Em 1988, Akira Kurosawa saudava Bergman por seus 70 anos

Em 1988, Akira Kurosawa saudava Bergman por seus 70 anos

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Pedaços de textos sobre Bergman que estavam há anos nos rascunhos do blog

Pedaços de textos sobre Bergman que estavam há anos nos rascunhos do blog

Como Virginia Woolf e James Joyce na literatura, Ingmar Bergman se esforçou para capturar e iluminar o mistério, o êxtase e a plenitude da vida, concentrando-se na consciência individual e nos momentos essenciais.

Bergman e Bengt Ekerot (a morte) durante as filmagens de O Sétimo Selo
Bergman e Bengt Ekerot (a morte) durante as filmagens de O Sétimo Selo

Post que escrevi em 12/07/2003:

Depois de declarar uma aposentadoria meio falsa, pois permanecia parindo roteiros e outros trabalhos, Ingmar Bergman confessou:

Não teve jeito, anos atrás fiz uma descoberta devastadora: eu estava grávido! Dentro de mim estava crescendo e chutando um filme. Era impressionante e inesperado como o episódio de Sara na Bíblia, que engravida aos 89 anos. Depois do período de náuseas pela manhã, acabei gostando da idéia.

Bergman, que completa 85 anos na próxima segunda-feira, estreará seu novo filme, chamado Sarabanda, no Festival de Veneza, ao final de agosto. Outra boa notícia: suas filhas Eva e Linn estão organizando os arquivos pessoais do mestre para disponibilizá-los na Internet.

Ingmar Bergman e seu fotógrafo de sempre, Sven Nykvist
Ingmar Bergman e seu fotógrafo de sempre, Sven Nykvist

Em 30/07/2007:

Após produtiva existência, faleceu hoje pela manhã o maior diretor e autor de cinema de todos os tempos, Ingmar Bergman. O anúncio foi feito pelo Real Teatro Dramático da Suécia. Ele morreu em sua casa, em Faro. Pior notícia é difícil.

Nascido a 14 de Julho de 1918 em Uppsala, a norte de Estocolmo, Ingmar Bergman realizou ao longo da sua extensa carreira mais de 40 filmes, entre os quais se destacam Mônica e o Desejo (1951), “O Sétimo Selo” (1956), “Morangos Silvestres” (1957), “O Rosto” (1958), “Persona” (1966), “Gritos e Sussurros” (1972), “Sonata do Outono” (1978), “Fanny e Alexander” (1982) e “Sarabanda” (2003), além do esplêndido roteiro de “Infiel” (2000), de Liv Ullmann.

O cinema de Bergman vai muito além da simples diversão ou deleite, ele desperta reflexões sobre a vida, suas representações e o próprio homem. Eram os atores quem faziam os filmes de Bergman, eram eles quem davam vida a seus filmes e poderíamos dizer que eram suas feições a razão de seus filmes.

Além da sua obra cinematográfica, Bergman foi durante toda a vida um homem de teatro, tendo encenado numerosas peças, nomeadamente as do seu ídolo de juventude, August Strindberg. Foi no entanto o cinema o seu meio de expressão de eleição. “Fazer filmes é para mim um instinto, uma necessidade como comer, beber ou amar”, declarou em 1945.

Cineasta das mulheres, como alguns o consideravam, proporcionará os melhores papéis a atrizes como Maj Britt Nilsson, Harriet Andersson, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Eva Dahlbeck, Ulla Jacobsson e Liv Ullmann. Teve casos amorosos com várias das suas atrizes, casou-se cinco vezes e teve nove filhos.

Que o cinema seja o meio que me expresso é absolutamente natural. Fiz-me compreender numa língua que passava ao lado da palavra de que carecia, da música que não sabia tocar, da pintura que me deixava indiferente. Subitamente tive a possibilidade de me corresponder com o mundo numa linguagem que literalmente fala da alma para a alma, em termos que, quase de maneira voluptuosa, escapam ao controle do intelecto.

Filmografia principal:

2003 – Sarabanda
1986 – Documentário sobre Fanny and Alexander
1984 – Depois do ensaio
1982 – Fanny e Alexander
1980 – Da vida das marionetes
1978 – Sonata do outono
1977 – O ovo da serpente
1976 – Face a face
1974 – A flauta mágica
1973 – Cenas de um casamento
1972 – Gritos e sussurros
1971 – A hora do amor
1969 – O rito
1969 – A paixão de Ana
1968 – Vergonha
1968 – A hora do lobo
1966 – Persona (Quando duas mulheres pecam)
1964 – Para não falar de todas essas mulheres
1963 – O silêncio
1962 – Luz de inverno
1961 – Através de um espelho
1959 – A fonte da donzela
1958 – O rosto
1957 – Morangos silvestres
1956 – O sétimo selo
1955 – Sorrisos de uma noite de amor
1955 – Sonhos de mulheres
1953 – Noites de circo
1952 – Mônica e o desejo
1952 – Quando as mulheres esperam
1949 – Prisão
1948 – Música na noite
1946 – Chove em nosso amor
1945 – Crise

Ingmar Bergman

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Vá e Veja ou Onde o clássico de Klímov visita O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

Vá e Veja ou Onde o clássico de Klímov visita O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

Quando abriu o quarto selo, ouviu a voz da quarta criatura dizer: Vá e veja! E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava montado nele chamava-se Morte; e o Inferno seguia com ele; e foi-lhe dada autoridade sobre a quarta parte da terra, para matar com a espada, e com a fome, e com a peste, e com as feras da terra.”

Apocalipse 6:7,8

Elem Klímov
Elem Klímov

Antes de morrer, em 2003, o cineasta Elem Klímov, ao comentar sua obra-prima Vá e Veja, afirmou que seu objetivo não era contar uma história, mas mergulhar nas memórias de infância e tentar comunicar à platéia o assombro e a confusão de sentimentos que experimentou, enquanto a família tentava escapar da ofensiva alemã na Bielorrússia em 1941.

Custei a descobrir o motivo do estranho título Vá e Veja — na minha opinião, o melhor e mais humano filme de guerra de todos os tempos. O título é, de alguma forma, irmão de O Sétimo Selo de Ingmar Bergman. Sim, pois é. E Gritos e Sussurros, também de Bergman, guarda parentesco com As Três Irmãs de Anton Tchekhov. Mas vou tentar explicar o curioso diálogo cultural travado por Klímov e Bergman..

Os Sete Selos é um conceito que vem do Livro do Apocalipse da Bíblia cristã, onde um livro com sete selos é descrito. Estes são abertos pelo Leão de Judá. O Apocalipse 5:5 diz: “E um dos anciões disse: Não chores. Eis que o Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, venceu para abrir o livro e desatar os sete selos“.

E os sete selos foram abertos, um por um. O efeito de cada um deles é aterrador, até que é aberto o selo final, o sétimo.

Vá e Veja(1985)O Quarto Selo, o do filme Vá e Veja

A abertura do quarto selo explica por si mesma o que vai acontecer. O fato de o cavalo ter a cor amarela faz transparecer a cor anêmica da morte, espalhada por toda a Terra.

A quarta parte de todos os habitantes da Terra, isto é, a quarta parte daqueles que tinham sobrevivido aos juízos dos primeiros três selos, morrerá. E este é o único cavaleiro identificado por um nome: morte.

Ele é seguido pelo inferno, o que significa que aqueles que morrerem sob a ação deste cavaleiro serão tragados pelo inferno. A morte e o inferno receberam autoridade para matar por meio de quatro flagelos:

1) Pela espada – guerra mundial.
2) Pela fome – aqueles que sobreviverem à guerra passarão pelo desespero da falta de comida. A escassez de alimentos levará as pessoas ao sacrifício dos seus filhos.
3) Pela mortandade – com a falta de alimentos, as doenças e as enfermidades aumentarão.
4) Pelas feras da Terra – aqueles que ultrapassarem a guerra, a fome e as pestes mortais terão de enfrentar as feras da Terra, que, diga-se de passagem, estarão tão desesperadamente famintas quanto a própria humanidade.

Porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido e nem haverá jamais” (Mateus 24.21).

Quem viu Vá e Veja sabe, os quatro itens estão lá.

o setimo seloO Sétimo Selo, o do filme de Ingmar Bergman

O tema do célebre O Sétimo Selo é a morte, que aparece para um Cavaleiro da Idade Média, o qual propõe a ela um jogo de xadrez. Se o Cavaleiro vencer, ela, a morte, o deixará viver. Ele era um bom jogador, mas a morte… Ela sempre vence. Trata-se de um filme admirável e inesquecível, desses que a gente vê muitas vezes, sempre descobrindo novidades ou alusões insuspeitadas. Mas vamos ao selo do título, voltemos ao Apocalipse.

Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu por mais ou menos meia hora. Então vi os sete anjos, que se acham em pé diante de Deus, e vi que lhes foram dadas sete trombetas.

Depois veio outro anjo e ficou em pé junto ao altar. Ele estava com um incensário de ouro e foi-lhe dado incenso para ser oferecido com as orações de todo o povo de Deus. A fumaça do incenso, juntamente com as orações do povo de Deus, subiu da mão do anjo à presença de Deus. E o anjo pegou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E houve trovões, barulhos, relâmpagos e terremoto.

Era o fim.

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Bergman dirigindo Fanny e Alexander

Bergman dirigindo Fanny e Alexander

Os atores que trabalharam com Bergman sempre diziam que o set de filmagens era muito leve e se surpreendiam com o peso dos filmes quando iam para as telas. Liv Ullmann disse mais de uma vez: “Nós fazíamos piadas e ríamos todo o tempo. Tomei um susto quando vi Gritos e Sussurros, por exemplo. Afinal, tínhamos passado todo o tempo nos divertindo!”. No último sábado, com um clima medonho lá fora, estivemos numa improvisada sessão privé de Fanny e Alexander lá no StudioClio. Uma maravilha rever este filme depois de tantos anos. Minha filha Bárbara chegou a sonhar com o bispo após ver aquelas “cenas fortes e explicitas de religião”, como sublinhou o Chico. Abaixo, deixo para meus sete visitantes alguns trechos das gravações de Fanny. É claro que são trechos escolhidos, certamente filtrados, mas se nota a atmosfera de tranquila camaradagem entre os atores e técnicos. Como os filmes de Ingmar sempre era produzido por um mesmo grupo de pessoas que foi variando lentamente através dos anos, eram todos amigos ou, no mínimo, conhecidos.

Talvez este seja o filme mais linear da produção madura de Bergman. Isso não lhe retira qualquer mérito. É uma obra-prima. Também é um filme otimista e de final feliz, com a sogra e a nora tomando o poder. A primeira decisão é a montagem de O Sonho de Strindberg. Nada mais adequado.

Ah, e duas fotos muito queridas do filme:

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Bergman, os Vogler e os Vergerus

Bergman, os Vogler e os Vergerus
Bertil Guve e Jan Malsmjoe em Fanny e Alexander
Bertil Guve e Jan Malmsjo — Vogler x Vergerus Pem ‘Fanny e Alexander’

Poucos bergmanianos dão importância ao fato, mas sempre me interessaram os nomes dos personagens de Ingmar Bergman e suas repetições através dos filmes. A insistente presença dos sobrenomes Vogler e Vergerus me é particularmente atraente e, cada vez que descubro mais um, fico inexplicavelmente feliz. É como se me apresentassem mais um membro destas previsíveis famílias. Por algum motivo, é tranquilizador. Vogler é o mágico, o sensível, o cômico, o que põe a máscara, o que engana, o que crê, é a fantasia e a liberdade que se opõe aos Vergerus, que representam a razão, a seriedade, o estabelecido, a maldade, o ceticismo, a ciência, a aceitação das limitações. É claro que Bergman considera estar ao lado dos Vogler. Porém temos mais facilidade para lembrar dos maus. Quem esquece do bispo Edvard Vergerus de Fanny e Alexander ou do médico nazista Hans Vergerus que fazia experiências com seres humanos em O Ovo da Serpente?

O nome Vogler é incomum, mas não exatamente raro em comunidades germânicas — estatísticas revelaram que em 2004 havia 34 Voglers na Suécia –, deriva da palavra alemã para “pássaro” (vogel em alemão, em sueco fågel). Os Vogler são frequentemente artistas de algum tipo (um artista viajante em O Rosto, uma atriz em Persona). Já os personagens de Vergerus são muitas vezes autoritários, às vezes médicos ou religiosos — o oficial de saúde em The Magician, o bispo severo em Fanny e Alexander.

Mas o uso dos nomes em Bergman é uma área ainda mais complexa. Henrik e Anna são nomes comuns nos primeiros filmes de Bergman. Seu pai era Erik, mas há indícios que Henrik seria uma corruptela do nome do pai. Então, deveriam ser interpretados como retratos de seus pais? Tomemos Henrik Egerman de Sorrisos de uma Noite de Verão, por exemplo, um jovem se preparando para entrar no clero. Ele é uma versão inicial do pai de Bergman, que também era um clérigo? Ou a maternal Anna em Gritos e Sussurros, ela seria Karin, a mãe de Bergman? Por que então nesse filme há outro personagem cujo nome é Karin?

