— Era o bar onde a Nega Lu, que se chamava Luis Airton Bastos, fazia performances.
— Então, o que se comia lá?
— Bundas.
— Havia drogas nestes bares?
— Sim, mas o pessoal do Alaska não gostava daquilo. Elas alienavam.
— E o Marius?
— O Marius foi o último a abrir. Já era o tempo da decadência. A Universidade foi lá para o campus e o pessoal das drogas foi… foi… foi para… deixa eu fazer a frase… mais para o meio da Redenção.
— Hum, para que bar?
— O nome dele é… é. Bom, eles se tornaram o pessoal d`Ocidente.
(Fanfarras. O apresentador levanta-se e grita.)
— Ele acaba de ganhar mais uma caixa de nosso patrocinador, os cigarros d`Arrabalde, o cigarro d`oômem! Parabéns, Milton. A terceira caixa, hein?
— Obrigado. Agora tô ligado, tô ligado.
— E então?
— O grosso das pessoas foi para o Ocidente e os saudosos da Esquina Maldita acabaram no Marius.
— Bem, como já entregamos três caixas de nosso patrocinador e o Milton tem de trabalhar, encerramos aqui a entrevista. Milton, alguma coisa que queira acrescentar?
— Foi um`onra estar aqui.
(Fanfarras. O apresentador levanta-se e grita.)
— Não vale, não vale, tem que ser com “d”. Boa noite. Fim de programa.
Nos anos 1950 e 60, os gays, lésbicas, travestis e transexuais (LGBT) norte-americanos enfrentavam um sistema legal mais anti-homossexual do que os de alguns países do leste europeu. Porém, nos últimos anos da década de 60, tais políticas repressoras começaram a ser contestadas. Era uma época de mudanças e muitos movimentos sociais tornaram-se subitamente visíveis, como, por exemplo, o Movimento dos Direitos Civis Afro-americanos, a contracultura hippie e as manifestações contra a Guerra do Vietnam. Estes movimentos, juntamente com o ambiente liberal do bairro de Greenwich Village, serviram como catalisadores para os conflitos que ocorreram em Stonewall.
Os conflitos de Stonewall foram uma série de violentas manifestações protagonizadas por membros da comunidade LGBT contra uma batida policial que teve lugar nas primeiras horas da manhã de 28 de junho de 1969, no bar Stonewall Inn, na Christopher Street, no Village de Nova York. O fato é considerado um marco do movimento e, até hoje, marca o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Mas voltemos ao Stonewall.
Numa época em que poucos estabelecimentos aceitavam receber pessoas abertamente homossexuais, o Stonewall Inn era conhecido por ser popular entre as pessoas mais pobres e marginalizadas das comunidades gay e lésbica. Também era o local das drag queens, travestis, transsexuais, dos prostitutos, prostitutas e sem-teto. As batidas policiais neste gênero de estabelecimentos eram rotina nos Estados Unidos da década de 60. Durante as sessões, os frequentadores normalmente recebiam castigos físicos de forma indiscriminada, mas, naquela manhã no Stonewall, os oficiais perderam o controle da situação.
Os fatos
Toda vez que a polícia chegava próxima do bar, o porteiro dava o sinal e o barman ligava todas as luzes do teto como um sinal para que todos se preparassem. Naquele verão de 1969, as batidas policiais tornaram-se cada vez mais frequentes, porém, na noite de 28 de junho, quatro policiais à paisana tiveram acesso ao bar sem que o porteiro pudesse acionar o alerta.
Era 1h20 da madrugada quando os policiais se anunciaram. Alguns dos 200 presentes no Stonewall entraram em pânico e tentaram fugir, mas outro policiais já tinham fechado portas e janelas.
Nada saiu conforme o planejado. O procedimento padrão era o de alinhar os frequentadores a fim de verificar suas identidades. As policiais mulheres tiravam os vestidos dos clientes a fim de checarem seu sexo. Todas as drag queens, travestis e pessoas consideradas “homens caracterizados como mulheres” e vice-versa eram presas. Só que, naquela manhã, as pessoas recusaram-se a obedecer os oficiais. Ninguém quis identificar-se.
Então, a polícia decidiu levar todos para a delegacia. A drag queen Maria Ritter, que era conhecida como homem em sua família, lembrou: “Meu maior medo era de que eu ia ser presa. Meu segundo maior medo era que minha imagem sairia em um jornal ou em uma reportagem na televisão e eu estava com um vestido de minha mãe”.
A situação ficou tensa, estimulada pelo comportamento da polícia, que começou a ofender algumas lésbicas enquanto as revistavam.
Na porta do bar, uma multidão assistia à batida policial. Lá de dentro vinham sons de gritos e de prováveis espancamentos. Na verdade, o nível de confrontação no Stonewall chegara ao ponto de alguns clientes do bar começarem uma “performance” especial para os policiais. Ouviram-se aplausos vindos do bar. Quando o primeiro camburão chegou, a multidão começou a vaiar. Alguém gritou “Gay Power!”.
A batalha
O grito foi complementado por sua antítese. Um oficial saiu do bar empurrando violentamente uma travesti, que lhe respondeu com uma violenta “bolsada” em pleno rosto. Logo depois, uma mulher foi arrastada para fora do bar, reclamando que suas algemas estavam muito apertadas. O policial que a arrastava respondeu golpeando-a na cabeça com um cassetete. Ela não apenas conseguiu permanecer em pé como olhou para a multidão e gritou: “Por que vocês não fazem alguma coisa?”. Para a surpresa geral, mas principalmente da polícia, uma multidão veio em solidariedade aos habitués do Stonewall Inn. Voavam pedras, moedas e garrafas de cerveja. O escritor Edmund White, frequentador do bar, lembra que todos estavam muito agitados. “Não tínhamos slogans nem atitudes, só cerveja e uma imensa raiva”.
A multidão tentou virar o camburão. Os policiais investiram contra as pessoas, o que só serviu para incitá-las ainda mais. Rapidamente, a polícia via-se em uma luta contra aproximadamente 500 pessoas, que começaram a arremessar tijolos de uma construção próxima. Os policiais jamais imaginaram que teriam de correr para o Stonewall a fim de se protegerem dos moradores do bairro.