O assunto é interessante, mas, por minha parte, peço a qualquer pessoa interessada em Bergman que simplesmente compare os personagens que compartilham os mesmos nomes nos vários filmes. Relacione-os com os atores que interpretam os papéis e compare suas aparências, gestos, etc. Então, talvez compreendamos mais como a coisa funciona. Para ajudar, fornecemos um guia resumido abaixo.

David Carradine e Heinz Bennent em O Ovo da Serpente
David Carradine e Heinz Bennent em ‘O Ovo da Serpente’

— Max von Sydow (Albert Emanuel Vogler em “O Rosto”)
— Ingrid Thulin (Manda Vogler em “O Rosto”)
— Gunnar Björnstrand (Dr. Vergerus em “O Rosto”)
— Gunnar Björnstrand (Sr. Vogler em “Persona”)
— Liv Ullmann (Elisabeth Vogler, a atriz, em “Persona”)
— Ingrid Thulin (Veronica Vogler em “A Hora do Lobo”)
— Erland Josephson (Elis Vergerus em “A Paixão de Ana”)
— Bibi Andersson (Eva Vergerus em “A Paixão de Ana”)
— Max von Sydow (Andreas Vergerus em “A Hora do Amor”)
— Bibi Andersson (Karin Vergerus em “A Hora do Amor”)
— Heinz Bennent (Dr. Hans Vergerus em “O Ovo da Serpente”)
— Jan Malmsjö (o bispo Edvard Vergerus de “Fanny e Alexander”)
— Kerstin Tidelius (Henrietta Vergerus em “Fanny e Alexander”)
— Erland Josephson (Henrik Vogler em “Depois do Ensaio”)
— Erland Josephson (Osvald Vogler em “In The Presence of a Clown” – TV)
— Gunnel Fred (Emma Vogler em “In The Presence of a Clown” – TV)

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O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

Ia escrever hoje sobre obra-prima de Bergman, que revimos neste fim de semana. Mas este artigo me pareceu tão explicativo que resolvi apenas copiá-lo. Até porque não gostaria de perdê-lo. As fotos foram colocadas por mim. (MR)

Por Cibele Carvalho Quinelo

O Diretor

Ernest Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, na Suécia, em 1918. Filho de um pastor luterano, teve uma infância rígida, marcada por castigos psicológicos e corporais, temas freqüentes em seus trabalhos.

Começou a fazer e dirigir teatro ainda adolescente. Tornou-se famoso como roteirista na Suécia, escrevia para os maiores cineastas da época, e, com Sorrisos de Uma Noite de Amor fez seu nome como diretor de cinema, mas foi com O Sétimo Selo que ganhou fama internacional.

Foi o principal responsável pela recuperação, para o cinema sueco, do prestígio que este perdera na década de 20, com a partida de importantes cineastas para Hollywood.

Fez um total de 54 filmes, 39 peças para o radio e 126 produções teatrais, onde seus temas principais eram Deus, a Morte, a vida, o amor, a solidão, o universo feminino e a incomunicabilidade entre casais, tema onde foi pioneiro no cinema. Tornou-se autor completo de seus filmes e renovou a linguagem cinematográfica. Seus primeiros filmes trazem com frequência influências do naturalismo e do romantismo do cinema francês dos anos 30. Alguns chegaram a ser repelidos por causa do erotismo e expressionismo.

Bergman batendo um papo com a morte
Bergman batendo um papo com a morte

É muito conhecido por seu domínio do métier, por seu conhecimento técnico de câmera, luzes, processos de montagem, criação de personagens e qualidade de celuloide e som. Sempre trabalhava com a mesma equipe técnica e atores.

Ganhou Oscar com os filmes A Fonte da Donzela e Fanny e Alexander.

Da peça ao filme

Bergman dava aulas na Escola de Teatro de Malmö, em 1955. Procurava uma peça para encenar para alguns jovens. Acreditava que essa era a melhor maneira de ensinar. Nada encontrou e então resolveu escrever ele mesmo, dando o titulo de Uma pintura em madeira.

Era um exercício simples e consistia num certo numero de monólogos, menos uma parte. Um dos alunos se preparava para o setor de comédia musical, tinha uma aparência muito boa e ótima voz quando cantava, mas quando falava era uma catástrofe, ficando com o papel de mudo, e ele era o cavaleiro.

Trabalhou bastante com seus alunos e montou a peça. Ocorreu-lhe um dia que deveria fazer um filme da peça e tudo aconteceu naturalmente. Estava hospitalizado no Karolinska, em Estocolmo, o estomago não estava muito bom, e escreveu o roteiro, passando o script para o Svensk Film Industri, que não foi aceito, e só quando veio o sucesso Sorrisos de uma noite de amor (filme que recebeu um premio importante no festival de Cannes) que Ingmar obteve permissão para filmá-lo.

Bergman disse em uma entrevista “Foi baratíssimo e muito simples”, mas na biografia critica de Peter Cowie, a origem de O Sétimo Selo é tratada de modo a aparecer um pouco menos simples. Cowie fornece mais pormenores do que Bergman sugere, diz, que a peça original é um ato para dez estudantes, entre eles Gunnar Bjornstrand, e foi levada a cena pelo próprio Bergman em 1955. Mas a encenação que arrebatou a critica ocorreu em setembro do mesmo ano quando um outro elenco, que contava com a presença de Bibi Anderson dessa vez, representou no Teatro Dramático Real de Estocolmo, sob a direção de Bengt Ekerot (ator e diretor renomado que interpretou a Morte em O Sétimo Selo).

Apenas alguns elementos foram aproveitados no roteiro final do filme: o medo da peste, a queima da feiticeira, a Dança da Morte. Mas a partida de xadrez entre a Morte e o Cavaleiro não havia, e, nem existia o artístico-bufanesco “santo casal” Jof e Mia com seu bebê. Somente Jons, o Escudeiro, não sofreu mudanças.

vamos jogar o setimo selo

Bergman retornou a Suécia, reescreveu o roteiro e reuniu a equipe. Deram-lhe trinta e cinco dias e um orçamento apertado. Foram gastos cerca de 150 mil dólares e o diretor manteve-se dentro do cronograma e do orçamento. O filme foi feito em 1956 e estreou na Suécia em fevereiro de 1957.

Contexto Histórico

O século XIV, que é a época diegética de O Sétimo Selo, assinala o apogeu da crise do sistema feudal, representada pelo trinômio “guerra, peste e fome”, que juntamente com a morte, compõem simbolicamente os “quatro cavaleiros do apocalipse” no final da Idade Média.

Inicialmente, a decadência do feudalismo resulta de problemas estruturais, quando no século XI, a elevada densidade demográfica na Europa, determinou a necessidade de crescimento na produção de alimentos, levando os senhores feudais aumentarem a exploração sobre os servos, que iniciaram uma série de revoltas e fugas, agravando a crise já existente.

As cruzadas entre os séculos XI e XIII representaram um outro revés para o sistema feudal, já que os seus objetivos mais imediatos não foram alcançados: Jerusalém não foi reconquistada pelos cristãos, o cristianismo não foi reunificado, e a crise feudal não foi sequer minimizada, já que a reabertura do mar Mediterrâneo promoveu o Renascimento Comercial e Urbano, que já contextualizam o “pré-capitalismo”, na passagem da Idade Média para a Moderna.

cavaleiro o setimo selo

O trinômio “guerra, peste e fome”, que marcou o século XIV, afetou tanto o feudalismo decadente, como o capitalismo nascente. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) entre França e Inglaterra devastou grande parte da Europa ocidental, enquanto que a “peste negra” eliminou cerca de 1/3 da população européia. A destruição dos campos, assolando plantações e rebanhos, trouxe a fome e a morte.

Nesse contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, além do desenvolvimento do comércio monetário, notamos transformações sociais, com a projeção da burguesia, políticas com a formação das monarquias nacionais, culturais com o antropocentrismo e racionalismo renascentistas, e até religiosas com a Reforma Protestante e a Contra Reforma.

O filme toca imaginativamente nesse mundo antigo, saturado de feiticeiras, cavalos, fome, peste e fé, depositando confiança em nossa imaginação.

bruxa o setimo selo

O filme

Foi o décimo filme que Bergman dirigiu e é uma de suas poucas tramas não-realistas. O roteiro original se lê como peça de teatro e poderia, com alguns retoques, ser montada como tal. Não se encontra nenhum Plano Geral, Zoom ou Pan, nada de Exterior Dia Floresta; nem Interior Dia Taverna; é como uma peça, com relativamente poucas rubricas. Podemos encontrar muitas influências culturais tanto no filme como no próprio roteiro: o quadro dos dois acrobatas de Picasso; A Saga dos Folkung e O Caminho de Damasco de Strindberg; os afrescos religiosos que Bergman viu na Igreja de Haskeborga.

Houve apenas três dias de locação nas filmagens: a sequência de abertura e as tomadas na encosta do morro. As condições atmosféricas, a locação e a luz eram perfeitas e não foi preciso repetir as tomadas. Foi um filme cheio de improvisações, a maior parte filmado nos estúdios, em Rasunda (Suécia). Bergman conta que em uma sequência na floresta, olhando com muita atenção podemos ver as janelas envidraçadas de um bloco de apartamentos, e a torrente na floresta era o transbordamento de um cano solto que ameaçava inundar o local.

A velocidade do andamento das cenas , como uma cena passa para a outra dizendo tudo o que precisa e encarando grandes e pequenas questões com a mesma seriedade, buscando o óbvio, fazem parte do mundo bergmaniano. A clareza dos diálogos, a maneira teatral como são utilizados, também fazem parte desse mundo.

O filme, assim como toda a obra do diretor no seu início, é considerado neo-expressionista. Os cenários são muito rústicos e simples, a maquiagem é impressionante, e muitas vezes os atores aparecem machucados, ou com dentes podres, desprovidos de qualquer regra de higiene atuais, o que dá mais realismo ao filme.

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O Sétimo Selo foi dedicado a Bibi Andersson e ela, assim como Max Von Sydon, Erland Josephson, Ingrid Thulin, Liv Ullman, Harriet Anderson e Gunnar Bjosrnstrand, que começaram com ele no teatro, se tornaram para sempre “atores bergmanianos” e seguiram carreiras internacionais.

O título é uma referência ao capitulo oito do livro das revelações. A história é simples. Um Cavaleiro e seu Escudeiro voltam das Cruzadas. O país está assolado pela peste. Eles se encontram com a Morte e o Cavaleiro faz um trato com ela: enquanto conseguir contê-la numa partida de xadrez, sua vida será poupada. Na viagem pela terra natal, encontram artistas, fanáticos, ladrões, patifes, mas por toda parte a presença da Morte, empenhada em ganhar o jogo por meios lícitos e ilícitos. No fim, todos, menos os artistas, são arrebanhados por ela. Intelectualmente a trama do filme é entretecida com dois: o da busca, pelo Cavaleiro já desesperado, de alguma prova, alguma confirmação de sua fé, e o da atitude do Escudeiro, para quem não existe nada, para além do corpo em carne e osso, senão o vazio.

leite o setimo selo

O filme articulou perguntas que não se atrevia fazer: quais eram os sinais verdadeiros de que existia um Deus? Onde estava o testemunho coerente de qualquer benevolência divina? Qual era o propósito da oração? A dúvida do Cavaleiro, sua determinação de se apegar aos exercícios exteriores da crença quando o credo interior estava esmigalhado coincidia com a situação de muitos. Mostrou com uma visão simples e totalmente moderna para a época, o relacionamento de Deus com o Homem.

A natureza religiosa da obra de Bergman se manifesta de imediato no filme. Em uma entrevista declarou que utilizava seus filmes para encarar seus temores pessoais, disse ele: “Tenho medo da maior parte das coisas dessa vida” e “Depois daquele filme ainda penso na morte, mas não é mais uma obsessão”, e em O Sétimo Selo ele enfrentou o seu medo da morte. A Morte está presente todo o tempo, e cada um reage de maneira diferente a ela. Deus e a Morte são os grandes pilares do filme, e em grau menor, mas essencial, mostra seus sentimentos sobre o Amor e a Arte.

A tela destinava-se ao divertimento, quem estivesse em busca da verdadeira substância do pensamento abria um livro. Bergman botou isso de pernas para o ar nesse filme, mostrando um cinema não somente para a diversão, mas também para a reflexão.

As pessoas são geralmente muito sérias acerca do que o diretor considera serem questões sérias: Amor, Morte, Religião, Arte. Sua resoluta preocupação com assuntos sérios, mesmo em suas poucas comédias, o distingue e talvez explique porque em certo sentido ele saiu de moda. Ele insiste em enfrentar o todo da vida com seriedade, aborda o total da existência e o que está acima dela, junto com sua religiosidade, transformando-o num estrangeiro de um mundo pós-moderno e em maior parte descrente.

O senso de humor aparece, às vezes sutil e às vezes mais ostensivo como quando a Morte serra árvore para levar o artista, é a cena mais engraçada do filme. Finamente bem humorado – sobre desafios, negociações e as eternas dúvidas e curiosidades em torno de questões metafísicas que atormentaram, atormentam e atormentarão o ser humano. Acredito que Bergman está presente no filme na angústia do cavaleiro que vê sua vida destituída de sentido, e também no ateísmo de seu fiel amigo Escudeiro.