Das janelas dos edifícios próximos, as pessoas jogavam quaisquer objetos em chamas. Parquímetros foram arrancados da calçada para servir de aríete contra as portas dos carros policiais. Depois de 45 minutos de violenta luta, chegaram mais policiais. A ordem era de prender qualquer um, mas era quase impossível capturar alguém.
Os policiais recém-chegados foram dispostos em uma linha que impedia a saída de pessoas da confusão sem passar por eles. Então, os clientes do bar começaram a zombar deles, formando uma linha paralela que os encarava. A polícia, enfurecida, avançou, batendo no que encontrasse pela frente. Um erro. A multidão não recuou, antes respondeu virando carros e fazendo barricadas contra a polícia. Em menor número e surpreendida pelo ódio da multidão, a polícia começou a fugir. A luta continuou até às 4h da madrugada. Ninguém dormiu.
Durante toda a manhã seguinte, as pessoas visitaram o muito danificado Stonewall Inn, tentando entender o que tinha acontecido.
A noite seguinte
A notícia se espalhou e, na noite seguinte, a multidão voltou à Christopher Street em muito maior número. Alguns eram “veteranos” da noite anterior; outros eram meros turistas; e a maioria veio para brigar. O que houve foi que, pela primeira vez na história de Nova Iorque, gays trocavam carinhos a céu aberto. De mãos dadas, abraçavam-se e beijavam-se. Nada de esconderijos ou bares, nada de armários.
Quando a noite caiu em 29 de junho, a multidão ainda crescia. Então, a polícia de choque voltou. A multidão tratou de queimar cada lata de lixo, novos carros foram capotados e para-brisas quebrados. Quando alguém era levado ela polícia, a multidão recuperava rapidamente o refém. Mesmo em ruínas, o Stonewall Inn permaneceu todo o tempo aberto. A violência foi novamente até a madrugada. Mas a sensação era nova: era a de que algo tinha mudado para a comunidade LGBT.
A influência
A chuva impediu os tumultos nos dias seguintes e a vida parecia voltar ao normal, mas o movimento dos direitos dos homossexuais tinha nascido. Em 28 de junho de 1970, no aniversário do início dos motins de Stonewall, “O Dia da Libertação de Christopher Street”, foi comemorado com um desfile do Stonewall até a 6ª Avenida em direção ao Central Park. Foi a primeira Parada do Orgulho Gay na história dos EUA. Desfiles também foram realizados em Los Angeles e Chicago. Boston, Dallas, Milwaukee, Londres, Paris, Berlim Ocidental e Estocolmo seguiram o exemplo em 1971. E em 1972, Atlanta, Buffalo, Detroit, Washington, Miami, Filadélfia e San Francisco uniram-se ao movimento.
Dois anos depois do conflito, já havia organizações dos direitos dos homossexuais estabelecidas em quase todas as grandes cidades dos Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental. Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da seu manual das doenças mentais. Até hoje, a Christopher Street é considerada a “rua LGBT” de Nova York, e o Stonewall Inn recebe bandeiras de arco-íris em sua fachada para afirmar seu status de “local do nascimento do movimento moderno de libertação gay e lésbico”.
Em 1994, para marcar o 25º aniversário do episódio, o desfile de 28 de junho foi do Village em direção à sede da ONU e depois do Central Park. Estima-se que mais de um milhão de pessoas compareceram. Em 1999, o Stonewall Inn foi colocado no National Register of Historic Places. E em junho de 2011, pouco antes do 42º aniversário do conflito, o Estado de Nova Iorque legalizou o casamento gay. Milhares de pessoas acorreram a uma festa espontânea no único lugar que serviria para comemorar qualquer coisa relacionada ao Orgulho Gay: o pequeno bar em um quarteirão tranquilo de Christopher Street.
Para finalizar, uma última informação: em 76 países do mundo a homossexualidade ainda é considerada crime. Em 7 deles a pena prevista é a de morte.
Yuri Gagárin foi recebido pela Rainha Elizabeth. Foi servido chá. Gagárin viu um pedaço de limão de bobeira dentro da xícara e, absurdo dos absurdos, pescou-o com uma colher e comeu-o. Era um sinal claro do pouco convívio social do astronauta. Então a Rainha fez mesmo a fim de quebrar qualquer constrangimento. Desde aquele momento, o protocolo permite que se coma o limão que estiver boiando no chá. Até você pode fazer isso, viu? Acho que o cômico da foto é o cara à esquerda de Gagárin. Ele parece dizer baixinho: “Não faz isso, animal”. O cara da extrema direita parece assustado. O direita, o do colar ridículo, olha para alguém — talvez para a Rainha — com cara de tsc, tsc, tsc, esses comunistas das cavernas… Ah, a vida dos reis, tão espontânea!
Esse pedaço de Brasil que se convencionou chamar de Rio Grande do Sul passou por maus bocados até que seus limites se consolidassem como hoje se conhece. Em meados do Século XVIII, daria para descrever a situação como uma “zona”, em português atual. Mas sequer era o português que se falava em uma porção surpreendentemente grande de seu território.
Entre 1763 e 1776 os espanhóis, sob o comando do Governador de Buenos Aires D. Pedro de Cevallos, tomaram um belo naco do atual território gaúcho. A confusão começou a partir dos desdobramentos do Tratado de Madri (1750), em que Portugal e Espanha definiram os limites de suas colônias na América em termos mais ou menos geográficos, usando rios, serras e outros acidentes naturais como marco e seguindo o princípio do direito privado romano do utis possidetis, ita possedeatis (quem possui de fato deve possuir de direito). Neste momento, o Tratado de Tordesilhas, raro acordo em que se compartilhava algo que a rigor nem se conhecia, já virara letra morta diante da notável empreitada colonial das duas nações ibéricas.
O novo acordo previa que cada signatário manteria os territórios que então possuíssem. Só que o documento também indicava algumas exceções que incluiriam “mútuas concessões que nesse pacto se iam fazer e que em seu lugar se diriam”. Como pelo jeito nenhum lado havia ficado exatamente satisfeito com o teor do pacto, em 1761 o tratado foi revogado, mas a essa altura dos fatos não havia jeito de resolver a questão de forma pacífica.
O Tratado de Madrid determinava a troca da Colônia de Sacramento, enclave português na boca do Rio da Prata, pelo território das Missões, ainda sob domínio dos jesuítas espanhóis. A ideia parecia correta, mas portugueses e espanhóis esqueceram de combinar com os Guarani, que pelo tratado deveriam mudar de mala e cuia para a margem direita do rio Uruguai. Os Guarani não concordaram e sob o comando de Sepé Tiaraju travou-se o que a história chamou de “Guerra Guaranítica”. Desse episódio ficou a divisa “Esta terra tem dono”, hashtag avant la lettre de inegável apelo de marketing mas algo descolada da realidade, haja vista o desfecho trágico da campanha para os índios.
Embora Portugal e Espanha hajam atuado como uma força de ocupação conjunta para a expulsão dos Guarani, a união assentada em bases muito frágeis pouco durou e em 1763 os espanhóis tomaram a Colônia de Sacramento e ocuparam a vila de Rio Grande, obrigando os portugueses a se refugiarem em Viamão. Nessas circunstâncias, o domínio português se limitava à península de Mostardas ao sul e a um pedaço do vale do rio Jacuí a oeste, até a altura de Rio Pardo, posto avançado de fronteira dominado pela Fortaleza de Jesus Maria José.
Os portugueses tinham plena convicção de que o controle territorial só estaria assegurado se houvesse a ocupação efetiva das terras e desde 1747 estabeleceram-se programas de novas vilas e a migração subsidiada de casais, o que conduz essa história ao ponto que interessa neste momento e que trata da chegada de açorianos ao porto de São José do Tibiquary. Sete casais em 1760 e outros 14 casais em 1764, embora haja algumas dúvidas quanto a esses números.
Quando os açorianos chegaram, por ali já estavam dois bandeirantes paulistas desgarrados, mas o ato inaugural da povoação é de 1764, com a consagração da capela, no mesmo ano em que o Coronel José Custódio de Sá e Faria foi nomeado governador da Capitania do Rio Grande. Se hoje parece um emprego dos mais desgastantes, imagine-se naquela época.
Na metrópole o quadro tampouco era animador. Lisboa havia sido praticamente varrida do mapa pelo terremoto de 1755 e em 1760 o ouro de aluvião das Minas Gerais já havia se esgotado, cortando o fluxo de recursos que permitiu o enriquecimento de uns poucos portugueses e, diz a lenda, ajudou os ingleses a formarem uma reserva que fundou as bases do capitalismo contemporâneo e financiou a revolução industrial.
Largadas no fim do mundo português na América, a pouco mais de 50 km de seu limite efetivo, na cidade de Rio Pardo, longe e demais das preocupações mais comezinhas da corte, a chegada das famílias açorianas não deve ter sido exatamente tranquila, mesmo diante da perspectiva de habitar uma das primeiras – senão a primeira, cidade projetada do vastíssimo território lusitano da margem ocidental do Atlântico.
O Governador Sá e Faria, como sugere seu nome, faria tudo o que estivesse a seu alcance para garantir o sucesso da empreitada colonial e em carta de 10 de janeiro de 1768 ao Vice-rei, Conde de Azambuja, não só informa que o núcleo urbano já estava formado como assevera que “(…) no passo do Rio Tebiquary, fiz um grande forte de terra batida, capaz de vinte peças de artilharia.”
Os espanhóis nunca transpuseram a “tranqueira invicta” de Rio Pardo e do forte de terra batida não restou vestígio, nem mesmo na memória da grande maioria dos taquarienses. Algumas fontes chegam a duvidar de sua existência e, considerando o quadro geral, é bem possível que ninguém da corte se desse ao trabalho de confirmar a afirmação do Sr. Governador, que talvez sabedor da importância de demonstrar eficiência para a manutenção de seu posto possa ter exagerado um pouco na autopromoção em sua comunicação com o Vice-rei.
No Rio de Janeiro
Essa história agora se volta para o que foi o centro do poder colonial, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mais exatamente para o Palácio Duque de Caxias, que abriga o Comando Militar do Leste e que foi sede do Ministério da Guerra até a transferência da capital para Brasília. O edifício está na Av. Presidente Vargas, ao lado da Estação Central do Brasil. Quando de sua construção, era o maior prédio público do país e, malgrado a ironia arquitetônica, parece saído diretamente do classicismo soviético.
No vetusto QG está o “Arquivo Histórico do Exército – AHE” e após transporem-se os procedimentos regulares de identificação para o acesso a qualquer dependência militar, aguarda-se em uma sala de espera que revela que os efeitos da crise fiscal não poupou em absoluto a caserna. Cadeiras rotas, uma roleta para identificação com cartão magnético mas que tem ao lado uma soldado relativamente entediada que diz a cada um que se aproxima “é só passar direto”, lembrando sempre que é necessário manter o crachá à vista. No caso dos consulentes do arquivo histórico, é necessário aguardar que um militar desça e os acompanhe até o terceiro andar, onde está a sala de consulta. No turno da tarde, o horário para consulta é o que se pode chamar de enxuto, indo das 13h às 14:45h. Descontando-se a espera de uns vinte minutos pelo militar acompanhante, nesta tarde chuvosa de agosto restaria pouco mais de uma hora para o que se pretende fazer.
Ali, na primeira visita ao acervo, é necessário aguardar o oficial responsável, um simpático e amabilíssimo capitão em trajes civis, que pede que seja novamente identificado o material que se pretende consultar e se preencha uma ficha, embora uma versão já tenha sido enviada anteriormente, quando se fez o primeiro contato necessário ao procedimento de consulta.
Uma dúvida quanto ao teor do que está sendo buscado faz com que o capitão conduza o ansioso pesquisador até uma outra sala e, confirmado o conteúdo, o código de catalogação é anotado em uma ficha que é repassada a outro militar, responsável por buscar o material na mapoteca, que está em outro local do gigantesco complexo. No presente caso era assim: 5 RS 07.03.1480 e 5 RS 07.04.1593.