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O encontro com a Morte

A cena de abertura dá o tom: antes de qualquer imagem a música Dies Irae começa solene. A tela se ilumina, uma nuvem esbranquiçada que se não estivesse ali deixaria tudo cinza e turbulento. O coro interrompe no corte: uma dramática reelaboração da música de Dies Irae. Uma ave aparece pairando quase imóvel no céu, e o pink noise (silêncio), que é muito usado nos filmes de Bergman, dá ainda mais suspense. Outro corte mostra uma praia pedregosa e uma voz calma e suave lê um trecho do apocalipse, ouve-se o barulho das ondas batendo nas pedras.

O Cavaleiro descansa sobre as pedras e um plano mais fechado nos leva para mais perto da ação: tem um tabuleiro de xadrez ao seu lado, e ele segura uma espada na mão. O Escudeiro também dorme e seu amigo abre os olhos e observa o céu.

O dia está nascendo e Antonius se levanta para lavar o rosto. Logo após ajoelha sobre as pedras e faz uma oração, num intenso plano americano, mas seus lábios não se mexem, talvez não saiba mais rezar. Ele vai até o tabuleiro de xadrez, onde as peças já estão montadas, o silêncio traz uma figura parecida com um monge, um fantasma. O Cavaleiro arruma uma sacola e vê aquela figura. Começam a dialogar (uso de planos gerais): “Quem é você?”, “Eu sou a morte”.

E a morte aparece como um homem, uma presença. Segundo Bergman “Essa é a fascinação do palco e do cinema. Se você pega uma cadeira perfeitamente normal e diz “Eis a cadeira mais cara, fantástica e maravilhosa já feita em todo o mundo”, se você diz isso, todos acreditam. Se o Cavaleiro diz “Você é a Morte”, você acredita nisso” .

confessionario o setimo selo

Em outro plano a Morte abre seu manto a fim de levar o Cavaleiro, sua pele é muita branca e a “música medieval” impulsiona a ação.

Após o trato sentam-se para jogar xadrez. Antonius parece estar muito calmo diante da tão aterrorizante Morte. Há até um pouco de ironia quando as peças negras são sorteadas para serem jogadas pela morte, que diz para o Cavaleiro, “Bem apropriado não acha?”.

A imagem se dissolve e vemos Antonius numa igreja, olhando uma imagem de Jesus Cristo. Seu rosto, e o talento naturalmente, mas a seriedade e a capacidade também de serenidade desse ator valorizam o filme. É um rosto pensante, a procura de um entendimento da vida, uma indagação antiga, às vezes banal que nos convence. Seus momentos de extrema emoção são quando geralmente ele se vê só, salvo, talvez, por Deus.

As sombras aparecem muito, há muito contraste de claro e escuro e os closes nos personagens são muito usados. Bergman usava muito o close-up porque acreditava que eles mostravam muito da personalidade dos personagens. O sino da igreja toca sem parar, a imagem de Cristo aparece novamente, mas não é uma imagem comum, parece deformada e sofredora.

O Cavaleiro revela sua fé, sua busca. As imagens que estão por perto dele são difíceis de identificar por causa da sombra. Ele confessa esperar o conhecimento da vida, e nós vemos, entre as grades do confessionário que a Morte é quem o ouve. Ela não quer ser reconhecida e nos mostra suas más intenções. O sino cessa e eles continuam a falar de Deus e agora da Morte. Antonius está nervoso, revela sua estratégia para vencer a Morte e mostra todo seu desespero e sua surpresa ao ver que ela o enganou. Um primeiro plano mostra a expressão de seus rostos. As sombras e a escuridão tomam conta de quase toda a tela, e vemos apenas o vulto dos personagens e as grades do confessionário. A Morte vai embora, e ele observa sua mão, o sangue que pulsa nela. Antonius Block se apresenta para os espectadores junto com sua fé, coragem e satisfação, talvez até orgulho de jogar xadrez com a Morte.

morte o setimo delo

Os flagelantes

A cena com os flagelantes é maravilhosa. Começa com a apresentação dos artistas, numa inocente maneira de divertir o público do vilarejo. Eles dançam, cantam, brincam, tocam instrumentos quando a música entra, dando um clima de terror a cena. É um contraste ver a alegria dos artistas seguidas de tanta dor, culpa, desespero e fé dos torturadores: “Eles acreditam que a peste é um castigo de Deus por eles serem pecadores”.

Os olhos de Jof e Mia se enchem de espanto, assim como a de todas as pessoas que vêem a procissão. A música é apavorante.

Eles passam por uma porteira carregando Imagens e Cruzes. Pessoas deficientes, muito magras e idosas impressionam. Estão vestidos como monges, com roupas esfarrapadas, se ouve os gritos e o barulho dos chicotes. Os closes aparecem freqüentemente mostrando o espanto das pessoas que vêem os flagelantes passar.

Essa cena foi feita em um só dia, os extras foram feitos em clinicas geriátricas da cidade.

flagelantes o setimo selo

A dança da Morte

Após todos serem arrebanhados pela Morte, o plano que segue é o de Mia, olhando para o céu com seu filho Mickael e Jof ao seu lado, dentro da carroça. Ela acorda o marido e se vêem a salvo. O céu está claro e a cena é a mais iluminada do filme. Eles parecem felizes, os pássaros cantam e, saindo da barraca, jof observa a montanha. Sua expressão é de espanto ao ver todos eles, o ferreiro e lisa, o Cavaleiro, Raval, Jons e Skat, na mais famosa cena do filme, a Dança da Morte. A imagem do ator se difundi com a da dança. “Dançam rumo a escuridão e a chuva cai nos seus rostos”, “No céu tempestuoso”, diz Jof. A trilha impressiona.

“Você e suas fantasias” diz Mia sorrindo, acredita que tudo não passa da imaginação de Jof. Eles vão embora por uma trilha da encosta, os pássaros voltam a cantar e a música agora transmite paz e alegria.

Essa cena foi feita com muita improvisação, tão em cima da hora que um dos atores (o ferreiro) precisou de um dublê. As condições do tempo eram perfeitas e Bergman não precisou repetir a tomada.

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A carta de Ingmar Bergman desistindo de Cannes em 1992

A carta de Ingmar Bergman desistindo de Cannes em 1992

download (1)Esta carta é uma maravilha. Bergman não é apenas meu cineasta preferido como é um de meus frasistas preferidos. Esta carta, onde ele se recusa a ir ao Festival de Cannes de 1992, é uma delícia. Devia ser a pessoa que mais respeitava seu íntimo e quem o conhece sabe que tal fato não é sinônimo de egoísmo e sim uma madura Síndrome de Gambardella, personagem principal do filme A Grande Beleza, que dizia: “Tenho 65 anos, não posso mais perder tempo fazendo coisas que eu não quero fazer”. Só que Bergman consegue expressar sua Síndrome com graça. É o mais perfeito “Não, obrigado” que já li.

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Sobre Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman

Sobre Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman

Quando vi Gritos e Sussurros pela primeira vez, tinha quinze ou dezesseis anos. Nunca pude esquecer a atmosfera do filme, o monte de coisas inéditas que ele me apresentava e meu choque à saída do velho Avenida. Sentia um misto de entusiasmo pela realização de uma obra daquele porte e de amargor pelo realismo do filme. Era como se me dissessem finalmente: “o cinema pode ser algo mais interessante do que tu pensas”. Me deem um desconto, não tinha visto nada parecido antes.

É um filme sobre duas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann) que temem, lamentam e ao mesmo tempo desejam a morte da terceira irmã Agnes (Harriet Andersson). Como quarta personagem principal, há a devotada criada de Agnes: Anna (Kari Sylwan). Improvisando, vou tentar colocar em tópicos fingidamente organizados o que penso sobre o filme depois de tê-lo visto muitas vezes.

As cores. Basicamente, há apenas três cores em Gritos e Sussurros: o vermelho das paredes e o branco e preto que as mulheres vestem. Ou seja, um filme que retrata a morte, o amor, o sexo e o ódio, passa-se em uma casa de paredes e chão vermelhos. Bergman disse não saber exatamente o motivo, afirmou que talvez fosse porque imaginava vermelhas as paredes do útero, assim como as da alma. Deve haver alguma verdade no senso comum que considera tal cor a representação da paixão e da raiva. O que interessa dizer é a saturação de vermelho no filme me hipnotiza, deixando-me apreensivo desde o lento início do filme.

O rosto é o palco. Bakhtin escreveu que o diálogo é o real habitat das ideias, é o local onde elas se transformam e que a mera expressão de uma ideia já bastaria para a alterar. Isto demonstra a importância da interação num mundo polifônico onde nada pode ser visto isoladamente. Bergman prova que o habitat da emoção do ator é seu rosto, fazendo com que vejamos a tela cheia de enormes rostos que falam e, principalmente, ouvem, reagindo à palavras quase sempre antagônicas. A câmara está sempre muito perto, mostrando bocas, ouvidos e olhos. A propósito, notem o título de alguns filmes de Bergman: “O Rosto” (Ansiktet), “Face a Face” (Ansikte mot ansikte) e “Persona” (máscara em grego). O homem era fascinado por rostos! O escritor Fernando Monteiro — imenso admirador de Bergman — reivindica para Joseph von Sternberg a compreensão da força da face humana na tela. Sternberg chegou a escrever: “O cinema é a ARTE DO ROSTO”.


A seguir, elas falarão de suas infâncias.

O ódio e o afeto. A agressividade permanece em estado de latência por grande parte todo o filme, apenas explodindo aqui e ali. Mesmo o momento em que Karin e Maria se acarinham é resultado de lembranças invocadas durante a reparação a mais uma briga. Agnes é dócil e solitária enquanto suporta a doença que a vencerá, Anna é a criada fiel, amorosa e adequada à resignação de Agnes, Karin é ressentida e insatisfeita e Maria é fútil e não tem por hábito sentir remorsos. Deus é silencioso e invisível como sempre e até o pastor acaba confessando sua falta de fé: “Encomendo-a a Deus para livrá-la da angústia causada por esta terra sombria e suja, onde vagamos sob um céu vazio e cruel”.

O puro ódio. A cena em que Karin mutila seu sexo com um caco de vidro — do copo que ela antes quebrara durante uma refeição nada interessante com o marido –, passando após o sangue em seu rosto… Bem, não preciso continuar.

O filme baseia-se no mundo feminino e mais. Os homens são inteiramente inúteis. O médico e o pastor falham em sua tentativa de oferecer qualquer conforto à Agnes e os maridos de Karin e Maria não compreendem suas necessidades emocionais. Mas elas também não são apresentadas como anjos. Todas, talvez à exceção de Anna, são autênticos monstros. Agnes tem uma doença inexorável que a devora internamente; Karin odeia e odeia; Maria leva seu marido à tentativa de suicídio com suas traições e Anna falha com sua filha biológica e com Agnes, apesar do toda sua capacidade de doação. Ou seja, o filme é uma representação de pessoas normais.

As cenas clássicas. Agnes — já morta, em cena assustadora — chama Karin e Maria, sendo recusada por ambas; então Anna a abraça em imitação à Pietà de Michelangelo (abaixo). A seqüência em que Karin a Maria rememoram sua intimidade quando crianças (foto com legenda), tocando uma à outra e o final do filme são absolutamente inesquecíveis (última foto).

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A câmera, o tempo e a música. A posição da câmera sempre fragmenta o corpo de Agnes ou a flagra em posições desconfortáveis, sugerindo a doença que destrói seu corpo ao longo do tempo, mostrado em vários relógios na sua faina de registrar o tempo passado. Ouçam as raras intervenções musicais, dedicadas a Bach (com Pierre Fournier, como lembrou Moacy Cirne) e Chopin, plenas de significação.

A fotografia do mestre Sven Nykvist: desnecessário comentar.

Finalizando, diria que Gritos e Sussurros é uma obra de extrema audácia dentro de uma estrutura clássica. Até mesmo a cena final, quando Anna abre o diário de Agnes e lê em voz alta um trecho sobre os tempos de felicidade das irmãs, acompanhado das imagens da foto abaixo, isto é, inclusive no único momento em que saímos da atmosfera de claustro do filme, a sensação é de estranheza, por tudo o que aconteceu antes. A presença da belo e rápido final, por mais convencional que nos pareça, causa espanto.

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Textos para o Sarau Clara Corleone (IV): Rapidamente, sobre o Ulysses de Joyce

Textos para o Sarau Clara Corleone (IV): Rapidamente, sobre o Ulysses de Joyce

Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque — que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Em super resumo, estas são as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria.

James Joyce em Paris com sua editora Sylvia Beach.
James Joyce em Paris com sua editora Sylvia Beach.

Pois então abrimos o Ulysses de Joyce e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, não é nada fiel. Bloom é um Ulisses nada heróico, é antes um judeu irlandês de vida comum, que sabe das traições de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue.

Assassinato nunca, visto que dois erros não tornam um certo.

O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas.

Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):

Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.

Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente abordagens sexuais inteiramente diversas de tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas e masturbatórias. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é mais pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.

Ulysses é um texto que procura minar as noções de gênero. O romance não promove a superioridade masculina, mas sim eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde a noção de gênero com a criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, está fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.

Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.

Bloom comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”. Também, como talvez uma mulher o fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela veja seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.

Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.

Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que, na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. Antes do famoso monólogo de Molly, Bloom recapitula o primeiro encontro sexual com a mulher, em consonância com que já sabíamos: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca).

Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o famoso monólogo de Molly, o leitor entra nos pensamentos dela na cama ao lado de Bloom, que dorme ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de família. Quando lembra da amamentação da filha, ela recorda que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para ele chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser a provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil.

Porém, em qualquer hipótese, o texto de Joyce afunda e afunda a masculinidade.

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Textos para o Sarau Clara Corleone (III): Rascunho de meu pai

Textos para o Sarau Clara Corleone (III): Rascunho de meu pai

Ele não pertencia ao Departamento de Preocupações e frequentemente licenciava-se do de Sustento. Em nossa casa e em todos os lugares onde ia, suas funções estavam mais ligadas ao Ministério do Lazer, Jogos e Cultura, sem esquecer o de Relações Públicas. Não posso imaginar coisa melhor para uma criança do que um pai sempre presente, brincalhão e meio irresponsável. Desde muito pequeno tive contato com os dois lados do Dr. Milton Cardoso Ribeiro — o pai adorável e o apostador. Meu pai e minha mãe eram dentistas numa época em que os bons profissionais desta área faturavam o que todos nós deveríamos faturar sempre. Ganhavam bem. Só que meu pai direcionava seus ganhos para as corridas de cavalos do Jockey Club. Minha mãe ficava maluca com isto, mas para mim, que não conhecia outra família, aquilo era algo tão normal que suas reclamações eram como a música incidental sob a qual vivíamos tranquilamente. E esta trilha não poderia ser mesmo muito tonitruante, pois meu pai era alguém tão doce que era difícil brigar com ele. Mas a verdade é que ele vivia e se divertia, enquanto ela trabalhava para manter nosso barco sobre as águas.

Ele nasceu em 1927 e morreu em 1993, aos 66 anos. Um dia antes de morrer, dera-me um encontrão por trás no supermercado — uma tradição nossa — e comentáramos sobre um monte de coisas. Estava bem, normal, porém, na manhã seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Minha mãe me ligou às 6h da manhã, dizendo teu pai está caído no banheiro. Quando cheguei, ele já tinha morrido.

Sua internet eram os muitos jornais dos quais não se separava e o chatíssimo rádio de pilha que usava para ouvir notícias e a meteorologia. Algumas vezes suas manias tornaram-se incontroláveis, como demonstra naquele caso ocorrido em pleno casamento de minha irmã. Durante a festa, organizada num dos hotéis mais chiques de POA, um amigo da Iracema chegou-se para dizer a ela que um convidado, desinteressado da festa, estava escondido na privada, ouvindo os páreos num radinho de pilha. Minha irmã voltou-se para ele e disse: “É meu pai”.

Não lembro de grandes brigas ou discussões com ele. Lembro é das disputas. Seu perfil de apostador adequava-se perfeitamente a elas. Eu e ele tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligávamos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, supertreinado em descobrir tudo o que de clássico toca no rádio. Hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”.

Quando eu tinha menos de 13 anos, nos dedicávamos — sempre antes de dormir — à atividade de imaginar histórias para a música que estivéssemos ouvindo. Lembro dos numerosos tuaregues que acompanhavam o Bolero de Ravel… Dos prelúdios líquidos e cheios de peixes de Chopin… Dos concertos atléticos de Bach… Das histórias de terror que acompanhavam o Concerto Nº 1 para piano e orquestra de Brahms… Desnecessário dizer que meu pai amava a música. Qualquer música. Colocava Mozart, Beethoven, Noel e Cartola no mesmo patamar e misturava na mesma noite eruditos e populares. Como pianista amador, chegou a compor e a dedicar a valsa Férias de Julho a mim e minha irmã.

Uma vez, quando eu tinha uns 12 anos, estava levando nosso cachorro para fazer suas necessidades na rua quando um vizinho me chamou em sua mesa na calçada de um bar. Era à noite. Educado, parei a seu lado. O sujeito começou a conversar, conversar e acabou pegando minha mão. Fugi na hora.

Contei o caso para meu pai e ele quis que eu lhe indicasse quem tinha sido. Dias depois, apontei-lhe o cara, de longe. Era um cliente de seu consultório de dentista. Meses depois, o cara foi lá consultar. Meu pai abriu seu dente, disse para o homem ficar de boca aberta e perguntou se ele conhecia seu filho, Milton, um que andava com um cachorrinho assim assado. O cara passou a suar em profusão… Meu pai perguntou se ele estava nervoso, se estava doendo muito, essas coisas. Rindo, me garantiu que fez tudo direitinho do ponto de vista odontológico, mas que doeu. OK, acrescento que ele podia ser sádico.

Acho que meus pais se amavam. Lembro de gestos de carinho num e noutro sentido. Minha mãe – ela foi uma das primeiras dentista mulheres formadas pela Ufrgs e sua família cruz-altense reclamava de meu pai por deixá-la trabalhar (imaginem se soubessem do resto) – referia-se a ele como um homem que só tinha um só defeito (os cavalos!) e, quando ele morreu, disse-me com um olhar perdido que estava arrependida por ter recebido muito mais amor do que dera. Disse também que sempre sustentara a casa, mas que ao menos seu marido não fazia dívidas, apenas jogava dinheiro fora.

Considerável parte das minhas boas lembranças da infância e da juventude estão associadas a meu pai. Ele era um sujeito engraçado e bem-humorado que participava de tudo e era moderno o suficiente para não estabelecer distâncias. Sempre me senti seu par, fato que parecia ser um problema para os outros pais com os quais mantínhamos contato. Morreu e não lhe disse que aprendi muita coisa com ele, não lhe disse que sabia que era amado, que o amava e que nosso problema era o de ser gente comum, dessa que anda por aí, cega, surda e muda, falando todo tempo em coisas secundárias.

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A sociedade dos empregos de merda

A sociedade dos empregos de merda

POR DAVID GRAEBER
Do Outras Palavras
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Como o capitalismo contemporâneo cria sem cessar ocupações inúteis, enquanto remunera muito mal as mais necessárias. Quais as alternativas? Garantia de trabalho? Ou Renda Cidadã Universal?

David Graeber, entrevistado por Eric Allen Been, na Vice| Tradução: Antonio Martins

Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.

Mas enquanto muitos de nós julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro, “Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre outras obras, Dívida: Os Primeiros 5000 anos e The Utopia of Rules [ainda sem edição em português] é professor de Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).

A “Vice” encontrou-se há pouco com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.

Em primeiro lugar, o que são empregos de merda e por que existem?

David Graeber: Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda. Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.

Uma série de fatores contribuiu para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons” trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?

Até mesmo os empregos de merda garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas, por que isso é ruim?

Mas a questão é: se a sociedade tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos? Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.

Em termos individuais, isso pode ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo? Mas não são.

As pessoas contratadas para tais trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um trabalho de verdade.

Segundo seu livro, a sociedade pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham.

É interessante. Chamo de trabalho real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante, trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências, faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a eles.

Porém, os empregos oferecidos aos estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas, essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.

E os empregos tecnológicos ou na mídia. Seriam, também, de merda?

Certamente. Por meio do Twitter, pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para “demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas julgassem o trabalho importante.

Na mídia, ha um exemplo interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê estas publicações.

A automação é vista, muitas vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?

Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.

Como antropólogo, sei perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.

Pergunto: por que as pessoas agem como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema? Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem, temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em um sistema eficiente.

Um dos pontos mais interessantes do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.

Foi uma das coisas que, pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não. Alguns eram totalmente mainstream.

Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.

Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.

Aparentemente, você é pouco favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir a garantia de renda cidadã.

Sim. Sou alguém que não quer criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.

Acredito que a garantia de trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos o que queremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?

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Textos para o Sarau Clara Corleone (I): alguma coisa sobre “O Complexo de Portnoy”, de Philip Roth

Textos para o Sarau Clara Corleone (I): alguma coisa sobre “O Complexo de Portnoy”, de Philip Roth

Complexo de PortnoyEsta não é bem uma resenha, nem uma palestra, são anotações que nem são 100% minhas. Encontrei-as num arquivo word perdido no micro. Há frases minhas e outras “roubadas” sei lá de quem. Mas vale a pena fazer referência a este livro engraçadíssimo. Qualquer referência.

O livro é narrado por Alexander Portnoy durante uma consulta ao psicanalista. Como em toda terapia que se preze, ninguém da família escapa. Alex é um judeu viciado em sexo e masturbação, incapaz de estabelecer um relacionamento duradouro, e que tem uma relação complicada com os pais, especialmente com a mãe castradora. Como o livro é um monólogo de Alex, não dá pra saber até que ponto a mãe é realmente tudo aquilo que ele fala. O que fica claro é que ele também sente desejo pela mãe. E pela irmã.

O pai aparece como um moleirão vendedor de seguros, submisso à mulher, vítima de uma prisão de ventre permanente e de um desespero mudo.

A mãe superprotetora, a própria e folclórica mãe judia, entra em pânico quando descobre que o seu Alex, criança, come hambúrguer escondido, e também quando constata que ele, adulto, adquiriu um tapete gasto, propenso a escorregões.

Quando Alex começou a demorar mais que o usual no banheiro, ela logo se preocupou com umas supostas diarreias. Só poderiam advir da comida de lanchonete. À entrada fechada do banheiro, ela exigia que o filho confessasse ter andado comendo guloseimas industrializadas ao sair do colégio. Ordenava, esmurrando a porta, que ele lhe deixasse examinar o produto de seus intestinos. Ou seja, enquanto o pobre adolescente Portnoy tentava se concentrar em suas fantasias sexuais durante a masturbação, a mãe lhe interrogava através da porta a respeito do que havia comido. Não havia nenhum espaço privado.

Um homem judeu com os pais vivos é um recém-nascido indefeso!”, diz Portnoy ao dr. Spielvogel. “Por favor, me ajude e depressa! Me liberte desse papel de filho sufocado numa piada judaica! Porque está começando a perder a graça aos 33 anos!.

Em outro trecho, o mesmo apelo: “Chega de ser um bom menino judeu, agradando meus pais em público e esfolando o ganso no meu quarto!”.

Um relato das idas mensais com o pai à sauna:

Fico em posição de sentido entre as pernas de meu pai enquanto ele me cobre da cabeça aos pés com uma grossa camada de espuma de sabão e olho com admiração para o que pende do banco de mármore em que ele está sentado. Seu escroto parece um rosto comprido e encarquilhado de um velho com um ovo enfiado em cada lado da papada caída, já o meu lembra mais uma bolsinha mínima e rosada pendurada no pulso de uma boneca de menina…

Ele prossegue:

Quanto ao “shlong” dele, a mim, que tenho um pinto do tamanho da ponta de um dedo mínimo, ao qual minha mãe gosta de se referir em público (está bem, foi só uma vez, mas bastou essa vez para durar a vida inteira) como a minha “coisinha”, o “shlong” dele me faz pensar nas mangueiras de incêndio que ficam enrodilhadas nos corredores da escola.

Em seu caudaloso desafogo, Portnoy implica tanto com os “góis” como com seus próprios pares — “Me faça um favor, meu povo, pegue seu legado de sofrimento e enfie no cu”. Mas não escapa do dilema de se sentir ao mesmo tempo atraído por aqueles e amado por estes.

Dentre os personagens masculinos de Philip Roth, Portnoy é o que tem maior verve desbocada, uma verdadeira visão de mundo ao mesmo tempo anarcoerótica e pessimista. É um personagem com o infatigável pênis em riste. Tem a masturbação como uma das belas-artes.

O personagem-narrador, Alexander Portnoy, que desde a primeira página deita num divã pra contar sua vida ao psicanalista, expõe uma das mais bem elaboradas subjetividades da literatura contemporânea, e das mais engraçadas.

A culpa está presente em todo o romance. Não é fruto da fragilidade de Portnoy, que, em verdade, tem atitudes até bem corajosas perante o moralismo judaico e os valores familiares tradicionais. Ele discute com os pais. Nega a existência de Deus diante deles. Professa opiniões políticas liberais. O problema não é tanto a psicologia de Portnoy, pretensamente frágil, mas a força descomunal dos valores que lhe puseram na cabeça desde a mais tenra infância.

Claro que o livro é escrito por um narrador não muito confiável, então devemos ter cuidado com todas as informações jogadas no livro.

Esse jovem masturbador se transforma num adulto bem-sucedido e adequado, mas cheio de culpa por achar-se pervertido.

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Romelu Lukaku tem algo a dizer

Romelu Lukaku tem algo a dizer

O impressionante depoimento do centroavante belga Romelu Lukaku ao “The Players Tribune”, tradução de Bruno Bonsanti, do sítio “Trivela”:

“Eu me lembro do momento exato em que soube que estávamos quebrados. Ainda consigo visualizar minha mãe na geladeira e o olhar no rosto dela.

Eu tinha seis anos de idade e cheguei de casa para almoçar durante o intervalo da escola. Minha mãe me dava a mesma coisa todos os dias: pão e leite. Quando você é uma criança, nem pensa sobre isso. Mas acho que era tudo que podíamos comprar.

Lukaku
Lukaku

Naquele dia, eu cheguei em casa e entrei na cozinha e vi minha mãe na geladeira com uma caixa de leite, como sempre. Mas, naquela vez, ela estava misturando algo. Ela estava balançando, sabe? Eu não entendi o que estava acontecendo. Ela me trouxe o almoço e estava sorrindo, como se tudo estivesse bem. Mas eu percebi na hora o que estava acontecendo.

Ela estava misturando água no leite. Não tínhamos dinheiro suficiente para o resto da semana. Estávamos quebrados. Não apenas pobres, mas quebrados.

Meu pai havia sido um jogador profissional de futebol, mas estava no fim da sua carreira e não havia mais dinheiro. A primeira coisa que perdemos foi a TV a cabo. Acabou o futebol. Acabou o Match of the Day (famoso programa esportivo britânico). Acabou o sinal.

Chegava em casa à noite e as luzes estavam apagadas. Sem eletricidade por duas, três semanas de uma vez.

Eu queria tomar banho, e não havia mais água quente. Minha mãe esquentava a chaleira no fogão, e eu ficava em pé no chuveiro jogando água quente na minha cabeça com um copo.

Houve ocasiões em que minha mãe precisava pedir pão “emprestado” da padaria no fim da rua. Os padeiros nos conheciam, eu e meu irmãozinho, então deixavam que ela pegasse uma fatia de pão na segunda-feira e pagar apenas na sexta.

Eu sabia que tínhamos problemas. Mas, quando ela estava misturando água no leite, eu percebi que já era, sabe? Essa era nossa vida.

Eu não disse uma palavra. Não queria estressá-la. Eu apenas comi meu almoço. Mas eu juro por Deus, eu fiz uma promessa a mim mesmo naquele dia. Era como se alguém tivesse estalado os dedos e me acordado. Eu sabia exatamente o que precisava fazer e o que iria fazer.

Eu não podia ver minha mãe vivendo daquele jeito. Não, não, não. Eu não aceitaria aquilo.

As pessoas no futebol amam falar sobre força mental. Bom, eu sou o cara mais forte que você vai conhecer. Porque eu me lembro de me sentar no escuro com meu irmão e minha mãe, rezando, e pensando, acreditando, sabendo… que um dia aconteceria.

Não contei minha promessa para ninguém por um tempo. Mas, alguns dias, eu chegava em casa da escola e encontrava minha mãe chorando. Então, eu finalmente a disse um dia: “Mãe, tudo vai mudar. Você vai ver. Eu vou jogar futebol pelo Anderlecht e vai acontecer rápido. Vamos ficar bem. Você não precisará mais se preocupar”.

Eu tinha seis anos.

Eu perguntei para o meu pai: “Quando eu posso começar a jogar futebol profissional?”

Ele disse: “Dezesseis anos”

Eu disse: “Ok, dezesseis anos, então”.

Aconteceria. Ponto final.

Deixa eu dizer uma coisa – todo jogo que eu já disputei foi uma final. Quando eu jogava no parque, era uma final. Quando eu jogava no recreio do jardim de infância, era uma final. Eu estou falando sério para caralho. Eu tentava rasgar a bola todas as vezes que eu chutava. Força total. Não estava chutando com o R1, brother. Não era chute colocado. Eu não tinha o novo Fifa. Eu não tinha um Playstation. Eu não estava brincando. Eu estava tentando te matar.

Quando eu comecei a ficar mais alto, alguns dos professores e pais começaram a me estressar. Eu nunca vou esquecer a primeira vez que ouvi um dos adultos dizer: “Ei, quantos anos você tem? Que ano você nasceu?”

E eu fiquei, tipo, o quê? Tá falando sério?

Quando eu tinha 11 anos, eu jogava pela base do Lièrse, e um dos pais do outro time literalmente tentou me impedir de entrar no gramado. Ele disse: “Quantos anos tem essa criança? Onde está o documento dela? Da onde ela veio?”

Eu pensei: “Da onde eu vim? O quê? Eu nasci na Antuérpia. Eu vim da Bélgica”.

Meu pai não estava lá porque ele não tinha carro para me levar aos jogos for a de casa. Eu estava completamente sozinho e precisava me impor. Eu fui pegar meu documento, na minha mala, e mostrei para todos os pais, e eles o passaram de mão em mão, inspecionando, e eu lembro do sangue me subindo à cabeça… e pensei: “Oh, eu vou matar o seu filho mais ainda agora. Eu já ia matá-lo, mas, agora, eu vou destruí-lo. Você vai levar seu filho para casa chorando agora”.

Eu queria ser o melhor jogador de futebol da história da Bélgica. Era esse meu objetivo. Não apenas bom. Não apenas ótimo. O melhor. Eu jogava com muita raiva por causa de muitas coisas… por causa dos ratos que viviam no nosso apartamento…. porque eu não podia assistir à Champions League… pela maneira como os outros pais olhavam para mim.

Eu estava em uma missão.

Quando eu tinha 12 anos, eu marquei 76 gols em 34 partidas.

Eu marquei todos eles usando as chuteiras do meu pai. Quando nossos pés ficaram do mesmo tamanho, nós as compartilhávamos.

Um dia, eu liguei para o meu avô – o pai da minha mãe. Ele era uma das pessoas mais importantes da minha vida. Ele era minha conexão com a República Democrática do Congo, da onde minha mãe e meu pai vieram. Então, eu estava no telefone com ele um dia, e eu disse: “Estou indo bem. Eu fiz 76 gols e ganhamos a liga. Os grandes times estão começando a me notar”.

E geralmente ele queria ouvir sobre os meus jogos. Mas, naquela vez, estava estranho. Ele disse: “Yeah, Rom, yeah, isso é ótimo. Mas você pode me fazer um favor?”

Eu disse: “Sim, qual?”

Ele disse: “Você pode cuidar da minha filha, por favor?”

Eu me lembro de ter ficado confuso. Sobre o que o vovô estava falando?

Eu disse: “A mamãe? Sim, estamos bem. Estamos ok”.

Ele disse: “Não. Você tem que me prometer. Você pode me prometer? Cuide da minha filha. Apenas cuide dela para mim. Ok?”

Eu disse: “Sim, vovô. Entendi. Eu prometo”.

Cinco dias depois, ele morreu. E, então, eu entendi o que ele queria dizer.

Eu fico muito triste pensando nisso porque eu gostaria que ele tivesse ficado vivo mais quatro anos para me ver jogar pelo Anderlecht. Para ver que eu cumpri minha promessa, sabe? Para ver que tudo ficaria bem.

Eu disse para minha mãe que eu conseguiria chegar lá quando tivesse 16 anos.

Eu errei por 11 dias.

24 de maio de 2009.

A final do playoff. Anderlecht versus Standard Liège.

Aquele foi o dia mais doido da minha vida. Mas precisamos retroceder um pouco. Porque no começo da temporada, eu mal estava jogando pelo sub-19 do Anderlecht. O treinador me colocou na reserva. E eu pensava: “Como vou conseguir um contrato profissional no meu 16º aniversário se ainda estou no banco pelo sub-19?”.

Então, fiz uma aposta com o treinador.

Eu disse para ele: “Eu garanto algo a você. Se você me colocar para jogar, eu vou fazer 25 gols até dezembro”.

Ele riu. Ele literalmente riu da minha cara.

Eu disse: “Vamos fazer uma aposta”.

Ele disse: “Ok, mas se você não fizer 25 gols até dezembro, você vai para o banco de reservas”.

Eu disse: “Certo, mas, se eu vencer, você vai limpar todas as minivans que levam os jogadores para casa depois do treino”.

Ele disse: “Ok, fechado”.

Eu disse: “E mais uma coisa. Você tem que fazer panqueca para nós todos os dias”.

Ele disse: “Ok, certo”.

Foi a aposta mais estúpida que o homem já fez.

Eu tinha 25 gols em novembro. Estávamos comendo panqueca antes do Natal, bro.

Que sirva de lição. Você não mexe com um garoto que está com fome.

Eu assinei contrato professional com o Anderlecht no meu aniversário, 13 de maio. Fui direto comprar o novo Fifa e um pacote de TV a cabo. Já era o fim da temporada, então estava em casa relaxando. Mas a liga belga estava doida naquele ano, porque Anderlecht e Standard Liège terminaram empatados em pontos. Então, haveria um playoff de duas partidas para decidir o título.

Durante o jogo de ida, eu estava em casa assistindo à TV como um torcedor.

Então, no dia anterior ao jogo de volta, eu recebi uma ligação do técnico dos reservas.

“Alô?”

“Alô, Rom. O que você está fazendo?”

“Saindo para jogar bola no parque”.

“Não, não, não, não, não. Faça suas malas. Agora mesmo”.

“Por quê? O que eu fiz?”

“Não, não, não. Você precisa sair para o estádio agora. O time principal pediu por você”.

“Yo….o quê? Eu?!”

“Sim. Você. Venha. Agora”.

Eu literalmente corri para o quarto do meu pai. “YO! Levanta, porra. Precisamos correr, cara!”.

“Huh? O quê? Pra onde?”

“ANDERLECHT, CARA”.

Eu nunca vou esquecer. Eu cheguei ao estádio e praticamente corri para o vestiário. O roupeiro disse: “Ok, garoto, que número você quer?”.

E eu disse: “Me dá a 10”.

Hahahahahaha sei lá, eu era muito jovem para ter medo, acho.

E ele: “Jogadores da base usam números acima do 30”.

Eu disse: “Ok, bem, três mais seis é igual a nove, e esse é um número legal, então me dá a 36”.

Naquela noite, no hotel, os jogadores adultos me fizeram cantar uma música para eles no jantar. Eu nem me lembro qual escolhi. Minha cabeça estava girando.

Na manhã seguinte, meu amigo literalmente bateu na porta da minha casa para ver se eu queria jogar futebol e minha mãe disse: “Ele saiu para jogar”.

Meu amigo: “Jogar onde?”

Ela disse: “Na final”.

Saímos do ônibus no estádio, e cada jogador estava usando um terno legal. Menos eu. Eu saí do ônibus usando um terrível agasalho e todas as câmeras de TV estavam na minha cara. A caminhada para o vestiário foi de talvez 300 metros. Talvez uma caminhada de três minutos. Assim que coloquei meu pé no vestiário, meu telefone começou a explodir. Todo mundo havia me visto na televisão. Eu recebi 25 mensagens em três minutos. Meus amigos estavam ficando loucos.

“Bro?! Por que você está no jogo?!”

“Rom, o que está acontecendo? POR QUE VOCÊ ESTÁ NA TV?”

A única pessoa que respondi foi meu melhor amigo. Eu disse: “Brother, eu não sei se vou jogar. Eu não sei o que está acontecendo. Mas continua vendo TV”.

Aos 18 minutos do segundo tempo, o treinador me colocou em campo.

Eu corri no gramado pelo Anderlecht aos 16 anos e 11 dias.

Perdemos a final naquele dia, mas eu já estava no céu. Eu cumpri a promessa para a minha mãe e para meu avô. Aquele foi o momento em que eu soube que ficaríamos bem.

Na temporada seguinte, eu ainda terminava o meu último ano do colégio e jogava na Liga Europa ao mesmo tempo. Eu precisava levar uma grande mochila para o colégio para poder pegar um voo no fim da tarde. Vencemos a liga com folga. Foi…uma loucura!

Eu realmente esperava que tudo isso acontecesse, mas talvez não tão rápido. De repente, a imprensa estava crescendo em torno de mim, e colocando todas essas expectativas nas minhas costas. Especialmente com a seleção nacional. Por algum motivo, eu não estava jogando bem pela Bélgica. Não estava funcionando.

Mas, yo – pera lá. Eu tinha 17 anos! 18! 19!

Quando as coisas corriam bem, eu lia os artigos de jornal e eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga.

Quando as coisas não corriam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga descendente de congoleses.

Se você não gosta do jeito como jogo, tudo bem. Mas eu nasci aqui. Eu cresci na Antuérpia, em Liège e em Bruxelas. Eu sonhava em jogar pelo Anderlecht. Eu sonhava em ser Vincent Kompany. Eu começava uma frase em francês e terminava em holandês, e colocava um pouco de espanhol e português ou lingala, dependendo do bairro em que eu estivesse.

Eu sou belga.

Somos todos belgas. É isso que faz este país legal, certo?

Eu não sei por que algumas pessoas do meu próprio país querem que eu fracasse. Eu realmente não entendo. Quando fui para o Chelsea e não estava jogando, eu os ouvi dando risada de mim. Quando fui emprestado para o West Brom, eu os ouvi dando risada de mim.

Mas tudo bem. Essas pessoas não estavam comigo quando colocávamos água no nosso cereal. Se vocês não estavam comigo quando eu não tinha nada, vocês realmente não podem me entender.