Mais uma espera, os minutos escoando inapelavelmente, até que duas pastas de cartolina grossa são depositadas sobre a mesa em que se daria a consulta. As pastas são do tamanho exato de seu conteúdo e minuciosamente vedadas com fita adesiva marrom, com a exceção da abertura por onde se retira o material que se pretende analisar.
É uma sensação inusitada. As mãos suam dentro das luvas de vinil e as têmporas vibram um tom acima do normal. De dentro de duas saem a “Planta da Villa de S. Joze que novamente se erige na margem oriental do rio Tabiquary (sic)” e o “Projecto para o Forte do Paso do Rio Tibiquary”. O papel amarelado, algumas marcas, letras manuscritas, o desgaste implacável do tempo, os traços precisos e refinados ali, ao seu inteiro dispor, em um quartel no Rio de Janeiro. Por onde passaram em um quarto de milênio? Quantos taquarienses um dia tiveram essas duas folha de papel em suas mãos? O que se sabe exatamente de tudo isso?
O exército não dispõe de estrutura para a digitalização e a remoção das obras das dependências do AHE nem se cogita. Resta a possibilidade de fotografar e manusear o fantástico material, virar do avesso, tentar entender cada minúcia antes que a sensação única que esse contato permite se perca nos desvãos da memória, nos minutos que restam até o encerramento do horário de consulta.
A Planta da Villa tem 39,5 x 27,5 cm e está emoldurada como um quadro, em um paspatur azul de papel grosso, sem que se veja seu verso. O subtítulo já desperta uma curiosidade que se prevê insaciável. Como assim, “que novamente se erige”? A cidade alta e planejada se contrapunha à ocupação espontânea que teve início junto à foz do arroio Tinguité?
A planta mostra um pedaço da cidade que qualquer um que a conheça identifica à primeira vista. A igreja, a praça e o traçado ortogonal das ruas do entorno, embora se perceba que os povoadores não tomaram a planta ao pé da letra. Há uma estreita “rua para serventia dos quintais” nos fundos da primeira linha de casas perpendiculares à praça que provavelmente foi incorporada aos terrenos ali implantados. Estão também indicadas as “cazas para o vigário” e as “cazas para câmara quando a houver”, uma de cada lado da igreja. Uma cidade nascendo antes mesmo de ter o poder legislativo constituído, antes ainda da Revolução Francesa e da popularização da ideia de separação dos poderes.
Há também a indicação da posição de “Praça para Pelourinho” que se um dia houve foi absorvida pela malha urbana. A cidade colonial evolui engolindo seu passado, mesmo que muitas vezes ele a assombre de uma forma ou de outra.
Na porção inferior da planta encontra-se ainda um “prospecto de hua ilha de cazas para quatro moradores com MN.”, que indica um conjunto de quatro unidades habitacionais que configurariam a frente das quadras desenhadas acima. O padrão janela-porta-janela, o telhado em quatro águas e a cumeeira paralela à rua trazem para os confins da América um pouco de geografia urbana dos açores, revelando a preocupação de quem as projetou de oferecer a seus futuros moradores um espaço algo familiar, ainda que do outro lado do mundo.
Já o “Projecto para o Forte do Paso do Rio Tibiquary”, um retângulo de 43 x 28 cm de uma beleza delicada e repleta de detalhes que revelam claramente a preocupação estética do autor, além dos objetivos defensivos que levaram à sua confecção. Há uma rigidez militar na simetria do polígono forte, apesar das marcadas diferenças entre sua parte frontal e a retaguarda.
É visível o cuidado extremado do autor no acabamento, no sombreamento que sugere a declividade dos talude, no marrom mais claro do fosso, na precisão milimétrica do desenho das baterias e na ornamentação da barranca do rio, onde se veem tufos de vegetação herbácea, o que sugere tratar-se de um sítio já plenamente conquistado, onde a vegetação ciliar já fora previamente removida.
O corte apresentado na direita do projeto permite que se tenha uma ideia da robustez pretendida para a fortificação, embora uma estrutura de terra batida junto à linha d’água pareça algo temerário. Ou quem sabe nesse tempo as cabeceiras virgens do rio enorme atenuassem as grandes cheias que causariam transtornos tantos anos depois?
A tinta usada para colorir o rio deve haver afetado o papel de uma forma distinta do resto do documento, e ali o papel está muito fragilizado, com algumas rupturas e a perda de fragmentos. Todo o documento apresenta marcas de desgaste, com alguns vincos acentuados que dão uma ideia das voltas que pode ter dado até repousar na gaveta de uma mapoteca no centro do Rio de Janeiro.
No extremo superior do projeto, no talude à direita da ponte se vê um elemento curioso, que não se repete em nenhum outro ponto da área fortificada. Ali, serpenteiam duas linhas paralelas que parecem indicar a presença de um curso d’água, um arroio ou uma sanga que quem sabe alimentaria o fosso ou mesmo poderia abastecer de água a guarnição ali instalada, em caso de cerco.
Não há uma rosa-dos-ventos ou um sistema de coordenadas para indicar a posição da estrutura no terreno, mas uma olhada rápida no Google Earth permite que se suponha que o projeto esteja orientado como um mapa, com o norte para cima. O rio Taquari, cujo traçado se orienta no sentido norte-sul de Muçum até encontrar o Jacuí Triunfo, do arroio Tinguité ao passo e na escadaria do porto está orientado de oeste para leste, com a margem esquerda exatamente na mesma posição em que se apresenta no desenho, em um claro indício quanto à localização exata do forte. Se um dia efetivamente existiu, é uma outra conversa.
Contrariando as palavras do Governador Sá e Faria na carta ao Vice-Rei, ao invés de vinte baterias a estrutura do forte indica o posicionamento de dezoito e sua disposição não deixa dúvida quanto à preocupação defensiva. Desses dezoito espaços previstos para a colocação dos canhões, doze estão voltadas para o rio, na parte inferior do projeto. Outros quatro se dirigem aos flancos da estrutura e somente dois guarnecem a retaguarda voltada para a cidade alta e onde se localiza a ponte de acesso ao forte, sobre o fosso, esse, por sua vez, com profundidade suficiente para dificultar qualquer tentativa de escalada.