Sabe o que é engraçado? Eu perdi dez anos de Champions League quando era criança. A gente não podia pagar. Eu chegava à escola e todas as crianças estavam falando sobre a final e eu não sabia o que havia acontecido. Eu me lembro de 2002, quando o Real Madrid jogou contra o Bayer Leverkusen, e todo mundo falava “aquele voleio! Meu Deus, aquele voleio!”.

E eu tinha que fingir que sabia do que estavam falando.

Duas semanas depois, estávamos sentados na aula de computação, e um dos meus amigos baixou o vídeo da internet, e eu finalmente vi Zidane mandar aquela bola no ângulo com a perna esquerda.

Naquele verão, eu fui para minha casa para assistir ao Ronaldo Fenômeno na final da Copa do Mundo. A história de todo o resto daquele torneio eu ouvi das crianças da escola.

Eu lembro que eu tinha buracos nos meus sapatos em 2002. Grandes buracos.

Doze anos depois, eu estava jogando a Copa do Mundo.

Agora, estou prestes a jogar outra Copa do Mundo e meu irmão está comigo desta vez (o texto foi provavelmente escrito antes da convocação final porque Jordan Lukaku, irmão de Romelu, estava na pré-convocação, mas não chegou à lista final). Duas crianças da mesma casa, da mesma situação, que deram certo. Sabe de uma coisa? Eu vou me lembrar de me divertir dessa vez. A vida é curta demais para estresse e drama. As pessoas podem dizer o que quiserem sobre nosso time, sobre mim.

Cara, escuta – quando éramos crianças, não podíamos pagar para ver Thierry Henry no Match of the Day! Agora, estamos aprendendo com ele todos os dias no time nacional (Henry é auxiliar de Roberto Martínez, técnico da Bélgica). Estou junto com a lenda, em carne e osso, e ele está me dizendo tudo sobre como atacar os espaços como ele costumava fazer. Thierry deve ser o único cara no mundo que vê mais jogos do que eu. Nós debatemos tudo. Estamos sentados e tendo debates sobre a segunda divisão da Alemanha.

“Thierry, você viu o esquema do Fortuna Düsseldorf?”

Ele: “Não seja tonto. Claro que vi”.

Isso é a coisa mais legal do mundo para mim.

Eu apenas realmente, realmente gostaria que meu avô estivesse vivo para ver isso.

Não estou falando da Premier League.

Nem do Manchester United.

Nem da Champions League.

Nem da Copa do Mundo.

Não é disso que estou falando. Eu apenas queria que ele estivesse vivo para ver a vida que temos agora. Eu gostaria de ter mais uma conversa com ele por telefone, para poder dizer para ele…

“Viu? Eu disse para você. Sua filha está bem. Não há mais ratos no nosso apartamento. Ninguém mais dorme no chão. Não há mais estresse. Estamos bem agora. Estamos bem…

…Eles não precisam mais checar nossos documentos. Eles conhecem nosso nome”.

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Giacomo Joyce, de James Joyce

Giacomo Joyce, de James Joyce
Giacomo Joyce de James Joyce
Giacomo Joyce de James Joyce

Giacomo Joyce é um opúsculo de oito páginas (frente e verso) manuscritas, escritas em 1914. O texto esteve esquecido durante muitos anos e acabou sendo encontrado em Trieste por um irmão de Joyce, onde o escritor viveu. Hoje, pertence a um colecionador. O texto foi criado após Retrato do Artista Quando Jovem, antes de Ulysses e narra de forma muito poética a atração do autor por uma jovem aluna judia daquela cidade. Um amor, digamos, proibido. Giacomo era como os italianos chamavam o escritor, uma tradução para James. O texto surgiu em forma de livro apenas em 1968.  Esta bonita edição da Bestiário é bilíngue, com excelente tradução para o português de Roberto Schmitt-Prym. Não é uma narrativa circunstanciada, trata-se de um texto para ser lido com calma, ouvindo-se sonoridades e sentindo seu indiscutível erotismo. Parecem meras anotações poéticas escritas em formas livres que escondem um texto verdadeiramente belo.

Alguns trechos:

Lanço-me numa onda fácil de fala mansa: Swedenborg, o pseudo-Areopagita, Miguel de Molinos, Joaquim Abbas. A onda gasta. Sua colega de classe, retorcendo o corpo torto, ronrona num mole italiano vienense: “Che coltura!” As longas pálpebras piscam e se alçam: uma ponta de agulha em brasa pica e palpita na íris veluda.

Saltos altos estalam secos nos ressonantes degraus de pedra. Ar invernal no castelo, cotas de malha patibular, candeeiros de ferro tosco sobre as espirais das escadas circulares. Tique-taques de saltos, ecos altos e ocos. Alguém lá embaixo quer falar com a senhorita.

(…)

Saio apressado da tabacaria e a chamo pelo nome. Ela se volta e se detém para ouvir minhas confusas palavras falando de lições, horas, lições, horas: e lentamente suas pálidas faces se iluminam de inflamada luz opalina. Calma, calma, não tenha medo!

(…)

Minha voz morrendo nos ecos de suas palavras, morre como a voz exaustissábia do Eterno chamando a Abraão através das colinas ecoantes. Ela se encosta contra a parede acolchoada: feito odalisca na luxuriante escuridade. Seus olhos beberam meus pensamentos: e na mornez úmida e submissa de sua ingênua feminidade minha alma, dissolvendo-se, fluiu e verteu e inundou uma líquida e abundante semente… Agora que a possua quem quiser!… 

Joyce pensando em molhar a semente...
Joyce pensando em…

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A Morte do Pai (Minha Luta 1), de Karl Ove Knausgård

A Morte do Pai (Minha Luta 1), de Karl Ove Knausgård

A Morte do PaiA Morte do Pai é o primeiro volume da série Minha Luta, da qual já foi traduzido o quinto volume, sempre pela Cia. das Letras. O livro insere-se na categoria da autoficção, com o autor norueguês contando lentamente e fora de qualquer ordem cronológica sua autobiografia, sempre acompanhada de carradas de reflexões e lembranças, mais ou menos no gênero de Em Busca do Tempo Perdido. É claro que tudo depende da forma e da capacidade de Knausgård de ser interessante. E ele é. Muito interessante.

Este primeiro volume pode ser dividido em duas partes: na primeira o autor nos conta de sua adolescência e dos primeiros equívocos amorosos, na segunda é descrita a morte do pai do escritor. A morte do pai alcoolista é uma tragédia, mas Karl Ove pontua cada fato e objeto de um tal número de lembranças que a descrição da morte não chega a ser algo chocante, apesar do absoluto realismo de tudo o que é narrado.

As duas partes são ótimas. As sensações e impressões do adolescente bateram fundo em mim. Na verdade, pareciam minhas, totalmente minhas, apesar da distância cultural entre um jovem porto-alegrense e um norueguês. Já o luto de Karl Ove é lentamente trabalhado, bem, com seu trabalho de limpar a casa do pai após sua morte, antes do enterro.

Nada do que ocorre no livro é excepcional, o que garante a qualidade da narrativa é o próprio Knausgård, que repetidamente demonstra que tudo interessa. É um autor que nos aproxima de nós mesmos e nos comove contando pormenores de sua vida íntima com grande elegância, sinceridade e riqueza de detalhes.

Karl Ove Knausgård escreve com dolorosa honestidade. Lembra sua adolescência, seus pequenos grandes amores, sua relação com o rock e com sua distante mãe. E a perda do pai. Ele mostra nossa luta pela vida. É um trabalho profundo e hipnotizante que recomendo fortemente.

Acho que vou ler uns dois livrinhos e volto ao autor para ler o volume 2.

Karl Ove Knausgård
Karl Ove Knausgård

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Bola Em Transe #45 | Copa do Mundo 2018: a primeira rodada em debate

Bola Em Transe #45 | Copa do Mundo 2018: a primeira rodada em debate

O Bola em Transe #45 já está no ar. No podcast dessa semana debatemos a primeira rodada da Copa do Mundo da Rússia. Confere aí! Com Débora Nunes, Francisco Éboli, Moysés Pinto Neto e Milton Ribeiro.

Bola em transe

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Foram 8 anos no Sul21

Foram 8 anos no Sul21

A foto abaixo foi tirada na redação do Sul21 no dia 9 de março deste ano. No Facebook, até porque eu não disse nada, o pessoal pensou que era apenas mais uma sexta-feira feliz de uma turma meio festeira. Mas não, era minha saída do jornal. Por isso, estou bem no centro da foto. Era uma retirada voluntária e planejada, sem grandes traumas. É claro que paguei chopes pra galera, deixando todo mundo feliz, ora bolas, inclusive eu.

O dia da despedida na redação do Sul21
O dia da despedida na redação do Sul21 | Foto: Guilherme Santos, com o próprio, Luiza, Matheus, Annie, Luís Eduardo, Milton, Marco, Joana, Fernanda, Giovana e Ana.

Permaneci quase oito anos no Sul21. O jornal começou a publicar diariamente em maio de 2010 e fui efetivado em junho. Foi um período estável trabalhado entre pessoas honestas — a começar pela diretoria da empresa — e de bom nível. Aprendi muito e com muita gente.

Quando entrei, a sede do jornal era numa velha e charmosa casa da Rua Fernando Machado na encosta do morro perto do Alto da Bronze. A casa era pra lá de estranha, tinha uns cinco andares. Na verdade, cada um deles abrigava apenas uma sala ou banheiro. Eram escadas e mais escadas. Tenho lembranças muito boas de lá. Foi um período de enorme crescimento do jornal. Começou ainda na gestão da Núbia Silveira como editora e depois explodiu com o Daniel Cassol, certamente a mais criativa das pessoas com as quais trabalhei no Sul21. O Cassol dava um jeito de tornar interessante a mais chata das audiências públicas. Se houvesse mais gente como ele, as publicações de esquerda seriam bem mais confiáveis e lidas do que são.

Ainda no tempo do Cassol, mudamos para a atual sede da Gen. Câmara, muito mais funcional e próxima de bares, restaurantes e das sedes do governo e assembleia.

Não pretendo escrever aqui a história do jornal, apenas fazer um agradecimento geral, publicar as fotos que tenho e seguir a vida. Trabalhei como editor-assistente, repórter e me metia onde achava necessário dar uma ajuda. Em minha fase final, tornei-me editor do Guia21. Até hoje me pedem para criar um Guia do Ócio no meu blog, mas vai ser complicado. Não tenho muito tempo e teria que voltar aos cinemas.

Dia desses, numa manhã em que acordei cedo, fiquei olhando para o teto, fazendo uma lista de todas as pessoas com as quais trabalhei no jornal. São jornalistas, colunistas e blogueiros que tiveram repetidas participações e que, portanto, fizeram o Sul21. Peço antecipadamente perdão a quem esqueci. Gosto de todo mundo e muitos deles já me deram o prazer da presença aqui na Bamboletras. Vamos à lista e depois às fotos?

Adroaldo Mesquita da Costa
Ana Ávila
André Carvalho
Annie Carolline Castro
Antônio Escosteguy Castro
Augusto Maurer
Astrid Müller
Bárbara Arena
Benedito Tadeu César
Bernardo Jardim Ribeiro
Bruno Alencastro
Caio Venâncio
Carlos Latuff
Carmen Crochemore
Caroline Ferraz
Céli Pinto
Cristiano Goulart
Cristóvão Crochemore Restrepo
Daniel Cassol
Daniela Sallet
Daniele Brito
Débora Fogliatto
Eduardo Silveira de Menezes
Enéas de Souza
Ernani Ssó
Felipe Nino Prestes
Fernanda Canofre
Fernanda Melchionna
Fernanda Melo
Fernanda Morena
Filipe Castilhos
Flávio Fligenspan
Francisco Marshall
Gabriela Silva
Gilmar Eitelwein
Giovana Fleck
Gregório Lopes Mascarenhas
Guilherme Escouto
Guilherme Santos
Igor Natusch
Israel Cefrin
Iuri Müller
Jaqueline Silveira
Joana Gutterres Berwanger
Jorge Buchabqui
Jorge Seadi
Julia Landim Lang
Lélia Almeida
Lorena Paim
Lucas Cavalheiro
Lucia Serrano Pereira
Luís Augusto Farinatti
Luís Eduardo Gomes
Luiz Antônio Timm Grassi
Luiza Bulhões Olmedo
Luiza Frasson
Maia Rubim
Manuela d`Ávila
Marcelo Delacroix
Marco Weissheimer
Mariana Duarte
Marino Boeira
Matheus Leal
Milena Giacomini
Mogli Veiga
Musta Juli
Natália Otto
Nícolas Pasinato
Nikelen Witter
Nelson Rego
Núbia Silveira
Paulo Timm
Pedro Nunes
Pedro Palaoro
Rachel Duarte
Ramiro Furquim
Raul Ellwanger
Roberta Fofonka
Robson Pereira
Ronald Augusto
Rui Felten
Samir Oliveira
Sergio Araujo
Tiago Prosperi
Tyaraju Terra
Vicente Nogueira
Vivian Virissimo
Vlad Schilling
Yara Pereira
Zeca Azevedo

O time crescendo ainda na sede da Rua Fernando Machado
O time crescendo ainda na sede da Rua Fernando Machado | Ramiro, Vlad, Rachel, Seadi, Vivian, Igor, Guilherme Escouto, Prestes e Milton.
Já em nosso escritório extra oficial: o Bar Tuim.
Já em nosso escritório extra oficial: o Bar Tuim. | Samir, Prestes, Rachel, Pedro, Milton, Vivian e Igor.
No restaurante do SindiBancários, comemorando o primeiro mês em que alcançamos 1 milhão de acessos.
No restaurante do SindiBancários, comemorando o primeiro mês em que alcançamos 1 milhão de acessos. | Carmen, Milton, Débora, Igor, Samir, Nícolas, Iuri, Guilherme Escouto e Rachel
Parte do time num encontro no Café Macuco da Jerônimo Coelho.
Parte do time num encontro no Café Macuco da Jerônimo Coelho. | Igor, Milton, Iuri, Bernardo, Fofonka e Débora.
Aniversário do Igor. Nossa chefe tinha viajado e deixado alguma grana pra nós. Sobrou. No último dia...
Aniversário do Igor. Nossa chefe tinha viajado e deixado alguma grana pra nós. Sobrou. No último dia… | Samir, Igor, Débora, Iuri, Nícolas, Milton, Guilherme Escouto e Bernardo.
No elevador voltando para o trabalho após o almoço.
No elevador voltando para o trabalho após o almoço. | Bernardo, Milton, Samir, Débora, Fofonka e Nícolas.
Apesar dos sorrisos, um dia não muito feliz: o da saída do Ramiro Furquim.
Apesar dos sorrisos, um dia não muito feliz: o da saída do Ramiro Furquim. | Caio, Débora, Samir, Yara, Guilherme Escouto, Ramiro, Carmen, Mariana, Milton, Fofonka, Bernardo e Jaqueline.
No primeiro Gre-Nal com torcida mista.
No primeiro Gre-Nal com torcida mista em encontro não combinado. | Latuff, Milton, Igor, Caio e Filipe.
Mil almoços no Tuim.
Mil almoços no Tuim. | Milena, Milton e Luís Eduardo.
Mil e um almoços no Tuim.
Mil e um almoços no Tuim. | Milena, Gregório, Milton e Joana.

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Hoje, Bloomsday, poderíamos conversar sobre o sexo — e algo mais — em Ulysses?

Hoje, Bloomsday, poderíamos conversar sobre o sexo — e algo mais — em Ulysses?

Todo ano é a mesma coisa. Ainda bem. Desde o final da década de 20 do século passado, sempre no dia 16 de junho, um número crescente de leitores e admiradores de James Joyce reúnem-se para celebrar o autor de Ulysses (1922), obra que se passa no dia 16 de junho de 1904. Naquelas quase mil páginas, há sexo por todo lado e, em uma palestra que dei para o Bloomsday de 2012, tratei desse assunto. Claro, não é uma palestra acadêmica e dei risadas com a primeira pergunta que surgiu após a mesma: “Já assisti mais de dez palestras em Bloomsdays, porque só me diverti nesta aqui?”.

Abaixo, está todo o texto de preparação que escrevi para aquele dia.

.oOo.

A única exigência que faço a meu leitor é que dedique a vida inteira à leitura de minhas obras.
(The only demand I make of my reader is that he should devote his whole life to reading my works).

JAMES JOYCE

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Esta é uma piada de Joyce, mas tem gente que se assusta muito com ela e mais ainda com aquilo que é dito sobre Ulysses. Se quiséssemos estabelecer uma categoria de livros mais elogiados, citados, incensados e menos lidos, Ulysses, de James Joyce, talvez encabeçasse a lista. Este é um fenômeno que surpreende, pois contrariamente a, por exemplo, O homem sem qualidades, de Musil, Ulysses é um livro escandalosamente colorido, engraçado e divertido. E sexual. Uma leitura desatenta torna certamente o livro uma chatice, uma leitura interessada já basta para torná-lo um grande romance, mesmo que não se queira entrar nos enigmas e quebra-cabeças que manterão os professores ocupados durante séculos, conforme disse o autor. A leitura 100% compreensiva talvez seja inalcançável ao leitor comum, porém, como sublinhou Karen Blixen (Isak Dinesen), não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético. Obviamente, Ulysses se beneficia com outras leituras, com a crítica, com consultas e com uma vasta cultura, porém, como assegura o tradutor da última versão brasileira, Caetano Galindo, Ulysses pode ganhar mais se for apresentado sozinho, sem notas explicativas. É importante lembrar que Ulysses é, em primeiro lugar, um romance, um dos maiores de todos, não um quebra-cabeça. Isto não anula de modo algum todo o aparato que costuma cercá-lo, apenas diz que tal parafernália pode estar em outro lugar que não atrapalhando a leitura.

O habitual é que as pessoas se aproximem de Ulysses com cuidado. Livro difícil, cheio de armadilhas. Tudo se passa num só dia, em 16 de junho de 1904. São 18 capítulos, cada um com aproximadamente uma hora de ação; cada um escrito num estilo diferente; cada um deles sendo uma paródia de um episódio da Odisseia de Homero; em cada um, um sistema detalhado de referências a uma ciência ou ramo do conhecimento; em cada um, uma parte do corpo humano é alçada a símbolo; em cada um, uma infinidade de enigmas, jogos de palavras, paródias, trocadilhos, neologismos, arcaísmos, estrangeirismos e todas as operações com a linguagem que você puder imaginar e mais algumas, como escreveu o ensaísta Idelber Avelar.

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Joyce orgulhava-se do fato de Ulysses quase não possuir enredo

Porém, a história não pode ser mais simples e Joyce ufanava-se do fato de seu romance ter quase nada de trama. Como escreve Idelber, naquele dia, hoje conhecido como Bloomsday, Stephen Dedalus, professor de escola secundária, conversa com seu amigo Buck Mulligan, dá uma aula e passeia pelas margens do Liffey; Leopold Bloom, vendedor, efetivamente muito pouco atormentado pelas repetidas traições de Molly, sua mulher, toma café da manhã, vai a um funeral, visita um editor de jornal, lancha num bar, olha um anúncio de jornal na biblioteca (enquanto Dedalus discute Shakespeare com amigos), responde a uma carta recebida, leva porrada de um anti-semita, masturba-se observando Gerty MacDowell tendo por background um ofício religioso, encontra-se com Dedalus num hospital, leva-o a um bordel e convence-o a acompanhá-lo até a sua casa; ambos urinam no jardim; Bloom entra e se deita ao lado de Molly, que fecha o romance com um monólogo cheio de pornografia. Fim.

A imagem ao lado pode ser eficaz para demonstrar as diferenças de Joyce em relação a um autor muito mais lido, Franz Kafka. Imaginem a literatura moderna dentro de um modelo matemático de abscissas e ordenadas, um modelo plano, simples e, principalmente, redutor. Considerem que a gente deva colocar os autores espacialmente e que a abscissa seria o grau de complexidade narrativa e a ordenada seria a complexidade dos temas. Pois bem, então comparemos Joyce com outro autor canônico, Franz Kafka. Enquanto Joyce cria histórias rotineiras dentro de narrativas complexas, Kafka seria sua antítese, com narrativa mais convencional, porém, com temas e histórias insólitas e — para repetir o termo e dar exatidão matemática (?) à analogia — , complexas. Em nosso modelo, eles estariam bem longe um outro. É claro que estamos desconsiderando uma importante terceira dimensão, o arsenal de referências joyceano e uma quarta, o grau de representação social. Sem esta última, certamente não omemoraríamos o Bloomsday.

No Brasil, Ulysses foi traduzido três vezes. A primeira tradução foi a que o filólogo Antônio Houaiss fez em 1966 para a Civilização Brasileira. A segunda tradução foi a da filósofa, professora emérita e tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro. É uma tradução mais coloquial e menos pudica que o intrincado e envergonhado trabalho de Houaiss. Em 2012, tivemos a terceira tradução, do professor e doutor em linguística Caetano Galindo para a Penguin / Companhia das Letras. Esta última tradução é superior às duas anteriores. Coloca-se entre a Ítaca do coloquialismo de Bernardina e a possível Troia de Houaiss. De bônus, traz um excelente ensaio do crítico irlandês Declan Kiberd, uma das maiores autoridades em Joyce, um sujeito que escreveu um best seller de crítica literária chamado Ulysses and Us.

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Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes (sempre tão gentis, diria Chico Buarque) que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Seu filho, Telêmaco, aconselhado pela deusa Palas Atena, sai em busca do pai. Em resumo, temos as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria, a fidelidade da mulher ao marido ausente e um filho à procura do pai.

Desenho de Leopold Bloom, de James Joyce (clique para ampliar)

Pois então abrimos Ulysses e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, cujo nome de nascimento é Marion Tweedy), não é nada fiel. Stephen Dedalus (Telêmaco), embora insatisfeito com o pai que tem, não está atrás de outro. (Na verdade, Bloom pranteia um filho morto,  Rudy, e deseja que Stephen vá morar com ele e Molly). Bloom é um Ulisses nada heroico, um judeu irlandês de vida comum, que sabe de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue. O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas. Sim, mas e o sexo?

Zurique, 1918. Nora Barnacle Joyce com os filhos Giorgio e Lucia.

Joyce refere-se a ele já no primeiro enigma do romance: a escolha da data. Por que 16 de junho de 1904? Ora, porque foi nesse dia que Nora Barnacle fez de Joyce um “homem de verdade”. Alguns críticos consideram que o livro seria uma espécie de declaração de amor que o escritor fazia a sua esposa e amante. No dia 16 de Junho de 1904, o casal saiu para um passeio pela primeira vez. Joyce não levou Nora para os cafés, teatros, nem para o centro de Dublin, mas pelas ruas que vão dar no cais. Foram até a área de Ringsend que, naquela noite, estava deserta. Nora não perdeu tempo. Desabotoou as calças de Joyce e masturbou-o com mestria, “com olhos de santa”. Era a primeira vez que Joyce tinha sexo de graça e o fato revestiu-se de grande importância.

Ulysses foi publicado no dia de aniversário de 40 anos de Joyce, em 2 de fevereiro de 1922. Antes, em 1919, alguns capítulos tinham sido publicados na revista The Egoist (Londres). Resultado: impressores e assinantes ameaçaram demitir-se em função da pornografia envolvida… Em 1921, outros capítulos foram publicados em The Little Review (Nova Iorque). Resultado: a edição foi retirada de circulação e suas editoras multadas. Acusação: grossa pornografia.

O cais em Ringsend, subúrbio de Dublin
Porém, conhecendo Joyce, eu apostaria em outro local bem próximo, o das proximidades da igreja de St. Patrick

Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):

Se ele tivesse sorrido por que teria sorrido?

Para refletir que cada um que entra (na cama) imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só em uma série que se origina e se repete ao infinito.

Trad. Caetano Galindo 

Este trecho jamais poderia ser admitido a escritor preso aos códigos machistas da sociedade do início do século passado. Seria improvável para um homem comum do começo do século XX chegar à conclusão que Bloom chegou a respeito do adultério de Molly, da qual ele nem cogita separar-se: Assassinato, jamais, pois que dois males não perfaziam um bem. E chegamos gloriosamente ao pensador que Joyce era e, principalmente, a um leitor de Freud.

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Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.

NORA BARNACLE

Hum...
Hum…

Em Ulysses, Leopold Bloom é um cidadão irlandês, pai e marido de Molly. Teve dois filhos, Milly e Rudy, sendo que o segundo morreu onze dias após o nascimento e Milly — que está com 15 anos em 16 de junho de 1904 — estuda em outra cidade. Ela aparece no romance apenas nas saudades de Bloom, o qual também lamenta muitíssimo a perda de Rudy. Ele é um bom pai de quase quarenta anos e começa o dia de forma tipicamente irlandesa. A primeira coisa que come são rins de carneiro grelhados, eles exalam um leve e inebriante perfume de urina. Porém, não vim aqui criticar a gastronomia irlandesa e britânica. Faço referência a este quarto capítulo porque nele Bloom aparece servindo sua mulher-ninfa na cama. É importante notar que é ele quem serve o breakfast,  não o contrário. Bloom, que foi confessadamente criado por Joyce para ser o homem comum, o everyman, aparece sem heroísmos, com uma dimensão inteiramente humana, sem atitudes épicas.

A primeira página de Ulysses no manuscrito de Joyce

Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus:

Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade? Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo.

O amor de Bloom manifesta-se diferentemente, ignorando posturas machistas, nas atitudes e nos pensamentos em relação à família, mas uma das surpresas de Ulysses é como esta rotina é contraposta à sexualidade que aparece no romance. Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente as abordagens sexuais inteiramente diversas e as tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas, masturbatórias e, por que não dizer?, masoquistas. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.

Os limites rígidos que compunham a prática religiosa e as normas sociais na virada do século XX são demasiadamente sufocantes para a expressão de Joyce da individualidade e do desejo carnal. No episódio em que Bloom masturba-se na praia, observando Gerty MacDowell, tendo por fundo um culto religioso, Joyce não apenas justapõe religião e erotismo, mas incorpora uma prática sexual não convencional.