Além da diferença no número de canhões do desenho do forte e da carta do Governador, outros detalhes reforçam a aura de suspeição que paira sobre sua existência. Nas convenções da época, em vermelho estariam representadas as estruturas já existentes e o amarelo indicaria algo em planejamento ou projetado. Na porção central do desenho, à esquerda, se vê um pequeno retângulo em vermelho, com um detalhe em preto que a primeira vista se parece a uma cruz, mas que também pode ser interpretado como um canhão. Uma única peça em posição mais elevada, quiçá precursora de uma estrutura que pode nunca ter sido efetivamente erigida.
Até onde se sabe, o projeto do forte seria de autoria do próprio Governador, formado em engenharia e arquitetura na Academia Militar das Fortificações de Portugal, em 1745. Sá e Faria foi enviado ao Brasil como membro da Comissão Demarcadora que iria estabelecer os limites das possessões de Portugal e Espanha na América e sua nomeação como Governador, em 1764, está diretamente relacionada à necessidade de reforçar as defesas do território gaúcho por conta da invasão castelhana, posto que deixou em 1769 para regressar ao Rio de Janeiro onde, entre outras tarefas, idealizou o projeto da Fortaleza da Ilha das Cobras.
Apesar da autoria atribuída à Sá e Faria, no canto inferior direito do projeto se lê “pelo Sargento Mor Manoel Vieira Leão”, segundo consta responsável pela construção do forte. Seria dele também a “Planta da Villa”, embora essa informação não conste de seu desenho. O destino desses dois militares cuja presença no território sul-rio-grandense deixou tantas marcas ficou, no entanto, muito distante das glórias que lhes pareciam reservadas diante da importância dos serviços prestados.
Em 1776 os dois estavam no Rio de Janeiro, o Governador Sá e Faria promovido a Brigadeiro e Manoel Leão com o posto de Major, quando foram enviados para Santa Catarina, para organizar as defesas da ilha para conter a iminente tentativa de invasão pelos espanhóis, novamente sob o comando do já notório D. Pedro de Cevallos, agora Vice-rei do Rio da Prata e que desde 1763 andava assombrando as posições portuguesas no sul do Brasil.
Quando os espanhóis tomaram a ilha de Santa Catarina em 1777, coube ao Brigadeiro Sá e Faria negociar os termos da rendição da guarnição portuguesa. Surpreendentemente, de lá partiu com Cevallos para Buenos Aires de onde nunca mais voltou, tendo sido figura de destaque no urbanismo da região, com projetos tanto na capital do Vice-reino como em Montevidéu, Colônia e Maldonado. Viveu o resto de seus dias na Argentina e está enterrado no Convento de Santo Domingo, em Buenos Aires, com o nome castelhano de José Custodio de Sáa y Faria.
Já seu subordinado Manoel Leão teve pior sorte e foi levado preso ao Rio de Janeiro, acusado, juntamente com outros oficiais, de leniência na defesa da ilha de Santa Catarina. Em 1780 teria sido transferido para Lisboa para o cumprimento da sentença até 1786, quando a Rainha D. Maria I o perdoa de todas as acusações e ordena que seja reformado no posto de Major.
Um detalhe curioso é observado na margem inferior, no verso do projeto. Em letra perfeitamente legível está a seguinte indicação “Fortaleza de Taramandahí – Tibiquarí”, no que parece ser um equívoco fixado para sempre do responsável pela catalogação do projeto em algum momento de sua larga trajetória por arquivos militares. A cor da tinta é distinta da que foi usada no lado frontal e a grafia da palavra que corrige o erro é distinta do título que se lê no título do documento (Tibiquarí x Tibiquary).
Não há qualquer indicação de data em nenhum dos dois documentos é muito provável que tenham sido confeccionados em período muito próximo, o que corroboraria o notável esforço empreendido pela coroa portuguesa para a implantação do núcleo urbano perdido nos confins de seu território ultramarino e para sua proteção.
Em qualquer lugar
Três minutos antes do horário marcado, o capitão entra na sala dos pesquisadores e em tom bonachão vai dizendo “bom, todos os mapas já foram vistos e fotografados…” e deixa efetivamente as reticências no ar, enquanto o militar encarregado do transporte de volta para a mapoteca gentilmente ajuda a recolocar o material em seus envelopes e logo desaparece com eles debaixo do braço.
A “Planta da Villa’ e o “Projecto para o Forte” voltarão a repousar em uma sala gelada, a espera de alguém um dia volte a manuseá-los, ou quem sabe até que haja condições para sua digitalização e que a possibilidade de ao menos vê-los no esplendor de seus detalhes esteja ao alcance de qualquer um que se disponha a procurá-los.
A Carta de Pero Vaz de Caminha, a partir da qual se dá a construção da ideia de Brasil, mesmo antes de haver qualquer certeza sobre a real extensão do achamento relatado, está depositada no Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Lisboa, e com meia dúzia de cliques é possível ver cada uma de suas página na tela de um computador.
Os documentos sob a guarda do exército brasileiro num quartel no centro do Rio de Janeiro são admiráveis. Neles ainda se percebe o admirável de Portugal, dois séculos e meio depois daquela carta inaugural, para garantir a soberania sobre um pedaço de terra no fim do fundo da América do Sul, identificando Taquari como um local chave para suas pretensões, a tal ponto de prever uma ocupação planejada de sua parte alta e a construção de um forte capaz de deter o invasor espanhol na hipótese, naquele momento bastante plausível, de ele transpor a posição defensiva de Rio Pardo.
Taquari tem o direito a ter acesso, ainda que virtual, a esses documentos fundadores de sua história e que, guardados numa gaveta anônima, são simplesmente desconhecidos da grande maioria de seus cidadãos.
Um incêndio consumiu quase todo o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Há apenas dois meses, a instituição tinha comemorado os 200 anos de sua criação.
O Museu foi fundado por Dom João VI em 1818 e possuía o quinto maior acervo do mundo, com mais de 20 milhões de peças, e era referência para pesquisadores de várias áreas. Suas obras contavam uma parte importante da história antropológica e científica da humanidade.
Lá estava o fóssil — com mais de 11 mil anos — de Luzia, a mulher mais antiga das Américas, cuja descoberta nos anos 1970 alterou todas as pesquisas sobre a ocupação da região.
Também havia a reconstrução do esqueleto do Angaturama Limai, o maior dinossauro carnívoro brasileiro, com quase todas as peças originais, algumas com 110 milhões de anos.
Foi queimado igualmente o sarcófago da sacerdotisa Sha-amun-em-su, mumificada há 2.700 anos e presenteada a Dom Pedro 2º em 1876, e que nunca tinha sido aberto. A coleção de múmias egípcias e a de vasos gregos e etruscos evidenciam o perfil mundial do acervo, que também abrigava o maior conjunto de meteoritos da América Latina.
Porém Bendegó, o maior meteorito já encontrado no país com mais de 5 toneladas, sobreviveu intacto.
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O Museu Nacional encontrava-se sob a guarda da UFRJ, ou seja, sofrendo com os cortes da Educação, recebendo apenas R$ 13.000 de manutenção mensal para seus 20 milhões de itens de História e Arte brasileira. Não me digam que o incêndio de hoje não é resultado das políticas da quadrilha — com Supremo, com tudo — que atualmente ocupa o Planalto, que não é resultado do Centrão que está destruindo o país há bem mais de um governo. Claro, o governo anterior igualmente não tratou nada bem a cultura — imaginem que o Museu teve de fechar as portas, em 2015, por falta de verbas para o pagamento dos funcionários, em pleno governo Dilma. Mas é agora que se orquestra um grande ataque à cultura. Os governos estaduais e municipais começaram a combater o meio cultural do país que não os apoia. Sartori e Marchezan estão fazendo o seu tanto do RS e em Porto Alegre, assim como Pezão e Crivella no RJ.
Aliás, no mesmo sentido, Bolsonaro defende a extinção do Ministério da Cultura… Ele pensa que uma secretaria seria o suficiente para tratar do assunto.
Vejamos: em 2014, ano em que as atenções estavam voltadas para as arenas da Copa do Mundo, foram repassados apenas R$ 427 mil para o Museu. Em 2015 foi ainda pior: R$ 257 mil. Subiu um pouco em 2016, R$ 415 mil. No ano passado, foram 246 mil e agora, no ano do bicentenário, somente R$ 54 mil. A estrutura apresentava sinais visíveis de má conservação, como fios elétricos expostos e paredes desencascadas, rachaduras na estrutura, sem falar na falta de dispositivos anti-incêndio. A Petrobras, através da Lei Rouanet, ajudou a manter o museu até a Lava a Jato. Com a crise da empresa, cessou o patrocínio.
Bem, o dinheiro destinado para a manutenção do Museu Nacional era equivalente a 10 auxílios-moradia do Judiciário. Agora, nem precisam mais ter esse gasto. Me apavora o fato de que o Theatro Municipal, o MAM, o Jardim Botânico, o Real Gabinete Português, a Biblioteca Nacional, etc., — para não falar em instituições de outros estados –, estejam sob as mãos de governantes como os nossos. Já o STF e o Congresso Nacional devem estar limpíssimos e conservadíssimos, ao menos seus prédios.
Em vida, Haydn foi considerado um grande revolucionário. Ele, com Mozart (de quem era amigo) e Beethoven (de quem foi professor) formam o trio mais representativo do classicismo musical. Haydn nasceu em 1732 e morreu em 31 de maio de 1809. Sua obra é enorme. Compôs 104 Sinfonias e inúmeros quartetos e outras peças. E nada é curtinho ou mal feito, muito pelo contrário. O cara era um grande talento, como hoje podemos comprovar em milhares de concertos e gravações.
A partir da data de sua morte, em 1809, seu crânio (imagem acima) seguiu por surpreendentes caminhos. Haydn foi inicialmente enterrado no cemitério de Hundstaurm, mas pouco depois o administrador da prisão local, Johann Peter, e o secretário do príncipe Esterházy, Carl Rosenbaum, subornaram um coveiro e conseguiram exumar o cadáver para remover sua cabeça. Esses dois homens acreditavam ao pé da letra na frenologia, “ciência” que dizia que todas as habilidades e sentidos, em particular o sentido da música e da harmonia, residiam no formato do crânio. Haydn era pois uma cabeça a ser conquistada e analisada detidamente. A dupla pensou que naquele crânio poderiam encontrar os segredos de uma mente tão capaz, genial para a composição musical.
E eles estudaram e estudaram o crânio de Haydn sem chegarem a nenhuma conclusão. Bem, em 1820, o príncipe Esterházy, da família que empregara Haydn por décadas, desejou enviar os restos do compositor para outro momento cemitério mais nobre. Foi quando descobriram que lhe faltava a cabeça. Os primeiros acusados foram justamente Rosenbaum e Peter, que devolveram rapidamente o crânio. Então os restos mortais de Haydn puderam ser transferidos para o cemitério de Eisenstadt, onde foram enterrados.
Só que eles devolveram um crânio qualquer, não o de Haydn. Após a morte de Rosenbaum em 1828, a cabeça autêntica foi entregue a Peter, que fez questão de estabelecer em testamento que a cabeça de Haydn deveria ser entregue, após sua morte, para a Sociedade de Amigos da Música de Viena.
E Peter morreu, claro — afinal estamos narrando coisas do século XIX em pleno século XXI. Só que, após a entrega da cabeça por parte da viúva, um certo Dr. Halle, membro desta Sociedade, vendeu o crânio ao professor de patologia Carl Von Rokitansky, que trabalhava no Instituto de Anatomia de Viena. Mais frenologia.
Com a morte de Rokitansky, seus parentes devolveram a cabeça para a Sociedade de Amigos da Música de Viena. Imaginem que a sociedade ficou com ela até 1954. Neste ano foi construído um mausoléu para o compositor e os construtores entraram em acordo com o cemitério de Eisenstadt e a Sociedade de Amigos da Música de Viena para enfim fazerem o grande reencontro entre cabeça e corpo. Estudos científicos determinaram há poucos anos que a ossada confere. Tudo ali é Haydn. Ou ao menos é tudo a mesma pessoa.