Bloomsday em Dublin. Leopold põe os olhos em Gerty MacDowell.
No filme Bloom, o ator Stephen Rea na cena da praia
Maão no bolso… No filme Bloom, o ator Stephen Rea na cena da praia

Com isto, ele desafia o senso comum do que seria a sexualidade na virada do século XX e utiliza seu romance como um veículo através do qual pode expressar seu desejo de fundamentar sua crença no instinto e no físico — não esqueçam que cada capítulo do Ulysses refere-se também a uma parte do corpo humano. Para Joyce, a sexualidade é um ato de expressão da natureza. Neste sentido, concordava inteiramente com D. H. Lawrence, o qual desejava conceder ao corpo um reconhecimento igual ao que era dado à mente. É claro que tais intenções do romance iam ao encontro das teorias de Freud — o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana –, mas ia contra a moral vigente da virada do século. Os encontros de Bloom com mulheres no livro parecem servir de alívio para a exclusão social e a traição de Molly, são o meio utilizado por ele para adquirir o equilíbrio ou equanimidade entre sua existência e a de Molly.

Sandymount Strand, onde Stephen Dedalus caminha imaginando-se cego e onde Leopold Bloom encontra Gerty McDowell em Ulysses

Ulysses é um texto que procura minar e redefinir as noções de gênero e de hierarquia na sociedade patriarcal da época. O romance não promove a superioridade masculina, mas eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde e desafia a noção de gênero na dicotomia da criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, desafia os estereótipos que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.

Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.

Poderíamos definir a pornografia como a apresentação de cenas destinadas a despertar desejo sexual no observador? Assim como num filme de sexo explícito, Ulysses rastreia movimentos e sensações corporais, realizando (ou escandalizando) o desejo do leitor de observar com precisão a mecânica do corpo. No entanto, Joyce não faz pornografia: aqui, a predição de Rushdie funciona perfeitamente: apesar de possuir elementos pornográficos, Ulysses oferece a transformação da pornografia em uma forma de arte clássica. Tendo lido e estudado psicanalistas como Freud, Joyce nos oferece não apenas uma nova ficção e linguagem, oferece-nos um ponto de vista original para entender o sexo. A atitude perante a sexualidade estava mudando após a virada do século, especialmente na esfera psicanalítica, e Joyce reflete em Ulysses este novo interesse na sexualidade, o crescimento de uma ciência sexual e o desenvolvimento de novos conceitos que rompiam cabalmente a associação entre sexualidade e reprodução. Joyce pertencia ao grupo de grandes pensadores da época, que procuravam entender e redefinir a sexualidade. Declan Kiberd afirma jocosamente que “Ulysses era não apenas um exemplo de um empreendimento comercial de alto risco, mas também um manual muito particular que extrapolava em muito questões literárias”.

É importante salientar a relação de Joyce com a tradição inglesa do romance. A Irlanda estava sob o domínio inglês. Os ancestrais de Joyce abandonaram lentamente o gaélico — ainda falado em regiões rurais da Irlanda — pelo inglês. Deste modo, os irlandeses viviam a uma certa distância da literatura inglesa ou ao menos utilizavam a língua com menor respeito, muitas vezes com insolência. Deste modo, há, além das ideias de Joyce, um aspecto sociológico que torna a quebra da tradição um ato até desejável de afirmação de nacionalidade. Joyce não falava mal de Dublin e da Irlanda, como alguns afirmam, mas era, sim, contra a sentimentalização do passado, revoltava-se contra o provincianismo de achar que o passado — mesmo um inventado, como o dos gaúchos tradicionalistas — ia voltar.

O Rio Liffey e a Ponte Ha’penny Bridge em Dublin, Irlanda

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Os monólogos interiores de Ulysses ainda eram uma novidade na época do lançamento do livro. Na verdade, o stream of consciousness não foi uma invenção de Joyce e sim do francês Édouard Dujardin, cujo livro Os loureiros estão cortados foi lançado pela editora porto-alegrense Brejo, em 2005, com prefácio explicativo de Donaldo Schüller. O monólogo interior permite ao leitor de Joyce, fazer o contraste entre a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo contra o fundo da pobreza de suas relações sociais. Quando comparados com a vida interior dos personagens, os diálogos de Ulysses não são grandemente satisfatórios. Leopold Bloom não perdoa as traições de Molly verbalmente, porém sabemos detalhadamente, por seu íntimo, que ela está perdoada. Os personagens do Ulysses são enorme, imensamente fluentes em seus interiores, mas não são nada articulados verbalmente. Vão embora sem dizer o que têm em mente e é apenas na solidão que alcançam suas verdadeiras vozes. O que dizer do monólogo final de Molly Bloom? Ali ela expõe-se de uma forma muito transgressora — não está sozinha enquanto o marido dorme ao lado? — , tem fantasias que surpreendem mesmo um século depois. Joyce, escrevendo de dentro dos pensamentos do cérebro de Molly, constrói o gozo feminino com primeiro com liberdade e depois com humor, celebrando como nunca antes o desejo da mulher numa época em que a psicanálise ainda não o fazia.

Os encontros, como o de Bloom com Gerty MacDowell, são em geral sem palavras, conduzidos pelo corpo. Há muitas frases pela metade. Por exemplo, após masturbar-se na praia, Bloom escreve na areia “sou um”. O casamento com Molly também serve para ilustrar a falta de articulação. É uma ligação silenciosa de duas pessoas que compartilham uma casa, uma cama, quem sabe amor, mas não uma vida.

Angelina Ball no filme Bloom (2003), de Sean Walsh

E Bloom, como dissemos, comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com uma mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: eles dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha com as regras”. Também como talvez uma mulher fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela o veja em seu melhor ângulo. Depois Gerty faz o mesmo.

Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o leitor entra nos pensamentos de Molly enquanto ela se encontra na cama ao lado de Bloom, ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de sua família. Quando lembra da amamentação de Milly, ela fala que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser uma provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil. Nas duas hipóteses, o texto de Joyce subverte a masculinidade.

Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. No monólogo, Molly exibe suas características masculinas na recapitulação de seu primeiro encontro sexual com Bloom em Howth Head, em consonância com que já sabíamos de Bloom: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca), como se fosse uma mamãe pássaro.

Howth head
Howth Head map

Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação com as mulheres de Dublin.

Em Ulysses, Joyce tenta descrever outras situações da sexualidade humana, ainda não presentes em romances. Joyce não julga nem demonstra desejo de advogar como acertadas, entre aspas, determinadas práticas ou condutas sexuais, mas revela a inconsistência dos comportamentos estereotipados de gênero, ao mesmo tempo que coloca o desejo no centro de muitas, muitíssimas de nossas ações.

Além de contradizer a sociedade, Joyce igualmente contradiz a religião. A masturbação de Bloom é justaposta a um serviço religioso, claramente a fim de comentar as restrições que a religião coloca sobre as expressões sexuais pessoais. Descrevendo o Bloom onanista, com o serviço religioso ocorrendo em background, Joyce faz várias citações bíblicas, transformando Gerty num piedoso emblema de uma Virgem Maria de natureza libidinosa, que incita Bloom. Joyce parece fazer piada com a possibilidade da religião dominar o desejo carnal, apresentando a concupiscência como um componente óbvio e intrínseco a toda a existência humana. E segue desafiando modelos quando Bloom se envolve em encontros voyeuristas durante sua jornada em Dublin.

Joyce conhecia e respeitava Freud, porém Ulysses não necessariamente se encaixa nas obras dos psicanalistas da época. A incorporação da sexualidade pelo Ulysses exemplifica principalmente um não-conformismo. Durante todo aquele 16 de junho, os protagonistas do Ulysses tiveram que enfrentar muitas coisas. Porém, quando focamos uma lente crítica sobre as representações de sexo no romance, podemos notar como Joyce foi cuidadoso ao construir e apresentar os apetites sexuais de cada personagem. Ao usar o sexo como uma ligação entre seus personagens e leitores, James Joyce foi capaz de criar representações universais formadas por muitas camadas. Notem como o romance é finalizado com o orgásmico “sim” de Molly, algo que é final e evidentemente muito afirmativo. Foi certamente a primeira vez que tivemos acesso a tamanha interioridade. O recurso narrativo do fluxo de consciência, despregado das limitações dialogais, demonstra claramente cada identidade.

Segundo Álvaro Lins citado em artigo do escritor Franklin Cunha, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Consciência e subconsciência, angelitude e animalidade, idéias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro que Joyce busca apresentar em sua obra. No imenso mar joyceânico nenhuma concepção é ignorada, elas estão no livro e nas mentes dos personagens bem como estão as realidades que as representam. Segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos,” edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa e um acompanhamento das variações e complexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes.

Estilisticamente pantagruélico, Joyce, em Ulysses, não apenas constrói o romance moderno como o ameaça com um catálogo aparentemente interminável de temas e estilos. E, dentro deste amplo cenário, invoca Eros como metáfora universal da condição humana..

placa bloom

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Bom dia, Odair (com os gols do promissor Inter 3 x 1 Vasco)

Bom dia, Odair (com os gols do promissor Inter 3 x 1 Vasco)

Numa noite fria, sob o olhar de 22,5 mil torcedores, o Inter realizou uma bela exibição antes da parada da Copa do Mundo. Venceu o Vasco por 3 x 1. Odair surpreendeu ao escalar Nico López no lugar do suspenso Edenílson. E Nico fez o que sabe: abriu o marcador logo de cara, acertando um violento chute cruzado de dentro da área.

Enfim, iniciamos uma partida com Nico López. Deu no que deu | Foto: Ricardo Duarte
Enfim, iniciamos uma partida com Nico López. Deu no que deu | Foto: Ricardo Duarte

Mas o que importa é que, apoiado em boa solidez defensiva e com atuação fundamental de Dourado, o Inter está crescendo, mesmo sem os bons Zeca e Dale.

Claro que o Vasco não é nenhuma Brastemp, mas quando se está mal até peido descadeira.

Com a entrada de Nico no time ontem, abrem-se novas possibilidades para ti, Odair. Edenílson pode entrar na lateral direita quando Zeca não jogar, com Nico Lopes no enganche. Com todos os titulares, querendo um futebol ofensivo, pode-se jogar com Zeca de lateral, com Nico como jogou hoje e com D’Alessandro no lugar do Pottker. Ah, e teremos Rithely. Interessante, né?

Pottker voltou a jogar coisa nenhuma. Mas coisa nenhuma mesmo!

Achei ridículo o cartão amarelo recebido por Patrick. O futebol tem que ter humor e símbolos. Além disso, todo mundo sabe que o Pantera Negra tem a ver com o orgulho negro. Não é mera frescura nem coisa de guri.

Agora temos 22 pontos em 36 disputados (12 jogos). São 61% de aproveitamento. É bom notar que quase 1/3 do Brasileirão já passou. Destes 12 jogos disputados, já jogamos contra 7 do G-10, faltando apenas Atlético-MG e Botafogo (o décimo do G-10 somos nós). Faltam 23 pontos para ficarmos livres da Serie B e uns 37 para estarmos no grupo que vai para a Libertadores 2019.

Ou seja, a situação é boa por todas as perspectivas que possamos analisar. Ainda há o fato de muita gente boa, estar envolvida com Copa do Brasil e Libertadores. Bem, vamos ver a Copa e treinar em Atibaia para os outros 2/3 do Brasileiro.

Dá-lhe, Odair.

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Dia dos Namorados

Dia dos Namorados

A gente namora bastante de todo tipo de namoro. A gente se olha, conversa, se beija, se olha de novo, se abraça, faz planos, se apressa ou deixa tudo devagar, sempre juntos. O fato é que a Elena me mesmerizou desde a primeira vez que a vi. Eu nem sabia quem era — nem se vinha da Bielorrússia ou do Recife — e logo pensei: nossa, ela me atrai muito. E era violinista. E só depois soube que ela tinha linda expressão verbal e uma inteligência luminosa. Por isso é que, quando fico mal, sem solução, só posso pensar que estou sendo injusto com a melhor parte de minha vida. Elena, o que dizer além de eu te amo se o que quero dizer é que te amo? (Obrigado, Pessoa!)

Aqui no Brasil a gente não comemora o Valentine`s Day, mas o Dia dos Namorados num dia como hoje, 12 de junho. Tenho uma pequena história com o Valentine`s. Em 2014, em 14 de fevereiro, eu e a Elena fazíamos uma escala em Lisboa para chegar a Londres à tarde. À noite, fomos a um pub, o primeiro da Elena. Estava esquisito lá dentro, todas as mesas tinham velas e rosas. Então descobrimos o motivo, sentamos e ficamos sorrindo um para o outro. Sob meu sorriso havia o pensamento de que planejara detalhadamente toda a viagem, mas jamais aquele encontro tornado subitamente romântico sob o frio, a bruma e as luzes londrinas. E pensei, fazendo uma piada de mim para mim: “O que mais dará errado?”.

Feliz Dia dos Namorados, querida.

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