“Planeta ou plástico?” A capa da nova edição da revista National Geographic é impactante: traz um saco plástico como iceberg. Nos EUA, no Reino Unido e na Índia, os exemplares serão enviados aos assinantes embalados em papel — o objetivo é que isso aconteça no mundo todo, com todas as edições, até o final de 2019. A revista também está ‘poluindo’ seu feed do Instagram para que os seus 88 milhões de seguidores vejam fotos dramáticas da poluição por plástico pelo mundo. As ações são apenas o início de uma campanha que deve durar anos. “A crise do plástico não foi criada da noite para o dia e não será resolvida assim. Como a marca mais seguida no Instagram e uma empresa de mídia global que atinge consumidores em 172 países, queremos usar nosso alcance para impactar e reunir nossos públicos para resolver desafios globais como a crise dos plásticos”, explicou a diretora de marketing da National Geographic Partners, Jill Cress.
Ontem, publiquei as duas imagens abaixo no meu perfil do Facebook. Vieram tantas pessoas comentar que acho melhor salvar as propagandas aqui. Ambas são dos anos 70 e são reais.
Parte do texto diz: “A melhor maneira de combater o sistema é estar por dentro dele. Comece sua luta comprando um conjunto de som da gradiente. Os amplificadores […] são produzidos por um grupo de capitalistas extremamente lúcidos. Que sabe que a procura só é boa quando a oferta é muito boa. Por isso, há mais de 12 anos eles produzem equipamentos de som que oferecem o máximo de fidelidade que um contestador pode exigir (você ouve o Dylan gravado ao vivo como quem está vendo ao vivo; o Belchior gravado como quem está no estúdio). E oferecem também uma rede de revendedores com os melhores planos de pagamento do mundo ocidental. Compre […] para ouvir com perfeição as denúncias graves, médias ou agudas dos seus cantores de protesto preferidos. Quem sabe até você acaba chegando à conclusão de que a sociedade de consumo não é tão ruim assim.”
Como disse um amaigo no Face, “Não parecem Dina Sfat e Zé Rodrix?”.
Fui dar uma olhada na repercussão. O primeiro comentário chamava Catherine Deneuve de senil. Caí fora.
Alguns trechos antes do texto completo.
“é a característica do puritanismo pedir emprestado, em nome do bem chamado bem geral, os argumentos da proteção das mulheres e sua emancipação para melhor vinculá-los ao status de vítimas eternas”
“Hoje somos alertadas para admitir que o desejo sexual é, por natureza, ofensivo e selvagem,”
“somos lúcidas o suficiente para não confundir uma investida inconveniente com um estupro.”
“Como mulheres, não nos reconhecemos neste feminismo que, além das denúncias dos abusos de poder, adquire uma face de ódio aos homens e sua sexualidade”
Esta “ânsia de enviar “porcos” ao matadouro”, apenas por terem tocado um joelho, tentado roubar um beijo” ou “falar de coisas ‘íntimas’ em um jantar profissional”.
As mulheres, segundo elas, podem “lutar pela igualdade salarial, mas não devem traumatizar-se por causa de importunadores no metrô, mesmo se isso é considerado um delito. As mulheres deveriam ver isso como a expressão de uma grande miséria sexual.”
O texto completo:
DEFENDEMOS A LIBERDADE DE IMPORTUNAR, INDISPENSÁVEL À LIBERDADE SEXUAL
Em texto publicado no “Le Monde”, um coletivo de 100 mulheres, incluindo Catherine Millet, Ingrid Caven e Catherine Deneuve, afirma sua rejeição a um certo feminismo que expressa um “ódio aos homens”.
“Na sequência do caso de Weinstein, houve uma consciência legítima da violência sexual contra as mulheres, particularmente no local de trabalho onde alguns homens abusam do seu poder. Ela era necessária. Mas essa libertação do discurso torna hoje o seu oposto: somos intimadas a falar corretamente, silenciar o que incomoda e aquelas que se recusam a cumprir tais injunções são consideradas traidoras, cúmplices!
“Mas é característico do puritanismo pedir emprestado, em nome de um suposto bem geral, os argumentos da proteção das mulheres e sua emancipação para melhor vinculá-las ao status de vítimas eternas, coitadinhas sob a influência dos falocratas demoníacos, como nos bons velhos tempos da feitiçaria.
Delações e acusações
“De fato, #metoo iniciou na imprensa e nas redes sociais uma campanha de denúncia e acusação pública de indivíduos que, sem ter a oportunidade de responder ou se defenderem, foram colocados exatamente no mesmo nível que os agressores sexuais. Esta justiça expeditiva já tem suas vítimas, homens impedidos do exercício de sua profissão, obrigados a demitir-se, etc., quando seu único erro foi terem tocado um joelho, tentado roubar um beijo, falado sobre coisas “íntimas” em um jantar de negócios ou enviado mensagens sexualmente explícitas para uma mulher com a qual a atração não era recíproca.
“Essa febre de enviar “porcos” ao matadouro, longe de ajudar as mulheres a se emancipar, na verdade serve aos interesses dos inimigos da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores reacionários e daqueles que acreditam, em nome de uma concepção substancial do bem e da moral vitoriana que o acompanha, que as mulheres são seres “à parte”, crianças com rosto de adulto, exigindo proteção.
“Diante disso, os homens são convocados a vencer sua culpa e encontrar, no fundo de sua consciência retrospectiva, um “comportamento mal colocado” que eles poderiam ter tido dez, vinte ou trinta anos atrás, e dos quais eles deveriam se arrepender. É a confissão pública, a incursão de promotores autoproclamados na esfera privada, que instaura um certo clima de sociedade totalitária.
“A onda purificatória parece não ter limites. Aqui, censuramos um nu de Egon Schiele em um cartaz; ali pedimos a remoção de uma pintura de Balthus de um museu com base em que seria uma apologia à pedofilia; na confusão do homem e da obra, pedimos a proibição da retrospectiva Roman Polanski na Cinémathèque e obtemos o adiamento daquela dedicada a Jean-Claude Brisseau. Uma acadêmica considera o filme de Michelangelo Antonioni Blow Up “misógino” e “inaceitável”. À luz deste revisionismo, John Ford (The Prisoner of the Desert), e até mesmo Nicolas Poussin (The Abduction of the Sabines) não estão numa situação melhor.
“Alguns editores já estão pedindo a algumas de nós que façamos nossos personagens masculinos menos “sexistas”, que falemos sobre sexualidade e amor com menos desmedida ou ainda que deixemos o “trauma sofrido pelas personagens femininas” mais óbvio! À beira do ridículo, um projeto de lei na Suécia quer impor um consentimento explicitamente notificado a qualquer candidato para relações sexuais! Só mais um esforço e dois adultos que quiserem dormir juntos deverão preencher via um “App” em seu telefone celular um documento em que as práticas que eles aceitam e aquelas que eles recusam serão devidamente listados.
Indispensável liberdade de ofender
“Ruwen Ogien defendeu uma liberdade de ofender indispensável à criação artística. Do mesmo modo, defendemos a liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual. Somos hoje suficientemente conscientes para para admitir que a pulsão sexual é por natureza ofensiva e selvagem, mas também somos suficientemente clarividentes para não confundir paquera desajeitada e assédio sexual.
“Acima de tudo, temos consciência que a pessoa humana não é monolítica: uma mulher pode, no mesmo dia, liderar uma equipe profissional e gostar de ser o objeto sexual de um homem, sem ser uma “vagabunda” ou uma vil cúmplice do patriarcado. Ela pode cuidar para que seu salário seja igual ao de um homem, mas não se sentir traumatizada para sempre por um esfregador no metrô, mesmo que isso seja considerado um delito. Ela pode até mesmo considerar isso como a expressão de uma grande miséria sexual, como um não-evento.
“Como mulheres, não nos reconhecemos neste feminismo que, além da denúncia de abusos de poder, toma forma de ódio aos homens e à sexualidade. Acreditamos que a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não existe sem a liberdade de importunar. E consideramos que é preciso saber responder a essa liberdade de importunar de outra forma que se encerrando no papel de presa.
“Para aquelas de nós que escolhemos ter filhos, sentimos que é mais sensato criar nossas filhas de modo que sejam suficientemente informadas e conscientes para viver suas vidas sem se deixar intimidar ou culpabilizar.
“Os acidentes que podem tocar o corpo de uma mulher não atingem necessariamente sua dignidade e não devem, por mais difíceis que possam ser, necessariamente torná-la uma vítima perpétua. Porque não somos redutíveis ao nosso corpo. Nossa liberdade interior é inviolável. E essa liberdade que estimamos não vem sem riscos ou responsabilidades.”
As redatoras deste texto são: Sarah Chiche (escritora, psicóloga clínica e psicanalista), Catherine Millet (crítica de arte, escritora), Catherine Robbe-Grillet (atriz e escritora), Peggy Sastre (autora, jornalista e tradutora), Abnousse Shalmani (escritora e jornalista).
Assinam também: Kathy Alliou (curadora), Marie-Laure Bernadac (curadora geral honorária), Stephanie Blake (autora de livros infantis), Ingrid Caven (atriz e cantora), Catherine Deneuve (atriz), Gloria Friedmann (artista visual), Cécile Guilbert (escritora), Brigitte Jaques-Wajeman (diretora), Claudine Junien (geneticista), Brigitte Lahaie (atriz e apresentadora de rádio), Elisabeth Lévy (editora-chefe da Causeur), Joëlle Losfeld (editora) Sophie de Menthon (presidente do movimento ETHIC), Marie Sellier (autora, presidente da Société des gens de lettres).
Tradução livre (*) a partir de uma postagem em russo
da psicóloga e escritora Nuné Barseghyan.
Quinhentos anos da Reforma. Obrigado, Lutero, pelo dia de folga.
Todos sabem que Lutero contribuiu para a saída de um grande número de freiras dos conventos, mas não com a finalidade de que estas caíssem numa vida dissoluta, e sim para que tivessem uma vida honesta, centrada na Religião e dentro do permitido pelas Escrituras. A intenção era a de que elas seguissem se desenvolvendo espiritualmente.
Mas o mundo, há quinhentos anos atrás, era um lugar muito pior, mesmo que seja difícil acreditar. Na época, ninguém era punido por abuso sexual, pois o fato era considerado corriqueiro, normal. E uma mulher que vivia sozinha, convidava e apontava o caminho para o abuso.
E as pobres freiras tinham que casar. Caso contrário, não poderiam sobreviver honestamente.
Uma freira chamada Catarina, que foi provavelmente colocada na Roda dos Expostos, entregue a um convento a fim de que a família se livrasse de uma boca supérflua, não queria se casar de jeito nenhum. Na opinião de alguém que era freira por convicção, o casamento era um terrível erro. Como se não bastasse, ninguém queria se casar com ela por ela ter um rosto feio.
Ela ficou ainda muito tempo sozinha, então Lutero pediu-a em casamento. Ele era um celibatário convicto, mas decidiu salvar a mulher. O casamento foi muito feliz, como sabemos.
Mas nem todo mundo sabe que Lutero, nesta sociedade machista, estava um dia sentado entre homens em uma mesa discutindo todo o tipo de questões prementes relativas à Reforma Religiosa, quando, repentinamente, num ato desafiador e após ouvir todos os colegas homens, voltou-se para a esposa, que servia à mesa, e perguntou: “O que você pensa sobre isso, Frau Luther?”
Frau Luther deu sua opinião detalhadamente, tendo deixado o grupo estupefato. Todos ficaram em transe, impossível imaginar um choque maior. Como assim? Desde quando se ouve uma mulher?
Mas então o Lutero deu o tiro de misericórdia: “Sente-se conosco à mesa para o almoço, querida!”
Se não fosse o próprio Lutero, talvez os homens o agredissem, tamanho o absurdo da atitude. Era um tremendo acinte, uma enorme provocação aos outros comensais.
Eu hoje estou pessoalmente muito agradecida a ele. Posso viver sozinha, sem precisar de autorização. Ninguém acha isso inadequado ou incomum.